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sexta-feira, 31 de julho de 2015

O EXAME DE CONSCIÊNCIA PROPOSTO POR FRANCISCO

          
 por Maria Clara Lucchetti Bingemer




            Os que conhecem a espiritualidade inaciana sabem que para Santo Inácio o exame de consciência é uma peça-chave. Modo de orar curto, constituído por cinco pontos e um colóquio. Assim foi proposto pelo fundador da Companhia de Jesus como algo que deve ser feito pelo exercitante ao término de cada dia da experiência dos Exercícios Espirituais.

            Porém, não se limita à duração de trinta dias dos Exercícios ou a suas adaptações em versões menores (8, 10 ou mesmo 3 dias) a prática do exame de consciência.  Santo Inácio pretende que seja feita por aqueles que são formados em sua escola espiritual, notadamente os jesuítas, mas também outros religiosos e leigos de ambos os sexos.  Chega mesmo a considerar peça-chave para o discernimento da vontade de Deus em cada ocasião, a ponto de afirmar nas Constituições da Companhia de Jesus que o jesuíta formado poderia ficar dispensado da oração diária se a missão assim o exigisse.  Mas nunca do exame de consciência.

            O exame ajuda a não perder o pulso da realidade, a olhar para a própria vida com visão crítica, reconhecer as falhas e ver como pode corrigi-las.  Ajuda igualmente a ter uma atitude humilde diante de si mesmo, tomando consciência da própria limitação.  E ajuda, finalmente, a fazer projetos e propósitos para reverter o que se percebeu como deficiente na própria vida, agradecendo a graça divina que nunca falta e sempre socorre quem para Deus se volta com coração humilde.

            Isso pretende o Papa ao propor, em discurso na Bolívia aos movimentos sociais, que reconheçam que algo tem que mudar, não só localmente, mas universalmente. Não se pode aceitar que existam ainda pessoas sem trabalho, sem teto, sem-terra no continente mais cristão do planeta.  Da mesma forma, as coisas não andam bem quando há pelo mundo tantas guerras sem sentido, violência fratricida ceifando vidas às centenas e aos milhares aqui e em outros pontos do planeta.

            E apontando para sua última encíclica, Francisco insere em seu exame de consciência o convite ao reconhecimento de que as coisas não andam bem na maneira como tratamos a Mãe Terra, “quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob constante ameaça”.  Reconhecer que as coisas não estão bem impõe uma conversão:  assim não se pode continuar.  Há que mudar o rumo dos ventos, dos fatos.  Há que converter-se.

            E convida seus ouvintes a dizer sem medo: queremos mudança, mudança real, mudança estrutural. Este sistema já não se aguenta.  Não o aguentam os camponeses, os trabalhadores, as comunidades, os povos...e a terra.  Ninguém aguenta mais este sistema. E nós, surpresos e maravilhados, ouvimos talvez pela primeira vez da boca de um Papa, da autoridade máxima da Igreja Católica, a condenação explícita do sistema vigente, ou seja, do capitalismo liberal em todas as suas versões mais radicais e mais mitigadas.

            Sem adoçar as palavras, o Pontífice chamou o domínio do capital e a ganância do dinheiro de “sutil ditadura”. Essa ditadura nos rouba a liberdade que, como filhos de Deus, recebemos como o mais gracioso e encantador presente.  Converte o capital em ídolo e dirige por caminhos tortuosos as opções dos seres humanos.  A avidez por dinheiro que ela provoca tutela todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, escraviza o ser humano, destrói a fraternidade, coloca povo contra povo e põe em risco a casa comum que é o planeta.

            Se queremos mudança no sentido de mais justiça, mais vida para todos, mais fraternidade e convivência, há que reconhecer humildemente que essa “sutil ditadura” tem poder sobre nós e procurar encetar o caminho de conversão que nos libertará dela e nos devolverá a liberdade.

            Para andar neste caminho que não é fácil, Francisco sabe que precisamos de guias, de mestres, de líderes.  E em seu discurso institui como líderes, os pobres.  Falando com os membros dos movimentos populares, cuja maioria é gente humilde, trabalhadora e sofrida, disse-lhes: o futuro da humanidade está, em grande medida, em suas mãos, em sua capacidade de organizar-se, de promover alternativas criativas...

            Dizendo isso aos pobres, dizia a todos nós:  olhem para eles, vejam suas vidas, suas iniciativas. Vejam seu sofrimento e vejam como o superam.  Olhem, vejam, atuem. Não há conversão que não passe por uma aliança de vida e coração com os mais pobres, com as vítimas da sutil ditadura do capital.  O exame de consciência que o Papa propôs na Bolívia certamente nos ajudará a compreender que somente uma atenção amorosa aos desafios da realidade e à vida dos pobres poderá recolocar-nos no caminho que leva à verdadeira vida.


A teóloga Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
             Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>



quinta-feira, 30 de julho de 2015

MAIS DOIS LIVROS

 Por Frei Betto



      Chegam às livrarias esta semana dois livros meus: “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco) e “Um Deus muito humano – um novo olhar sobre Jesus” (Fontanar).

      Já são 60 livros publicados, sem contar os assinados em coautoria. Segundo o jornalista Ricardo Kotscho, meu amigo de longa data, não sou eu quem escrevo, são os 60 fradinhos que, recolhidos às catacumbas do convento e alimentados de pão e vinho, redigem os textos que assino...

      A frase é atribuída a vários gênios, como Einstein e Thomas Edison, mas sem dúvida o ofício de escritor, como o do cientista, exige 10% de inspiração e 90% de transpiração. Há que ter disciplina. No meu caso de escritor compulsivo, reservo 120 dias do ano exclusivamente à literatura. Isolo-me, desligo o celular e mergulho na produção de meus textos.

      “Paraíso perdido”, reedição ampliada e cujo texto foi todo reescrito, narra 33 anos (1979-2012) de viagens a países socialistas. Nenhuma delas como turista. Todas a trabalho – conferências, eventos e, sobretudo, reaproximação entre religiões e Estado comunista. Com a anuência tanto de religiosos quanto de políticos locais.

      Comecei pela Nicarágua sandinista, em 1969. E até 1989 passei por Cuba, Rússia, Letônia, Lituânia, China, Tchecoslováquia, Polônia e República Democrática da Alemanha. Após a queda do muro de Berlim, restrinjo-me a Cuba, que continuo a visitar e acompanhar o processo de reatamento de relações com os EUA.

      O livro é uma reflexão sobre a utopia que mobilizou o melhor de minha geração: alcançar um mundo sem desigualdades sociais, onde todos tivessem assegurada vida digna. A partir de fatos, descrevo conquistas e contradições do socialismo; longas conversas com Fidel, Raúl Castro e Lech Walesa; desafios e preconceitos à fé cristã; e encontros, naqueles países, com familiares de Che Guevara, Gabriel García Márquez, Ernesto Cardenal, Armando Hart, Roberto Fernández Retamar, Marcello Mastroianni, Chico Buarque, Hélio Pellegrino, Fernando Morais, Leonardo Boff, Dom Pedro Casaldáliga e outros.

      “Um Deus muito humano” reúne textos sobre a emblemática figura de Jesus. São pequenos ensaios, acessíveis ao leigo, que tratam das diferentes ópticas sobre Jesus e seu contexto histórico, político e moral, com vistas a proporcionar ao leitor melhor compreensão sobre o homem de Nazaré e as razões que levaram dois poderes políticos a condená-lo à morte na cruz. Enfatizo o sentido de sua mensagem para os dias de hoje.

      As duas obras têm lançamentos agendados em noites de autógrafos no Rio (3 de agosto, Esch Café Leblon, rua Dias Ferreira 78), em Belo Horizonte (4 de agosto, Projeto Sempre um Papo, Museu das Minas e do Metal, Praça da Liberdade) e em São Paulo (10 de agosto, Esch Café, Alameda Lorena 1899).

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros.


Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com     



quarta-feira, 29 de julho de 2015

O ENCONTRO


Por Assuero Gomes


Durante alguns anos de sua vida o padre vivenciou uma vida de fé, servindo numa paróquia de periferia em um dos morros do Rio de Janeiro. Muito jovem, ligado aos ideais das lutas sociais e religião, teve uma bonita e profunda formação teológica cristã engajada. Oriundo de família pobre do interior de Minas, conseguiu a muito custo se ordenar. A designação para trabalhar na comunidade do Morro foi o coroamento do sonho que sempre idealizara, desde os primórdios da vocação. Servir ao pobre e libertá-lo.

Um difícil sonho de ser sonhado e que muitas vezes tornou-se como um pesadelo, pois a violência, como a besta do Apocalipse, tentava devorar a tudo e a todos.

Ameaçado constantemente por traficantes, pelo descaso dos programas do governo, por falta de incentivo da própria comunidade amedrontada, esse padre tinha um grande consolo. Ao final de cada tarde, antes de celebrar, ele se punha de joelhos em frente ao sacrário improvisado na capelinha, e sentia a presença do Ressuscitado, quase que falando fisicamente com ele.

Passando o tempo, o padre foi se revoltando com a falta de ‘sucesso’ de sua pastoral. Desanimado, foi se sentindo impotente, abandonado, diante de seu ‘fracasso’, pois os jovens na sua maioria se entregaram às drogas e à prostituição.

Teve seu barraco e a capelinha incendiada, denunciou à polícia, sem êxito, pois a própria corporação policial evitava o confronto direto naquela localidade. Desesperou-se. Procurou reunir o pessoal do Morro, procurou falar com alguns políticos, sem nenhum sucesso. Enfim, numa tarde, talvez uma das últimas, ele conversou com Ele: “estou cansado, muito cansado. Não vejo nem Tu ajudar-me. Vou embora. Cuida desse rebanho que é Teu”. Nesse dia não sentiu nenhuma resposta.

Mudou-se, entregou a capelania, com o tempo foi ser ativista político e ensinar numa escola pública, casou. Os anos se passaram. Perdeu a fé.

Um novo padre, recém-ordenado, retomou o trabalho pastoral naquele local. Aos poucos obteve algum sucesso, uma meia dúzia de jovens e algumas senhoras idosas, passaram a frequentar assiduamente a capela, que foi restaurada. Muito sacrifício e dedicação da mesma forma que seu antecessor, muita resistência também.

Ultimamente um homem, de certa idade, cansado e melancólico sobe ao morro quase três vezes por semana e vai ficar perto do sacrário da capelinha restaurada. Fica olhando e olhando, fitando o infinito, com olhos vazios. Senta-se em frente, num tamborete de lá mesmo, e assim permanece por mais de meia hora. 

O padre atual, que não lhe conhecia, achou curioso e estranho que um homem viesse sempre ali e ficasse parado e mudo, olhando fixamente para onde se guardam as hóstias consagradas. Um dia perguntou ao estranho: - por que?

Ele lhe contou sua história em poucas palavras e disse, para espanto do novo padre “venho aqui pela saudade do Encontro”.

Assuero Gomes
Cristão católico leigo da
Arquidiocese de Olinda e Recife


terça-feira, 28 de julho de 2015

O PAPA, A IGREJA E OS MOVIMENTOS SOCIAIS


Por  Marcelo Barros


Na América do Sul, esse julho foi marcado pela visita do papa Francisco a três países: Equador, Bolívia e Paraguai. Antes de partir de Roma, ele declarou ter escolhido visitar três dos países mais pobres do continente. A novidade dessa visita é que os meios de comunicação social que transmitiam as visitas dos papas anteriores quase durante 24 horas e em tempo real, já não se movem tanto com o papa Francisco. E ele tem certa responsabilidade nisso. De fato, imprimiu outro estilo às viagens papais.Não reproduz rituais de corte medieval e faz questão de privilegiar um modo de ser simples e pastoral. Como ainda não deixou de ser chefe de Estado, é acolhido pelos governantes, mas dedica a esses menos atenção e dá mais tempo ao encontro com comunidades pobres e carentes. No lugar de temas da Moral sexual ou de assuntos internos da Igreja,aborda quase sempre a necessidade de uma nova organização do mundo que faça justiça aos pobres. Nessa sua visita ao nosso continente, por onde passava, afirmou: “Em um mundo onde há tantos agricultores sem terra, tantas famílias sem casa, tantos trabalhadores sem direitos”, onde explodem “guerras insensatas” e a terra é devastada, isso significa que é preciso uma mudança”. Na Bolívia, falou da “conquista europeia”  de modo claramente crítica e não como descobrimento. Pediu perdão aos índios pela cumplicidade da hierarquia e do clero católico na violência da conquista europeia.

Ele dá o exemplo para padres e bispos sobre como priorizar o diálogo com os movimentos sociais. Em Santa Cruz de laSierra, se encontrou com mais de 1.500 representantes de movimentos populares aos quais ele chamou de “semeadores de mudanças e poetas sociais”. Era o segundo encontro mundial de movimentos sociais, ambos promovidos pelo papa. Na sua fala, ele se inseriu na cultura e preocupações de todos ali presentes. Em nenhum momento, distinguiu crentes e não crentes. No estilo dos profetas bíblicos, propôs justiça social e transformação do mundo. Dessa vez, afirmou aos representantes e líderes desses  movimentos: “O futuro da humanidade está, em grande parte, nas mãos de vocês e na sua capacidade de se organizar e promover alternativas criativas.” Na periferia de Assunção, no Paraguai, visitou as 23 mil famílias que ocupam a área de Bañado Norte. Há 30 anos, essas famílias pobreslutam pelo título de propriedade. Ao afirmar claramente que estava contente por estar com eles e “na terra deles”, o papa disse claramente ao mundo inteiro que reconhece o direito deles à terra e ao título de propriedade.

Quando falou a grupos de Igreja, disse claramente: “não importa a quantas missas de domingo você foi, se você não tem um coração solidário. Se você não sabe o que está acontecendo em sua cidade, sua fé é muito fraca, está doente ou morta.” E convidou bispos, padres e agentes de pastoral a mudar a compreensão que muitos ainda têm da missão eclesial. Não é cristã uma Igreja voltada para si mesma e cujo trabalho seja meramente religioso. O papa afirmou fortemente que toda a Igreja deve estar disposta a “acompanhar as pessoas que buscam superar as graves situações de injustiça que sofrem os excluídos em todo o mundo”.

Quando acompanhamos os movimentos e palavras do papa Francisco, o mais estranho não é que os meios de comunicação censurem as palavras do papa se esse condena o Capitalismo e diz que a atual estrutura social e econômica do mundo tem de mudar. O mais estranho é que esse silêncio e censura ocorra também nos ambientes do clero e da hierarquia eclesiástica. Apesar de que, normalmente, ninguém abre a boca para criticar o papa, muitos padres e bispos, formados nas décadas de condenação clara da teologia do Concílio Vaticano II, parecem esperar tudo isso passe e possamos voltar aos bons tempos de antes. Poucos bispos em suas dioceses e padres em suas paróquias se sentem interpelados a dialogar com os movimentos sociais e neles se inserirem como o papa Francisco faz e propõe a partir do evangelho. No domingo passado, nas comunidades católicas, o evangelho proclamado nas missas afirmava que Jesus tinha querido fazer um retiro com os seus apóstolos do outro lado do lago de Genesaré. No entanto, muitospobres souberam que eles iriam para lá. Tomaram barcas e chegaram antes de Jesus e dos apóstolos. E o evangelho termina afirmando que, “quando Jesus os viu, sentiu suas entranhas se moverem de uma compaixão materna e sentiu piedade deles, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6, 30 – 34).


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países









segunda-feira, 27 de julho de 2015

AFINIDADES ENTRE A ENCÍCLICA DO PAPA SOBRE “O CUIDADO DA CASA COMUM” E A “CARTA DA TERRA, NOSSO LAR”


Por Leonardo Boff



A encíclica “Cuidado da Casa Comum” e a “Carta da Terra” talvez sejam os dois únicos documentos de relevância mundial que apresentam tantas afinidades comuns. Tratam do estado degradado da Terra e da vida em suas várias dimensões, fora da visão convencional que se restringe ao ambientalismo. Inscrevem-se dentro do novo paradigma relacional e holístico, o único, assim nos parece, capaz de ainda nos dar esperança.

A encíclica conhece a Carta da Terra que a cita num dos pontos mais fundamentais:”atrevo-me a propor de novo o considerável desafio da Carta da Terra: como nunca antes da história, o destino comum nos obriga a procurar um novo começo”(n. 207). Esse novo começo é assumido pelo Papa.

Elenquemos algumas dessas afinidades, entre outras.

Em primeiro lugar comparece o mesmo espírito que pervade os textos: de forma analítica, recolhendo os dados científicos mais seguros, de forma crítica, denunciando o atual sistema que produziu o desequilíbrio da Terra e de forma esperançadora, apontando saídas salvadoras. Não se rende à resignação mas confia na capacidade humana de forjar um novo estilo de vida e na ação inovadora do Criador, “soberano amante da vida”(Sab 11,26).

Há o mesmo ponto de partida. Diz a Carta:”os padrões dominantes de produção e consumo estão causando a devastação ambiental, a redução dos recursos e uma maciça extinção de espécies (Preâmbulo, 2). Repete a encíclica:”basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande deterioração da nossa Casa Comum…o atual sistema atual é insustentável, a partir de vários pontos de vista”(n.61).

Há igual proposta. Assevera a Carta:”São necessárias mudanças fundamentais dos nossos valores, instituições e modos de vida”(Preâmbulo,3). A encíclica enfatiza:”Toda aspiração a cuidar e a melhorar o mundo requer mudanças profundas nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades”(n.5).

Grande novidade, própria do novo paradigma cosmológico e ecológico é a afirmação da Carta:”nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e juntos podemos forjar soluções includentes”(Prâmbulo, 3). Há um eco desta afirmação na encíclica:”Ha alguns eixos que travejam toda a encíclica: a íntima relação entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia, o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia e a proposta de um novo estilo de vida”(n. 16). Aqui vale a solidariedade entre todos, a sobriedade compartida e “passar da avidez à generosidade e à partilha”(n.9).

A Carta afirma que “há um espírito de parentesco com toda a vida”(Preâmbulo 4). O mesmo afirma a encíclica:”Tudo está relacionado e nós, seres humanos caminhamos juntos como irmãos e irmãs…e nos unimos também com terna afeição ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio e à Mãe Terra”(n.92). É a franciscana fraternidade universal.

A Carta da Terra enfatiza que é nosso dever “respeitar e cuidar da comunidade de vida… respeitar a Terra em toda a sua diversidade”(I,1) Toda encíclica, a começar pelo título “cuidar da Casa Comum” faz desse imperativo uma espécie de ritornello. Propõe “alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo”(n. 216) e “uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade “ (n.231). Aqui surge o cuidado não como mera benevolência pontual mas como um novo paradigma, amoroso e amigo da vida e de tudo o que existe e vive.

Outra afinidade importante é o valor dado à justiça social. A Carta sustenta forte relação entre ecologia com “a justiça social e econômica” que “protege os vulneráveis e serve “aqueles que sofrem”(n.III,9 c). A encíclica atinge um de seus pontos altos ao afirmar “que uma verdadeira abordagem ecológica deve integrar a justiça para ouvir o grito da Terra e o grito dos pobres”(n.49; 53).
Tanto a Carta da Terra quanto a encíclica sublinam contra o senso comum vigente que “cada forma de vida tem valor, independentemente de seu uso para os humanos”(I, 1, a). O Papa reafirma “que todas as criaturas são interligadas e deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros”(n.42). Em nome desta compreensão faz uma vigorosa crítica ao antropocentrismo (nn.115-120), pois ele apenas vê a relação do ser humano para com a natureza usando-a e devastando-a e não vice-versa, esquecendo que ele faz parte dela e que sua missão é de ser o seu guardião e cuidador.

A Carta da Terra formulou uma definição de paz que é das mais felizes já realizadas pela reflexão humana:”a plenitude que resulta das relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, com outras culturas, com outras vidas, com a Terra e com o Todo do qual somos parte”(16, f). Se a paz, segundo o Papa Paulo VI, é “o equilíbrio do movimento”então o “equilíbrio ecológico deve ser “interior consigo mesmo, solidário com os outros, natural com todos os seres vivos e espiritual com Deus”(n.210). O resultado desse processo é a paz perene.

Estes dois documentos são faróis que nos guiam nestes tempos sombrios, capazes de nos devolver a necessária esperança da qua ainda podemos salvar a Casa Comum e a nós.

Leonardo Boff é colunista do JB online e membro da Iniciativa da Carta da Terra.



sexta-feira, 24 de julho de 2015

A AMIZADE: FORMA MAIOR DO AMOR

Por Maria Clara Bingemer



            Amigo é coisa pra se guardar...debaixo de sete chaves... já cantava Milton Nascimento com sua monumental voz.  Amigo é feito casa, que se faz aos poucos e com paciência para durar pra sempre... afirma Zélia Duncan...Amigo é pra essas coisas... cantava o MPB4 nos meus tempos de menina.

            No Brasil não se comemora tanto o Dia do Amigo.  Não é assim em outros países, como a Argentina e o resto da América hispânica.  A data é bem celebrada e amigos se paparicam uns aos outros, jantam fora, se dão presentes etc.  Já o grande escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que a única virtude de seus conterrâneos é o vício da amizade.  E é verdade – eu concordo porque tenho marido portenho. Os argentinos são convencidos, selvagens no futebol e muitas coisas mais.  Mas quando são amigos, demonstram lealdade a toda prova e morrem por você.

            Na realidade, a amizade tem tudo a ver com o amor e é deste uma das formas mais excelentes e profundas.  A palavra tal como a pronunciamos deriva do latim “amicus” (amigo), que possivelmente se derivou de amor, amar. É uma relação afetiva profunda entre pessoas sem características romântico-sexuais. Envolve conhecimento mútuo e afeição, e supõe lealdade até a morte, até o ponto do altruísmo e do sacrifício. Pode e efetivamente acompanha igualmente relações de outro tipo: entre pais e filhos, entre irmãos e mesmo entre namorados e cônjuges.

            Envolve um tanto de gratuidade e dedicação, e de aceitação do outro tal como ele é.  Amigos podem ser diferentes, mas se aceitam e se acolhem com todas as suas diferenças, amando-as e não rejeitando-as. Por isso, os amigos são pessoas que se conhecem muito entre si, mais que os próprios familiares e cônjuge.  São depositários de toda a confiança recíproca e muitas vezes são confidentes privilegiados.

            Esta é a razão pela qual a amizade é cantada pela música, celebrada pela poesia e santificada pelas religiões.  Seu valor é ser uma experiência humana de vital importância.  A Bíblia narra e comenta casos de amizade prototípicos que inspiraram a humanidade ao longo dos séculos.  No primeiro livro de Samuel, a amizade entre Davi, que depois seria rei, e Jonatas, filho do rei Saul, é uma dessas. E o glorioso rei Salomão  escreveu a sabedoria da Amizade em seus Provérbios: "Em todo o tempo ama o amigo, e na angustia se faz o irmão"

No Novo Testamento, Jesus de Nazaré exalta a amizade – philia – e a cita como exemplo de sua relação com os discípulos.  “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai.” Pronuncia essas palavras ao comparar-se a uma videira da qual os discípulos são os ramos e Deus Pai o agricultor.  E acrescenta:  “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos...Vós sois meus amigos, se fazeis o que vos mando.”

Já na Antiga Grécia, o termo “philia” – o mesmo que emprega o Novo Testamento – é traduzido geralmente como “amizade” e, às vezes, também como “amor”. Aristóteles dá vários exemplos de “philia”, desde amantes até membros da mesma comunidade religiosa, mas destaca os amigos para toda a vida. E o Estagirita não deixa de sublinhar que se trata de uma experiência eminentemente humana, e não pode ser vivida com animais, sendo possível apenas usar o termo “philia” com animais de estimação.

O conteúdo central da “philia” é, portanto, o de fazer bem a alguém e também recebê-lo de alguém.  Aristóteles ainda ousa acrescentar que a “philia” é necessária como um meio para atingir a felicidade, afirmando literalmente: “Ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo se tiver todos os outros bens”.

Assim tenta explicar Jesus de Nazaré aos discípulos quanto os ama e quanto os considera seus amigos.  E isso certamente não é pelas virtudes desses: o covarde Pedro, o traidor Judas, os violentos filhos de Zebedeu, o corrupto Mateus e os outros que nada entendiam por mais que ele explicasse.

Ser amigo é assim.  É amar pelo que o outro é, com virtudes e defeitos.  E por isso é tão bela a amizade, ungida inclusive pela vivência e ensinamento do Filho de Deus Encarnado.  Amigos devem ser os cônjuges senão nada sobrará da ardente paixão dos primeiros tempos.  E os namorados, para que o namoro dure e se transforme em união durável.  E os pais, porque senão os filhos crescem e vão querer partir e não dar mais notícias. E os irmãos, senão no momento da herança se engalfinharão de maneira lamentável.

E os simplesmente amigos... bênção maior da vida, que são como casa que se faz aos poucos, tesouro a se guardar debaixo de sete chaves, alguém com quem contar em qualquer momento, mão estendida quando todos se foram. 

Bendito seja Deus pela amizade.  E benditos os amigos que ao longo da vida me amam como sou e não como desejariam que eu fosse.  Obrigada de coração a todos vocês.  E vocês sabem que podem contar comigo.  Sempre... Para o que der e vier.

 A teóloga é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco. 

 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 23 de julho de 2015

SAUDADES REMOTAS


Por Frei Betto



     Velhos têm saudades remotas. Talvez não se lembrem onde deixaram os óculos ou em que gaveta guardaram a última conta de luz. São capazes, no entanto, de recordar a infância e o dia em que ganharam de presente um cavalinho de pau.

     Quem sabe o próprio cérebro se retorce na direção do passado, como o último olhar do navegante desterrado de sua pátria. Sim, guardo na memória a foto de meus sapatos de solas de pneu, o uniforme escolar recendendo a sabão de coco, os cadernos e os livros disciplinadamente encapados com papel encerado.

     Guardo saudades do milk-shake da lanchonete De Lucca, do picolé de chocolate da padaria Savassi, dos bondes a escorregarem pelos trilhos que teciam colares prateados pelas ruas arborizadas de Belo Horizonte.

      Tiro da memória retalhos imateriais: o respeito às mulheres e aos idosos, a quem os mais jovens cediam assento nos transportes coletivos; a veneração aos professores, mestres em ampliar conhecimentos e impor disciplina; a reverência aos valores espirituais; os domingos de missa obrigatória.

     Saudades de remar no lago do Parque Municipal, dos piqueniques à beira da lagoa da Pampulha, dos quintais a ensombrearem as casas desprotegidas do medo.

     Sinto o sabor do refrigerante Guarapan; do doce de leite servido nas feiras em copinhos de sorvete; dos pastéis de nata; das balas de coco recortadas a tesoura; e até do que o paladar rejeitava, como a Emulsão Scott à base de óleo de fígado de bacalhau.

      Saudades da infância despreocupada pelas ruas mal iluminadas, do matagal dos terrenos baldios, dos gibis e das figurinhas de coleção. Do trânsito desestressado, dos políticos que morriam pobres, dos trens revestidos de pujança e poesia.

     Recordo os carnavais de rua ao ritmo de uma graciosidade que ainda não se transformara em espetáculo; as procissões com suas Verônicas sensuais a enxugar o rosto macerado de Jesus; os desfiles de 7 de setembro em que os militares eram aplaudidos, desarmados do estigma da ditadura.

     De tanto sonhar com um futuro melhor, hoje me surpreendo acreditando que melhor foi o passado. Não havia crianças de rua, a escola pública era disputada pelas famílias abastadas, as drogas não ameaçavam, de terrorismo nem se falava.

     Vivia-se em um mundo encantado, respirava-se ar saudável, havia decoro.

     Ilusão ou era mesmo um mundo melhor? Não, naqueles tempos era inimaginável falar em proteção do meio ambiente, supor um presidente negro na Casa Branca ou um ex-metalúrgico no Alvorada. Não se concebia a Ásia e a África sem colônias europeias, nem a opinião pública indignada com trabalho escravo, desrespeito aos direitos humanos e políticos corruptos.

     Em muitos aspectos a humanidade piorou: hoje está mais desigual, injusta e beligerante. Trabalha-se por dinheiro, não por ideal. A competitividade supera a solidariedade, assim como a estética corporal predomina sobre a ética espiritual. Há mais religiosidade e menos espiritualidade.

     Contudo, prefiro guardar o pessimismo para dias melhores.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
    
Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso Perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.