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segunda-feira, 13 de julho de 2015

HIPÓCRATES EM AÇÃO NA CIDADE VIOLENTA


  Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
                                                       
              

         Não permaneceu muito tempo nas manchetes e nas seções destacadas dos jornais.  Sequer me lembro se foi mencionado no “Jornal Nacional”.  Como sempre, os meios de comunicação estavam obcecados com as últimas podridões dos podres poderes daqui e alhures: Lava-Jato, a manobra de Eduardo Cunha para reverter a votação contra a redução da maioridade penal, o drama da Grécia e a arrogância da Europa e do FMI, a última explosão do Estado Islâmico.  E etc etc etc.

        Noticiaram com destaque no dia, mas depois sumiu do noticiário.  E, no entanto, há muito tempo não leio uma notícia que me tenha tocado tanto o coração.  Trata-se da história de uma mulher honesta e trabalhadora, uma médica que se formou para ajudar e curar as pessoas e leva a sério sua missão.  Uma mulher que todos os dias toma um ônibus no bairro onde mora, para além da Barra da Tijuca, e vai trabalhar no Centro da cidade.

          Aquele era um dia que parecia igual a todos os outros.  Mas a tranquila igualdade foi interrompida quando três homens anunciaram o assalto dentro do ônibus onde ela estava.  E começaram a recolher o produto do roubo.  Relógios, celulares, dinheiro, alianças.  A carteira da médica também foi roubada.  Além de pistolas, os assaltantes tinham uma granada e faziam ameaças.

Mas as coisas tomaram outro rumo quando um dos passageiros  -  um policial civil - atirou nos bandidos.

       A doutora Simone, médica por ideal e por vocação, sofria neste momento seu décimo assalto.  Era uma cidadã carioca acostumada a passar por esse tipo de constrangimento tão comum, infelizmente, em nossa cidade. De pontaria  certeira, o policial derrubou dois  bandidos, ferindo-os gravemente, enquanto o terceiro fugia.

Mas enquanto um deles jazia no chão, o outro caía no colo de Simone, manchando suas roupas de sangue.  Mas essa foi sua última preocupação.  O olhar de profissional e as mãos acostumadas a detectar sinais vitais perceberam que o homem estava vivo.  E ela começou a socorrê-lo da maneira que sabia e podia naquela circunstância.

Os passageiros desceram do ônibus, aliviados de haverem escapado com vida. Simone também saiu, mas voltou.  Não podia deixar de atender um homem ferido e ainda com vida.  Pediu uma luva ao motorista e mandou chamar os bombeiros.  E ali ficou, prestando socorro ao assaltante ferido até que o socorro chegasse.  

Aos jornalistas que cobriram o fato e a entrevistaram, surpresos dela ter prestado cuidados ao bandido que a assaltou,  Simone respondeu com naturalidade e convicção.: “Foi por dever de médica e de ser humano. Quando percebi que ele estava vivo, pedi para o policial me emprestar a luva e ligar para os bombeiros, que chegaram logo. Ele estava com vida ainda e onde tem vida, a medicina tem que atuar.”

 Em tempos em que a medicina às vezes é exercida como um comércio, ou mesmo um tráfico de pessoas, de órgãos; em tempos onde certos médicos abusam dos e das pacientes de maneira revoltante, aproveitando-se de sua situação de fragilidade; é edificante e reconfortante encontrar uma médica como Simone, que leva a sério o juramento de Hipócrates, que um dia prestou.

"Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: 

...Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. 
A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substãncia abortiva.  

Conservarei imaculada minha vida e minha arte. 

Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam. Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados. 

Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto... “

Perguntada se tinha esperança em sua cidade, tão violenta, Simone deu a resposta dos justos que têm a consciência tranquila: “...tinha uma vida ali. Não importa quem seja, não sou eu quem vou julgar. Eu acredito no Rio, no carioca, no brasileiro, a gente tem jeito, cara”.

Enquanto houver pessoas como você, Simone, certamente a cidade tem jeito e podemos continuar a ter esperança no ser humano.


A teóloga é  professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e
autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
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