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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

RECUAR PARA SALTAR MELHOR


por Leonardo Boff

O Natal não é apenas uma pausa na labuta pela vida, tempo denso para o encontro  festivo com os familiares e amigos ao redor da celebração do Puer aeternus, o nascimento de Deus sob a forma humana. A antropologia cristã irá afirmar que o ser humano só será plenamente humano, se a Última Realidade, Deus, se fizer também humana. Ensinavam os Padres antigos que “Deus se fez homem (ser humano) para que o homem se fizesse Deus”. Por detrás está a compreensão, também dos modernos, de que o ser humano é movido por um desejo infinito que somente descansa quando identificar no seu  processo de individuação uma Realidade igualmente infinita, a ele adequada. É a experiência de Santo Agostinho do cor inquietum  (o coração inquieto) que só se aquieta quando encontra finalmente o Infinito desejado.
Esse dia maior possui também um significado antropológico relevante:  reforça valores e sonhos que nos devem sustentar por toda uma vida, ao menos, por todo um ano, sonhos de paz, de reconciliação, de solidariedade e de amor. O ano que entra, 2018, promete ser um ano carregado de tensões e até de violências no mundo e no Brasil.
No mundo há o risco de que dois líderes políticos, o presidente norte-americano e o chefe político da Coréia do Norte, perderem o sentido da vida humana e a responsabilidade pela Casa Comum e deslancharem um processo de guerra  com armas nucleares que podem pôr em risco a biosfera e as condições vitais da civilização humana. Não se pode brincar com o princípio de auto-destruição que nossa  civilização tecnológica irracionalmente criou.
Não devemos esquecer também os lugares de grande periculosidade para o nosso futuro: o Oriente Médio, a questão palestina nunca resolvida e agora agravada pela intervenção do presidente Ronald Trump ao declarar Jerusalém a capital exclusiva do Estado de Israel, destruindo as pontes frágeis de diálogo e de negociação entre israelenses e palestinos.
Seria insensibilidade demasiada de nossa parte, não nos referirmos aos milhões de famintos do mundo, especialmente aos condenados de morrer de fome na Afria, adultos e principalmente crianças. É uma via-sacra de sofrimento, tanto mais doloroso quanto temos consciência de que poderíamos evitá-lo totalmente, pois dispomos de condições tecnológicas e financeiras para oferecer a cada um dos habitantes deste planeta uma vida suficientemente abastecida e decente. Não o fazemos porque ainda não sentimos o outro como um co-igual, um irmão e uma irmã,  um companheiro na curta passagem pela Terra. Não temos vontade ético-política e humanitária. Predomina o individualismo e o egocentrismo dentro da lógica férrea da concorrência sem sinais específicos que nos fazem humanos: a solidariedade.
Vivemos, em termos globais, a clara percepção de uma ruptura civilizatória: vale dizer, assim como o mundo se organiza não pode continuar, pois nos levaria a um caminho sem retorno. Vale repetir o que disse Z. Bauman em sua última entrevista antes de falecer: ”Estamos (mais do que nunca antes na história) em uma situação de verdadeiro dilema: ou nos damos as mãos ou nos juntamos ao cortejo fúnebre do nosso próprio enterro em uma mesma e colossal vala comum”.
O Brasil é o nosso caso particular. Vivemos desde 2016 tempos de grande desamparo e desesperança coletiva, pela deposição até hoje questionada pelas mais lúcidas inteligências jurídicas e políticas de nosso país, dando lugar a um Estado de exceção, com políticas sociais altamente restritivas de direitos conquistados pelo mundo do trabalho e pelos mais vulneráveis, tudo de costas para o povo e à revelia de preceitos constitucionais. Ninguém pode nos dizer qual será o desfecho final da crise de nosso sistema politico-social.
Temos esperança de que o sofrimento coletivo não será em vão. Como diz um proverbio francês: “réculer pour mieux sauter” :“recuar para saltar melhor”. Seguramente  sairemos desta crise melhores, com um projeto de nação mais fundacional e soberano. O recuo é para saltar melhor e mais alto. Trata-se de salvar e aprofundar a democracia de cunho eco-social e as liberdades democráticas.
Essa é uma tarefa não apenas desse momento crucial mas tarefa diuturna, consoante as sábias palavras de Goethe em seu Fausto:”Só ganha a sua liberdade e a existência aquele que diariamente as reconquista”.
Estes são meus votos a todos e a todas para 2018.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e em fevereiro sairá o livro: Brasil: aprofundar a refundação ou prolongar a dependência pela Editora Vozes 2018.



quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

NATAL, NASCER DE NOVO

Por Frei Betto

      Natal é tempo de desconforto. Premidos pela publicidade que troca Jesus Cristo por Papai Noel, somos desdenhados como cidadãos e aliciados como consumidores.
      Ainda que com dinheiro no bolso, instala-se um oco em nosso coração. Aquece-se a temperatura de nossa febre consumista e, discípulos fundamentalistas de esdrúxula seita, adentramos em procissão motorizada nas catedrais de Mamon: os shopping centers.
      Nessas construções imponentes, falsos brilhantes da cenografia cosmopolita, aguardam-nos as oferendas da salvação, premissas e promessas de felicidade. Exibidas em requintados nichos, vitrines reluzentes, acolitadas por belas ninfas, as mercadorias são como imagens sagradas dotadas do miraculoso poder de nos fazer ingressar no reino celestial dos que tudo fazem para morrer ricos.
      Livres de profanas figuras que poluem o exterior, como as crianças que transmutam as janelas de nossos carros em molduras do pavor, percorremos silentes as naves góticas, enlevados pela música asséptica e o aroma achocolatado de supimpas iguarias.
      Olhos ávidos, flexionamos o espírito de capela em capela, atendidos por solícitas sacerdotisas que, se não podem ofertar de graça o manjar dos deuses,           ao menos nos brindam com seus trajes de vestais romanas, condenadas à beleza compulsória.
      Eis ali, no altar de nossos sonhos, o Céu antecipado na Terra na forma de joias, aparelhos eletrônicos, roupas e importados, sacramentos que nos redimem do pecado de viver neste país cuja miséria estraga a paisagem.
       Com certeza o Natal papainoélico é a única festa em que a ressaca se antecipa à comemoração. Tomem-se vinhos e castanhas, panetones e perus, e um punhado de presentes, eis a receita para disfarçar uma data. E sonegar emoções e sentimentos. Mas não é Natal.
      Para se fazer festa de Natal é preciso aquecer afetos e servir, à mesa, carinho e solidariedade, destampando a alma e convertendo o espírito em presépio, onde renasça o Amor. Dar-se em vez de dar, estreitando laços de família e vínculos de amizade.
      Urge abrir o dicionário gravado nas dobras de nossa subjetividade e substituir competição por comunidade, inveja por reconhecimento, ressentimento por humildade, eu por nós.
      Melhor que nozes nesses trópicos calientes, convém saciar a língua de prudência, privando-se de falar mal da vida alheia.
      Um pouco de silêncio, uma oração, a retração do ego, favorecem o encontro consigo mesmo, sobretudo a quem se reconhece alienado de Deus, dos outros e da natureza. Não custa pisar no freio dessa destrambelhada corrida de quem, no afã de ultrapassar o ritmo do tempo, corre o risco de ter a vida abreviada pela exaustão do corpo e a confusão da mente.
      Antes dos copos, recomenda-se encher o coração de ternura até transbordar pelos olhos e derramar-se em afagos e beijos.
      Pois de que vale o Natal se não temos coragem de nos dar de presente a decisão de nascer de novo?
 Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
  
Copyright 2017 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 


quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

EU TIVE UM SONHO QUE DUROU DEZ DIAS...


Por Reginaldo Veloso
Qualquer semelhança com o frevinho clássico e gostoso de cantar, não é mera coincidência. De fato, “eu tive um sonho que durou”, de certa maneira, dez dias, e que, também, “foi um sonho lindo, sonho encantador”... Sonhei que chegava ao Morro da Conceição, numa noite de 29 de novembro, para assistir a chegada da “Bandeira”, isto é, para a abertura do Novenário anual em honra da Imaculada Conceição da Mãe do Senhor Jesus.
E o Morro era um brilho só. Não apenas pela iluminação esplendorosa de toda a praça, mas, sobretudo, pelo que mais me enchia a vista, e tinha a ver com a minha devoção à Mãe de Jesus. Eram balões que pontilhavam todo o perímetro da praça, cada um contendo uma lembrança significativa da figura de Maria, colhida nas páginas das Sagradas Escrituras.
Eram precisamente, 24 balões, doze de um lado e doze do outro, os quais de para em par, traziam doze referências bíblicas que ilustravam bem, quem foi e quem continua sendo esta Mulher. Não tanto alguém de uma grandiosidade imensa, quase uma deusa, ao lado da Santíssima Trindade. Nem tanto uma protetora onipotente frente a qualquer problema da vida, dispensando mesmo a proteção de Deus. Mas, simplesmente, MARIA, semente, modelo, referência, ícone e inspiração da Igreja. Olhando para Maria, tal como no-la apresentam as páginas do Evangelho, nós, como se estivéssemos diante de um espelho, saberemos exatamente como a comunidade cristã tem que ser. Como cada cristão, cada cristã tem que ser. Pelo menos, para ser Igreja do jeito que Deus quer, que Jesus, filho de Deus e de Maria, quer que a gente seja.
Acertadamente, já os dois primeiros balões, um do lado e outro do outro da praça, diziam: <<EIS AÍ TUA MÃE! (João 19,26)>>. E era um convite a todo mundo olhar para ela, com certeza, não apenas para admirá-la, mas, sobretudo, para imitá-la...
Os dois seguintes, de um lado e do outro, rezavam: <<AVE, CHEIA DE GRAÇA! O SENHOR ESTÁ CONTIGO! (Lucas 1,28)>>. E era, para cada devoto, cada devota, que ia chegando ao Morro, sentir-se saudado pelo mesmo Anjo que saudou a Maria. E sentir, como ela, a presença mais confortante: Deus está com a gente, como esteve com ela! Eu olhava pros balões e olhava paras pessoas que iam caminhando pela praça comigo, e me perguntava se sentiam o mesmo que eu sentia...
Mais adiante, dois outros balões traziam essa frase lapidar de Maria: <EIS A SERVIDORA DO SENHOR! FAÇA-SE EM MIM SEGUNDO A TUA PALAVRA! (Lucas 1,35)>>. E era para a gente se questionar: “Será que estamos à disposição de Deus, da sua vontade, tanto quanto ela, pro que der e vier?”... O que será que entendiam as pessoas que iam lendo essas palavras?...
Logo depois, vinham outros dois balões, com uma inscrição mais longa. Por isso, as letras eram mais pequenas, mas dava para ler bem: <<BENDITA ÉS TU ENTRE AS MULHERES! BENDITO É O FRUTO DO TEU VENTRE! (Lc 1,42)>>. Era a saudação de Isabel. E eu pensava comigo mesmo: como seria bom que, cada mãe cristã, chegando ao Morro, se sentisse elogiada, se sentisse igualmente, “bendita”, ao tomar consciência de que os filhos e as filhas que dela nasceram, foram por ela criadas e educadas pra serem outras tantas presenças de Jesus Cristo neste mundo... Eu olhava para o semblante das mães que caminhavam comigo, e bem gostaria de ter a certeza de tudo isso. Aliás, era para toda a Igreja, cada Comunidade Cristã, se questionar: “Do jeito que estamos sendo Igreja hoje, aqui em nosso país, a gente mereceria o mesmo o elogio de Isabel?... Estamos, realmente, merecendo o elogio que Maria recebeu de Isabel?... Estamos, verdadeiramente, comunicando JESUS ao mundo, o Jesus dos Evangelhos?...
Em seguida, em dois outros balões, apenas essas palavras: <<BEM-AVENTURADA AQUELA QUE ACREDITOU! (Lc 1,45)>>. Isabel estava felicitando a prima, futura Mãe do Messias. Quem de nós que estávamos lendo, naquele momento, aquela frase, além de admirar a fé de Maria, se sentia de alguma modo incluído naquela felicitação?... A ousadia da fé de Maria, que deveria estar sendo a ousadia da fé da gente, estava nos engajando na caminhada de todo o povo que luta por dias melhores, por um país justo, igual, fraterno, feliz, tanto quanto Maria, nos caminhos do seu Filho, pelas estradas da Palestina, anunciando a Boa Nova do Reino?...
<<A MINH’ALMA PROCLAMA A GRANDEZA DO SENHOR! (Lc 1,46)>>, era o que se lia no sexto par de balões. Era a primeira frase do Cântico de Maria. E eu, enquanto caminhava com toda aquela gente, vibrava com Maria. Como ela, eu pensava no que havia aprendido da vida até aqui, e não poderia ter outro sentimento, dizer outra coisa. Imagino que muita gente que ia naquela procissão, lendo estas palavras, vibrava do mesmo jeito: DEUS É MAIS!
<<ELE OLHOU PARA A HUMILHAÇÃO DE SUAS SERVIDORA... E REALIZOU GRANDES COISAS EM MEU FAVOR! (Lc 1,49)>>, eram os dizeres dos sétimo par de balões. Quanta gente caminhando Morro acima! A maioria, trabalhadores, trabalhadoras, gente do meio popular, gente pobre, sacrificada... Quantos, quantas de nós se sentiriam igualmente olhados, olhadas, por Deus?... Quantos, quantas, diante de tantas humilhações e necessidades que passamos, acreditavam que Deus poderia realizar grandes coisa em favor da gente?... E bastaria que a gente tivesse a fé, a ousadia, a capacidade de entrega da Mãe de Jesus, no seguimento do seu Filho...
<<ELE DERRUBA OS PODEROSOS DE SEUS TRONOS E LEVANTA OS HUMILHADOS! (Lc 1,52)>>, será que toda esta gente devota que sobe o Morro é tão subversiva quanto parece ter sido a Mulher que cantou este Cântico?... Era o que eu me perguntava, ao ler, dum lado e no outro, no oitavo par de balões, esse verdadeiro grito de guerra.
<<ELE ENCHE OS FAMINTOS DE BENS E MANDA EMBORA OS RICOS DE MÃOS VAZIAS! (Lc 1,53)>>. Acredito que muita gente, ao ler as palavras do nono par de balões, deve ter se perguntado: depois de tanto tempo que Maria cantou estas palavras, porque será que ainda existe tanta fome, tanta desigualdade?... E as pessoas mais informadas sabem que essa injustiça acontece sobretudo nos países de “cultura cristã”... E eu me questionava: será que dessa festa toda a gente vai sair mais consciente do Projeto de Deus, mais comprometida com a luta pela justiça?...
O décimo par de balões registravam o que ocorreu na festa do casamento em Caná da Galileia: Maria dizendo pro Filho: <<ELE NÃO TÊM VINHO! (Jo 2,3)>>. No lugar de Maria, a Igreja hoje, cada Comunidade Cristã, todo esse povo que sobe o Morro em devoção, tem esse olhar atento, essa sensibilidade, essa capacidade de se doer e se solidarizar com as necessidades e humilhações porque passa tanta gente?...
<<FAÇAM O QUE ELE MANDAR! (Jo 2,5), essas palavras do décimo primeiro par de balões, não são um simples conselho da “Mãe do Bom Conselho”. São uma ordem, um mandado de mãe. Até que ponto, estas palavras estariam repercutindo no coração de cada um, de cada pessoa que passava e lia?... E Maria, mais que ninguém andou escutando o que dizia seu Filho e levando a sério sua Palavra. E foi fiel a Ele até a cruz. Por isso, mais que ninguém, mereceu o elogio que, finalmente lemos, no décimo segundo par de balões, quando já rodeávamos o monumento da Santa:
<<MAIS FELIZES SÃO AQUELES QUE OUVEM A PALAVRA DE DEUS E A PÕEM EM PRÁTICA! (Lc 11,28)>>. E foi uma pena que os dizeres sendo mais longos, só dava para escrevê-los com letras bem pequenas, embora de mais perto desse para ler bem. Claro que fechavam com chave de ouro. Ah! se o resultado dessa festa toda, que apenas estava começando, fosse todo mundo que dela participa, se tornar gente mais consciente e comprometida com a causa das causas, o REINO DE DEUS! Maria se sentirá realmente honrada e feliz com a gente.
O fato é que eu achei aquilo tudo tão bonito, no meu sonho, que me animei a voltar nas outras oito noites da Novena e, sobretudo, no próprio dia 8, dia da Festa! Mas, quando pipocavam os fogos com a chegada da procissão e do belo andor da Santa, no dia 8, encerramento dos dez dias de festa, eu me acordei.
O fato é que, força desse sonho, eu subi hoje, ancho de esperança e curiosidade, para ver como estava o Morro. E qual não foi a minha surpresa! Sabem o que encontrei?... Tudo, menos o que no sonho eu vi. Em vez de 24 belas e fortes mensagens sobre a Mãe de Jesus, o que avistei foram mais de 20 balões com propaganda comercial. E Morro da Conceição, parecia mais o pátio do Shopping Recife ou do Shopping Tacaruna do que o Morro da Imaculada. Vejam só o que se lia nos balões, de par em par, de um lado e do outro:
<<QUALIFICAÇÃO NEESON CENTRAL CURSOS>> - <<JÚNIOR MAGAZINE – CLAÇADOS E CONFECÇÕES>> - <<FACULDADE IMACULADA CONCEIÇÃO DO RECIFE>> - <<PERNAMBUCO DO SABOR>> - <<FRICÇÕES>> - <<K KALDO – O SABOR DA FAMÍLIA>> - <<LOJA DO CONDOMÍNIO>> - <<AUTO ESCOLA PILOTO>> - <<FREITAS BETONEIRAS>> - <<SANTA CLARA (café!)>> - HONDA TENDA CONSÓRCIO>>.
Apenas duas bolas de interesse público: <<BOMBEIRO CIVIL>>, pois, me parece, que, até os dois com os dizeres da Prefeitura do Recife me pareciam mais, propaganda.
Pelo visto, tinha pra todo gosto. Do fundo da minha frustração, porém, emergem algumas perguntas:
- Dessa enxurrada de mensagens comerciais, o que sobra de evangelização, de revelação do Mistério de Maria, no seio do Mistério de Cristo e da Igreja?... Pelo menos, a partir do que enchia os olhos de quem chegava à Praça de N. S. da Conceição, no Morro, nestes dez dias da maior festa religiosa da região?...
- Será desse jeito que a Mãe de Jesus se tornará uma inspiração forte para a mudança de vida das pessoas e da sociedade?...
- Avessos à “Teologia da Libertação”, estarão promovendo a “Teologia da Prosperidade”, a mercantilização da religião, o aproveitamento comercial da religiosidade popular?...
- E essa enxurrada de missas, ao longo da novena, e, sobretudo, no dia da festa, estará servindo mesmo aos objetivos de uma Igreja Discípula-Missionária, à valorização da Eucaristia, à revelação da riqueza evangélica e evangelizadora da pessoa e do testemunho da Mãe do Senhor?... Ou estará sendo outra aberrante utilização mercantil do que há de mais sagrado na religião cristã, execrável banalização do que deveria ser o ponto culminante da vivência comunitária eclesial?...
Não sem razão, quase 30 anos depois de ter sido alijado da nascente Paróquia do Morro, ao sair pelas ruas do bairro, subindo ou descendo o Morro, continuamente, as pessoas que conheceram o estilo de Igreja e de Pastoral que aqui se tentou implementar, há quase 40 anos atrás, me abordam, emocionadas, para dizer-me, enfaticamente, de sua saudade daqueles tempos... Quando, inclusive, a paróquia não precisava vender nada, nem muito menos, se vender aos interesses do Mercado, mas os pequenos comerciantes informais podiam, esses sim, vender suas coisinhas e ganhar uma espécie de suado “décimo-terceiro”, para terminar o ano oferecendo algum mimo ou algum alívio a suas sofridas famílias.
Deus está vendo!
Reginaldo Veloso, presbítero leigo das CEBs
reginaldovelos937@gmail.com


terça-feira, 26 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL PARA A HUMANIDADE


Por Marcelo Barros

O cântico-convite que introduz a festa de Natal começa dizendo: “Hoje, o Cristo nasceu para nós. Vinde e o adoremos”. A beleza da música e a consolação dessas palavras encantaram gerações. Até que alguém começou a perguntar criticamente quem seriam esse nós destinatários da salvação. É claro que a tradição responde que o Cristo veio para toda a humanidade. Até hoje, ressoa o cântico que segundo o evangelho, os mensageiros de Deus entoaram na noite de Belém: “Glória a Deus no mais alto céu e Paz na terra a todos os seres humanos, aos quais Deus quer bem”. Embora seja uma celebração cristã, o Natal tem uma mensagem que interessa a toda humanidade e especialmente aos mais empobrecidos.
Na primeira noite de Natal, o anúncio do nascimento de Jesus se deu fora dos templos e se dirigiu a pessoas marginalizadas pela própria religião. Hoje, também é importante que a mensagem de paz do Natal atinja a humanidade inteira, independentemente de quem é religioso ou não e seja qual for a sua crença. É um apelo ao amor como opção de vida e um encorajamento de esperança que confirma: esse mundo tem salvação e nós temos que testemunhar isso com nossa vida.
Até para ser verdadeiramente universal, a mensagem de alegria e paz é destinada a todas as pessoas. No entanto, em um mundo injusto e desigual, para restabelecer a justiça e a igualdade, ela deve sempre partir  dos mais pobres. Do mundo dos grandes, as notícias são inquietantes. Ao oficializar Jerusalém como capital de Israel, o presidente Trump nega direito dos palestinos sobre a cidade que os muçulmanos e cristãos também consideram santa. Ao decretar unilateralmente essa medida, ele opta pela guerra e legitima o massacre. Perto de nós, quase a cada dia, o bando que tomou o poder declara o seu desamor e seu descompromisso em relação aos mais pobres. Assim governo e Congresso dão as costas ao povo do qual deveriam ser representantes.
A mensagem de Natal vem de vozes diferentes. Os povos indígenas propõem o Bem-viver como paradigma cultural para toda a humanidade. Os lavradores sem-terra defendem as sementes crioulas e proclamam a água como bem comum que é direito de todo ser vivo. Em nossas cidades grandes, os trabalhadores sem-teto armam acampamentos que são verdadeiras profecias de solidariedade humana. E como diz o papa Francisco, ao lutarem por Terra, Trabalho e Teto, as organizações sociais estão tecendo poesias de esperança para o mundo. São os profetas desse Natal. Por falar no papa, de todos os rincões do mundo, pessoas das mais diferentes religiões e culturas o acolhem como mensageiro divino nesse Natal.  Em sua mensagem à humanidade, o papa Francisco nos diz:
 “ O Natal costuma ser uma festa ruidosa. Há muito barulho; nos faria muito bem um pouco mais de silêncio para ouvirmos a voz do Amor.
Natal é você quando decide nascer de novo, cada dia, deixando que Deus penetre em seu interior. (...) A luz do Natal é você quando ilumina com sua vida o caminho dos outros, através da bondade, paciência, alegria e generosidade. Os anjos do Natal são você quando canta ao mundo uma mensagem de paz, de justiça e de amor. (...) A melodia do Natal é você quando consegue encontrar harmonia interior. O presente de Natal é você quando é verdadeiramente irmão/ã e amigo/a de todo ser humano. O cartão de Natal é você quando a bondade está escrita em suas mãos. A felicidade do Natal é você quando perdoa e restabelece a paz, mesmo que ainda esteja sofrendo. O presépio do Natal é você quando sacia de pão e de esperança o pobre que está ao seu lado. Você é sim a noite de Natal, quando, humilde e consciente, no silêncio da noite, recebe o Salvador do mundo, sem barulhos, nem celebrações. Você é sorriso de confiança e ternura na paz de um Natal perene que estabelece o reino em você. Um feliz Natal para todos e todas que se parecem ao Natal”.
  Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.br 





segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

PAPAI NOEL OU MENINO JESUS?



por Maria Clara Lucchetti Bingemer 

            
            Quando chega o Natal há uma insistência contumaz em temas de concórdia, paz, consenso e solidariedade.  Natal não é momento de conflito e dissenso.  Há que buscar, outrossim, caminhos de concórdia, superando as desavenças familiares, eclesiais, políticas ou que tais.

            No entanto, no imaginário sobretudo infantil, mas não menos no adulto, a concepção do Natal repousa hoje sobre um conflito dificilmente reconciliável: Papai Noel ou o Menino Jesus? Enquanto muitos de minha geração ouviam falar de Papai Noel, montavam a árvore, mas tinham o foco da festa sobre o presépio e o Menino recém-nascido, hoje estes são senão ignorados pelo menos obscurecidos pelos presentes sob a árvore. E sobretudo pelo Papai Noel que vem em meio a 40 graus de temperatura, em pleno verão, vestido para o mais rigoroso inverno do hemisfério norte.

            Nem mesmo o senso do ridículo de um velho de barbas brancas vestido de roupas quentíssimas em meio ao calor desperta o já intumescido senso crítico de adultos e pequenos, que adejam em torno de símbolos natalinos totalmente estranhos ao trópico, ávidos pela troca de presentes, que se tornou o momento álgido da festa.

  Comer e gastar: infelizmente esse é o lema em que se transformou o Natal, sob a batuta do bom velhinho que vai aos shoppings e tira fotos com as criancinhas no colo. E isso nos revela tristemente que estamos rapidamente involuindo para um neo paganismo. Expulsam-se as tradições religiosas e culturais que fizeram nossa civilização, para dar lugar a seres lendários e mágicos que possam povoar nosso imaginário de magia e crenças supersticiosas em maior ou menor grau. 

            Quem é Papai Noel.  Trata-se de figura lendária cuja existência encontra sua origem em contos hagiográficos tendo ao fundo a figura histórica de São Nicolau. Varia e tem simulacros em outras latitudes, como na Grécia, onde em 1 de janeiro, celebra-se Basílio de Cesareia, respeitável padre da Igreja, responsável pela teologia do Espírito Santo no Credo Niceno-Constantinopolitano e que jamais deve ter imaginado que iriam associar seu nome à troca de presentes na festa natalina. Já na Espanha e nos países de língua espanhola em geral, o dia dos presentes é 6 de janeiro, quando são celebrados os Reis Magos. A data tenta preservar a conexão com o Cristianismo, já que os três sábios do Oriente levaram ao Menino presentes carregados de simbolismo: ouro, a realeza; incenso, a divindade;  mirra, a humanidade. 

            Miméticos que somos dos estadunidenses e nórdicos, ficamos com o Papai Noel da neve, do Norte, que teve sua imagem associada à Coca Cola e a todas as marcas comerciais possíveis e imagináveis.  Fazemos neves de algodão, rodeamos o velhinho de renas (animal inexistente em nossas paragens) e caímos de boca nos presentes, fazendo listas e percorrendo-as de alto a baixo. Até de São Nicolau, responsável pela origem do Papai Noel nos afastamos, uma vez que este era arcebispo de Mira, na Turquia, e viveu no século IV.  Destacou-se pela caridade, ajudando anonimamente os pobres, distribuindo moedas de ouro pelas chaminés das casas.  Sua transformação em símbolo natalino ocorreu na Alemanha e a partir daí correu mundo.    
     
            São Nicolau, com seus trajes de bispo foi substituído pelo velhinho de roupa vermelha e botas.  Mora numa terra de neve eterna, ou em sua casa no Polo Norte.  E tem até uma esposa, Mamãe Noel, que não tem tanta popularidade entre nós. O que tem, sim, popularidade nos trópicos é seu séquito de renas voadoras, que trazem num trenó os brinquedos para depositá-los nas chaminés, e os elfos mágicos que os fabricam, todos vindo ao encontro dos desejos daqueles que têm poder aquisitivo, inundando as casas e as festas natalinas.  As crianças fazem listas e cartas ao velhinho, pedindo os presentes, e os pais se servem disso para fazê-los se comportar bem.  

            Mas esse bom comportamento é quase impossível, já que não há ceia de Natal que possa fluir em conversação agradável e afetuosa com os pequenos indóceis e rondando a árvore, gemendo e gritando de ansiedade por seus presentes, olhando ávidos os misteriosos embrulhos que ali faíscam como pepitas de ouro.  Há que proceder a distribuição, dizendo que foram trazidos por Papai Noel, para ver se eles se acalmam, embora ao fim da noite já estejam entediados do que lhes coube e comecem a brigar pelo presente do irmão ou do primo.

            Ninguém ou muito poucos se recordam daquele que é ou devia ser o centro da festa: a criança divina que se fez carne e nos trouxe a salvação.  Ninguém olha para ela, tão quietinha e humilde na manjedoura ao lado de seus pais, Maria e José, jovens e honrados israelitas, obrigados a obedecer as absurdas leis do ocupante romano.  Lembro-me quando no colégio, ainda pequena, íamos à missa do Galo.  E uma de nós era sorteada para carregar o Menino Jesus e depositá-lo no presépio.  Nunca em toda a minha vida, em alguns momentos de vitória profissional, de alegria celebrativa ou de reconhecimento acadêmico, lembro-me de haver-me sentido tão honrada, tão privilegiada como naquela ocasião em que carreguei com imenso cuidado a imagem rosada do Menino com os braços abertos até o altar.

            Havia peças de teatro que encenávamos nós mesmos sobre o Evangelho do Nascimento de Jesus.  Já fui rei, já fui pastora, já fui Maria nessas ocasiões.  De todas as vezes sentia fundo a narrativa que ao longo de mais de vinte séculos vem inspirando e resgatando o gênero humano da banalidade assassina do biológico des-animado (sem alma) e do consumismo desenfreado. 

            Tudo isso parece que vai se esvaindo, esfumando na noite dos tempos.  Não totalmente, graças a Deus.  Por isso é urgente resgatar essa memória que não se pode perder.  As futuras gerações necessitam de esperança e Papai Noel não pode dar-lhes isso.  Necessitam crer em Deus e não numa figura lendária, que é como um anão da Branca de Neve mais alto.  E de São Nicolau ficar com a parte importante: a caridade que ele fazia com os pobres, deixando para as mesmas peças de ouro na chaminé. 

            O Deus de Israel em quem cremos como o Pai amoroso de Jesus de Nazaré não se identifica nem com fenômenos da natureza, ou com ciclos de fertilidade ou menos ainda com figuras de lendas.  As lendas são o que são: podem interessar o senso estético, mas não podem provocar e convocar a fé.  No Natal, o gesto mais inaudito de Deus desencadeia no mundo o fato cristão: a Encarnação, Deus que se faz carne, um de nós igual em tudo menos no pecado.  O Infinito no finito, o Absoluto no relativo, o Rico na pobreza e no despojamento. 

            Se esse mistério for banido de nossas vidas, se o Menino envolto em faixas e deitado numa manjedoura for definitivamente substituído pelo velhinho de vermelho em seu trenó de renas voadoras, não teremos nos tornado menos religiosos ou menos crentes.  Mas sim, infelizmente, menos humanos. 

            Que Deus não permita que isso nos aconteça.  E que venha o Natal, com muito menino Jesus e pouco Papai Noel, como diz meu querido amigo Frei Betto.  Que o mistério de Belém não perca o poder de encantar-nos e, sobretudo, a capacidade de voltar nosso olhar para os pobres e necessitados.  FELIZ NATAL! 


Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-RioA teóloga é autora de  Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.
 Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Num momento da história, o centro de tudo está numa mulher


por Leonardo Boff

A festa do Natal está toda concentrada na figura da Divina Criança (Puer aeternus), Jesus, o Filho de Deus que decidiu morar entre nós. A celebração do Natal vai além deste fato. Restringindo-se somente a ele, caimos no erro teológico do cristomonismo (só Cristo conta) olvidando que existe ainda o Espírito e o Pai que sempre atuam conjuntamente..
Cabe realçar a figura de sua mãe, Miriam de Nazaré. Se ela não tivesse dito o seu “sim”, Jesus não teria nascido. E não haveria o Natal.
Como ainda somos reféns da era do patriarcado, este nos impede de comprender e valorizar o que diz o evangelho de Lucas a respeito de Maria:”O Espírito Santo virá sobre ti e a energia (dínamis) do Altíssimo armará sua tenda sobre ti e é por isso que o Santo gerado será chamado Filho de Deus”(Lc 1,35).
As traduções comuns, dependentes de uma leitura masculinista, dizem “a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”. Lendo o original grego não é isso que se diz. Literalmente se afirma: “a energia (dínamis) do Altíssimo armará sua tenda sobre ti (episkiásei soi). Trata-se de um modismo linguístico hebraico para significar “morar não passageira mas definitivamente” sobre ti, Maria. A palavra que se usa é skené que significa tenda. Armar a tenda sobre alguem (epi-skiásei), como afirma o texto, significa: a partir de agora Maria de Nazaré será a portadora permanente do Espírito. Ela foi “espiritualizada”, quer dizer, o Espírito faz parte dela.
Curiosamente a mesma palavra skené (tenda) o evangelista São João aplica à encarnação do Verbo. “E o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós (eskénosen, é o mesmo verbo de base)”, quer dizer, morou definitivamente entre nós.
Qual a conclusão que tiramos disso? Que a primeira Pessoa divina enviada ao mundo não foi o Filho, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Foi o Espírito Santo. Quem é terceiro na ordem da Trindade é primeiro na ordem da Criação, isto é, o Espírito Santo. O receptáculo desta vinda foi uma mulher do povo, simples e piedosa como todas as mulheres camponesas da Galiléia, de nome Miriam ou Maria.
Ao acolher a vinda do Espírito, ela foi elevada à altura da divindade do Espírito. Por isso, com razão diz o evangelista Lucas:”por isso (dià óti) ou por causa disso o Santo gerado será chamado Filho de Deus”(Lc 1,35). Somente alguém que está na altura de Deus pode gerar um Filho de Deus. Maria, por esta razão, será divinizada semelhantemente ao homem Jesus de Nazaré que foi assumido pelo Filho eterno e assim foi divinizado. É o Filho eterno encarnado em nossa  humanidade que celebramos no Natal.
Eis que num momento da história, o centro é ocupado por uma mulher, Miriam de Nazaré. Nela está atuando o Espírito Santo que nela habita e que está criando a santa humanidade do Filho de Deus. Nela estão presentes duas Pessoas divinas: o Espírito Santo e o Filho eterno do Pai. Ela é o templo que alberga a ambos.
Nossa Senhora de Guadalupe, tão venerada pelo povo mexicano, com traços mestiços, aparece como uma mulher grávida com todos os símbolos da gravidez da cultura nauatl (dos aztecas). Sempre que vou ao México me misturo às multidões que lá acorrem e visito a bela imagem de pano da Guadalupe. Vestido de frade, várias vezes perguntei a um peregrino anônimo: “hermanito, tu adoras a la Virgen de Guadalupe”? E recebia sempre a mesma resposta: “Si, frailecido, como no voy adorar a la Virgen de Guadalupe? Si que la adoro”.
O devoto respondia com toda razão, pois nessa mulher se escondem as duas Pessoas divinas, o Filho que crescia em suas entranhas pela energia do Espírito que morava nela. E ambas, sendo Deus, podem e devem ser adoradas. E Maria é inseparável deles, por isso merece a mesma adoração. Daí nasceu a inspiração para o meu livro, dos mais lidos, “O Rosto materno de Deus”.
Sempre lamentei que a maioria das mulheres, mesmo teólogas, não tenham assumido ainda sua porção divina, presente em Maria, por obra do Espírito Santo. Ficam com só com o Cristo, o homem divinizado.
O Natal será mais completo se junto ao Menino que tirita de frio na manjedoura, incluirmos sua Mãe que o acalenta, amparada por seu esposo o bom José. Ele também mereceria uma reflexão especial, coisa que já fiz nestas páginas do Jornal do Brasil: sua relação com o Pai celeste.
No meio da crise de nosso país há ainda uma Estrela como a de Belém a nos dar esperança e uma Mulher, portadora do Espírito e nos inspirar uma saída salvadora.
Leonardo Boff é articulista do JB online e escreveu O rosto materno de Deus, Vozes.11.edição 2012.


quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

A DIREITA SAIU DO ARMÁRIO; A ESQUERDA ENTROU



Por Frei Betto

         Você é capaz de identificar uma pessoa de esquerda? De direita é óbvio: defende a primazia do capital sobre os direitos humanos, o caráter sagrado da propriedade privada, apoia a privatização do patrimônio público, venera o gigantismo dos EUA, apregoa que “bandido bom é bandido morto”; e costuma ser racista, homofóbica e indiferente aos direitos dos mais pobres.

         Ao longo de 12 anos de governo do PT, a direita se manteve no armário. Não tinha razões para exibir as garras afiadas, já que se beneficiava economicamente (robustez da Bolsa de Valores, isenções tributárias, benesses do BNDES, captação de investimentos estrangeiros etc).

         Bastou a economia brasileira dar sinais de insustentabilidade para a direita sair do armário, decidida a assumir o controle da nação. A exemplo do que ocorrera em Honduras e no Paraguai, armou-se aqui um golpe parlamentar. Destituiu-se uma presidente democraticamente eleita, isenta de qualquer acusação de ter cometido crime, para empossar Temer, acusado de vários e graves crimes.

         A direita errou o alvo. Constrangida, não bate panelas quando Temer dá as caras na TV, nem ocupa as ruas para protestar contra a corrupção escancarada. Mas vocifera raivosamente diante do menor indício de que o Brasil possa vir a ser novamente governado pelo petismo.

         O que me parece estranho é a oposição não ir além dos limites do Congresso. Por que o “Fora Temer” não ganha as ruas? Por que os movimentos sociais, sindicais e estudantis permanecem imobilizados, exceto quando se trata de reivindicações pontuais e corporativas, como ocupações de áreas urbanas e rurais? Onde se enfiou a esquerda brasileira?

       Somos, hoje, uma esquerda envergonhada. A corrupção nos atingiu e abateu a nossa moral. Ficamos calados frente ao ajuste fiscal proposto pelo governo Dilma. Trocamos um projeto de nação por um projeto de poder. Não cuidamos da alfabetização política do nosso povo. Não criamos uma mídia capaz de se contrapor à versão da direita.

         Nossa “pátria-mãe”, a União Soviética, ruiu. A China enveredou pelo capitalismo de Estado. O futuro da Revolução Cubana é incerto. “Proletários de todo o mundo, uni-vos”, exortava Marx. Foram os biliardários do mundo todo que se uniram em Davos. Como assinalou o historiador Perry Anderson: “Pela primeira vez, desde a Reforma, não há mais oposição propriamente dita – de visão de mundo rival – no universo do pensamento ocidental, e quase nenhuma em escala mundial. (...) O neoliberalismo, como conjunto de princípios, reina inconteste no globo” (RenewalsNew Left Review, Londres, janeiro de 2000).

         E agora, José? Permanecer no armário e aguardar o resultado das eleições de 2018? Quem garante que os eleitos ao Congresso não serão mais conservadores do que os atuais parlamentares? Ainda que Lula escape das ciladas da Lava Jato e vença a eleição presidencial, que tipo de alianças fará para assegurar a governabilidade?

         Nós, da esquerda, abandonamos o trabalho de base, a formação de militantes, o enfrentamento ideológico. Sob os escombros do Muro de Berlim ficou soterrado nosso arcabouço teórico. Nunca mais fomos os mesmos. Ao nos afastar da base popular perdemos a vergonha de ser burgueses. Silenciamos quanto ao futuro socialista. Passamos a acreditar que o capitalismo é humanizável, tigre vulnerável a se transformar em gatinho doméstico. Arranha mas não devora...

       Se o nosso arcabouço teórico ficou sob o Muro de Berlim, a razão primeira da existência da esquerda se agigantou, mas nem sempre tivemos olhos para ver a grande horda de excluídos e marginalizados. Porém, o pobretariado não figura em nossas cogitações. Até gostamos de governar para ele, não de manter vínculos orgânicos que deem consistência a uma proposta política transformadora.

       O passado se foi e não sabemos ainda como reinventar o futuro. Nossas ações pontuais, todas meritórias, não se consubstanciam em uma proposta política com indícios de viabilizar “o outro mundo possível”. Visto de hoje, ele parece impossível.

       O que nós, progressistas (poupemos o termo esquerda), queremos de fato: governar para o povo ou governar com o povo?
      Apesar dessa ausência de povo nas ruas e aparente inércia, algo de novo brota no seio da esquerda brasileira: a Frente Povo Sem Medo (www.vamosmudar.org.br) e a Frente Brasil Popular, além de tantas lutas assumidas por movimentos indígenas, quilombolas, atingidos por barragens, mulheres, LBGTodos etc. E nas redes digitais se fortalece a oposição ao governo Temer, obrigando-o a recuar em relação a medidas de retrocesso social.

      Sem deixarmos de fazer autocrítica, há que guardar o pessimismo para dias melhores.

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.

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