Por Eduardo Hoornaert
"Com o papa Francisco voltamos a Francisco de Assis,
universalista ao ponto de pregar para peixes e pássaros, e, mais adiante,
a Jesus de Nazaré, que convida cobradores de impostos à sua casa para
comer juntos atende a uma mulher siro-fenícia que não pertence ao ‘povo
eleito’ e permite que uma mulher derrame óleo precioso sobre sua
cabeça"
O cristianismo nasceu
universal, sob os impulsos da postura universal de Jesus de Nazaré que não
tomava em consideração se alguém era judeu ou não judeu, pecador ou ‘justo’,
homem ou mulher, mas tratava a todos e todas de modo igual, independente de
gênero, nacionalidade, situação social, cultural ou econômica. Com isso, ele
colocou as bases para o universalismo cristão, marca registrada da novidade
trazida pelo profeta galileu.
Mas, na medida em que o cristianismo cresceu, perdeu-se o
senso do universalismo. A igreja começou a formar um ‘rebanho de fieis’, lutar
contra ‘infiéis’ e ‘hereges’ e formatar paróquias para proteger os fiéis contra
influências maléficas de fora. Perdeu-se o senso universalista. Quanto mais a
igreja cresceu, tanto mais ela agiu como se o mundo inteiro fosse seu
território e que ela pudesse fazer valer suas leis para a humanidade toda.
Correndo atrás de poder e prestígio, ela perdeu um dos mais
preciosos tesouros do legado de Jesus de Nazaré: a capacidade de se
dirigir com amor e desinteresse a todas as pessoas que habitam este planeta.
Ela se envolveu em guerras (como as Cruzadas contra o Islã, uma religião irmã)
e perseguições, chegando ao ponto de legitimar a tortura (na Inquisição) e a
escravidão (ao longo das colonizações europeias).
Nesse contexto é importante que
surjam pessoas públicas que aproveitam de sua posição privilegiada para
reavivar entre nós o senso perdido do universalismo.
·
No século XX tivemos figuras como Mahatma Gandhi, que aproveitou da
grande visibilidade que a imprensa mundial lhe deu para difundir amplamente a ideia do universalismo (foi
morto por um fanático que não entendeu nada).
- · Tivemos Nelson Mandela, presidente da República da África do Sul,
- · tivemos Martin Luther King, pastor batista,
- · tivemos Helder Camara, arcebispo católico.
Essas pessoas aproveitaram da
visibilidade que os meios de comunicação lhes forneciam para difundir o
evangelho do universalismo, cada um num determinado setor.
Hoje, entram novos atores a divulgar esse evangelho.
·
Temos o líder grego Alexis Tsipras da Syriza, um político situado num determinado
contexto, que divulga uma mensagem que vale para o mundo inteiro: a política não deve servir aos bancos, mas
aos cidadãos.
Mas temos igualmente líderes que aparecem quase diariamente
nos grandes meios de comunicação, mas
que não se dirigem à humanidade como um todo, como
- · Barack Obama, que só fala em benefício dos Estados Unidos,
- · e Ángela Merckel, que só age em benefício da Alemanha.
É com alegria que se percebe que o papa Francisco vem se juntar aos líderes que enxergam a
realidade universal em vez de olhar somente para seu ‘rebanho’.
A publicação de sua Carta Encíclica (carta circular) ‘Laudato si’ é um sinal
inconfundível dessa nova postura.
Pelo que sei, nenhum papa, ao longo dos séculos, se dirigiu
a todas as pessoas que vivem neste planeta sem nenhum tipo de discriminação.
O título da Carta já diz tudo: ‘Carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum’. O
planeta terra é nossa casa comum, a casa de todos e de todas.
Ao longo da Carta, o papa escreve ´nós´, ou seja, envolve seus leitores e suas leitoras numa comunhão
de leitura e observação. De vez em quando, ele escreve ‘eu’ (não ´nós’, segundo
tradicional protocolo papal), quando
enuncia uma opinião pessoal.
Isso faz com que estejamos dialogando com Francisco quando
lemos sua Carta. Significativamente, o papa assina o documento com seu nome,
numa só palavra: ´Franciscus´.
Francisco deseja conversar conosco de igual para igual, pois
faz ponderações sobre temas que nos atingem a todos e todas, desde o papa até o
mais ferrenho ateu:
- · o clima,
- · a água,
- · a biodiversidade,
- · a sujeira dos rios e dos córregos,
- · a qualidadede vida,
- · a degradação social,
- · a desigualdade planetária, etc.
Repito: papa
Francisco não escreve como líder da igreja católica, embora seja verdade que
ele está na posição privilegiada de poder divulgar suas ideias num raio muito
amplo. Ele se aproveita disso, como toda razão. Afinal, o papado não é um
serviço prestado a toda a humanidade?
Todos e todas necessitamos de
- · ar puro (não o ar que se respira em São Paulo),
- · água pura e suficiente,
- · eletricidade produzida por água,
- · pão e feijão produzidos por plantas sadias (não como muitos produtos nos Supermercados),
- · terra para plantar (não para enriquecer os que já têm dinheiro demais),
- · respeito (inclusive para homossexuais etc.),
- · liberdade (não a falsa liberdade de imprensa defendida pela Globo),
- · dignidade (dos indígenas, negros, mulheres domésticas).
É uma
coisa só, um bloco só. Um dos pontos mais inovadores da Carta papal consiste no
fato que ele alinha problemas ecológicos e problemas sociais e culturais.
Afinal, o universalismo é uma atitude global.
Com o papa Francisco voltamos a Francisco de Assis, universalista ao ponto de pregar para peixes e
pássaros, e, mais adiante, a Jesus
de Nazaré, que
- · convida cobradores de impostos à sua casa para comer juntos, como se descreve no Evangelho de Marcos (Mc 2, 15-20),
- · atende a uma mulher siro-fenícia que não pertence ao ‘povo eleito’ (Mc 7, 24-30)
- · e permite que uma mulher derrame óleo precioso sobre sua cabeça (Mc 14, 60 sqq).
Um universalismo que passa por cima de todas as barreiras.
Com a
Carta encíclica do papa Francisco se abre uma perspectiva que para muitos
cristãos parece nova, mas que na realidade pertence ao DNA do movimento de
Jesus.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário