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sábado, 31 de dezembro de 2016

O SONHO DE KEPLER


Por Frei Betto



No século XX, o ser humano conquistou o "impossível". Sabemos voar como os pássaros, navegar sob as águas como os peixes, correr mais rápido do que os coelhos e somos capazes de nos comunicar a distâncias outrora inimagináveis. Somos a geração automotiva. O relógio mede cada segundo do nosso tempo, cavalos e carruagens cederam lugar a carros e aviões, trovadores invisíveis cantam através de nosso equipamento de som, arautos sem rosto divulgam os fatos pelo rádio, o circo e o teatro irrompem em nossa sala nas dimensões de uma pequena tela eletrônica.

Melhor do que dividir a história em antiga, medieval, moderna e contemporânea, é distingui-la pelas eras agrícola, que durou 10.000 anos; industrial, nos últimos 100 anos; e, agora, cibernética. Johannes Kepler, nascido na Alemanha em 1571, atraído pelo faro estético dos gregos - que acreditavam ter o Universo uma natural simetria - descobriu a arquitetura do sistema solar e levou quatro anos para calcular a órbita de Marte, uma elipse perfeita. Com um computador, bastariam quatro segundos.

Kepler, que escreveu um livro intitulado O Sonho, teria invejado a nossa geração se imaginasse quanto tempo poderíamos poupar. Daria asas à imaginação, sonhando em fazer tudo aquilo que o trabalho exaustivo não lhe permitia: desfrutar da vida campestre, perder tempo com os amigos, ficar na igreja ouvindo o som inebriante do órgão, contemplar o céu noturno para captar a música das estrelas. O que ele jamais poderia supor é que, com tanta tecnologia, a nossa geração dispõe cada vez mais de menos tempo.

Somos incorrigivelmente vorazes. Queremos processar o máximo de informações no mínimo de tempo. Desafiamos, a cada momento, as barreiras do espaço. Ansiamos por estar lá - não no caminho - e, por isso, afundamos o pé no acelerador do carro possante e afugentamos os pedestres, disputando com o motorista ao lado um palmo de asfalto, como se à frente não houvesse sinais vermelhos contrários à nossa sofreguidão. Reduzimos as distâncias com telefones celulares e operações digitais no computador.

Ainda que no trânsito ou no aeroporto, no trabalho ou no clube, a "coleira eletrônica" impede que nos percam de vista. Entre uma marcha e outra, uma flexão abdominal e outra, uma decisão e outra no trabalho, controlamos os filhos, as aplicações financeiras, os negócios geograficamente distantes. Como Prometeu, queremos arrebatar o fogo dos deuses, fazendo de conta que não somos frágeis e mortais.

Porque precisava pensar, Kant nunca saiu de Königsberg, onde construiu uma obra filosófica monumental. Ora, para que livros se há milhares de vídeos interessantes? Basta saber que o patrimônio cultural da humanidade se encontra armazenado nas bibliotecas. Relaxados, passamos horas, dias, meses e anos de nossas vidas vendo um punhado de homens correrem atrás de uma bola e carros velozes desafiando as curvas da morte. Nossos heróis estão distantes da arte musical de Mozart, da física de Planck ou da literatura de Machado de Assis. Veneramos aqueles que quebram limites. O Evangelho da "pós-modernidade" são os índices do mercado financeiro. A Bíblia, o Guiness Book of the Records. Pelé fez 1.000 gols. Michael Jackson coloriu de branco sua pele negra. Ayrton Senna andou mais depressa grudado ao solo que qualquer outro mamífero.

Só não descobrimos o elixir da felicidade. Por que nenhuma empresa vende o que mais procuramos? Ora, talvez possamos deixar de pagar, com o sacrifício da própria vida, o preço letal dessa busca, se abraçarmos os sonhos de Kepler: a vida campestre, a roda de amigos, o coro de anjos numa igreja e a melodia das estrelas.


Essa é a mensagem que deixamos para todos vocês para o ano que se inicia logo mais: muitos sonhos e empenho em realizá-los.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

2016:O ANO EM QUE SE TENTOU MATAR A ESPERANÇA DO POVO BRASILEIRO


Por Leonardo Boff


         A situação social, política e econômica do Brasil mereceria uma reflexão severa sobre a tentativa perversa de matar a esperança do povo brasileiro, promovida por uma corja (esse é o nome) de políticos, em sua grande maioria corruptos ou acusados de tal, que, de forma desavergonhada, se pôs a serviço dos verdadeiros forjadores do golpe perpetrado contra a Presidenta Dilma Rousseff: a velha oligarquia do dinheiro e do privilégio que jamais aceitou que alguém do andar de baixo chegasse a ser Presidente do Brasil e fizesse a inclusão social de milhões dos filhos e filhas da pobreza.

         Obviamente há políticos valorosos e éticos, bem como empresários da nova geração, progressistas que pensam no Brasil e em seu povo. Mas estes não conseguiram ainda acumular força suficiente para dar outro rumo à politica e um sentido social ao Estado vigente, de cariz neoliberal e patrimonialista.

         Ao se referir à corrupção todos pensam logo no Lava Jato e na Petrobrás. Mas esquecem ou lhes é negada, intencionalmente pela mídia conservadora e legitimadora do establishment, a outra corrupção, muito pior, revelada exatamente no dia de Natal que junto com o nascimento de Cristo se narra a matança de meninos inocentes pelo rei Herodes, hoje atualizado pelos corruptos que delapidam o país (O Estado de São Paulo 25/12/2016).

         Wagner Rosário, secretário do Ministério da Transparência, nos revela que nos últimos treze anos esquemas de corrupção, de fraudes e desvios de recursos da União, repassados aos Estados, municípios e ONGs e direcionados a pequenos municípios com baixo Indice de Desenvolvimento Humano podem superar um milhão de vezes o rombo na Petrobrás descoberto na Lava Jato. São 4 bilhões mas camuflados que podem se transformar, num estudo econométrico, em um trilhão de reais. As áreas mais afetadas são a saúde (merenda) e a educação (abandono das escolas).

       Diz o Secretário: “A gente chama isso de assassinato da esperança. Quando você retira merenda de uma criança, você tira a possibilidade de crescimento daquele município a médio e a longo prazo. É uma geração inteira que você está matando”.

         A nação precisa saber desta matança e não se deixar mentir por aqueles que ocultam, controlam e distorcem as informações porque são anti-sistêmicas.

         Mas não se pode viver só de desgraças que macularam grande parte do ano de 2016. Voltemo-nos para aquilo que nos permite viver e sonhar: a esperança.

         Para entender a esperança precisamos ultrapassar o modo comum de vermos a realidade. Pensamos que a realidade é o que está aí, dado e feito. Esquecemos que o dado é sempre feito e não é todo o real. O real é maior. Pertence ao real também o potencial, o que ainda não é e que pode vir a ser. Esse lado potencial se expressa pela utopia, pelos sonhos, pelas projeções de um mundo melhor. É o campo onde floresce a esperança. Ter esperança é crer que esse potencial pode se transformar em real, não automaticamente, mas pela prática humana. Portanto, a utopia que alimenta a esperança não se antagoniza com a realidade. Ela revela seu lado potencial, o abscôndito que quer vir para fora e fazer história.

         Faço meu o lema do grande cientista e físico quântico Carl Friedrich von Weizsäcker cuja sociedade fundada por ele me honrou em final de novembro em Berlim com um prêmio pelo intento de unir o grito da Terra com o grito do pobre: ”não anuncio otimismo, mas esperança”.

         Esperança é um bem escasso hoje no mundo inteiro e especialmente no Brasil. Os que mudaram ilegitimamente os rumos do país, impondo um ultraliberalismo, estão assassinando a esperança do povo brasileiro. As medidas tomadas só penalizam as grandes maiorias que veem as conquistas sociais históricas sendo literalmente desmontadas.

         Aqui nos socorre o filósofo alemão (Ernst Bloch) que introduziu o “princípio esperança”. Esta, a esperança, é mais que uma virtude entre outras. É um motor que temos dentro de nós que alimenta todas as demais virtudes e que nos lança para frente, suscitando novos sonhos de uma sociedade melhor.

        Esta esperança vai fornecer as energias para a população afetada poder resistir, sair às ruas, protestar e exigir mudanças que façam bem ao país, a começar pelos que mais precisam.

         Como a maioria é cristã valem as palavras do sábio Riobaldo de Guimarães Rosa: ”Com Deus existindo, tudo dá esperança, o mundo se resolve…Tendo Deus é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim, dá certo. Mas se não tem Deus, então, a gente não tem licença para coisa nenhuma”.

         Ter fé é ter saudades de Deus. Ter esperança é saber que Ele está ao nosso lado, ainda que invisível, fazendo-nos esperar contra toda a esperança.

Leonardo Boff é articulista do JB online e escreveu Teologia da libertação e do cativeiro, Vozes 2014.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

CARTÃO DE NATAL

por Frei Betto




Feliz Natal a quem cultiva ninhos de pássaros no beiral da utopia e coleciona no espírito as aquarelas do arco-íris. E a todos que trafegam pelas vias interiores e não temem as curvas abissais da oração.

Feliz Natal aos que reverenciam o silêncio como matéria-prima do amor e arrancam das cordas da dor melódicas esperanças. Também aos que se recostam em leitos de hortênsias e bordam, com os delicados fios dos sentimentos, alfombras de ternura.

Feliz Natal aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos, aspiram o perfume da rosa dos ventos e levam no peito a saudade do futuro. Também aos que semeiam indignações, mergulham todas as manhãs nas fontes da verdade e, no labirinto da vida, identificam a porta que os sentidos não veem e a razão não alcança.

Feliz Natal aos que dançam embalados pelos próprios sonhos e nunca dizem sim às artimanhas do desejo. Aos que ignoram o alfabeto da vingança e jamais pisam na armadilha do desamor, pois sabem que o ódio destrói primeiro a quem odeia.

Feliz Natal a quem acorda, todas as manhãs, a criança adormecida em si. E aos artífices da alegria que, no calor da dúvida, dão linha à manivela da fé.

Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas pelas ruas a fim de atirá-los no lixo do olvido e guardam recatados os seus olhos no recanto da sobriedade. A quem, diante do espelho, descobre-se belo na face do próximo.

Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do horizonte e riem à sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que suprimem a letra erre do verbo armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.

Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios. Também aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores sem cores e aos escritores sem palavras. E a todos que jamais encontraram a pessoa a quem declarar todo o amor que os fecunda em gravidez inefável.

Feliz Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia que dormem acobertados pela compaixão. E a quem não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e nem escala os picos em que os abutres chocam ovos.

Feliz Natal a quem, no leito de núpcias, promove despudorada liturgia eucarística, transubstanciando o corpo em copo inundado do vinho embriagador da perda de si no outro. E a quem corrige o equívoco do poeta e sabe que o amor não é eterno enquanto dura, mas dura enquanto é terno.

Feliz Natal aos que repartem Deus em fatias de pão e convocam os famélicos à mesa feita com as tábuas da justiça e coberta com a toalha bordada de cumplicidades.

Feliz Natal aos que secam lágrimas no consolo da fé e plantam no chão da vida as sementes do porvir. E aos que criam hipocampos em aquários de mistério se embebedam de chocolate na esbórnia pascal da lucidez crítica. E a todos que, com o rosto lavado das maquiagens de Narciso, dobram os joelhos à dignidade dos carvoeiros.

Frei Betto é escritor, autor de "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.
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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

ESPERANÇA PARA O ANO NOVO

Por Marcelo Barros



Apesar de todos os votos de "feliz ano novo", as perspectivas sociais, políticas e econômicas para esse ano novo no Brasil e também para o mundo não são as melhores. A palavra mais usada é crise. Nem mesmo os mais conservadores conseguem esperar propostas de esperança vindas  dos governantes atuais do Brasil, dos Estados Unidos ou da Europa. No entanto, celebramos o ano novo para nos reanimar na esperança.

Nesses dias, partiu para Deus, o cardeal Paulo Evaristo Arns que consagrou toda a sua vida aos direitos humanos. Ele atuou como bispo em tempos da ditadura brasileira e tinha como lema: "De esperança em esperança".

Um dos filmes que têm feito sucesso na Europa se chama "Amanhã". É um documentário francês que conta a aventura de um casal que percorre vários continentes atrás de experiências e testemunhos que deem esperança para a humanidade. O que surpreende no filme é ver como, mesmo no momento atual tão complexo e no qual a situação política não é fácil, por todo o mundo, se espalham experiências sociais promissoras, crescem iniciativas de solidariedade e, por todos os continentes, organizações de base assumem como perspectiva de vida o cuidado uns com os outros, assim como a responsabilidade com a terra e a natureza.

Essa boa notícia faz com que saibamos: é possível desejar uns para os outros e para toda a humanidade os melhores votos de ano novo.

Para as culturas antigas, a palavra é eficaz quando nasce no mais profundo do coração e é precedida pela prática de vida. O Mahatma Gandhi ensinava: “Comece por você mesmo a mudança que deseja para o mundo”. O Evangelho diz que a palavra de Deus se realizou em João Batista no deserto (Lc 3). Isso significa que, primeiramente João viveu a palavra e só depois a proclamou. Quando vivemos o amor, a generosidade, a solidariedade e a partilha de vida, então, o nosso desejo de que o mundo caminhe para isso se torna eficaz. Evidentemente que não temos força para mudar organizações sociais e sistemas complexos e baseados em leis estruturais. Não podemos pensar que somente pelo fato de desejar, conseguiremos transformar o mundo. No entanto, podemos contribuir para que se criem as condições necessárias para transformar estas leis e sistemas. O importante é se comprometer em transformar esse bom desejo em um caminho positivo concreto e efetivo para um futuro melhor tanto para nós como pessoas e como membros da grande família da vida.

No Novo Testamento, a 1ª carta de Pedro insiste que “nós temos a vocação da bênção, isto é, somos chamados a bendizer, ou seja, invocar o bem sobre as pessoas e sobre o universo (1 Pd 3, 9).  

Você quer, de fato, que este ano seja um tempo de profunda renovação da sua vida? Deseja que isso repercuta bem para as pessoas ao seu redor e para todo o universo? Então, refaça neste início de ano novo o compromisso de, a cada dia, consagrar um tempo, por mínimo que seja, de gratuidade e interioridade para renovar um verdadeiro e profundo diálogo consigo mesmo/a. Ao mesmo tempo, comprometa-se em ser, cada vez mais, uma pessoa de diálogo com os outros, inclusive com as pessoas que pensam e agem a partir de valores que você não aprova. O diálogo mais fecundo é justamente com os que pensam e atuam diferentemente de nós. Além disso, procure de todos os modos intensificar a comunhão solidária com a terra, a água e todos os seres vivos do planeta. Faça isso e a bênção deste ano novo se realizará em você e, a partir de você, no mundo. Você constatará, então, como se tornarão verdadeiras e fecundas em sua vida, assim como para os que convivem com você, as palavras da antiga bênção irlandesa: “O vento sopre leve em teus ombros. Que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas onde moras. E até que, de novo, eu te veja, que Deus te guarde na palma da sua mão”.

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Mais uma vez Natal...

POR Maria Clara Lucchetti Bingemer



       E mais uma vez é Natal.  Mais uma vez o ritmo da vida se torna frenético por algumas semanas, o trânsito insuportável, as lojas repletas.  Mais uma vez as pessoas se acotovelaram com listas nas mãos, comprando presentes inúteis e supérfluos em sua maioria, para outras pessoas que deles não necessitam.

       E mais uma vez é Natal. Mais uma vez os supermercados aquecem suas vendas com os inevitáveis perus, pernis, presuntos tender e frutas secas. Homens vestidos de Papai Noel desidrataram-se sob o calor tropical, com longas barbas brancas para estimular nas criancinhas desde cedo os desejos de consumo de presentes a não mais poder.

       Mais uma vez é Natal.  E uma vez mais aqueles para quem nunca é festa continuarão sem ter nada para celebrar.  Mesmo com as meritórias campanhas do Natal sem Fome, das ceias organizadas por esta ou aquela igreja, sempre haverá gente sob as pontes, nas ruas, que não tem sequer para onde ir, nem onde morar, nem onde comer na noite de Natal.

       Mais uma vez é Natal e a ocasião desta festa porá a nu os contrastes injustos e inexplicáveis de que é formada nossa sociedade, onde o que sobra para uns não vai suprir a falta e as carências de outros.  Mais uma vez as festas em família se farão sobretudo em torno de comida e presentes, e quando o último gole de champanhe for saboreado, juntamente com a última fatia de peru, o tédio se abaterá sobre mais uma festa  sem que se saiba o que foi celebrado.  Ou melhor, esqueceu-se o motivo da sua existência e celebração.

       Porém, mais uma vez é Natal e será verdadeiramente Natal em alguns lares e em algumas vidas nas quais a escala de valores e prioridades se harmoniza com o Mistério que é a razão de ser da festa. E mais uma vez será vivido com devoção e profundidade o evento de salvação, o Mistério inaudito do Amor de Deus, que toma carne em um indefeso Menino que nasce de uma pobre mulher e não tem lugar para ficar, a não ser o estábulo onde dormem e comem os animais.

       Mais uma vez é e será Natal para gente que celebra na simplicidade este Mistério do amor humilde e oblativo de um Deus que não se aferra a suas prerrogativas e se faz carne, se faz criança, se faz um de nós, em um mundo dividido e violento.  Mais uma vez é e será Natal para aqueles e aquelas que, mesmo nomeando-o de diferentes maneiras, acreditam que Esse que vem na forma de criança indefesa e desvalida é o Único capaz de trazer a paz, a harmonia, a concórdia a este mundo que insiste em destruir-se a si mesmo.

       Nossa sociedade e nossa cultura são tão pobres e vazias de transcendência que muitos custamos a perceber, por trás das ceias e presentes que nos obnubilam e ofuscam, o Mistério translúcido e discreto da Encarnação de Deus no seio de uma mulher, e de seu nascimento do ventre livre e pobre desta mesma mulher.  E, no entanto, mais uma vez  é Natal.  Mais uma vez Deus nos diz com o nascimento desta criança que Sua Aliança conosco é para sempre. Que por mais que façamos ou desfaçamos nunca poderemos atingir mortalmente ou acabar com Seu amor, que resiste a todas as barbaridades que possamos cometer.

       Por isso é Natal. Não apenas nas casas bem equipadas com bens perecíveis, alimentos sofisticados e presentes.  Não apenas nas casas não tão aparelhadas, mas nas quais foi e continua sendo possível uma ceia melhor que aqueça o estômago e o coração.

       É Natal igualmente nas ruas e pontes onde famílias inteiras se defendem contra a fome e desabrigo pela proximidade dos corpos  que se transmitem um a um  humano calor.  É Natal nas penitenciárias, onde homens e mulheres sofrem a privação da liberdade, mas também e não menos a privação dos mais elementares direitos humanos.  É Natal em todas as regiões do globo, mesmo naquelas onde as armas mortais fazem estragos e destruições aparentemente irreparáveis.

       É Natal em Falluja, em Beslan, no Iraque, na faixa de Gaza.  É Natal na Ucrânia e no país basco.  É Natal nas Antilhas.  É Natal na África, em cada um de seus países, onde as crianças foram riscadas do mapa do mundo e estão condenadas pelas grandes potências a morrer de inanição e onde as mulheres, além da pobreza, têm que lutar contra o encurtamento inexorável de suas vidas pelo avanço assustador da AIDS.

       É Natal para sempre em todo lugar, mesmo onde os números, as estatísticas e - mais que isso - a realidade, negam cinicamente que seja ou possa ser Natal. Pois Aquele que vem é cantado pela boca da comunidade cristã que interpreta as profecias.  E é cantado e celebrado como Conselheiro Admirável, Deus Forte, Príncipe da Paz. Filho primogênito do Criador do Universo, cujo Reino se estende por toda a Terra, o Menino que vem fará com que as armas sejam transformadas em arados, os instrumentos mortais em meios de paz, o deserto em jardim, a violência em concórdia e comunhão.

       Diante da simplicidade inaudita do Mistério de uma criança que nasce de uma mulher, façamos silêncio, tomemos uma atitude de contemplação e adoração.  Mais uma vez é Natal e será Natal para sempre. Porque apesar de tudo, Deus não deixa de acreditar na pobre humanidade que somos e nos oferece a cada ano, com infinito amor, este presente admirável que é Seu Filho.

 Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora de Teologia da PUC-RJ.  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)

domingo, 25 de dezembro de 2016

NATAL EM TEMPOS DE HERODES


 Por Leonardo Boff



O Natal deste ano será diferente de outros natais. Geralmente é a festa da confraternização das famílias. Para os cristão é a celebração da divina Criança que veio para assumir nossa humanidade e faze-la melhor. No contexto atual, porém, em seu lugar assomou a figura do terrível Herodes. o Grande (73 a.C-4-a. C), ligado à matança de inocentes. Zeloso por seu poder, ouviu que nascera em seu reino, a Judéia, um menino-rei. Foi quando ordenou degolar todas os meninos abaixo de dois anos (Mt 2,16). Ouviu-se então uma das palavras mais dolentes de toda Bíblia: ”Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e gemido: é Raquel que chora os filhos e não quer ser consolada, porque os perdeu para sempre”(Mt 2,18).

Essa história do assassinato de inocentes continua de outra forma. As políticas ultracapitalistas impostas pelo atual governo, tirando direitos, diminuindo salários, cortando benefícios sociais básicos como saúde, educação, segurança,  aposentadorias e congelando por 20 anos as possibilidades de crescimento têm como consequência uma perversa e lenta matança de inocentes  da grande maioria pobre de nosso país.


Aos legisladores não são desconhecidas as consequências letais, derivadas da decisão de considerar mais importante o mercado que as pessoas.

Dentro de poucos anos, teremos uma classe de super-ricos (hoje são 71.440 segundo IPEA, portanto, 0,05% da população),uma classe media amedrontada pelo risco de perder seu status  e milhões de párias que da pobreza passaram para miséria. Esta significa fome das crianças que morrem por subnutrição e doenças absolutamente evitáveis, idosos que já não conseguem seus remédios e o acesso à saúde pública, condenados a morrer antes do tempo. Essa matança possui responsáveis. Boa parte dos legisladores atuais da chamada “PEC da morte” não podem se eximir da pecha de assassinos de seu povo.

As elites do dinheiro e do privilégio conseguiram voltar. Apoiados por parlamentares corruptos, de costas ao povo e moucos ao clamor das ruas e por uma coligação de forças que envolve juízes justiceiros, o Ministério Público, a Polícia Militar e parte do Judiciário, não sem o respaldo da potência imperial interessada em nossas riquezas, forjaram a demissão da Presidenta Rousseff. O real motor do golpe é o capital financeiro, os bancos e os rentistas (não afetados pelas políticas dos ajustes fiscais).

Com exatidão denuncia o cientista politico Jessé  Souza: “O Brasil é palco de uma disputa entre dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia. A elite do dinheiro manda pelo simples fato de poder "comprar" todas as outras elites”(FSP 16/4/2016).

A tristeza é constatar que todo esse processo de espoliação é consequência da velha política de conciliação dos donos do dinheiro com os governos, que vem desde o tempo da Colônia e da Independência. Lula-Dilma não conseguiram ou não souberam superar a arte finória desta minoria dominante que, a pretexto da governabilidade, busca a conciliação com os governantes, concedendo alguns benefícios ao povo a preço de manter intocada a natureza de seu processo de acumulação de riqueza em altíssimos níveis.

O historiador José Honório Rodrigues que estudou a fundo a conciliação de classe sempre de costas ao povo, afirma com razão: ”a liderança nacional, em suas sucessivas gerações, foi sempre antirreformista, elitista e personalista…A arte de furtar é  nobre e antiga praticada por essas minorias e não pelo povo. O povo não rouba, é roubado…O povo é cordial, a oligarquia é cruel e sem piedade…; o grande sucesso da história do Brasil é o seu povo e grande decepção é a sua liderança”(Conciliação e Reforma no Brasil, 1965, pp. 114;119).

Estamos vivendo a repetição desta maléfica tradição, da qual jamais seremos libertados sem o fortalecimento de um anti-poder, vindo do andar de baixo, capaz de derrubar esta clique perversa e instaurar um outro tipo de Estado, com outro tipo de política republicana, onde o bem comum se sobrepõe ao bem particular e corporativo.
O Natal deste ano é um Natal sob o signo de Herodes. Não obstante, cremos que a divina Criança é  Messias libertador e a Estrela é generosa para nos mostrar um caminho de saída desta crise malvada.

Leonardo Boff escreveu: Natal: o sol da esperança, Mar de Ideias, Rio 2007.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

POR QUE FIZEMOS OPÇÃO PELOS POBRES (E ELES PELO NEOPENTECOSTALISMO)?



por Frei Betto*



           Há quem diga que a Igreja Católica optou pelos pobres e os pobres, pelas Igrejas evangélicas. Isso tem certa dose de verdade se considerarmos os índices que demonstram que, nos últimos anos, houve diminuição do número de católicos no Brasil e aumento de protestantes (adeptos das Igrejas históricas) e evangélicos (adeptos das Igrejas pentecostais e neopentecostais).
           No censo de 2000, 73,6% da população era formada por católicos, e apenas 15,4% de protestantes e evangélicos. No censo de 2010, os católicos representavam 64,6% e os protestantes e evangélicos, 22,2%. Em dez anos, o número de protestantes e evangélicos no país aumentou 61,45%. Hoje eles são 42,3 milhões. Em 1970, eram 4,8 milhões (5,2% da população). Estima-se que, a cada ano, são abertos, no Brasil, 14 mil novos templos evangélicos.
           Os evangélicos se dividem em Igrejas protestantes tradicionais ou históricas (luterana, presbiteriana, batista, anglicana, metodista etc.); pentecostais (Assembleia de Deus, Presbiteriana Renovada etc.); e neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Sara Nossa Terra, Internacional da Graça de Deus etc.). A maioria dos neopentecostais se encontra nas periferias das cidades, e 63,7% recebem por mês no máximo um salário mínimo. Daí o interesse pela Teologia da Prosperidade, que propõe uma ética que transforma em valor religioso a ascensão social dentro da mobilidade urbana.

Pedagogias apostólicas
          
           Enquanto a pregação católica centra-se no dogmatismo (no que se deve crer), a neopentecostal está focada no pragmatismo (o caráter utilitário da fé para se alcançar benefícios, desde emprego até a cura de doenças). Daí o lema adotado pela principal Igreja neopentecostal, a Universal do Reino de Deus – “Pare de sofrer”. É uma pregação muito colada na autoajuda.
           A que se deve tal fenômeno? Há várias hipóteses. Uma delas é explicada pela coincidência entre a urbanização brasileira, na virada dos séculos XIX para o XX, e a disseminação de Igrejas evangélicas. O êxodo rural, a urbanização desordenada, a quebra de vínculos familiares tradicionais, o inchamento das periferias e a massificação dos meios de comunicação, são fatores que estão na origem da explosão evangélica.
           Mais recentemente há que considerar os 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, que inibiram, na esfera católica, a Igreja dos Pobres, às vezes duramente reprimida, bem como o seu fundamento teórico, a Teologia da Libertação. No entanto, jamais foram condenados.
           Católicos das periferias urbanas e rurais que não se sentiam mais acolhidos em Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e pastorais populares trataram de migrar para os espaços evangélicos. E o fizeram por duas razões básicas: a ânsia de encontrar possíveis soluções para seus problemas crônicos (enfermidades, desemprego, carência de identidade nos grandes centros metropolitanos etc.), e o mal-estar quando chamados a frequentar os templos católicos, predominantemente ocupados pela classe média, e no qual reina o clericalismo.
           As Igrejas evangélicas adotam um modelo pastoral já qualificado de “canibal”. Instaladas em antigas salas de cinema ou garagens, elas abrem, diretamente nas calçadas, sua bocarra faminta de fiéis... Para tais Igrejas, o espaço físico religioso não exige necessariamente construção de templos. Qualquer sala ou galpão pode ser transformado em local de culto. E muitos templos mantêm as suas portas abertas 24 horas por dia, o que é impensável em se tratando de templos católicos. Ao se chegar em certos templos evangélicos em plena madrugada é possível ser recebido por um obreiro que dedica especial atenção ao fiel em potencial. Em uma paróquia católica não é fácil ser atendido por um sacerdote, ainda que no período vespertino.
           Nos cultos evangélicos há participação de fiéis. Adota-se uma espiritualidade “personalizada”, predestinadora, sem dimensão social. O que fascina é o Deus da misericórdia que cura, conforta, perdoa, ajuda a obter emprego, traz prosperidade e une a família. Deus que liberta o fiel dos vícios, do adultério, do pecado, enfim, das garras do diabo... Espiritualidade que penetra fundo no coração e no bolso do fiel... Nesse mundo de perdição, a Igreja desponta como uma ilha de salvação individual, na qual cada fiel se sente um eleito do Senhor. E se demonstra vocação para a música, seja o canto, seja o domínio de um instrumento musical, o fiel é valorizado pela comunidade religiosa.
           Já na Igreja Católica, muitos entraves dificultam a adesão dos mais pobres. Reina o clericalismo, quase tudo é centrado na figura patriarcal do sacerdote, e as mulheres participam como meras figurantes. Não há mulheres diáconas nem sacerdotes, quanto mais revestidas de caráter episcopal.
           As liturgias católicas são asfixiadas pelas rubricas canônicas que entravam a improvisação, a dança, a participação dos fiéis, os rituais de bênçãos e curas. Nossos fiéis não passam necessariamente por escolas bíblicas e nem têm o hábito de ler e meditar as sagradas escrituras. Quase toda a aproximação com a Bíblia se resume em leituras litúrgicas seguidas de sermões que raramente fazem exegese do texto e, quando o fazem, ela não está ao alcance do nível cultural dos fiéis.
           Os templos e capelas católicos não contam com obreiros ou agentes pastorais que, a qualquer hora do dia ou da noite, estão dispostos a atender quem os procura e preparados para acolher o bêbado, a mulher agredida pelo marido, o desempregado tomado pelo desespero, o endividado submerso na angústia, a moça aflita pela gravidez inesperada e indesejada...
           E por vezes utilizamos uma linguagem demasiadamente politizada ou meramente moralista, sem corresponder à fome de sacralidade do fiel, de mística, de sentir-se acolhido pela misericórdia de Deus e pela Igreja como família ou comunidade religiosa.

Conservadorismo

           Desde que os evangélicos despontaram no Brasil, em fins do século XIX, se caracterizaram por uma postura conservadora impulsionada pela leitura fundamentalista da Bíblia e pelo puritanismo. Basta conferir o alinhamento da maioria das Igrejas protestantes e evangélicas à ditadura militar (1964-1985), embora alguns de seus fiéis figurem como mártires e confessores da resistência democrática, como os irmãos Paulo e Jaime Wright, e os pastores Jether Ramalho e Anivaldo Padilha.
           Embora haja, hoje em dia, segmentos evangélicos abertos ao ecumenismo e, inclusive, à Teologia da Libertação, o que ainda predomina é o conservadorismo teológico e político. Nesse início de século XXI, o alvo do fundamentalismo evangélico são as políticas de direitos humanos e gênero.
           Há que destacar o avanço das Igrejas evangélicas no uso dos meios de comunicação, criando figuras midiáticas de forte apelo popular, como Silas Malafaia, R. R. Soares e Edir Macedo. A compra da Rede Record, TV aberta, em 1989, pela Igreja Universal, causa um forte impacto na formação da opinião pública nacional. E o mercado fonográfico “gospel” gera a maior arrecadação da indústria musical brasileira, em torno de R$ 500 milhões por ano. E o editorial, R$ 483 milhões por ano.
           Já a Igreja Católica lida com a mídia sem o devido profissionalismo, sobretudo na esfera imagética, como TV e internet. O máximo de audiência obtida pelos católicos se restringe ao sucesso dos padres cantores, como Marcelo Rossi, Fábio de Melo, Reginaldo Manzotti e outros.
           É preciso também destacar os segmentos evangélicos progressistas, como a Renas (Rede Evangélica Nacional de Ação Social), criada no Rio em 2006, e que congrega fiéis das Igrejas Batista, Assembleia de Deus, Anglicana e Luterana. Os membros da Renas são críticos ao discurso e à prática conservadores da bancada evangélica no Congresso, contrários à redução da maioridade penal e favoráveis ao diálogo com religiões de matriz africana, ao debate sobre a descriminalização do aborto e à união civil e religiosa de casais homossexuais. (Cf. O Globo, 19.09.2015, p. 26).
          
Rumo à direita

           Em outubro de 2013, pesquisa do DataFolha comprovou que a maioria dos brasileiros se identifica com valores de direita. Este retrato se revelou quando se indagou a respeito de questões como pena de morte e papel dos sindicatos. Dos entrevistados, 38% foram classificados como de centro-direita, 26% de centro-esquerda, 22% de centro, 11% de direita e 4% de esquerda.
           A tendência à direita é reforçada por muitas Igrejas evangélicas indiferentes à moral social e defensoras do livre mercado. Elas se posicionam contra o aborto e o controle da natalidade; são favoráveis ao tratamento psicológico de homossexuais, e consideram que a democracia é plenamente compatível com os parâmetros do capitalismo. Advogam o Estado mínimo e, em nome da “salvação da família”, a criminalização dos movimentos civis por direitos sociais.
           Conforme análise da teóloga protestante Magali do Nascimento Cunha, a bancada evangélica não cresceu tão significativamente, como se propagou, nas eleições de 2014. O discurso homofóbico em defesa da família e contra o comunismo não foi suficiente para atrair os votos que esperava.
           Segundo o DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), o número de parlamentares evangélicos na Câmara dos Deputados não sofreu alteração significativa nas eleições de 2014. Estimava-se que chegaria a uma bancada de 100 eleitos (crescimento de 30%), tendo em vista o aumento de 20% alcançado nos pleitos  anteriores. Foram eleitos 72 parlamentares. Em 2010, elegeram-se 66 para o Congresso Nacional, entre deputados federais e senadores.
           Estimava-se que nomes de projeção nacional, como o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), atualmente acusado de estupro, recebessem ao menos 1 milhão de votos. Um de seus mais fortes cabos eleitorais, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, chegou a declarar: “Se o Feliciano tiver menos de 400 mil votos na próxima eleição, eu estou mudando de nome.” E ironizou a reação dos movimentos sociais quando Feliciano ocupou a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara: “Quero agradecer ao movimento gay. Quanto mais tempo perderem com o Feliciano, maior será a bancada evangélica em 2014.” Malafaia deveria cumprir a promessa: Feliciano teve, na eleição de 2014, 398.087 votos.
           O PSC acreditou tanto no êxito eleitoral de seus candidatos que lançou o Pastor Everaldo  candidato a presidente da República.

Marina Silva e Pastor Everaldo

           Os evangélicos apresentaram, nas eleições de 2014, dois candidatos a presidente: Marina Silva e o Pastor Everaldo, ambos da Assembleia de Deus.
           Marina Silva se destacou a partir da morte inesperada de Eduardo Campos, candidato a presidente pelo PSB, de quem era vice. Isso esvaziou a candidatura do Pastor Everaldo, pois os evangélicos, embora não sejam aliados de Marina Silva, somaram forças em torno dela movidos pelo antipetismo. Contudo, ela não alcançou o segundo turno, figurando em terceiro lugar entre os candidatos. Comparado à eleição de 2010, quando também concorreu ao mesmo cargo, houve aumento de 2% no número de votos que lhe foram dados: de 19% para 21%. Pressionada por lideranças evangélicas, Marina apresentou constantes mudanças de discurso, o que provocou a perda de confiança de muitos de seus eleitores.
           Já o Pastor Everaldo teve pouco mais de 780 mil votos, e ficou atrás da candidata de esquerda Luciana Genro (PSOL-RS), que obteve 1,6 milhão de votos.
           O que surpreendeu a muitos foi o apoio de Marina Silva, no segundo turno, à candidatura do oposicionista Aécio Neves (PSDB). O pragmatismo superou os princípios.

A servidão voluntária
          
           La Boétie publicou, em 1576, o Discurso da servidão voluntária, texto no qual analisa esse estranho fenômeno que faz certas pessoas abdicarem de sua autonomia para pensar pela cabeça alheia e agir segundo o seu mestre mandar.
           Ocorre em todos os âmbitos, desde a mulher que se deixa subjugar pelo marido ao funcionário que jamais questiona as ordens do chefe. Aliás, os criminosos nazistas e os torturadores brasileiros que chegaram às barras dos tribunais alegaram, em sua defesa, o cínico argumento: “Cumpríamos ordens”.
           Outro dia, perguntei a uma senhora a quem dará seu voto para prefeito. “Naquele que Deus mandar”, respondeu. Espantei-me e, confesso, com uma ponta de inveja. Sempre quis saber a vontade de Deus quanto aos meus passos na vida. Tenho uma fé entremeada de incertezas.
           Sei, porém, que Deus é Pai (e também Mãe, lembrou o papa João Paulo I), mas não é paternalista. Como reza Gilberto Gil, deu-me régua e compasso e, o caminho, eu mesmo traço. Isso se chama livre arbítrio.
           Aquela senhora, entretanto, dava mostras de ter merecido um canal direto com Deus. E mais: um Deus cabo eleitoral na acirrada disputa das eleições municipais.
           “Como a senhora saberá quem é o candidato preferido de Deus?”, indaguei. Ela retrucou candidamente: “O pastor dirá. Ele é a voz de Deus.”
           Meu Deus!, reagi intimamente. Confundir a função de padre, bispo ou papa, com a vontade de Deus, é uma das mais aberrantes artimanhas para favorecer o fundamentalismo e suscitar a servidão voluntária. Vide o que os terroristas islâmicos fazem em nome de Maomé! 
           O mais curioso é que nem ateus escaparam disso. Basta ler O homem que amava os cachorros (Boitempo), de Leonardo Padura. Em nome da Causa, encarnada na vontade inquestionável de Stálin, Ramón Mercader sacrificou a sua vida para assassinar Trotski.
           Aliás, quase todos os líderes, sejam eles políticos, religiosos ou empresariais, preferem que seus subordinados abdiquem da consciência crítica. E ainda que tenham opinião diferente, tratem de omiti-la. O peixe morre pela boca...
           Daí o fenômeno degradante da humilhação voluntária. Para não perder prestígio, manter a função ou se julgar bem vistos aos olhos do chefe, muitos abaixam a cabeça e exibem os fundilhos... E qualquer crítica é tida como desvio ideológico, heresia, conspiração ou traição.
           Volto à canção de Gil. Na esfera cristã, a régua é a Bíblia e, o compasso, a prática de Jesus. Ele atuou em defesa dos direitos dos pobres e excluídos. Denunciou os opressores e “despediu os ricos com as mãos vazias”. Realizou a partilha dos pães e dos peixes, e “saciou de bens os famintos”.
           Todos que se consideram seus discípulos, e acreditam que ele agia segundo a vontade de Deus, deveriam, portanto, agir como ele, inclusive ao votar. Os critérios evangélicos são óbvios para quem tem olhos para ver e orelhas para ouvir.
           O resto é demagogia e tentativa de perpetuar a servidão estrutural daqueles que, fora do mercado, não merecem dignidade nem salvação.

Papel da mídia     

           Todo este processo tem a cumplicidade da grande mídia, historicamente alinhada aos valores e políticas conservadoras. De certo modo, programas de rádio e TV monitorados por pastores evangélicos fortalecem a legitimação dostatus quo, razão pela qual são apoiados pelos donos do capital. A estes não interessa a agenda dos movimentos sociais nem a ampliação das conquistas em prol dos direitos humanos.
           Esta postagem de um pastor evangélico no Facebook reflete bem o espírito de cruzada de certas Igrejas: "Devemos nos unir cada vez mais, já somos milhões de evangélicos no Brasil, fora os simpatizantes. Temos força, é claro que nossa força vem de Deus. Precisamos nos mobilizar contra as forças das trevas, que querem desvirtuar os bons costumes e a moral e, principalmente que querem afetar a honra da família. Se o meu povo que se chama pelo meu nome se humilhar e orar, não tem capeta que resista."

O ovo da serpente
          
           Em resumo: é preocupante a confessionalização da política. Na eleição de Dilma, o tema religião ganhou mais relevância que programas de governo. Na de prefeito à capital paulista, em 2012, pastores e bispos se conflitaram, e padre Marcelo Rossi virou ícone político. E, no Rio, o candidato Crivella teve o seu passado fundamentalista denunciado com base em seus próprios escritos, onde demoniza o catolicismo e as religiões de origem africana.
           A modernidade separou Estado e Igreja. Agora o estado é laico. Portanto, não pode ser pautado por uma determinada crença religiosa. Todas têm direito a difundir sua mensagem e promover manifestações públicas, desde que respeitados aqueles que não creem ou pensam de modo diferente.
           O Estado deve estar a serviço de todos os cidadãos, crente e não crentes, sem se deixar manipular por esta Igreja ou aquela denominação religiosa.
           O passado do Ocidente comprova que mesclar poder religioso e poder político é reforçar o fundamentalismo e, em suas águas turvas, o preconceito, a discriminação e, inclusive, a exclusão (Inquisição, “heresias” etc.). Ainda hoje, no Oriente Médio, a sobreposição de doutrina religiosa em certos países produz políticas obscurantistas.
           Temo que também no Brasil esteja sendo chocado o ovo da serpente. Denominações religiosas apontam seus pastores a cargos eletivos; bancadas religiosas se constituem em casas legislativas; fiéis são mobilizados segundo o diapasão da luta do bem contra o mal; Igrejas se identificam com partidos; amplos espaços da mídia são ocupados pelo proselitismo religioso.
           Algo de perigoso não estaria sendo gestado? Já não importa a luta de classes nem seus contornos ideológicos. Já não importa a fidelidade ao programa do partido. Importa a crença, a fidelidade a uma determinada doutrina ou líderes religiosos, a “servidão voluntária” à fé que mobiliza corações e mentes.
           O que seria de um Brasil cujo Congresso Nacional fosse dominado por legisladores que aprovariam leis, não em benefício do conjunto da população, e sim, para enquadrar todos sob a égide de uma doutrina confessional, tenham ou não fé nessa doutrina?
           Sabemos que nenhuma lei pode forçar um cidadão a abraçar tal princípio religioso. Mas a lei pode obrigá-lo a se submeter a um procedimento que contraria a razão e a ciência, e só faz sentido à luz de um princípio religioso, como proibir transfusão de sangue ou o uso de preservativo.
           Não nos iludamos: a história não segue em movimento linear. Por vezes, retrocede. E aquilo que foi ainda será se não lograrmos predominar a concepção de que o amor – que não conhece barreiras e “tudo tolera”, como diz o apóstolo Paulo – deve sempre prevalecer sobre a fé.
           Se nós, católicos, pretendemos atrair os pobres aos nossos templos e comunidades só nos resta um caminho: evitar qualquer combate às Igrejas evangélicas, como estigmatizá-las com a pecha de “seitas”; dialogar ecumenicamente com seus fiéis e pastores; recriar espaços pastorais nos quais os pobres se sintam em casa, como outrora nas CEBs e na Pastoral Operária; adaptar a liturgia católica aos paradigmas culturais populares; e, sobretudo, em nome da fé em Jesus nos colocarmos a serviço da erradicação da pobreza e de suas causas.

*Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.



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