Por Maria Clara
Lucchetti Bingemer
Não
permaneceu muito tempo nas manchetes e nas seções destacadas dos jornais.
Sequer me lembro se foi mencionado no “Jornal Nacional”. Como sempre, os
meios de comunicação estavam obcecados com as últimas podridões dos podres
poderes daqui e alhures: Lava-Jato, a manobra de Eduardo Cunha para reverter a
votação contra a redução da maioridade penal, o drama da Grécia e a arrogância
da Europa e do FMI, a última explosão do Estado Islâmico. E etc etc etc.
Noticiaram
com destaque no dia, mas depois sumiu do noticiário. E, no entanto, há
muito tempo não leio uma notícia que me tenha tocado tanto o coração.
Trata-se da história de uma mulher honesta e trabalhadora, uma médica que se
formou para ajudar e curar as pessoas e leva a sério sua missão. Uma
mulher que todos os dias toma um ônibus no bairro onde mora, para além da Barra
da Tijuca, e vai trabalhar no Centro da cidade.
Aquele
era um dia que parecia igual a todos os outros. Mas a tranquila igualdade
foi interrompida quando três homens anunciaram o assalto dentro do ônibus onde
ela estava. E começaram a recolher o produto do roubo. Relógios,
celulares, dinheiro, alianças. A carteira da médica também foi
roubada. Além de pistolas, os assaltantes tinham uma granada e
faziam ameaças.
Mas as coisas tomaram
outro rumo quando um dos passageiros - um policial civil - atirou
nos bandidos.
A doutora Simone, médica por ideal e por vocação, sofria neste momento seu
décimo assalto. Era uma cidadã carioca acostumada a passar por esse tipo
de constrangimento tão comum, infelizmente, em nossa cidade. De pontaria certeira,
o policial derrubou dois bandidos, ferindo-os gravemente, enquanto o
terceiro fugia.
Mas enquanto um deles
jazia no chão, o outro caía no colo de Simone, manchando suas roupas de
sangue. Mas essa foi sua última preocupação. O olhar de
profissional e as mãos acostumadas a detectar sinais vitais perceberam que o
homem estava vivo. E ela começou a socorrê-lo da maneira que sabia e
podia naquela circunstância.
Os passageiros desceram do
ônibus, aliviados de haverem escapado com vida. Simone também saiu, mas
voltou. Não podia deixar de atender um homem ferido e ainda com
vida. Pediu uma luva ao motorista e mandou chamar os bombeiros. E
ali ficou, prestando socorro ao assaltante ferido até que o socorro
chegasse.
Aos jornalistas que
cobriram o fato e a entrevistaram, surpresos dela ter prestado cuidados ao
bandido que a assaltou, Simone respondeu com naturalidade e convicção.:
“Foi por dever de médica e de ser humano. Quando percebi que ele estava vivo,
pedi para o policial me emprestar a luva e ligar para os bombeiros, que
chegaram logo. Ele estava com vida ainda e onde tem vida, a medicina tem que
atuar.”
Em tempos em que a
medicina às vezes é exercida como um comércio, ou mesmo um tráfico de pessoas,
de órgãos; em tempos onde certos médicos abusam dos e das pacientes de maneira
revoltante, aproveitando-se de sua situação de fragilidade; é edificante e
reconfortante encontrar uma médica como Simone, que leva a sério o juramento de
Hipócrates, que um dia prestou.
"Eu juro, por Apolo
médico, por Esculápio, Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses
e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se
segue:
...Aplicarei os regimes
para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano
ou mal a alguém.
A ninguém darei por
comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo
não darei a nenhuma mulher uma substãncia abortiva.
Conservarei imaculada
minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha,
mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que
disso cuidam. Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes,
mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo dos
prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou
escravizados.
Àquilo que no exercício ou
fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou
ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente
secreto... “
Perguntada se tinha
esperança em sua cidade, tão violenta, Simone deu a resposta dos justos que têm
a consciência tranquila: “...tinha uma vida ali. Não importa quem seja, não sou
eu quem vou julgar. Eu acredito no Rio, no carioca, no brasileiro, a gente tem
jeito, cara”.
Enquanto houver pessoas
como você, Simone, certamente a cidade tem jeito e podemos continuar a ter
esperança no ser humano.
A teóloga é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio e
autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão" (Edusc)
Copyright 2015 – MARIA
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