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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

COMO MATAR A SAUDADE DE DEUS




Por Leonardo Boff

“Saudade” é intraduzível em outros idiomas. Por isso não é coisa que se define mas que se vive e se sofre. Descrevendo-a: é uma melancolia terna num misto de uma dor suave por um bem que foi vivido e que não volta mais, mas que docemente, retorna à memória: é o primeiro beijo da pessoa amada, é um olhar profundo de uma mulher que, numa plataforma de trem, encontrou no outro homem também um olhar penetrante revelando um amor imediato; o trem partiu e ela nunca mais foi encontrada; mas aquele olhar mútuo que foi ao fundo da alma, nunca mais pôde ser esquecido. Saudade é a experiência de, numa máxima concentração, ser tomado totalmente pelo Ser de Deus a ponto de não sentir mais o próprio corpo. Essa saudade é dolorosa quando não se consegue mais renová-la. Só deixou uma saudade infinita de suprema bem-aventurança. A saudade não deixa o passado ficar passado. Embora ausente, o torna presente, ficando apenas invisível.
Em nosso peregrinar pela vida, tudo o que de belo, realizador, impactante e profundo nos tocou, deixa um rastro de saudade. Uma criança cancerígena bem disse: saudade é o amor que fica quando tudo já passou.
sociedade moderna tardia e letrada saturou a muitos, nem a todos, de bens materiais, os encheu de promessas vãs de felicidade e até lhes forjou um falso evangelho da prosperidade para o qual dão tempo, entusiasmo e os suados dinheiros como nas igrejas neopentecostais fundamentalistas, explorados por pastores que são verdadeiros lobos em pele de ovelhas. O mercado conscientemente os mantém ocupados por mil ofertas de consumo, de viagens, de experiências novas que os dificultam de encontrar-se consigo mesmo. Vive-se ut si Deus non daretur “como se Deus não existisse” ou tivesse sido borrado do horizonte da existência.
Mas nem tudo é manipulável no ser humano; há nele mistérios, cantos impenetráveis que guardam memórias e arquétipos ancestrais. Daí pode surgir uma saudade toda particular, a saudade de Deus, do Self que habita o profundo. Por séculos, conferia coesão à sociedade e oferecia um chão à existência humana.
Por razões muito complexas que não cabem aqui analisar, irrompeu o homem novo da modernidade. Ele dispensou Deus. Apresentou-se como um deus minor in terra,como “um deus menor na terra”. Sua experiência fundadora se definiu pela vontade potência, pelo poder exercido como dominação sobre os outros, sobre a mulher, sobre os povos, sobre a natureza, sobre a vida até sobre o espaço exterior. Assumiu tantas tarefas na nova conformação do mundo que, de repente, se deu conta de não poder mais realizá-las. O pequeno deus criou “o complexo Deus”. Já não tem mais forças, sente-se frágil, impotente, temeroso de si mesmo, pois criou uma máquina de morte que pode dar cabo a si mesmo por múltiplas formas diferentes. Fez guerras que só no século vinte, mataram 200 milhões de pessoas. Devastou a natureza que agora se volta contra ele com tufões, aquecimento global, aumento dos oceanos, escassez de bens e serviços sem os quais a vida não se sustenta.
Aí surge o que estava escondido naquele canto recôndito de sua interioridade: a “saudade de Deus”. O nome “Deus” não importa, mas o que Ele representa: aquela Energia poderosa e amorosa que tudo sustenta e que, por isso, deve ser viva e inteligente, aquele Valor Inquestionável, vivo e irradiante, que orienta os comportamentos humanos e controla as forças do Negativo. O mantra da cultura ilustrada é enganoso: “Anunciamos a morte de Deus porque nós o matamos”. E o matamos para ocupar o seu lugar e sermos nós o Super-homem que se fez “o pequeno deus” que vive para além do bem e do mal. Ele tudo decide. Por mais de dois séculos tentou realizar esse propósito e fracassou. Sucumbiu ao próprio peso das tarefas que se impôs. Agora anda errante, solitário, buscando em que se agarrar. Vive a ilusão, já referida por um místico: O inimigo do Sol subiu num terraço, fechou os olhos e gritou para todos: já não há mais sol; o Sol morreu porque eu o matei”. Ignorante, não vê mais o sol não por culpa do sol mas de seus olhos fechados. O Sol estará sempre lá a iluminar, pois essa é sua natureza. Talvez entrou num eclipse. E isso exacerba ainda mais a saudade de Deus de que Ele finalmente irrompa a nuvem da arrogância humana e venha humildemente ser acolhido por nós.
Essa saudade de Deus não existe na imensa maioria de todos os povos que não passaram pela circuncisão da modernidade. Jamais lhes passou pela cabeça a absurda arrogância de matar Deus. Muito menos pretenderam ser “o pequeno deus” dominador de tudo e de todos. “Matam a saudade de Deus” sentindo-o nos seus trabalhos cotidianos, no convívio amoroso com a família, na luta pesada para garantir dia após dia os meios de subsistência. Eles nem precisam crer em Deus, pois sabem dele, o sentem e o vivem na pele no corpo, no espírito, no sofrimento e na discreta alegria de viver.
Estes são os guardiães da sagrada memória do Deus de mil nomes (Tao, Shiva, Olorum, Javé, Alá, Deus). Eles são os profetas e mestres para os filhos da modernidade tardia, capazes de lhes molhar as raízes para que reverdeçam e superem a triste solidão que os devora. Basta que os encontrem e os escutem. Então também eles “matarão a saudade de Deus”. Como temos saudade desse Deus, humano, vivo  e verdadeiro.
Leonardo Boff é escritor e escreveu: Saudade de Deus- a força dos pequenos , Vozes 2019.


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A REVANCHE DE DEUS



Frei Betto

         A religião, no século XX, se libertou de seu caráter heteronômico, a que o fiel recebe da autoridade religiosa e a ela se submete, para adquirir caráter autônomo, como escolha pessoal e convicção íntima. A sociedade se laicizou. O poder já não é exercido em nome de Deus, se dessacralizou. Deixou de ser atribuído ao sobrenatural para emanar da vontade soberana do povo. Eis o advento da democracia.
         No entanto, agora assistimos a um retrocesso. Desde a queda do Muro de Berlim, a religião ganha espaço, não propriamente como experiência espiritual, mas como ideologia política. Há uma ressacralização da política. Quando um presidente anuncia que nomeará para o STF um juiz "terrivelmente evangélico”, eis um dos sintomas da revanche de Deus.
         Max Scheller dizia que “o homem possui um Deus ou um ídolo”. A ciência é algo moderno. Teve inicio no século VI a.C., na Grécia, no confronto com o pensamento considerado mítico ou mágico. A ideia de um Cosmo isento de interferência sobrenatural surgiu na Escola de Mileto, com Anaximandro e Anaxímenes. Criaram-se as condições para o advento da demonstração matemática e de um novo modo de pensar (Tales).
         Porém, a humanidade teve de aguardar séculos para adotar a prática da experimentação, o que ocorreu com Galileu. A ciência moderna nasceu no inicio do século XVII, quando a Europa conheceu profunda revolução cultural e moral, na qual se destacaram Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes e Newton. Eles destronaram a cosmologia grega. O Cosmo fechado e perfeito cedeu lugar ao Universo infinito situado no espaço-tempo desprovido de limites e significado.
         A Igreja ficou abalada ao ver a ciência questionar suas opiniões a respeito da origem do mundo e do movimento dos planetas. Derruba-se a associação entre verdade e autoridade. O espírito crítico ocupa o lugar do autoritarismo servil.
         O poeta John Donne (1611), na época em que a ciência ainda era chamada de filosofia natural, refletiu o espírito da época: “A nova filosofia torna tudo incerto. Tudo está em pedaços, desaparece toda coerência. Não há mais relações justas, nada mais se harmoniza.” E Pascal exclamou: “A imensidão desses espaços infinitos me apavora.”
         Instaura-se o conflito entre ciência e religião. Espinoza expressa a ruptura ao declarar que o objeto da filosofia é unicamente a verdade, enquanto o da fé é a obediência e a piedade.
         As monarquias cederam lugar à república. A politica, não mais tributária da religião, deve emergir da própria sociedade, sem derivar de um poder sagrado. A felicidade deixou de ser uma quimera pós-morte para se tornar algo a ser alcançado nesta vida.
         Agora, em pleno século XXI, a roda gira ao contrário. Frente ao niilismo e ao relativismo levanta-se o fundamentalismo. Incapaz de dialogar com a ciência, a religião se reapropria do poder para ressacralizá-lo e tornar a palavra da autoridade sinônimo de verdade. Ainda que a autoridade declare, sem nenhum pudor, que a Terra é plana e que “índio está se tornando humano como nós”, declarou Bolsonaro em 24 de janeiro deste ano. Raciocínio que constitui base das políticas eugênicas de extermínio.
         Essa pós-verdade é uma severa ameaça à democracia e aos direitos humanos. Porque prescinde da ciência, reveste-se de caráter religioso e não se envergonha de sua ignorância. Não fala à razão, fala à emoção. Faz os ingênuos acreditarem que as autoridades são oráculos divinos. E que os males da sociedade jamais serão solucionados pela força da lei, e sim pela lei da força. Toda a retórica “democrática” do poder é mero jogo de cena para abrir caminho ao mais inescrupuloso autoritarismo, arraigadamente disposto a se perpetuar no poder.
         Essa a lógica predominante nos escribas, fariseus e saduceus do tempo de Jesus. Ele, sim, foi a revanche de Deus perante o Templo, que se havia transformado em “covil de ladrões” (Mateus 21, 13).

Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Companhia das Letras), entre outros livros. 
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

JESUS DA GENTE




por Kinno Cerqueira



As igrejas, na maioria das vezes, ensinam que seguir Jesus é ser assíduo nos cultos e não se misturar com o mundo. E, como desdobramento desse ensinamento, defendem também a ideia de que estar com Jesus é decorar versículos bíblicos e falar com Jesus por meio da oração. Mas será que foi isso que Jesus ensinou?

Segundo os Evangelhos, Jesus ensinou a seus discípulos e discípulas que segui-lo significa ser assíduo na prática do amor (Jo 13,34-35) e misturar-se com o mundo como consciência crítica e transformadora das estruturas sócio-políticas injustas (Mt, 5,13-16; Jo 17,15). E, para  escândalo do pessoal apegado à letra e à oração, ensinou que estar com ele é estar com os que passam fome e sede, com os migrantes e os nus, com os enfermos e os presos, lutando para que tenham uma vida digna, pois o rosto das gentes sofridas é o rosto do próprio Jesus de Nazaré (Mt 25,34-46).

Nos últimos dias, o Carnaval, geralmente visto como festa do diabo, resgatou e apresentou, ao Brasil e ao mundo, a verdadeira face de Jesus, claramente apresentada nos Evangelhos e há muito tempo esquecida pelas igrejas: o Jesus cuja "boa notícia" (evangelho) consiste em dizer que Deus está ao lado dos sem-terra, dos índios, dos negros, das mulheres, dos LGBTIs, dos torturados e dos moradores de rua – enfim, de todo o povo sofrido e marginalizado – e cujo discipulado consiste num chamado a viver a fé como compromisso de sempre estar ao lado dessas gentes por quem ele viveu, morreu e ressuscitou.

Para quem se acha proprietário de Jesus, isso pode soar escandaloso. Mas é preciso dizer que o Jesus dos Evangelhos não é patrimônio de nenhuma igreja ou grupo religioso. Ele é, como cantou o samba-enredo da Mangueira, "Jesus da gente" que se encontra "no amor que não encontra fronteira".

[1] Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A URGÊNCIA DA COMPAIXÃO E DO CUIDADO





Por Marcelo Barros

Nesta 4ª feira, a Igreja Católica no Brasil lança a Campanha da Fraternidade 2020, com o tema Fraternidade e Vida: dom e compromisso. Ela se dirige a todas as pessoas de boa vontade e que se colocam a favor da paz e da fraternidade humana.

Em um Brasil cada vez mais marcado pela divisão e pela intolerância, a Igreja Católica, no Brasil, liga a celebração pascal à solidariedade fraterna. Há mais de 50 anos, sempre na 4ª feira de cinzas, se abre a Campanha da Fraternidade. Neste ano, a Campanha da Fraternidade não insiste em um problema social determinado. Não se centra em um determinado desafio social, como tem ocorrido em outros anos. Desta vez, o tema é assunto central da fé e da convivência social: Fraternidade e Vida: dom e compromisso. A irmandade que Jesus veio criar em nós e entre nós é para defender a vida como dom divino e compromisso de amor e solidariedade em relação a todos os irmãos e irmãs. O evangelho e a Campanha da Fraternidade 2020 nos chama a aprofundarmos o significado mais profundo da vida e a encontrarmos caminhos para que a vida seja valorizada e defendida.  O lema desta CF 2020 é a palavra de Jesus sobre o samaritano: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10, 33- 34).
Precisamos ligar a fé em Deus e a espiritualidade à urgência do cuidado social com as pessoas marginalizadas. Cada dia mais, cresce em nossas cidades a população de rua. Milhares de pessoas jogadas nas calçadas e embaixo de viadutos como se fossem lixos. Uma multidão de pessoas que vivem como se fossem descartáveis. O papa Francisco tem chamado atenção para isso. Ele denuncia o que tem chamado de “globalização da indiferença”. Para superar essa situação, temos de fazer o que Jesus diz ao professor da Bíblia. Depois que lhe conta a história do samaritano que cuidou do homem ferido à margem da estrada,  Jesus disse: Vai e faze o mesmo.
Essa é a proposta da Campanha da Fraternidade deste ano:  
1-    o olhar sobre a realidade do mundo e especialmente do Brasil.
2 - o discernir o que Deus nos diz sobre isso que vemos e finalmente
3 - o que Ele nos pede como resposta ao desafio apresentado.
O Texto-base da CF 2020, em sua primeira parte, mostra que a realidade atual é consequência de um modo de olhar que descuida da vida das pessoas e da natureza. O texto-base lembra a precarização da saúde e da educação no Brasil. Todos sabemos que o fator que gera tantas injustiças é o aumento descomunal da desigualdade social.
Além da violência que assola as relações humanas, diariamente, nas periferias das cidades, mesmo do interior, somos confrontados com  o assassinato brutal de jovens, em sua imensa maioria pobres e negros. Chegam a ser 63 assassinatos de jovens por dia. Um a cada 23 minutos. Um verdadeiro genocídio.
Além disso, a ONU e os organismos internacionais têm denunciado que, no Brasil, os povos indígenas nunca tiveram a sua sobrevivência tão ameaçada quanto agora. E essa mesma ameaça pesa sobre a natureza e os bens da terra.
Na segunda parte, a partir da revelação bíblica, o texto-base aprofunda uma palavra de fé que nos ajuda a unir a espiritualidade pascal à urgência de transformar essa realidade. O apelo é que todas as comunidades e organismos de Igrejas possam ser escolas de solidariedade entre seus membros, com as pessoas mais carentes e em comunhão com a natureza.
Em sua terceira parte, o texto-base propõe iniciativas comunitárias para gerar experiências de solidariedade e inclusão. Tomando como exemplo a irmã Dulce, hoje chamada pela Igreja de Santa Dulce dos Pobres, a Campanha da Fraternidade nos confirma: só somos verdadeiramente humanos/as quando somos pessoas de solidariedade e compaixão.

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com


QUERIDA AMAZÔNIA: A HORA DA HERMENÊUTICA





     por Maria Clara Lucchetti Bingemer

O primeiro impacto após tanta expectativa pode ter sido negativo.  Tanto se ansiava por essa exortação pós-sinodal do Sínodo sobre a Amazônia e parecia que não trazia as respostas tão aguardadas.  Não apareceu uma posição clara do Pontífice sobre a questão da ordenação de homens casados (viri probati).  Tampouco apareceu qualquer avanço sobre a questão da mulher em termos ministeriais. Como sempre, Francisco é o Papa das surpresas.  E dessa vez a surpresa acontecia, mas não como se esperava.
Após alguns dias da apresentação da exortação, no entanto, é importante não esquecer a importância da hermenêutica, ou seja, da interpretação.  Não existe conhecimento sem interpretação.  Até as ciências que se pretendem mais objetivas dentro do leque das ciências humanas e sociais valorizam e privilegiam a interpretação. E neste momento em que, como Igreja e como sociedade, digerimos a exortação pós-sinodal “Querida Amazônia” o convite da hermenêutica se faz sentir com força.
Primeiramente há que recordar o que disse o Papa em sua mensagem conclusiva dos trabalhos do Sínodo.  Criticava duramente as elites católicas que só se detinham nas coisas eclesiásticas e eram incapazes de enxergar a importância do que é maior e atinge a todos, qual seja, o diagnóstico da situação que hoje vive a Amazônia, com o problema ecológico, cultural e humano. Segundo Francisco, esses grupos se fixam nas coisas menores, de disciplina intra-eclesiástica, e não naquilo que é o coração da mensagem conclusiva do Sínodo. 
Para apoiar sua crítica, lançou mão do que disse o grande escritor francês Charles Péguy: “ ...porque não têm a coragem de estar com o mundo eles creem estar com Deus, porque não têm coragem de comprometer-se nas opções do homem, nas opções da vida do homem, nas opções de vida do homem acreditam lutar por Deus, porque não amam a ninguém creem amar a Deus.”
Em seguida, há que atentar para o que está escrito na exortação.  E ali aparece com muita clareza que o Papa considera o documento conclusivo do Sínodo e a exortação pós-sinodal uma só coisa, unificada como desembocadura do processo de sinodalidade percorrido pela Igreja em todo o processo do Sínodo.  É assim que diz: “Aqui, não vou desenvolver todas as questões amplamente tratadas no Documento conclusivo; não pretendo substituí-lo nem repeti-lo”. E continua: “Nesta Exortação preferi não citar o Documento, convidando a lê-lo integralmente”.
Em linha de continuidade e coerência, o Papa segue ao longo do texto da Exortação com sua visão descentralizadora que quer dar mais força de atuação às igrejas locais. E defende apaixonadamente a inculturação. Deixa claro que uma Igreja com rosto amazônico é chamada inapelavelmente a valorizar a pluralidade e a riqueza das culturas autóctones e de suas expressões religiosas. “É possível receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente como idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem continuar a considerá-lo um extravio pagão”.
A querida Amazônia, de Francisco e nossa, é plural e diversa. E, por isso, nela “os crentes precisam encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos mais pobres”. Na diferença de cultos e expressões, a prioridade da justiça pela qual clamam os pobres, inseparável do compromisso com a Casa Comum deve ser a nota de uma Igreja com rosto amazônico.
Portanto, os sonhos de Francisco para sua e nossa querida Amazônia devem ser bem interpretados.  E para isso não se pode dissociar o processo sinodal, o documento conclusivo e a exortação pós-sinodal. Se o documento final do sínodo é muito claro em pedir uma nova ministerialidade para servir as comunidades amazônica, a exortação prioriza o diagnóstico das grandes questões da região.  Mas ao fazê-lo, deixa uma abertura para a questão dos ministérios. As necessidades das comunidades amazônicas falarão mais alto.  E os bispos poderão tomar iniciativas mais ousadas, que o Papa provavelmente apoiará.  
O momento qualitativo do sínodo e do documento fica preservado. O cuidado da criação é prioridade absoluta.  Trata-se de uma prioridade para o planeta e para a humanidade, porque ambos não se dissociam.  E o plano de Deus envolve ambos. A Igreja quer estar a serviço desse sonho de Deus, feito de justiça e cuidado do criado. E para isso deve pensar grande e agir em consequência. O sonho de Deus é o que dá o tom aos sonhos do Papa para a querida Amazônia. 


Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco), entre outros livros.

  Copyright 2020 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sábado, 22 de fevereiro de 2020

CAMPANHA QUARESMA 2020

São Paulo, Quaresma de 2020

Queridos amigos e amigas,

       Como todos os anos, volto à Campanha de Quaresma – tempo de solidariedade e justiça. Talvez seja a primeira vez que você recebe esta minha carta, remetida todos os anos há mais de duas décadas. Trata-se de uma iniciativa para favorecer um projeto social no qual confio.

       Devido ao modo como o atual governo brasileiro trata a Amazônia, e a importância do Sínodo de Bispos sobre a região convocado pelo papa Francisco, creio que esta é uma oportunidade de manifestar nossa solidariedade aos povos amazônicos.

       Neste ano de 2020, a instituição beneficiária será um projeto da Amazônia - a Comunidade Fazenda São Sebastião, localizada à margem esquerda do igarapé Mapiá, município de Pauiní (AM). O acesso é apenas por via fluvial. A cidade mais próxima, Boca do Acre, dista 70 km. A sede municipal, Pauini, a aproximadamente 200 km da comunidade por via fluvial. Sua população é de 19.426 habitantes (IBGE, 2019). Possui um dos IDHs mais baixos do país: 0,49.

       Cerca de 80 famílias vivem na Fazenda São Sebastião. A comunidade foi fundada em 1983 com a chegada de 60 famílias provenientes de Rio Branco (AC), assentadas pelo Incra. Hoje, sobrevivem do extrativismo e da agricultura de subsistência. A base da alimentação é peixe, caça, farinha de mandioca e culturas anuais, como arroz e feijão, cultivados em áreas férteis às margens do rio Purus e nos roçados de terra firme. A renda das famílias é proveniente de aposentadorias, programas assistenciais do governo, como Bolsa Família, e do extrativismo de produtos florestais, com destaque para o cacau nativo e a castanha.

       A comunidade vive em área isolada, desprovida de serviços básicos como energia elétrica e saneamento. Também não possui serviços de saúde nem recebe visita regular de médico ou agente de saúde. O posto de saúde mais próximo está localizado em Boca do Acre.

       A comunidade possui uma sala de aula multiseriada, com aproximadamente 20 alunos, de 1º ao 9º ano. No entanto, hoje, a escola é desprovida de professor regular. Funciona em espaço de aproximadamente 25m2, com problemas estruturais que não favorecem o aprendizado (goteiras, calor excessivo, falta de mobiliário adequado etc.). Parte da merenda e material escolar são fornecidos pela escola sede Cruzeiro de Céu.

       Tudo depende do serviço voluntário de duas mães, que se revezam no acompanhamento dos alunos e na preparação da merenda. A escola recebe, esporadicamente, a visita de professores da escola sede. As mães que dão suporte possuem escolaridade até o 5º ano, o que praticamente inviabiliza a aprendizagem dos alunos das séries posteriores.

       No entorno da comunidade residem aproximadamente 20 famílias com crianças e jovens em idade escolar, que não frequentam a escola por não haver disponibilidade de transporte até a sala de aula.

       A campanha deste ano está focada na estruturação da escola da comunidade, o que envolve: 1) construção de novo espaço para funcionamento (sala de aula, cozinha, refeitório e banheiros), incluindo toda a estruturação física; 2) contratação de dois professores e uma merendeira; 3) compra de material escolar; 4) compra de alimentos para complementação da merenda escolar; 4) viabilização do transporte escolar.

       Dado que a Associação de Moradores local ainda passa por um processo de reestruturação, a arrecadação das doações será realizada em conta bancária do Instituto Socioambiental de Viçosa (www.isavicosa.org), que desde 2012 mantém campanha permanente de assistência à comunidade. Um dos diretores, Pedro Christo Brandão, é meu sobrinho, casado com Tatiana, abaixo indicada.

       Sua doação, ainda que de R$ 1, pode ser feita através da conta bancária:

Caixa Econômica Federal
Agência 0164
Conta Poupança 103140-0 - Operação 013
Associação Instituto Socioambiental de Viçosa
CNPJ: 09.242.409/0001-99

       Se precisar de recibo ou alguma informação suplementar, entre em contato com: Tatiana Reis – tatirsbrandao@gmail.com ou +55-31- 988612313 (WhatsApp)

       Por favor, divulgue esta campanha nas redes sociais e entre seus familiares e amigos.

       Agradeço a sua solidariedade. Deus lhe pague.
 Meu abraço com amizade e paz


Frei Betto

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

ÉTICA E ESPIRITUALIDADE FACE AOS DESASTRES ECOLÓGICOS ATUAIS



por leonardo boff

As grandes chuvas com inundações desastrosas que afetaram muitas cidades do Brasil e paralelamente os incêndios fenomenais na Austrália, seguidos imediatamente de inesperadas inundações, constituem sinais inequívocos da Terra de que nela algumas mudanças importantes estão ocorrendo. É praticamente consenso de que estas mudanças para pior se devem à ação irresponsável dos seres humanos (a era do antropoceno) em sua relação para com a natureza e para com a totalidade do planeta Terra.
Os vários grupos de cientistas que sistematicamente acompanham o estado da Terra atestam que, de ano para ano, os principais itens que sustentam a vida (água, solos, ar puro, fertilidade, climas e outros) estão se deteriorando dia a dia. Quando isso vai parar? O dia da Sobrecarga da Terra (the Earth Overshoot Day) foi atingido no dia 29 de julho de 2019. Isto significa: até esta data foram consumidos todos os recursos naturais disponíveis. Agora a Terra entrou no vermelho e no cheque especial. Chegaremos até dezembro? Se teimarmos em manter o consumo atual, temos que aplicar violência contra a Terra forçando-a a dar o que já não tem ou não pode repor. Sua reação a esta violência se expressa pelo aquecimento global, pelas enchentes, pelas grandes nevascas, pela perda da biodiversidade, pela desertificação, pelo aumento do dióxido de carbono e do metano e pelo crescimento da violência social já que Terra e Humanidade constituem uma única entidade relacional.
Ou mudamos nossa relação para com a Terra viva e para com a natureza ou segundo S. Bauman,“engrossaremos o cortejo daqueles que rumam na direção de sua própria sepultura”.Desta vez não dispomos de uma Arca de Noé salvadora.
Não temos outra alternativa senão mudarmos.Quem acredita no messianismo salvador da ciência é um iludido: a ciência pode muito mas não tudo: ela detém os ventos, segura as chuvas, limita o aumento dos oceanos? Não basta diminuir a dose e continuar com o mesmo veneno ou apenas limar os dentes do lobo. A mudança demanda atender a alguns dos seguintes marcos fundamentais.
Primeiro: uma visão espiritual do mundo. Isso não tem a ver com a religiosidade, mas com uma nova sensibilidade e um novo espírito de renúncia à uma relação violenta e meramente utilitarista da natureza. Há que se reconhecer que ela tem um valor em si mesmo, somos parte dela e que há de ser cuidada e respeitada como algo sagrado. Nisso consiste a nova sensibilidade e espiritualidade.
Segundo: resgatar o coração, o afeto, a empatia e a compaixão. Esta dimensão foi descurada em nome da objetividade da tecno-ciência. Mas nela se aninha o amor, a sensibilidade para com os outros, a ética dos valores e a dimensão espiritual. Porque não se dá lugar ao afeto e ao coração não há porquê respeitar a natureza e escutar as mensagens que ela nos está enviando com as enchentes e o aquecimento global. A tecno-ciência operou uma espécie de lobotomia nos seres humanos que já não sentem seus clamores. Imaginam ser a Terra um simples baú de recursos infinitos a serviço de um projeto de um enriquecimento infinito. Temos que mudar de paradigma: de uma sociedade industrialista que exaure a natureza para uma sociedade de conservação e cuidado de toda a vida.
Terceiro: tomar a sério o princípio de cuidado e de precaução. Ou cuidamos do que restou da natureza e regeneramos o que temos devastado,como o MST que se propôs neste ano plantar um milhão de árvores nas áreas depredadas pelo agronegócio, ou então nosso tipo de sociedade terá dias contados. A precaução exige que não se coloquem atos nem se usem elementos cujas consequências não podemos controlar. Ademais, a filosofia antiga e moderna já viu que o cuidado é a pré-condição para que surja qualquer ser. É também o norteador antecipado de toda ação. Se a vida, também a nossa, não for cuidada, adoece e morre. A prevenção e o cuidado são decisivos no campo da nanotecnologia e da inteligência artificial autônoma. Esta, sem sabermos, pode tomar decisões e penetrar em arsenais nucleares e pôr fim à nossa civilização.
Quarto: o respeito a todo ser. Cada ser tem valor intrínseco e tem seu lugar no conjunto dos seres.Mesmo o menor deles revela algo do mistério do mundo e do Criador. O respeito impõe limites à voracidade de nosso sistema depredador e consumista. Quem melhor formulou uma ética do respeito foi o médico e pensador Albert Schweitzer (+1965). Ensinava: ética é a responsabilidade e o respeito ilimitado por tudo o que existe e vive. Esse respeito pelo outro nos obriga à tolerância,urgente no mundo e entre nós, sob o governo de extrema-direita que nutre desprezo aos negros, índígenas, quilombolas, LGBT e às mulheres.
Quinto: atitude de solidariedade e de cooperação. Esta é a lei básica do universo e dos processos orgânicos. Todas as energias e todos os seres cooperam uns com os outros para que se mantenha o equilíbrio dinâmico, se garanta a diversidade e todos possam co-evoluir. O propósito da evolução não é conceder a vitória ao mais adaptável mas permitir que cada ser, mesmo o mais frágil, possa expressar virtualidades que emergem daquela Energia de Fundo que tudo sustenta, da qual tudo saiu e para qual tudo volta. Hoje, devido à degradação geral das relações humanas e naturais devemos, como projeto de vida, ser conscientemente solidários e cooperativos. Caso contrário, não salvaremos a vida nem garantiremos um futuro promissor para a Humanidade. O sistema econômico e o mercado não se fundam na cooperação mas na competição, a mais desenfreada. Por isso criam tantas desigualdade a ponto de 1% da humanidade possuir o equivalente aos 99% restantes.
Sexto: fundamental é a responsabilidade coletiva. Ser responsável é dar-se conta das consequências de nossos atos. Hoje. construimos o princípio da auto-destruição. O ditame categórico é então: aja de forma tão responsável que as consequências de tua ação não sejam destrutivas para a vida e seu futuro e não ativem a auto-destruição.
Sétimo: colocar todos os esforços na consecução de uma bio-civilização centrada na vida e na Terra. O tempo das nações já passou. Agora é o tempo da construção e da salvaguarda do destino comum Terra e Humanidade. Sua realização não se fará sem pormos em ação os marcos acima elencados.
Leonardo Boff é eco-teólogo, filósofo e escreveu: Como cuidar da Casa Comum, Vozes 2019.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A FANTASIA SE FAZ REALIDADE





por Frei Betto

         O Carnaval é uma festa litúrgica, momento de transgressão da racionalidade e de efusão do espírito. Sua essência é imprimir realidade à fantasia, por mais paradoxal que pareça. No Carnaval o folião se desafoga, livra-se dos anjos e demônios que o habitam, migra para as múltiplas representações de sua personalidade condicionada, no resto do ano, pelos padrões culturais hegemônicos.
         Nessa festa o folião exibe o seu avesso e desmascara convenções sociais, quebra preconceitos e ridiculariza a empáfia dos que detêm o poder. É a ocasião de extravasar sentimentos e emoções reprimidos, trazer à tona a intimidade contida, inclusive se entrelaçar com estranhos que se tornam próximos pelo simples fato de endossarem o cordão, o bloco, a escola de samba.
         O ser humano não suporta ficar confinado na esfera da necessidade e cuidar apenas da administração da vida como fenômeno biológico: o trabalho em busca de salário; o aluguel; a mensalidade da escola dos filhos; as contas de luz e gás... É preciso emergir eventualmente para a esfera da gratuidade, na qual predominam o lúdico, o festivo, o litúrgico, território no qual a imaginação ou a fantasia assume supremacia sobre a razão e a moral se impõe sobre o moralismo.
         O que se busca no Carnaval? O espelho invertido, trafegar na contramão e deixar Momo se refestelar na alegria. Fazer com que os monstros que protagonizam dias e meses do ano permaneçam calados, recolhidos à sua insana tristeza. Aflorar o júbilo dessa gente sofrida e devolver-lhe a autoestima. Ainda que dure apenas três ou quatro dias, sejam dados vivas e aplausos à faxineira travestida de rainha; ao encanador, de sultão; ao gari, de oráculo divino.
         Festa com gosto de infinitude, tenha o Carnaval um ritmo tão alucinado que faça todos rodopiarem no carrossel da alegria embriagadora. Soem cuícas, tamborins e pandeiros, e exorcizem, de todos os foliões, essa letargia que o medo infunde naqueles que não acreditam que o presente se fará ausência no futuro promissor. Abram alas às alvíssaras!
         Vamos, neste Carnaval, arrancar as roupagens convencionais que nos impelem a ser o que não somos. Desfilar despidos de qualquer sinecura, sem os adornos que, ao longo do ano, nos inserem no bloco dos cínicos. Animados pelo samba-enredo, avancemos rumo à alucinação dos loucos repletos de razão, à subversão poética da palavra desassossegada, à lógica que supera os efeitos e ousa encarar as causas até elevá-las ao cume dos carros alegóricos.
         Não tergiversar nem fazer coro com os que insistem em acobertar o passado. No sambódromo, o ritmo da bateria haverá de ressuscitar todas as crianças assassinadas pelos monoglotas do discurso bélico: Ketellen, Ágatha, Kauê, Kauã, Kauan e Jenifer.
         A comissão de frente ostentará imensa faixa com o verbo AMAR, para que todos os foliões desaprendam a conjugar o verbo armar, pois um simples erre é capaz de desencadear, como pandemia, sementes amargas de rancor, raiva e ruindade.
         Vamos celebrar, neste Carnaval, a união de espíritos, a tolerância de convicções, o diálogo das religiões, e exaltar o direito à diferença, execrando os que insistem em desenterrar torturadores e nazistas para convidá-los à dança macabra da necrofilia ao som de tiros.
         Venha um Carnaval que celebre o Brasil e os brasileiros, essa gente sofrida que, o ano todo, percorre a espinhosa passarela da vida sonegada de direitos, condenada à pobretarização, à educação sucateada, à saúde enferma, ao saneamento restrito e ao emprego loteria.
         Desfilem todos ébrios de utopia e entranhados da convicção de que fantasias podem se fazer realidade, e a imaginação, poder. E ousem romper o cordão que teima em contê-los imolados na sacrílega noção de que o sofrimento merece ser naturalizado.
         A vida nos foi dada para desfilar soberba na cadência da letra efe – bastam-nos, como brasileiros, fé, futebol, feijão, farinha e o fogo inapagável dos direitos de cidadania. O suficiente para nos assegurar festa e fartura.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

POR UMA VIDA SILENCIOSA





por Kinno Cerqueira [1]


Gilberto Gil, numa de suas canções, anota uma declaração de profundo valor para a espiritualidade bíblica:

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz

Vemos, nestas poucas linhas, intuição análoga àquela que perpassa os dois testamentos bíblicos, a saber: que a espiritualidade, para ser aprofundada, requer uma vida que não se esquive do silêncio.

O salmista, por exemplo, silencia a sua alma para acolher a salvação do Senhor: “Somente em Deus espera silenciosa a minha alma; dele vem a minha salvação” (Sl 62,1). E, noutro lugar, ainda escreve: “Ó minha alma, espera silenciosa somente em Deus, porque dele vem a minha esperança” (Sl 62,5).

Como um eco da tradição dos salmos, ouvimos dos lábios de Jesus de Nazaré o convite a que cultivemos uma espiritualidade nutrida pelas águas cristalinas que brotam do silêncio: “...quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora a teu Pai que está lá no segredo...” (Mt 6,6).

O silêncio, na experiência espiritual de Jesus, consistia numa maneira de pôr o coração à escuta dos apelos que Deus lhe fazia na vida cotidiana. Calava-se para ouvir a dor de Deus na dor dos pobres, doentes e desprezados (Mc 1,35-45). Seus momentos de silêncio o tornavam a cada dia mais sensível às dores do mundo, que também são as dores de Deus.

No quadro da espiritualidade bíblica, uma “vida silenciosa” consiste em nos calarmos para ouvir os gemidos de Deus nos gemidos dos pobres e desprezados, pois nestes Deus habita e espera ser servido.
  

[1] Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.