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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Francisco quer a Igreja fora das igrejas


 Por Frei Betto

      Semana passada, em Nova Iguaçu (RJ), agentes pastorais, membros de Comunidades Eclesiais de Base, adeptos da Teologia da Libertação, do Movimento Fé e Política e de movimentos sociais se reuniram para aprofundar a proposta do papa Francisco de “uma Igreja em saída”.

      Diminui o número de católicos no Brasil. A pesquisa Datafolha, de dezembro de 2016, comprovou redução de 9 milhões de fiéis em dois anos. Naquela data, apenas 50% dos entrevistados se autodeclararam católicos.

      O papa Francisco está ciente da crise do catolicismo. Por isso, propõe uma “Igreja em saída”. Isso significa romper os muros clericalistas que amarram a Igreja aos templos; flexibilizar as leis canônicas (como admitir o recasamento de divorciados); e modificar os parâmetros ideológicos (que consideram o catolicismo conatural ao capitalismo).

      Esse projeto de Francisco se choca com a “restauração identitária” ou, nas palavras do teólogo e meu primo João Batista Libanio, “volta à grande disciplina”, defendida por João Paulo II e Bento XVI. Propunham a leitura dos documentos do Concílio Vaticano II à luz do Vaticano I: predominância do Direito Canônico; Catecismo da Igreja Católica; desestímulo às Comunidades Eclesiais de Base; aceitação da liturgia tridentina; valorização dos movimentos papistas; e desconfiança diante da sociedade (tida como relativista e niilista).

      Para o projeto de “restauração identitária”, o papel da Igreja é salvar almas. Para o de “Igreja em saída”, é libertar a humanidade da injustiça e da desigualdade. As pessoas se salvam salvando a humanidade de tudo que a impede de ser a grande família dos filhos e filhas de Deus. Daí a proposta de Francisco ao incentivar os movimentos sociais a lutar por três T: terra, teto e trabalho.

      O primeiro projeto quer uma Igreja centrada na liturgia e nos sacramentos, na noção de pecado, na submissão dos leigos ao clero. Guarda nostalgia dos tempos em que a Igreja Católica ditava a moral social; merecia a reverência do Estado, que a cobria de privilégios; e, hoje, seus adeptos se sentem incomodados frente à secularização da sociedade e aos avanços da ciência e da tecnologia. 

      Ora, quantos jovens batizados na Igreja Católica estão hoje preocupados com a noção de pecado? Quantos temem ir para o inferno ao morrer? Quantos se preservam virgens até o casamento?

      O projeto de Francisco é de uma Igreja descentrada de si e centrada nos graves desafios do mundo atual: preservação da natureza; combate à idolatria do capital; diálogo entre as nações; acolhimento dos refugiados; misericórdia às pessoas; protagonismo dos movimentos populares; centralidade evangélica nos direitos dos pobres e excluídos.

      Bento XVI renunciou por reconhecer o fracasso do projeto de “restauração identitária”, ainda apoiado por expressivo número de bispos, padres e religiosas, incomodados com as orientações do papa Francisco, a quem alguns criticam abertamente.

      O novo jeito de ser católico, proposto por Francisco, corresponde ao que dizia são Domingos, fundador da Ordem religiosa a que pertenço: “O trigo amontoado apodrece; espalhado, frutifica”. Sair da sacristia para a sociedade; encarar o mundo como dádiva de Deus; descobrir a presença de valores evangélicos em pessoas e situações desprovidas de fé ou religiosidade; buscar o diálogo ecumênico e inter-religioso; estar menos na Igreja para se fazer mais presente no Reino de Deus – categoria que, na boca de Jesus, se contrapunha ao reino de César, e significa o mundo no qual a paz seja fruto da justiça, e não do equilíbrio de armas.

      A meta é o Reino de Deus, no qual “Deus será tudo em todos”, como prenunciou o apóstolo Paulo (I Coríntios 15, 28). O caminho para atingi-lo inclui os movimentos sociais, as instituições da sociedade, as ferramentas políticas. E a Igreja funciona como “posto de gasolina” para abastecer-nos na fé e na espiritualidade capaz de nos estimular como militantes da grande utopia - o mundo que Deus quer para seus filhos e filhas viverem com dignidade, liberdade, justiça e paz.

Frei Betto é escritor, autor de “Parábolas de Jesus – ética e valores universais” (Vozes), entre outros livros.
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quarta-feira, 29 de novembro de 2017

UNICAP: PRESENTE NO QUILOMBO DOS PALMARES


Artur Peregrino

Por iniciativa do Instituto Humanitas Unicap, Grupo Amigos no Caminho e NEABI - Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas - em parceria, realizaram, nos dias 18 e 19 de novembro, uma viagem, com alunos, professores e funcionários para a Serra da Barriga em União dos Palmares – AL. O objetivo era visitar e conhecer o Quilombo dos Palmares e a região.


Estando na cidade de União dos Palmares, os estudantes universitários, visitaram o museu da cidade como também “um quilombo vivo”. Quilombo Munquém. Lá, houve um encontro com lideranças do quilombo como também com artesãos da comunidade. Foi um encontro rico em humanidade onde se pôde refletir sobre a história e o legado da luta de Zumbi.
O mês de novembro, especialmente o dia 20, é considerado o Dia da Consciência Negra. A data relembra a destruição do Quilombo dos Palmares e a morte dos seus líderes, Acotirene, Ganga Zumba, Zumbi, Dandara e tantos guerreiros e guerreiras da liberdade. Essa luta histórica remonta ao final do século XVII, precisamente no ano de 1695 acontece o massacre do Quilombo dos Palmares. Foi o maior espaço de resistência de escravos durante mais de um século no período colonial (1597-1704).
Por isso, para a maior parte dos movimentos de resistência e afirmação do povo negro, que combatem o racismo, o dia 13 de maio, data oficialesca da “libertação dos escravos” pela Princesa Isabel, não representa a memória do povo negro. Isso porque, o 20 de novembro e a figura de Zumbi expressam melhor do que qualquer coisa, a luta do povo negro, pois é a responsável pelo fim da escravidão, e não a benevolência do Império decadente. Sabemos que em fins do século XIX, a escravidão era uma atividade econômica quase impossível. Não era mais rentável manter o regime de escravidão. A generosidade da Princesa Izabel é desmascarada nos tempos atuais.  Isso reflete uma politização crescente do tema. Vemos que o imaginário histórico abandonou de vez a referência à princesa Izabel e à Lei Áurea, que sempre teve um caráter ambíguo e desmobilizador, em benefício da mensagem combativa de Zumbi dos Palmares.
Foi na região, da província de Pernambuco, no final de século XVII, hoje Estado de Alagoas, no meio de muitas palmeiras (origem do nome Palmares) que surgiram os mocambos (quilombos) dos negros que fugiam da escravidão, dos engenhos, em busca da liberdade. Zumbi surge numa época em que o açúcar era o principal produto da economia colonial. Uma produção que garantia lucros à coroa portuguesa e aos senhores de engenho no Nordeste brasileiro. A destruição da República dos Palmares (Quilombo dos Palmares) se deve porque lá se promovia uma sociedade sem o trabalho escravo, representando ameaças constantes ao sistema escravista existente no Brasil. O fenômeno da quilombagem expressava toda inteligência para resistir e lutar pela liberdade por parte do escravo.
No Quilombo dos Palmares não se incluem apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos e fugitivos da polícia, em geral, brancos pobres. O local chegou a reunir até 30 mil pessoas no seu auge. Um conjunto de mocambos formava o grande quilombo. Só para ter uma ideia: o maior mocambo chegou a ter 6 mil pessoas, quase a mesma população do Rio de Janeiro à época.



A agricultura no quilombo era básica, obedecendo a um sistema coletivo de trabalho, em que o milho, a mandioca, o feijão, a batata doce, a cana de açúcar e a banana eram os principais produtos de subsistência. Com o surgimento da metalurgia, a sociedade palmarina ficou dividia em camponeses, artesãos, guerreiros e funcionários. Além da fabricação de utensílios para a agricultura e para a guerra fabricaram também objetos artísticos em cerâmica e madeira. Até hoje, o Quilombo Munquém, que fica no pé da Serra da Barriga tem essa especialidade de trabalhar com o barro.
  A luta dos negros e negras pela sua verdadeira libertação, porém, não terminou aí. Findada a escravidão, a população negra foi marginalizada e estigmatizada pelo racismo.  Mais de cem anos após o fim do regime de escravidão, a desigualdade entre negros e brancos é gritante e vergonhosa. Dados recentes provam isso. A população negra é alvo preferencial da violência policial nas periferias das grandes cidades. As mulheres negras são as que mais sofrem a violência machista, e a média salarial de negros e negras continua sendo muito inferior a dos demais trabalhadores.
Vivemos em um país que envolve o destino de 54% da população brasileira. Neste ano de 2017, aconteceu um episódio que não deve passar em branco. A mobilização contra o racismo ganhou um elemento explosivo a partir do escandaloso "Coisa de Preto" de Willian Waack, que escancarou a hipocrisia da democracia racial no Brasil. A TV Globo, sua principal fortaleza ideológica, foi questionada pela sociedade. Já não é mais como antes. O zap deu conta de espalhar a notícia de um crime cometido por um profissional de um grande meio de comunicação do país.
Qual a mensagem que fica, finalmente das homenagens prestadas a Zumbi dos Palmares? Certamente, é continuar firme na resistência e combater todo tipo de descriminação. No Brasil, a visão de um país voltado para o desenvolvimento humano foi substituída por programas de arrocho batizados de austeridade. A recordação do passado ajuda a enfrentar os desafios do futuro. Um povo não pode verdadeiramente enfrentar o seu futuro sem ter uma visão do seu próprio passado.
A iniciativa da UNICAP vem em um momento em que casos de racismo estão se acirrando. Depois da visita ao quilombo, avaliou-se que o reconhecimento deste bem cultural é uma forma de combater a discriminação racial e valorizar a cultura afro-brasileira em todas as suas expressões.
Por fim, nossa homenagem a Dom José Maria Pires, que foi um dos grandes bispos proféticos da Igreja brasileira. Era negro e sempre defendeu a causa dos afrodescendentes. Foi-se mais um dos bispos proféticos que tanto nos faltam nos dias atuais. Se estivesse vivo presidiria uma missa na UNICAP, no dia 20 de novembro de 2017.   Ele também foi o grande animador da Pastoral afro-brasileira e do movimento dos padres e bispos negros que ganhou espaço e amplitude na vida da Igreja do Brasil e também da América Latina e do Caribe, através do CELAM.

Com a ida, ao Quilombo dos Palmares, os estudantes universitários, juntamente com professores e funcionários da UNICAP, perceberam que a formação deve mobilizar todas as dimensões do ser humano. O atual Padre Geral dos jesuítas, Artur Sosa, ao passar pela UNICAP, lembrou que “somente uma mística profunda pode ajudar cada ser humano em sua integridade, no meio de uma sociedade fragmentada, dispersa e plural”.





* Doutorando em Ciências da Religião pela UNICAP e Mestre em Antropologia pela UFPE; Licenciado em Filosofia pela UNICAP; Bacharelado em Filosofia pela UNICAP e Bacharelado em Teologia pelo Instituto de Teologia do Recife - ITER; Especialista (SENAC) e docente (UNICAP) em EaD; prof. do Curso de Teologia na UNICAP e integrante do Instituto Humanitas - IHU UNICAP; prof. Extensionista; pesquisador do Grupo de pesquisa UNICAP/CNPq Religiões, identidades e diálogos, na linha de pesquisa Diálogos inter-religiosos; membro do Grupo de Peregrinas e Peregrinos do Nordeste – GPPN. Email: arturperegrino@gmail.com



terça-feira, 28 de novembro de 2017

RESISTIR HOJE PARA SONHAR O AMANHÃ



Por Marcelo Barros

A partir do próximo domingo, as Igrejas cristãs mais antigas nos convidam a intensificar a nossa esperança na realização do projeto divino no mundo. Um novo ano eclesial começa com o tempo que se chama "Advento", ou seja a vinda do Senhor. Nessas celebrações, os cristãos escutarão muitas vezes a palavra "vigilância". Os evangelhos pedem que nos mantenhamos despertos e atentos. Atualmente isso se pode traduzir pela capacidade de resistência. Principalmente, quando vivemos em uma sociedade baseada na cultura da publicidade e da ilusão, resistir é uma dimensão fundamental para uma vida sadia e justa.

Que outra postura podemos ter como pessoas sensatas diante de um modo de organizar o mundo que concentra a riqueza nas mãos de 60 ricos e deixa mais de dois bilhões de seres humanos sem segurança alimentar e condições de uma vida digna?  Como não ver que é a idolatria do mercado que leva o governo norte-americano a romper com os acordos da ONU sobre o clima? Como se dizer cristãos e não reagir a uma cultura individualista que estimula indiferença frente ao sofrimento dos outros e gera cada vez mais desumanização e crueldade?

Para sermos pessoas livres e assumirmos nossa responsabilidade por nós mesmos, uns pelos outros e pelo cuidado com a natureza, se torna necessário resistir. Temos de dizer Não à fatalidade dos que apregoam:  "Não há alternativas. Tem de ser assim". Temos de denunciar e combater uma forma de governar e fazer política que se tornou comum e é cada vez mais contrária aos pobres e à maioria do nosso povo. Lutamos contra o sentimento de impotência, gerado pelo fato de sermos uma ínfima minoria que se levanta contra essa desordem dominante. Procuramos nos organizar para resistir a todo tipo de injustiça e violência, assim como a um modo de viver que explora e ameaça à natureza e à própria continuidade da vida no planeta Terra. 

Na cultura vigente, se diz que alguém é resistente quando mostra condições físicas para suportar uma longa caminhada ou para enfrentar um clima adverso ou vencer obstáculos da natureza. Assim como existe uma resistência física individual, também no plano comunitário, há uma energia espiritual que se expressa na resistência social e política. Se não fosse assim, como compreender uma comunidade de gente pobre, indefesa que resiste em uma ocupação rural ou urbana contra senhores que se dizem proprietários e controlam a favor deles governo, juízes e polícia? Como não somente sobreviver, mas ainda formar grupos de reggae em morros do Rio de Janeiro e organizar comunidades de apoio à juventude pobre, vítima da guerra entre o tráfico e uma polícia violenta?

No plano social e político, resistir significa, em primeiro lugar, colocar em questão dogmas e valores fundamentais da sociedade da acumulação e do consumo. Só faz isso verdadeiramente quem aceita olhar a vida e a história sob um ângulo contrário ao do sistema dominante. Essa forma de compreender a realidade corresponde à justiça e à verdade. De fato, em uma sociedade desigual, para transformar a realidade, é preciso assumir o ponto de vista e a perspectiva das pessoas que vivem às margens e como vítimas da desigualdade social.

No Brasil, grandes veículos de comunicação, assim como muitas das grandes empresas do país, sempre encontram meios para não pagar impostos e diminuir encargos sociais. No entanto, são essas redes de notícias que lideram a campanha contra a corrupção, como se se tratasse de um mal isolado e fosse o único ou maior problema do Brasil. Acham natural e honesto que apenas seis brasileiros tenham uma riqueza correspondente à metade da população brasileira. Incentivam uma organização social baseada na desigualdade monstruosa e injusta, enquanto enganam a maioria do povo com a propaganda de uma pretensa guerra contra a corrupção. Essa existe e deve ser denunciada, mas não se trata apenas uma questão moral. É o rosto de um sistema perverso a ser combatido e transformado.

Para quem busca um caminho espiritual, a Teologia da Libertação ensina a nos colocarmos junto com os empobrecidos e contra a pobreza. Dessa forma, líderes espirituais como  Confúcio, Buda, os profetas da Bíblia e Jesus realizaram o seu itinerário para o amor divino. Por isso, se contrapor ao mundo dominante se tornou um modo de se deixar conduzir  pelo Espírito. A resistência profética faz parte do DNA de todas as mais antigas tradições espirituais e também do Cristianismo. A espiritualidade supõe um estilo de vida baseado na solidariedade e na comunhão. Na carta aos cristãos de Roma, capital do império, o apóstolo Paulo escreveu: "Não se conformem com esse mundo. Procurem se transformar pela renovação da compreensão espiritual, para experimentar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus" (Rm 12, 2).


Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.br





segunda-feira, 27 de novembro de 2017

DIA MUNDIAL DOS POBRES: COMPARTILHAR IMPOTÊNCIAS


 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer


           Há alguns dias li esta frase e pareceu-me haver sido pronunciada por Francisco: optar pelos pobres é compartilhar impotências.  Agora, procurando para escrever este artigo, não encontro mais a fonte para confirmá-la.  Isso não me preocupa, pois se não é dele, poderia ser.  Este que instituiu o Dia Mundial dos Pobres parece conhecer bem sua impotência em melhorar a sorte daqueles que são golpeados pela pobreza e a indigência. Escolhe, então, partilhar com eles sua própria impotência atravessada pelo amor. 

        No Dia Mundial dos Pobres, o Papa quer proclamar o valor salvífico dos pobres ao mesmo tempo em que denunciar a indiferença com relação a eles.  Quer chamar a atenção de todos aqueles que se dizem discípulos de Jesus para a centralidade do pobre no anúncio evangélico e para a identificação do Senhor com esses irmãos menores e mais pequeninos.  E quer denunciar a sociedade atual que os exclui e oprime. 

        Muitos se perguntam: por que um dia dos pobres? Não deveria ser todo dia? É fato que todos os dias deveríamos prestar especial atenção aos mais vulneráveis e necessitados. Mas instituir um dia para se valorizar o pobre, mentalizar sua importância e seu lugar privilegiado no plano da salvação significa provocar e convocar mentes e corações de todos para a inaceitável realidade da pobreza, que é fruto da injustiça humana e não da vontade de Deus. 

      No dia marcado para essa “celebração” dos pobres – no último domingo, 19 de novembro - Francisco celebrou com eles uma Eucaristia e ofereceu-lhes um grande almoço, do qual participou.  

Assim, pôs em prática um dos elementos característicos de sua espiritualidade: não basta dar coisas ou esmolas distantes e longínquas aos pobres.  É preciso estar com eles, próximo a eles, partilhando com eles o pão da palavra, o pão eucarístico e também o pão material do qual carecem.  Importa conversar com eles, escutá-los e deixar-se ensinar por esses mestres que a vida formou duramente e que têm imensa sabedoria para partilhar conosco, enriquecendo-nos com dons inimagináveis. 

      Pronunciou também uma homilia na qual destacou a configuração de responsabilidade do amor de Deus para conosco. O amor de Deus nos cumula de dons e talentos.  Mas nos responsabiliza por eles.  E a maior desde sempre é a responsabilidade pelo outro, pelo irmão.  Não à toa, a Bíblia começa com o relato de Caim e Abel.  Diante do assassinato do irmão, interpelado por Deus: “Onde está teu irmão?” Caim responde:” Por acaso sou o guarda do meu irmão?”

     É contra essa mentalidade que Francisco institui o Dia dos Pobres.  Deseja conscientizar-nos de que somos sim, guardiões do irmão, responsáveis pelo irmão e sua vida. Se o irmão não puder viver plenamente ou dignamente, somos responsáveis.  Não podemos dizer que nada temos a ver com isso, que não nos diz respeito. Todos estamos implicados nesse sistema iníquo que enriquece desmesuradamente alguns às custas da multiplicação desenfreada de pobres, miseráveis, famintos, refugiados e todas as deformações que desfiguram a humanidade. 

        Francisco deseja conscientizar-nos de que “os pobres não são um problema: são um recurso para acolhermos e vivermos a essência do Evangelho.” São abertura privilegiada e segura de nosso caminho para Deus. Partilham conosco a fome de Deus e o desejo de ser alimentados pelo pão da vida.  Porque “dele precisamos todos nós, ninguém é excluído, porque todos somos mendigos do essencial, do amor de Deus, que nos dá o sentido da vida e uma vida sem fim.” Portanto, reconhecendo-nos pobres com os pobres, aproximamo-nos sempre mais do Deus da vida, que se fez pobre para enriquecer-nos com seus dons. 

       Na homilia da Eucaristia celebrada no último domingo, ao comentar o Evangelho dos talentos, Francisco falou sobre o pecado de omissão, tão presente em nossa sociedade.  A três servos foram dados talentos, moedas.  Dois os multiplicaram e fizeram frutificar em benefício dos outros.  Um enterrou seu talento e se omitiu.  Deixou de fazer o mal. Mas deixou igualmente de fazer o bem.

        Neste momento, Francisco chamou a atenção para uma desculpa que é constante em nosso pecado de indiferença. Não faço mal a ninguém, não roubo, não mato, não é por minha culpa que os pobres não têm como viver.  Devo cuidar dos meus e que cada um faça o mesmo.  Não basta não fazer mal. É preciso amar e fazer o bem aos queamamos e aos que Deus ama com predileção: seus filhos mais necessitados.  Somos responsáveis por eles e elas. Somos seus guardiões.  A eles devemos nossa atenção, carinho, serviço. E não menos a eficiência de nosso agir em seu favor.

            O servo fiel da parábola é aquele que tudo arriscou para multiplicar seus talentos e fazer acontecer a fecundidade do amor. 

 Só descuidou do seu próprio interesse, sendo esta a única omissão válida, lembra Francisco.  O amor não deve pôr-se somente em palavras, mas visibilizar-se em atos e obras.  Assim lembra a 1ª Carta de João; assim ensina Santo Inácio de Loyola, mestre de Francisco, na Contemplação para alcançar amor, último de seus Exercícios Espirituais; assim relembra Francisco ao instituir e celebrar o Dia Mundial dos pobres. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer,professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,  teóloga e autora Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.
 Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

CONCEPÇÃO DO SER HUMANO NOS LIMITES DE UMA ECOLOGIA INTEGRAL





Por Leonardo Boff

Em sua encíclica sobre “o Cuidado da Casa Comum” o Papa Francisco submeteu a uma rigorosa crítica o clássico antropocentrismo de nossa cultura a partir de uma visão de uma ecologia integral, cosmocentrada, dentro da qual o ser humano comparece como parte do Todo  e da natureza. Isso nos convida a revisarmos nossa compreensão do ser humano nos limites desta ecologia integral. Cabe enfatizar que as contribuições das ciências da Terra e da vida, subjacentes ao texto papal, vem englobadas pela teoria da evolução ampliada embora não a cita explicitamente. Elas nos trouxeram visões complexas e totalizadoras, inserindo-nos como um momento do processo global, físico, químico, biológico e cultural.
Após  todos estes conhecimentos nos perguntamos, não sem certa perplexidade: quem somos, afinal enquanto humanos? Tentanto responder, vamos logo dizendo : o ser humano é uma manifestação  da Energia de Fundo, donde tudo provem (Vácuo Quântico ou Fonte Originária de todo Ser); um ser cósmico, parte de um universo, possivelmente, entre outros paralelos, articulado em onze dimensões (teoria das cordas); formado pelos mesmos  elementos físico-químicos e pelas mesmas energias que compõem todos os seres; somos habitantes de uma galáxia média, uma entre duzentas bilhões; circulando ao redor  do Sol, estrela de quinta categoria, uma entre outras trezentas bilhões, situada a 27 mil anos luz do centro da Via-Láctea, no braço interior da aspiral de Órion; morando num planeta minúsculo, a Terra, tida como um super organismo vivo que funciona como um sistema que se autoregula, chamado Gaia.
Somos um elo da corrente sagrada  da vida; um animal do ramo dos vertebrados, sexuado, da classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos hominidas, do gênero homo, da espécie sapiens/demens; dotado de um corpo de 30 bilhões de células e 40 bilhões de batérias, continuamente renovado por um sistema genético que se formou ao largo de 3,8 bilhões de anos, a idade da vida; portador de três níveis de cérebro com cerca cem  bilhões de neurônios: o reptiliano, surgido há 300 milhões de anos, que respondes pelos movimentos instintivos, ao redor do qual se formou o cérebro límbico, responsável pela nossa afetividade, há 220 milhões de anos, e por fim, completado pelo cérebro neo-cortical, surgido há cerca de 7-8 milhões de anos, com o qual organizamos conceptualmente o mundo.
Portador da psiqué com a mesma ancestralidade do corpo, que lhe permite ser  sujeito, psiqué habitada por todo tipo de emoções e  estruturada pelo princípio do desejo, com  arquétipos ancestrais  e coroada pelo o espírito que é aquele momento da consciência pelo qual se sente parte de um Todo maior, que o faz sempre aberto ao outro e  ao infinito; capaz de intervir na natureza, e assim de fazer cultura, de criar e captar significados e valores e se indagar sobre o sentido derradeiro do Todo e da Terra, hoje em sua fase planetária, rumo à noosfera pela qual mentes e corações convergirão numa Humanidade unificada.
Ninguém melhor que Pascal (+1662) para expressar o ser complexo que somos: “Que é o ser humano na natureza? Um nada diante do infinito, e um tudo diante do nada, um elo entre o nada e o tudo, mas incapaz de ver o nada de onde é tirado e o infinito para onde é atraido”. Nele se cruzam os três infinitos: o infinitamente pequeno, o infinitamente grande e o infinitamente complexo (Chardin). Sendo isso tudo, sentimo-nos inteiros mas incompletos e ainda nascendo pois percebemo-nos cheios de virtualidades que forçam por vir à tona. Estamos sempre na pré-história de nós mesmos. E apesar disso experimentamo-nos um projeto infinito que reclama seu objeto adequado, também infinito, que costumamos chamar de Deus ou de outro nome.
E  somos destinados à morte. Custa-nos acolher a morte como parte da vida e a dramaticidade do destino humano. Pelo amor, pela arte e pela fé pressentimos que a morte não é um fim, mas uma invenção da própria vida para nos transfiguramos através dela. E suspeitamos que no balanço final das coisas, um pequeno gesto de amor verdadeiro e incondicional vale mais que toda a matéria e a energia do universo juntas. Por isso, só vale falar, crer e esperar em Deus se Ele for sentido como prolongamento do amor, na forma do infinito.
Pertence à singularidade do ser humano não apenas apreender uma Presença, Deus, perpassando todos os seres, senão entreter com ele um diálogo de amizade e de amor. Intui que Ele seja o correspondente ao infinito desejo que sente, Infinito que lhe é adequado e no qual pode repousar.
Esse  Deus não é um objeto entre outros, nem uma energia qualquer  entre outras. Se assim fosse poderia ser detectado pela ciência. E não seria o Deus da experiência oceânia que não cabe em nenhuma fórmula. Ele comparece como aquele suporte, cuja natureza é Mistério, que tudo sustenta, alimenta e mantem na existência. Sem Ele tudo voltaria ao nada ou ao Vácuo Quântico de onde irrompeu.  Ele é a força pela qual o pensamento pensa, mas que não pode ser pensada. O olho que tudo vê mas que não pode ser visto. Ele é o Mistério sempre conhecido e sempre por conhecer indefinidamente. Ele perpassa e penetra até as entranhas de cada ser humano e do inteiro universo.
Podemos pensar, meditar e interiorizar essa complexa Realidade, feita de realidades. Mas é nessa direção deve ser concebido o ser humano. Quem ele é e qual é o seu destino derradeiro se perde no Incognoscível, sempre de alguma forma cognocível, que é o espaço do Mistério de Deus ou do Deus do Mistério. Somos seres sempre sendo indefinidamente. Por isso é uma equação que nunca se fecha e que permanece sempre em aberto. Quem revelará quem somos? Ninguém nos  quadros do mundo assim como existe e de uma ecologia por mais integral que se apresente.
Leonardo Boff é articulista do JB on line filosofo e escritor


quinta-feira, 23 de novembro de 2017

ESPERANÇA ABRAÂMICA



Por Frei Betto

       Diz o livro do Gênesis que Abraão – patriarca do judaísmo, cristianismo e islamismo – “esperou contra toda esperança”. A atitude retrata o que vivemos hoje no Brasil. Onde colocar a nossa esperança?

       Trocou-se um governo ruim por outro muito pior. As políticas sociais estão sendo esgarçadas. A reforma trabalhista anulou direitos conquistados nos últimos 80 anos e sucateou a força de trabalho do brasileiro. O país está à venda para o capital estrangeiro. Em pleno século XXI ainda debatemos o fim da escravidão!

       Os três poderes da República estão desgastados. O Executivo é chefiado por uma quadrilha. No Legislativo predominam corruptos e oportunistas. O Judiciário carece de credibilidade, atrela-se ao partidarismo, abre mão de suas prerrogativas, como punir parlamentares, e se enreda em suas divergências internas.

       Ah, teremos eleições ano que vem! Ora, engana-se quem deposita as suas esperanças em um avatar. Ou em um Iluminado que, do alto de seu cavalo branco, haverá de brandir a sua espada da moralidade, da ordem e do progresso, e recolocar o Brasil nos trilhos.

       Há que ser realista: o perfil do Congresso a ser eleito em 2018 não será muito diferente do atual. A bancada do B (banco, bola, bala, boi e Bíblia) é muito poderosa. Embora esteja proibido o financiamento de campanha política por empresas, o poder econômico haverá de encontrar meios para financiar os conservadores que, hoje, dominam a política brasileira.

       Se alguém lhe perguntar, estimado(a) leitor(a), em quem você votará para deputado federal e senador ano que vem, o que responderia? E para presidente da República?

       Talvez você se inclua entre aqueles que já perderam até o último fio de esperança e, portanto, pretende anular o voto ou se abster nas eleições. Direito seu. Porém, é bom lembrar que em política não há neutralidade. Quem não gosta de política é governado por quem gosta. E ao dar as costas à política você passa cheque em branco aos atuais caciques políticos.

       Nossa esperança não deve se centrar em nomes, e sim em programas. O que pretendem os candidatos a presidente? Qual o programa de governo? Vão impedir o desmatamento da Amazônia, combater o trabalho escravo e defender as reservas indígenas e quilombolas? Vão aprovar a reforma tributária com imposto progressivo, e punir rigorosamente os sonegadores? Haverão de priorizar os direitos dos pobres ou o privilégio dos ricos?

       Coloco a minha esperança no grão de mostarda. Nos movimentos sociais. Nos que lutam por terra, moradia, saneamento e direitos sociais. Nos que combatem o feminicídio, a homofobia, o racismo e o fundamentalismo religioso. Nos que defendem a igualdade de gêneros e a diversidade de crenças religiosas.

       Uma nação se muda de baixo para cima. São as raízes que sustentam a árvore. São os alicerces que mantêm a casa de pé. Nosso voto deve cair na urna como semente promissora de um futuro melhor para o Brasil. Futuro de menos desigualdade, mais justiça social, mais saúde e educação de qualidade para todos.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.

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quarta-feira, 22 de novembro de 2017

CORPORATIVISMO DO CLERO RELIGIOSO



por Ivone Gebara

Escrevo sobre o corporativismo do clero religioso embora seja o corporativismo dos políticos quando defendem seus próprios interesses individualistas que esteja na ordem do dia. Entretanto, sobre este corporativismo os meios de comunicação têm se debruçado à exaustão e nosso estômago e razão aguentado demasiadas agressões, sobretudo diante do que o contexto atual tem nos mostrado. Além disso, muitos especialistas têm escrito análises interessantes sobre esse fenômeno que revela a inconsistência de nossas instituições políticas nas quais manipuladores atuam a céu aberto.

Hoje, nesse mesmo contexto, quero escrever sobre o corporativismo do clero, do clero religioso, aquele que se diz submisso a vontade de Deus, aquele que se acredita guardião da tradição do bem e da justiça, aquele que se auto-identifica como arauto da mensagem de Jesus e fiel à sua postura ética. A ele outros ‘religiosos’, embora sem regras e sem ordens clericais, se juntam formando a gloriosa extirpe dos leigos servidores da moral tradicional e da Igreja. Representam talvez as teologias fundamentalistaspor oposição às teologias pluralistas como escreve Boaventura Sousa Santos em seu livro “Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos”. Cortez 2014. Acreditam, talvez sem muita reflexão, que sua religião cristã é fundada numa Revelação divina eterna. Essa Revelação contém em si toda a História e por isso, segundo eles pode julgá-la segundo seus preceitos. Impõem, excluem e perseguem de forma sutil ou agressiva todas as pessoas que pleiteiam formas plurais de expressão da mesma fé cristã. Creem-se os únicos verdadeiros anunciadores da vontade divina que segundo eles é monolítica e intervêm na sociedade pluralista impedindo que seus membros reflitam de forma crítica sobre o mundo atual que é o nosso. Tal comportamento existiu no passado, mas no presente se reveste de formas especiais de manifestação. Ao criticá-los não estou destituindo-os de seu direito de existir, mas sim da usurpação que fazem do direito dos outros de pensar e agir de forma diferente. Estou criticando sua guerra ao pluralismo constitutivo de todas as vidas e em especial da vida humana nas suas múltiplas manifestações. Estou criticando seu fechamento dentro da comunidade cristã tornada quase um gueto. Negam o simples fato de que habitamos como diferentes o mesmo mundo e este dado não pode ser eliminado sob o risco de eliminarmos forças vitais.

corporativismo clerical é de direita, de esquerda, de centro e de muitas outras tendências conforme os interesses em jogo. Reproduzem as mesmas polarizações da política miúda caracterizada pela divisão de poderes; acusam-se mutuamente de conservadores e progressistas, etiquetam-se sem conhecer a origem histórica das etiquetas que colam uns nos outros. Apresentam-se ao público como mensageiros da ‘palavra de Deus’, como obreiros do Evangelho e em posse de um verniz religioso manipulam as massas com seus discursos, ameaças e muitas vezes com suas litúrgicas apresentações artísticas. Atraem multidões para si e estas os aplaudem e os glorificam quase como semideuses. Constroem comunidades virtuais que atacam outras como se fossem torcidas organizadas violentas e destrutivas de pessoas e instituições. Incitam ao ódio como forma de defesa da fé. Tudo virtualmente em nome de Deus, mas tudo com consequências desastrosas na vida de muitas pessoas.

Influenciam o agir de autoridades políticas e religiosas que inebriadas pelo número de seus seguidores confundem a popularidade superficial com a verdade. Eximem-se da responsabilidade de pensar os novos rostos e os novos desafios que constituem a sociedade plural em que vivemos e convivemos.
Alguns dentre eles, mesmo em época de fome generalizada, usam anéis e tiaras douradas. Vivem em casas confortáveis, quase palácios. Vestem-se de púrpura e sentam-se nos primeiros lugares de mesas cheias de iguarias saborosas oferecidas por indivíduos de grande prestígio social. Têm a reputação de sábios, instruídos na excelência do saber teológico espiritual capaz de conduzir o povo que julgam incapaz de seguir seu próprio caminho sem a ajuda de seus ‘legítimos pastores’. Eles mesmos estão convencidos de sua superioridade e, embora obrigados pela falsa humildade que lhes foi ensinada, tentam aparecer como iguais diante daqueles que os ouvem e se submetem a eles.

Hoje, talvez, já não obedeçam mais de fato a um poder central, mas cada um se faz ‘poder’ à sua imagem e semelhança imaginando que obedece a uma ortodoxia da verdade. Têm blogs, páginas, faces, seguidores, televisões a seu dispor... Disputam espaços na mídia ou convidam outros para fazê-lo em seu nome. Quando criticam alguém ou algum evento, imediatamente se auto-inocentam em nome de sua responsabilidade na preservação do povo de Deus ou da tradição que dizem defender. Hipocrisia e covardia não lhes faltam apesar da simplicidade e sociabilidade que acreditam ter e manifestar.

Atacam pessoas que pensam ou se apresentam de forma diferente apontando para a diversidade do mundo de hoje e para a necessidade de repensar a tradição cristãpara esse novo tempo. Vivem atacando os outros e, sobretudo as outras em nome de sua verdade que já não resiste mais à multifacetária realidade na qual vivemos. Refiro-me especialmente a ignorância desses doutos senhores em relação ao feminismo, à teologia feminista, ao movimento de mulhereslésbicasgaystrans e etc. Refiro-me ao seu racismo escondido e à sua xenofobia disfarçada. Refiro-me à sua misoginia flagrante ou disfarçada. Refiro-me às suas críticas e à falta de percepção quase proposital do mundo em que vivemos assim como das justas reivindicações de direitos de muitos grupos. Controlam as consciências assim como os meios de comunicação o fazem sem que percebamos seu controle e sua nefasta influência.

Apelam para o respeito e agem com desrespeito. Apelam para os bons costumes e agem imaginando que apenas seus costumes são bons. Falam de um mundo mítico e ludibriam as pessoas com esperanças vãs. Falam de justiça, mas não movem uma palha para que ela aconteça.

Fazem-me lembrar do profeta Isaias embora o contexto seja outro. “Esse povo é rebelde, constituído de filhos desleais, de filhos que se recusam a ouvir a Verdade e dizem aos videntes: ‘ não queirais ver’ e aos seus profetas: ‘ Não procureis ter visões que nos revelem o que é reto’. Dizei-nos antes coisas agradáveis, procurai ter visões ilusórias. Afastai-vos do caminho, apartai-vos da vereda, fazei desaparecer da nossa presença a Santidade”. Isaias 30, 9 a 11.
Isaias continua denunciando a mentira, a fraude, a tortuosidade dos caminhos apresentados como caminhos de justiça e de Deus. De que Deus?

Mas de quem estou falando? O que estou querendo denunciar? Estou falando da má fé, da surdez, da cegueira, do dogmatismo de tantos clérigos e ‘leigos’ em relação aos fundamentos de sua fé. Quero denunciar a máfia da religião, mesmo daquela que se apresenta de forma digna e defensora dos pobres. Ela também se esconde como amante e proprietária da verdade e não é capaz de reconhecer os limites de suas afirmações. Quero especialmente denunciar a perseguição que muitas mulheres têm sofrido nas Igrejas cristãs e particularmente na Igreja Católica romana através da censura a seus trabalhos, através da proibição de sua expressão nos espaços ditos de Igreja, através da anulação de cursos e conferências de que estão sendo vítimas.

Quando um bispo ou um cardeal ou o núncio proíbem uma professora de cumprir sua responsabilidade em assessorias previamente aceitas e, sobretudo a convite de comunidades locais esses senhores apelam para que se evite o escândalo das novas idéias radicais e se mantenha a fé e os costumes. Fé de que tempos e a partir de que costumes? Não percebem a indissociabilidade de nossos corpos, de nossos gêneros, de nossas diferentes culturas e tempos. Não percebem a contradição dos poderes que dizem representar?

Na realidade me parece que essas autoridades estão no mesmo ato da proibição dos cursos e conferências declarando a comunidade cristã como incapaz, como ‘menor’ para julgar seus processos formativos. Estão declarando a comunidade cristã incapaz de discernimento e de análise do mundo em que vivem. Estão impedindo-a de escolher seus rumos mesmo que apareçam mais tarde como equivocados. Talvez essa seja a parte mais triste dessa triste história de nossa atualidade eclesial. Ou seja, a exclusão da comunidade cristã do direito de pensar, do direito de escolher, de assumir sua responsabilidade diante da vida corrente e de seus múltiplos desafios e transformações.

sistema religioso vigente apesar de algumas aberturas mantêm-se através de poderosas ‘estruturas de ordem’. A partir delas se afirmam normas, comportamentos, ensinamentos como se fossem realidades objetivas indiscutíveis. Por isso mesmo, esses senhores ‘pastores’ julgam-se donos de suas ‘ovelhas’, únicos capazes de encontrar os bons caminhos para seu ‘rebanho’, únicos capazes de orientar suas escolhas e as formas políticas que escolheram para se orientar na sociedade atual. Não estaria na hora de mudar a imagem das ovelhas submissas a um pastor e introduzir a imagem dos amigos/as que conversam juntos, que discernem e que olham para a necessidade uns dos outros?

Sem dúvida, através das autoridades religiosas, o ‘Santo Oficio’, hoje Congregação para a Doutrina da Fé, continua sub-repticiamente exercendo suas funções através de outras formas de coerção. Na maioria das vezes não há mais o decreto romano de interdição vindo diretamente do Vaticano, mas o decreto romano se faz local e se expande de forma assustadora tomando posse de lugares, de instituições, de meios de comunicação onde apenas ‘uma verdade’ pode ser transmitida e ensinada. Recusam-se ao diálogo, não querem conversar sobre as questões atuais mesmo quando são convidados por suas vítimas. Fazem ouvidos surdos a esses apelos.
Às vezes, chegam a crer que entendem de todos os assuntos a partir de sua leitura das Escrituras e de sua teologia. Controlam corpos, definem comportamentos, definem teorias, julgam a arte e a literatura, determinam mediações sociológicas e filosóficas, sem o menor diálogo com as comunidades plurais que constituem as igrejas. A discussão que reduz as questões de gênero à ideologia e a crítica ao feminismo como destruidor da família estão nessa linha. Da mesma forma a nota da Arquidiocese de Porto Alegre em relação à Exposição do Santander cultural “Queer museu” (11/9/2017) torna-se mais um exemplo do que estou querendo denunciar. Ao mesmo tempo em que falam de combater o preconceito falam do respeito às minorias. Quais preconceitos combatem? A quais minorias se referem? E qual o respeito que dedicam aos seus fiéis e não fiéis? Dizem que o ‘museu cultural queer’ é uma agressão a fé e ao corpo. Mais uma vez, qual fé e qual corpo?

Entretanto, não criticam os que são dogmáticos defensores da ordem estática. Não chamam a atenção à sua ação destrutiva, às guerrilhas que organizam pela internet para desabonar pessoas e instituições. Não impedem sua violência física e simbólica. Não proíbem e não condenam esses malvados súditos de expressarem seu ódio pelos ‘diferentes’ em meio a essa profunda confusão em que vivemos. Estes malvados não querem ouvir outras vozes, não querem conhecer outras realidades. Estão convencidos que agem segundo a ordem de Deus e que essa ordem imutável trará a salvação para todos.

Talvez muitos dirão que confundo as coisas e que há que distinguir os bons hierarcas dos grupos incontroláveis. Há que distinguir, mas nessa ‘salada’ que é a nossa tudo se confunde, sobretudo quando as autoridades religiosas não enfrentam as questões que afligem as comunidades.

Os tradicionalistas podem pensar de seu jeito e segundo sua escolha, mas não podem impor esse caminho para aquelas e aqueles que nascendo ou acolhendo uma comunidade católica como umas das referências de sua vida se vejam obrigadas/os a calar diante da pretensa hegemonia de interpretação teológica e ética que as autoridades impõem.

corporativismo clerical mantém as injustiças contra todas e todos que se sentem excluídos das formulações teológicas e políticas dos hierarcas e de seus sustentadores. O corporativismo clerical mantém a censura às novas ideias e decide o que acolhe e o que rejeita no seio das comunidades cristãs. Elas não têm voz e nem vez para se organizarem de forma diferente.

baixo clero, facilmente se defende e acusa o alto clero em relação ao que foi proibido. Mas sempre acabam se submetendo. Fazem corpo entre si e, mesmo se no corpo haja dissidências teóricas ou apenas retóricas, seu lamento muitas vezes parece falso como uma desculpa de cortesia e sem fundamento real. Mesmo pessoas as mais bem intencionadas envolvem-se nessas discussões e acabam se limitando a apoios formais que na realidade não produzem nenhum efeito de revisão e mudança no comportamento do clero e de seus cúmplices e subordinados. Não assumem sua responsabilidade pessoal na mudança. Estão sempre a jogar para o outro a responsabilidade pelo que está acontecendo e em última análise apoiam-se em Deus, pois afirmam agir segundo sua vontade ou segundo as Escrituras. Nessa linha descartam levianamente tudo o que parece ser diferente de seu conceito de injustiça social. Não percebem que a injustiça é entranhada em diferentes comportamentos humanos, até o mais cotidianos, até os mais litúrgicos, os mais domésticos. Isentam-se das chamadas responsabilidades menores aquelas que têm a ver com o mundo doméstico e de suas mantenedoras enquanto se mostram proclamadores de sua justiça social. Escolhem sua forma de justiça sem perceber a interdependência entre elas. E, é nesse ‘bom e salutar’ espírito que acabam destruindo a tradição ética dos Evangelhos e tornando o cristianismo inviável para aqueles que não se enquadram na ordem metafísica perfeita dos funcionários de Deus.

A propaganda antifeminista que encabeçam é a atração mais exuberante de concordismo em relação a uma ‘pequena tradição’ e, a meu ver, um alimento suculento entregue aos fascismos políticos de nosso tempo. Os preconceitos contra as mulheres aumentam a violência contra elas e incitam ao ódio às minorias étnicas e sexuais que constituem o chamado ‘povo brasileiro’. Um fosso se abre no interior das igrejas cristãs. Cada vez mais perdem membros oficialmente identificados à instituição. Diante do obscurantismo de seus líderes leigos ou clérigos há um notável abandono ou um recuo em relação às conquistas de um humanismo plural e respeitoso da diferença.

Não pretendo que eliminemos o pluralismo de direita, de esquerda ou de centro. Gostaria que eliminássemos as formas de exclusão e destruição de nós mesmos. Gostaria que percebêssemos que o direito à diferença é um direito vital e quanto mais o outro é diferente mais tenho que respeitá-lo e esperar que me respeitem. O respeito não é a conivência com o mal e não é também o ataque mortífero àqueles que não pensam como eu. Aceitar o paradoxo da vida, aceitar que nenhum pensamento explica todas as vidas e, além disso, como já dizia Hannah Arendt em vários textos de ‘Compreender’ (Companhia das Letras, 2008) que ‘ a realidade se apresenta diretamente ao homem como incerta, incompreensível e imprevisível’. Por isso não conseguimos resolver nossos problemas a partir dos conflitos do pensamento, das morais, dos partidos políticos. Há que desenvolver em nós um ‘coração de carne’, sensível à dor do outro, sensível a diferença do outro que me atormenta e ao mesmo tempo é condição da vida comum. Nenhuma pessoa pode se erigir em dona da verdade... Somos todos caminhantes e não há caminhos bons e verdadeiros antecipadamente. Sem nenhuma pretensão a ter razão ouso apenas pensar e propor de novo o respeito efetivo à diversidade.


Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É uma das principais defensoras da Teologia Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73 anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática