O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

ESPERANÇA: INDIGNAÇÃO E CORAGEM




Por Leonardo Boff

Vivemos no Brasil nos últimos dois anos dois grandes golpes: o primeiro, o impeachment e a deposição de Dilma Rousseff e neste ano de 2018 a ascensão da extrema-direita com a eleição de Jair Bolsonaro a presidente do Brasil.

Não foi Bolsonaro que ganhou. Foi o PT que perdeu e com ele o Brasil.

1.Vivemos tempos sombrios e incertos

Vivemos tempos sombrios e incertos. Internacionalmente somos motivo de vergonha e de escárnio. Não sabemos sequer que futuro nos espera. A estrutura de governo que até agora se montou, particularmente no Ministério das Relações Exteriores e no da Educação nos desenham um quadro perturbador. No lugar da partidização dos cargos do Estado está ocorrendo uma militarização de seus principais postos.

Os militares não precisaram dar um golpe. O ex-capitão Bolsonaro os chamou para dentro do Governo. Como estamos sem horizonte, ficamos perplexos e muitos tomados de desesperança.

2.. Resgate da utopia e das utopias minimalistas

Num contexto assim, antes de falar de esperança, temos que resgatar a dimensão da utopia. A utopia não se opõe à realidade, antes pertence a ela, porque esta não é feita apenas por aquilo que é feito e dado, o que está aí palpável. Mas por aquilo que ainda pode ser feito e dado, portanto por aquilo que é potencial e viável não é ainda visível.

A utopia nasce deste transfundo de potencialidades presentes na história, em cada povo e em cada pessoa. O renomado filósofo alemão Ernst Bloch introduziu a expressão principio-esperança. Ele é mais que a virtude da esperança; emerge como uma fonte geradora de sonhos e de ações. O princípio esperança representa o inesgotável potencial da existência humana e da história que permite dizer não a qualquer realidade concreta, às limitações de nossa condição humana, aos modelos políticos e às barreiras que cerceiam o viver, o saber, o querer e o amar. E dizer sima formas novas ou alternativas de organização social ou de plasmação de qualquer projeto. O não é fruto de um sim prévio e anterior.

Hoje podemos afirmar que as grandes utopias, as utopias maximalistas, do iluminismo (dar cultura letrada a todos), do socialismo (fazer que o nós prevaleça sobre o eu) e também do capitalismo (o eu prevalecer sobre o nós) entraram numa profunda crise. Nunca realizaram o que prometiam: nem todos participam da cultura letrada, a maioria não assistiu a distribuição equitativa e justa dos bens e a riqueza foi somente de pequenos grupos e não das maiorias. Mais ainda: todas estas utopias degradaram a Casa Comum pela super-exploração, e produziram um mar de pobreza, de injustiça social e de sofrimento evitável no lugar de benefícios para todos.

Somos obrigados a nos volver paras utopias minimalistas, aqueles que, não podendo mudar o mundo, podem, no entanto, melhorá-lo.
As utopias minimalistas são aquelas que foram implementadas pelos governos Lula-Dilma e seus aliados com base popular que agora pelo governo de ultra-direita seguramente serão desmontadas.

A nível das grandes maiorias são verdadeiras utopias mínimas viáveis: receber um salário que atenda as necessidades da família, ter acesso à saúde, mandar os filhos à escola, conseguir um transporte coletivo que não tire tanto tempo de vida, contar com serviços sanitários básicos, dispor de lugares de lazer e de cultura e com uma aposentadoria suficiente para enfrentar os achaques da velhice.

A consecução destas utopias minimalistas cria a base para utopias mais altas: aspirar que a nação supere relações de ódio e de exclusão,que os povos se abracem na fraternidade, que não se guerreiem, se unam todos para preservar este pequeno e belo planeta Terra, sem o qual nenhuma outra utopia seria possível.

3.Resgatar a força política da esperança

A vitória de Bolsonaro é fruto de uma imensa e bem tramada fraude: suscitando o anti-petismo, colocando a corrupção endêmica no país, como se fosse coisa só do PT, defendendo alguns valores de nossa cultura tradicionalista e atrasada, ligada a um tipo de família moralista e de uma compreensão distorcida da questão de gênero, alimentando preconceitos contra os indígenas, os quilombolas, os homoafetivos, os LGBTI e divulgando milhões milhões de fake news, caluniando e difamando o candidato Fernando Haddad. Informações seguras constataram que cerca de 80% das pessoas que receberam tais falsas notícias acreditaram nelas.

Por trás do triunfo da extrema-direita atuaram forças do Império, particularmente, da CIA como o mostraram vários analistas da área internacional, as classes dos endinheirados, herdeiros da Casa Grande, no sentido de preservar seus privilégios, parte do Ministério Público, do grupo ligado ao Lava-Jato, parte do STF e com expressiva força a imprensa empresarial conservadora que sempre apoiou os golpes e se sente mal com a democracia.

A consequência é o descalabro político, jurídico e institucional. É falacioso dizer que as instituições funcionam. Funcionam seletivamente para alguns. Todas elas estão contaminadas pela corrupção e pela vontade de afastar Lula e o PT da cena política. A justiça foi vergonhosamente parcial especialmente o foi pelo justiceiro juiz federal de primeira instância Sérgio Moro que tudo fez para pôr Lula na prisão,mesmo sem materialidade criminosa para tanto. Ele sempre se moveu não pelo senso do direito, mas pelo law fare (distorção do direito para condenar o acusado) e pelo impulso de raiva e por convicção subjetiva. Diz-se que estudou em Harvard. Fez apenas quatro semanas lá, no fundo para encobrir o treinamento que recebeu nos órgãos de segurança dos USA no uso da law fare.

Conseguiu impedir que Lula fosse candidato à presidência já que contava com a maioria das intenções de voto e até lhe sequestraram o direito de votar. A vitória fraudulenta de Bolsonaro (por causa dos milhões de fake news) legitimou uma cultura da violência. Ela já existia no país em níveis insuportáveis (mais de 62 mil assassinatos anuais). Mas agora ela se sente legitimada pelo discurso de ódio que o candidato e agora presidente Bolsonaro soube alimentar durante a campanha. Tal realidade sinistra, trouxe como consequência um forte desamparo e um sofrido vazio de esperança.

Este cenário adverso ao direito e a tudo o que é justo e reto, afetou nossas mentes e corações de forma profunda. Vivemos num regime de exceção, num tempo de pós-democracia ( juiz no Rio, Rubens Casara). Agora importa resgatar o caráter político-transformador da esperança e da resiliência, as únicas que nos poderão sustentar no quadro de uma crise sem precedentes em nossa história. Temos que dar a volta por cima, não considerar a atual situação como uma tragédia sem remédio, mas como uma crise fundamental que nos obriga a resistir, a aprender das contradições e a sair mais maduros, experimentados e seguros para rasgar um novo caminho mais justo, democrático, popular e includente para o Brasil.

Referimo-nos ao princípio esperança já citado anteriormente, que é aquele impulso que nos habita a sempre nos mover, projetar sonhos e utopias e dos fracassos nos permitir tirar sábias lições e nos tornar mais fortes na resiliência, na resistência e na luta.

As duas formosas irmãs da esperança

A  Santo Agostinho (353-450 da era cristã), talvez o maior gênio cristão e africano de Hipona, hoje Argélia, grande formulador de frases, nos vem esta sentença: “a esperança tem duas belas e queridas filhas: a indignação e a coragem; a indignação para recusar as coisas como estão aí; e a coragem, para mudá-las”.

Nesta fase de nossa história, devemos evocar, em  primeiro lugar, a filha-indignação contra o que o futuro governo de Bolsonaro está e ainda irá perpetrar criminosamente contra o povo, contra os indígenas, contra os negros, contra os quilombolas, contra a população do campo, contra as mulheres, contra os sem-teto, e os sem-terra (MST) criminalizando-os como terroristas, os trabalhadores e contra os idosos, tirando-lhes direitos e rebaixando milhões que da pobreza estão passando para a miséria.

Nem escapa a autonomia nacional, pois o governo ofendendo nossa soberania, está permitindo vender terras nacionais a estrangeiros e mostrando um humilhante alinhamento à estratégia direitista e militarista do governo norte-americano de Trump.

Se o governo ofende o povo, este tem direito de evocar a filha-indignação e de não lhe dar paz. Deve denunciar, resistir e pressionar o mais que puder para mudar dos rumos da política.

A filha-coragem se mostra na vontade de mudanças, não obstante os enfrentamentos que poderão ser calorosos. É ela que nos manterá animados, nos sustentará na luta e poderá nos levar a mudanças substantivas. É imperioso voltar às bases populares, de onde nasceu o PT, criar escolas de formação política, passar de beneficiarios de projetos governamentais de inclusão a cidadãos ativos que se organizam, elaboram pressões, saem às ruas e apresentam projetos alternativos aos oficiais que deem centralidade aos mais pobres e vulneráveis e se decidam por um outro tipo de democracia participativa e ecológica.

Lembremo-nos do conselho de Dom Quixote:”no hay que aceptar las derrotas sin antes dar todas las batallas”: “Não devemos aceitar as derrotas sem antes dar todas as batalhas”.

Há um dado que devemos sempre tomar em conta: é evocar o primeiro artigo da constituição que reza: ”todo o poder emana do povo”. Governantes, deputados e senadores são apenas delegados do povo. Quando estes atraiçoam e não representam mais os interesses gerais mas os do mercado voraz, e de grandes grupos corporativos nacionais e internacionais que só conhecem a competição e desconhecem ao que é mais humano em nos que é a colaboração e solidariedade, o povo tem direito de reclamar por um empeachment e buscar formas legais de afastá-lo de poder.

As duas belas filhas da esperança poderão fazer  sua a frase do escritor argelino-francês Albert Camus, autor do famoso romance A Peste: ”Em meio ao inverno, aprendi que bem dentro de mim, morava um verão invencível”.

O povo brasileiro, em seu momento, assim esperamos, fará sentir dentro de si este verão invencível, fruto de uma rebelde esperança. Será o resgate da democracia contra a impostura do governo Bolsonaro e de seus seguidores e um pilar para refundação de nosso país sobre outros valores e sobre bases mais humanitárias e participativas.

A esperança não é apenas um princípio, quer dizer, um dado da essência humana. Ela é também uma virtude cristã, junto com a fé e o amor. A esperança, de certa forma, está na base da vida. Podemos perder a fé e continuamos a viver. Podemos perder o amor de nossa vida e nos realizarmos num outro. Mas quando perdemos a esperança, estamos a um passo do suicídio porque a vida perdeu sentido e o futuro não possui mais nenhum horizonte com uma luz orientadora. Dominam as trevas.

A esperança no Novo Testamento

Curiosamente, os Evangelhos nunca falam de esperança. Logicamente, havia no povo eleito, a esperança pela vinda do Messias libertador. Ela ocorre uma vez na epístola de São João (1 Jo, 3,3), 4 vezes na epístola aos Hebreus e 3 vezes na primeira epístola de São Pedro. Mas é uma virtude muito presente nos Atos dos Apóstolos (7 vezes) e frequentemente nas cartas de São Paulo. Bem escreve na Epístola aos Romanos que Abraão teve “uma esperança contra toda esperança, de ser pai de muitas nações”(4,18). Numa outra passagem diz que “a esperança nunca engana pois o amor está em nossos corações”(5,5).

Cristo nos salvou. Mas peregrinamos no mundo longe de Deus. Por isso afirma São Paulo: “é na esperança que somos salvos”(Rom 8,24). Aos Efésios fala que num certo tempo “vivíamos sem esperança e sem Deus”(2,12) e agora pelo sangue de Cristo pertencemos ao Messias.

Embora não se use frequentemente a palavra esperança, a realidade da esperança para os cristãos foi, é e será Jesus Cristo vivo, morto e ressuscitado. Por ele Deus mostrou   que a promessa de salvação e de libertação da criação e da humanidade nunca desvaneceu. Nele, pela ressurreição, estamos seguros de que a esperança jamais nos defraudará e que por ela se antecipou o fim bom da criação, do destino humano e do universo.

Devemos somar as energias da esperança, daquela que está sempre presente em nosso ser com aquela que é uma virtude cristã. Ambas se dão as mãos. Elas nos enriquecem com as energias para suportar as aflições do tempo presente mas muito mais nos dão a coragem para enfrentá-las e inaugurar um novo caminho.

Talvez nunca em nossa história temos precisado tanto das duas formas de esperança como agora, pois os tempos são maus e somos governados por forças poderosas do ódio, da exclusão, da falsidade, da violência e da mentira.

Que o Espírito que é esperança dos pobres não nos deixe desanimar mas nos acompanhe com sua Energia divina para sermos fiéis ao sonho de Jesus. Ele veio para nos ensinar a viver os bens do Reino: do amor, da justiça,da compaixão com os pobres, do perdão e da total confiança no poder de Deus, “apaixonado amante da vida”(Sb 11,2 6).

(Palestra dada no dia 2 de dezembro de 2018 em Belo Horizonte a um numeroso grupo de políticos que assumem a fé cristã como fonte de ética e de inspiração para os ideais democráticos, grupo este organizado pelo ex-deputado Durval Angelo de Andrade e atualmente membro do Tribunal de Contas do Governo de Minas Gerais)

Leonardo Boff, teólogo e assessor de movimentos sociais.


quinta-feira, 29 de novembro de 2018

CAVALOS DA RAZÃO E DA PAIXÃO



 Frei Betto

      Diziam os gregos antigos que somos como cocheiros de carruagens tentando controlar dois cavalos, o da razão e o da paixão. Cada um puxa para um lado. O cocheiro procura manter o equilíbrio entre eles.
      As decisões que envolvem a emoção são mais difíceis de serem tomadas do que as que envolvem apenas a razão. A neurociência explica. Na decisão racional, o cérebro ativa os córtices pré-frontal dorsolateral, pré-frontal ventrolateral e o parietal. Na emocional, se estabelece uma intrincada conexão entre os córtices cingulado anterior, pré-frontal medial, orbitofrontal, a amídala e o tronco encefálico.
      A guerra, por exemplo, suscita comoção. Por isso, durante a do Vietnã, a Casa Branca perdia prestígio a cada novo caixão desembarcado nos EUA. Utilizou-se, então, a UTI para prolongar ao máximo a agonia dos pacientes, de modo a não morrerem antes de tocar o solo pátrio. Assim não eram contabilizados como mortos em território inimigo.
      Mais tarde, na guerra do Iraque, Bush tomou uma posição mais drástica. Para evitar comoção na opinião pública proibiu que os caixões fossem vistos pela mídia. Assim, o número de soldados usamericanos mortos se resumia a uma fria estatística.
      A tensão entre o racional e o emocional é perfeitamente manifestada quando se trata de nossas próprias decisões. Um diretor de empresa reduz o número de empregados ao assinar-lhes a demissão, a fim de poupar custos. Porém, se um dos empregados é seu afilhado pode ser que, por isso, não seja cortado. 
      O envolvimento emocional provoca o nepotismo. O político emprega na máquina pública parentes, amantes e amigos, não por terem competência, e sim por estarem emocionalmente vinculados a ele.
      Hoje, o poder já não se empenha em evitar a violência, da qual tem o monopólio legal. Procura apenas aplacar o impacto emocional das decisões que induzem à violência. Usa drones para assassinar supostos terroristas no Afeganistão e na Somália e, assim, poupa soldados que poderiam morrer no enfrentamento com o inimigo. 
      O mesmo raciocínio lógico, frio e implacável induziu a Casa Branca a promover, sem a menor dose de culpa, o maior atentado terrorista de todos os tempos: as bombas atômicas que, em 1945, dizimaram Hiroshima e Nagasaki. Nenhum dos envolvidos na monstruosa decisão tinha parentes ou conhecidos naquelas cidades japonesas, o que tornou tudo mais fácil.
      Para nós, que comemos além do que devemos e necessitamos, as estatísticas do número de famintos no mundo são apenas dados frios no noticiário. Não temos parentes que passam fome e jamais vimos a mãe de crianças raquíticas oferecer aos filhos lagartos e insetos.
          É essa cultura “clean”, fria, que o neoliberalismo tenta nos incutir para ficarmos insensíveis aos dramas alheios e centrados no próprio umbigo. Cabe à educação associar razão e paixão, e suscitar empatia e solidariedade. O mundo virtual não pode ser a nossa caverna de refúgio e omissão. É preciso quebrar as suas fronteiras e mergulhar no mundo real, única forma de assegurar a nossa sensibilidade a tudo que é humano e às dádivas da natureza.

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.
 Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com

terça-feira, 27 de novembro de 2018

REORGANIZAR A ESPERANÇA





Por Marcelo Barros

A partir do próximo domingo, as Igrejas cristãs mais antigas do Ocidente entram no que chamam de “tempo do Advento”. São quatro semanas nas quais as comunidades são chamadas a reavivar a esperança fundamental que temos na vida. É importante ligar isso com a celebração anual do Natal, como festa da renovação da humanidade, simbolizada em Jesus. O objetivo é nos alimentar na esperança de um mundo renovado.
Para quem crê, a esperança não consiste apenas em aguardar algo que se deseja e sim em viver de acordo com aquilo que se espera. Na etimologia do termo latino (spes), a esperança significa tornar presente agora aquilo que é desejado ou esperado para amanhã.  A esperança nada tem a ver com a ilusão do futuro. Ao contrário, a verdadeira esperança nos enraíza no presente, no aqui e agora, para nos abrir à plenitude do que podemos ser.

Assim a esperança nos transforma, como também transforma o mundo. É claro que não estamos falando de uma esperança qualquer. No caso de uma comunidade judaica ou cristã, a esperança é o próprio coração da fé. O que se espera não é fruto de nossa imaginação ou de nossos desejos. O objeto da esperança é o que Deus quer e prometeu para a humanidade. As culturas humanas podem dar nomes diferentes. Os povos indígenas chamam de “bem-viver”. Os evangelhos chamam de “reinado divino”. 

Assim sendo, essa esperança é muito característica da fé bíblica. Ela não depende da conjuntura favorável. Não pode ser prisioneira de nossas vitórias ou conquistas. Nem refém dos resultados. Se assim fosse, deixaria de ser a esperança que nos faz orar cada dia: “Venha a nós o teu reino”.

A esperança que Deus deposita em nós é humilde, pobre e teimosa. Sofrida e rebelde como a esperança dos profetas e do profeta Jesus. Como a esperança da mãe-Terra, que em meio aos ataques do sistema opressor, geme de dor. No entanto, não deixa nunca de gerar flores e sinais de vida nova. Nossa esperança se realiza aqui e agora, mas é movida pelo Infinito e se dirige ao Infinito. É dom do Espírito e a ela nunca poderemos renunciar ou rejeitar. Ao contrário, ela é a teimosia de saber que nossa luta é invencível. Que podemos ter perdido algumas batalhas e ainda perder outras, mas a luta continua e, como dizem os índios em Chiapas, sul do México: "Nós somos um exército de sonhadores. Por isso somos invencíveis".

É compreensível que nosso olhar sobre o Brasil atual, principalmente depois dessas eleições e sobre o próprio mundo, nos traga a tentação da desesperança. Diante das notícias cotidianas que nos assaltam, muita gente mais consciente se sente atordoada.

Isso torna mais urgente a nossa tarefa de reavivar a esperança, tanto dentro de nós mesmos, como em nossas relações familiares e sociais. Nas comunidades, é preciso realimentar a esperança como ensaio do reinado divino no mundo. Por isso, temos de partir da fé e desenvolver uma espiritualidade sócio-político libertadora. Isso significa viver a fé e a busca da intimidade com Deus não só no íntimo do coração, mas na luta por uma sociedade mais justa e por um mundo de acordo com o projeto divino.

Para quem participa de grupos cristãos, esse é o projeto do tempo do Advento. Temos de vivê-lo de modo que alimente nossa esperança e nossa atuação nas bases da sociedade e na inserção nos movimentos sociais. Nas Igrejas, é urgente retomarmos a ceia de Jesus, não apenas como culto piedoso e clerical, mas como alimento de comunhão e resistência. Assim, a ceia eucarística se tornará profecia antecipadora de um mundo de partilha e sinal maravilhoso de nosso bem-querer, movido pelo Espírito e que pode transformar o mundo. Será uma maravilha poder responder ao que o autor da primeira carta de Pedro propunha: “Estejam sempre prontos/as a prestar contas da esperança que existe em vocês” (1 Pd 3, 15).


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br


segunda-feira, 26 de novembro de 2018

A DIFÍCIL ARTE DO ENCONTRO



Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Após as eleições, paira no ar uma sensação de depressão pós-parto.  Tanto em vencedores como em vencidos. Os que tiveram seus candidatos eleitos esperam preocupados como se delineará a governabilidade.  Os primeiros gestos, decisões, semeiam mais insegurança que firmeza.  Desconcertam, angustiam. Parece que não se entende os rumos de um tempo diferente com outro estilo que começa.

Os que foram derrotados nas urnas se dividem.  Alguns optam pela oposição, resistência e combate cerrados.  Outros preferem esperar para verificar, pagar para ver ou até deixar que o adversário vencedor fracasse e mostre sua verdadeira cara.  Apostam que a governabilidade inexistirá e então a incompetência de uma vitória indevida mostrará sua verdadeira face de ilegitimidade e incapacidade de responder aos desafios e responsabilidades concedidos pelas urnas.

Em todo caso, o que temos é um país dividido, desencontrado.  Famílias se indispuseram ou até, em alguns casos, cortaram relações entre seus membros.  Amizades de anos foram interrompidas e palavras de acusação e raiva pronunciadas onde antes reinava harmonia e companheirismo. Relações foram perdidas e parece muito difícil refazê-las. Em suma, o panorama nacional mostra um tremendo desencontro.

Enquanto isso, o papa Francisco fala da importância de construir uma cultura do encontro. Não se trata certamente de um discurso piedoso e fácil adotado pelo pontífice para dizer a todos que se amem e respeitem sem nenhuma dificuldade ou obstáculo.  Longe disso.  Para o papa, a cultura do encontro é um estilo de vida e uma atitude, fruto de uma experiência e um itinerário pessoal, agora proposta à Igreja e à sociedade como um todo.

Diante da cultura do fragmento, da desintegração e da divisão é importante, afirma o pontífice, não favorecer os que pretendem capitalizar o ressentimento, o esquecimento das relações vividas e desfrutadas, ou os que se deleitam em debilitar vínculos e laços.  Esse seria, a seu ver, o caminho para superar os desencontros que sucedem na sociedade.

Tão importante é a construção da arte do encontro, que antes mesmo de Bergoglio o poetinha maior de nosso país, Vinicius de Moraes, disse: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”  Com sua imensa sensibilidade, queria o poeta ressaltar algo que é constitutivo e visceral no ser humano: sua vocação para a relação, para o afeto, o amor, aquilo que configura e realiza o que chamamos encontro.

Assim também parece entender o papa.  Quando ainda era arcebispo de Buenos Aires, Argentina, várias vezes se empenhou em instar a seus compatriotas a superar os desencontros e refundar os vínculos sociais, políticos, na abertura e na esperança. Agora, desde o Vaticano, onde lidera a Igreja e fala também ao mundo, Francisco não se cansa de repetir esse convite, que consiste em abrir-se à alteridade do outro, aproximar-se, vincular-se, construindo com esperança uma nova mentalidade, um novo estilo de vida, uma nova cultura, onde seja possível o encontro, o diálogo e a comunhão.

Há que admitir que é muito difícil.  A tentação do desânimo diante desta proposta vem carregada da pesada tinta da impossibilidade.  Como dispor-se ao encontro e ao diálogo com quem parece querer conduzir o país na direção oposta daquela em que acreditamos? Como apostar em um possível consenso com pessoas e grupos que parecem falar outra língua, oposto idioma àquele em que acreditamos, que detém os códigos comunicacionais da justiça, do direito, da paz e da prosperidade?

Mais: como fazer esta busca de encontro, consenso e acordo se transformar em verdadeira cultura, que procura o que une em lugar do que divide, e não recua diante de nenhum gesto, atitude ou palavra que possa fazer acontecer  a solidariedade e a comunicação? É duro acreditar que isso poderá ocorrer, sobretudo quando escrevo este artigo no momento seguinte à decisão que liquida com a presença dos médicos cubanos no Brasil e não há como não se pensar que uma represália política deixará na orfandade sanitária milhões de pessoas nos lugares mais pobres e vulneráveis do país.

É duro, porém mais que nunca necessário.  O encontro pode acontecer, mesmo com dificuldade, quando há ao menos um objetivo comum. E este existe e está diante de nossos olhos.  Todos queremos o bem do país.  Todos queremos o povo brasileiro respirando com liberdade, esperança, vendo a perspectiva de um futuro melhor para seus filhos e netos. Enrijecer-se nas divisões certamente não ajudará o Brasil a conseguir esse objetivo.

O povo brasileiro, sempre inspirado na arte de sobreviver a toda impossibilidade, de esperar contra toda esperança e alegrar-se mesmo e sobretudo sem motivo algum, tem agora diante de si este desafio: tornar-se perito na arte do encontro. Aprofundar as divisões não nos levará longe.  É preciso, é urgente desarmar espíritos e buscar possíveis consensos. Sem eliminar o respeito às diferenças, a resistência ao que é nefasto, a denúncia do indefensável. A difícil arte do encontro deve fazer-se ainda que em meio a esse mar de desencontros em que vivemos agora. O Brasil merece e precisa.
 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de  “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), sua mais recente obra, entre outros livros.

  Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 22 de novembro de 2018

VIOLÊNCIA E AGRESSÃO




Por Frei Betto

      Friedrick Hacker (1914-1989), psiquiatra usamericano, analisou com propriedade as raízes da violência nesse mundo globocolonizado que se ajoelha reverente ao deus Mercado. A agressividade é própria da natureza animal, incluída a espécie humana. Denota o espírito de sobrevivência. Frente a determinadas circunstâncias, cada um é agressivo a seu modo: ironia, humor, astúcia desprezo, presunção etc. Violência é quando se rompe a barreira da alteridade e a força física se impõe sobre o mais frágil ou indefeso.

      Quase nunca entendemos como violenta a ação que atinge o outro, exceto quando nós somos vítimas. Se na saída do cinema a polícia cerca nosso grupo de amigos, e exige que fiquemos todos de mãos na parede e pernas abertas, enquanto nos revista, consideraremos violência. Se da janela do apartamento vemos a mesma cena, com a diferença de que os detidos são jovens de periferia, admitimos que a polícia cumpre seu dever. 

      Se um dos amigos protesta pelo modo como está sendo apalpado e recebe em resposta um empurrão, fica patente a violência. Para o policial em nenhum momento houve violência. Julga apenas que impôs sua autoridade. É o caso do pai que, ao retornar do trabalho, descobre que o filho mais velho bateu no mais novo. Para dar-lhe uma lição de que nunca se deve bater em alguém mais fraco, o pai dá uma surra no mais velho. Sem consciência de que fez exatamente o que recriminou. É essa contradição entre o discurso e o método que dissemina o comportamento violento.

       A violência é sempre praticada como se fosse ato de justiça, legitimada por razão superior, seja o Deus dos cruzados ou dos fundamentalistas; a defesa da propriedade privada; a liberdade do Mercado; os deveres de uma boa educação etc.

      A violência é a mais primária forma de manifestação da agressão. Toda a estrutura da sociedade, com suas leis e instituições, contém boa dose de agressividade, assim como a disciplina que os pais impõem à boa educação dos filhos. Ela favorece a nossa convivência social e reprime nossas tendências autodestrutivas. Em princípio, o melhor exemplo de agressividade sem violência é o esporte. 

      Já a violência é cruel e repetitiva, o que permite à polícia identificar o modus operandi de criminosos, pois ela se propaga sem a menor criatividade. Para saber lidar com a agressividade é preciso de refinamento de espírito. Já a violência é burra, não exige educação, está ao alcance de qualquer um. 

      O mais grave é que nos acostumamos à violência. Covardes, não usamos as próprias mãos, mas aplaudimos quando a polícia espanca o bandido; a lei retroage a idade penal; o plebiscito libera o comércio de armas; o Estado decreta a pena de morte etc. Sem nos dar conta de que nos deixamos dominar pela parte mais primária de nosso cérebro, lá onde se aloja o réptil que nos precede na escala evolutiva e do qual somos tributários. 

      Se uma sociedade ignora a limite entre violência e agressividade, isso aquece o caldo de cultura do autoritarismo. O sentimento de humilhação que a Primeira Grande Guerra impôs ao povo alemão favoreceu a ascensão do “vingativo” Hitler. A derrota do Bush pai no Iraque, em 1991, impeliu a opinião pública dos EUA a apoiar, em 2003, o filho disposto a “lavar a honra”. 

      Ninguém é capaz de atacar seu semelhante, a menos que produza, entre si e o outro, a dessemelhança. Assim, o homem bate na mulher por considerá-la imbecil; o branco agride o negro por encará-lo como inferior; a grande nação decreta guerra à pequena que se nega a abrir mão de sua soberania; o líder popular passa a ser demonizado pela poderosa mídia, de modo a deslegitimar a causa que defende. Tal postura desculpabiliza e abre caminho à violência como legítima e até legal. 

      Não se trata de erradicar a agressividade própria do humano e que nos impele a alcançar metas e conquistas. O desafio é fazer a distinção ensinada por Hacker e criar uma cultura baseada no mais primordial paradigma da alteridade, que tem a sua origem Naquele que, radicalmente diferente de nós, nos criou à Sua imagem e semelhança. 

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Anfiteatro), entre outros livros. 

Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com
  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com

terça-feira, 20 de novembro de 2018

NEGRITUDE E SOCIEDADE



Por Marcelo Barros

Mais do que nunca, em tempos de intolerância e discriminações, se torna fundamental celebrar o 20 de novembro como dia da união e consciência negra. Há duas décadas, várias cidades brasileiras consagram esse dia como feriado para comemorar o aniversário do martírio de Zumbi dos Palmares. Toda a semana é coroada com eventos sobre a imensa contribuição das raças negras na história e na construção das culturas formadoras do Brasil de hoje. Em todo o Brasil, há eventos que, ao valorizar a negritude, se tornam importantes, não apenas para as pessoas que se definem como de raça e cultura afrodescendente, mas para toda a sociedade brasileira.

No Brasil, de acordo com a Constituição, toda expressão de racismo é considerado crime grave. No entanto, desde a recente campanha eleitoral e por responsabilidade do candidato eleito, temos assistido a nova onda de manifestações racistas, especialmente com as raças e culturas afrodescendentes. Isso não seria tão grave e não teria consequências tão trágicas se, na sociedade, esse tipo de atitude não encontrasse enraizados na memória cultural dos brasileiros o velho preconceito e a brutal discriminação racial, heranças da escravidão. Oficialmente, essa foi abolida, mas, na prática, está mantida em relações de trabalho injustas e em uma estratificação social rígida e impiedosa.

A discriminação social e o racismo não fazem bem a ninguém e não ajudam a criar um mundo mais justo e feliz. Ao contrário, trazem dor e violência tanto para as vítimas da injustiça, quanto para os que a praticam e ainda para os que com esse tipo de prática são coniventes.

O Brasil é um dos países mais negros do mundo. De acordo com o censo mais recente, voluntariamente 50, 7 da população se declarou negra. Isso significa mais da metade dos brasileiros. Infelizmente, a maioria desses irmãos e irmãs ainda representa a parte mais empobrecida da população brasileira. Em todo o Brasil, jovens negros são mais vítimas da violência estrutural de cada dia do que qualquer outra faixa da população. A maioria dos assassinatos atinge a população negra. Nas periferias de muitas cidades brasileiras, quase a cada manhã, se descobrem cadáveres de adolescentes negros e pobres. Também, a cada dia, comunidades religiosas de tradições afrodescendentes são agredidas e atacadas por grupos que se denominam cristãos.

A Constituição de 1988 garante o direito das comunidades negras e remanescentes de quilombos à posse de suas terras ancestrais e à manutenção de sua cultura própria. Conforme cálculos do governo, existem hoje no Brasil cerca de mais de 2.800 comunidades quilombolas. São verdadeiras repúblicas de homens e mulheres livres, formadas por descendentes de escravos, fugidos do cativeiro e de alguns índios e brancos que decidiram viver solidariamente com eles. Esses quilombos se espalham por quase todos os estados do país e são símbolos da resistência dos pequenos. Servem de modelos como comunidades verdadeiramente solidárias. Entretanto, ainda faltam leis complementares para por em prática à Constituição que, quando não favorece à elite, é facilmente esquecida.  Por outro lado, há diversas iniciativas no Congresso, agora facilitadas pela conjuntura do novo governo, que visam anular o prescrito na Constituição federal e dar poder aos estados de retirar quilombolas e indígenas de suas terras ancestrais.
Todos nós, brasileiros, temos responsabilidade social de trabalharmos por um país mais igualitário e justo. Os cultos de tradições religiosas afrodescendentes, mantidos vivos de geração em geração, têm sido instrumentos importantes para a unidade das comunidades e para garantir uma consciência mais profunda da dignidade dos seus membros. Para os cristãos, um valor central que a Bíblia aponta é a consciência da cidadania de todos os seres humanos, como filhos e filhas de Deus e cidadãos do seu reino. Essa revelação divina pode ser encontrada, como valor intuído e praticado nas comunidades afrodescendentes. Paulo escreveu que onde há aspiração e luta pela liberdade, aí está presente e atuante o Espírito Divino (Cf. 2 Cor 3, 16. Que esse aniversário do martírio do Zumbi confirme e reavive em todos nós o caminho de comunhão e partilha!
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

A FÉ HUMANISTA DE CAMUS


Frei Betto

       Howard Mumma conta em seu livro Albert Camus e o teólogo que o autor de O homem revoltado teve, nos últimos anos de vida, inquietações religiosas.

       A uma plateia de cristãos, Camus (1913-1960) declarou em 1946: "Não parto do princípio de que a verdade cristã é ilusória. Simplesmente nunca penetrei nela" (Vie intelectuelle, abril de 1949, p. 336).

        Camus foi à igreja, quando já era artista consagrado, em busca de "algo", lembra Mumma. "Algo que não estou certo nem mesmo que eu seja capaz de definir", teria admitido o escritor.

       A vida e a obra de Camus nos deixam a impressão de que ele, malgrado a formação cristã em Argel, era um cético. De fato, as atrocidades da Segunda Grande Guerra derrubaram os ícones do autor de O mito de Sísifo – Deus, o Partido Comunista, as instituições políticas, as ideologias. Passou a considerar mito todas as verdades "ideais" ou "objetivas". Teimou em não ir "mais além da razão", tenha o nome que tiver, raça, Estado ou partido. Desencantado, resistiu entretanto à cicuta da "náusea" sartriana, embora muitos insistam em situá-lo entre os existencialistas.

       Camus nunca se declarou discípulo de Sartre. Este chegou a manifestar que nada havia em comum entre o seu pensamento e o do autor de O estrangeiro. Uma de suas poucas frases que faz eco à filosofia existencialista consta de O mito de Sísifo, quando o autor argelino se refere ao "fastio que se apodera do homem diante do absurdo da vida."

       Apegar-se a um valor espiritual era, para Camus, uma fuga do real. Nas águas de Nietzsche, preferia a autenticidade à verdade. Acreditava, contudo, no ser humano. Como escritor, assumiu a condição de testemunha do sofrimento dos inocentes e, inclusive, do silêncio de Deus. Mas imaginar que, em seus últimos anos de vida, Camus chegou a ter saudades da fé que não possuía é algo que só não beira o insólito porque Mumma escreveu que Camus admitiu a possibilidade de encontrar na fé um sentido para a vida. Por isso, manteve diálogos com o teólogo e foi por ele introduzido na leitura da Bíblia, o que o teria conduzido do ateísmo ao agnosticismo.

       Prêmio Nobel de Literatura de 1957, Camus já havia experimentado o impacto do testemunho evangélico, conforme disse a Mumma, na amizade que o unia a Simone Weil, judia agnóstica, mística sem fé, filósofa que abandonou o conforto da academia para mergulhar de cabeça no mundo dos pobres. Militante da Resistência francesa, trabalhou como operária na Espanha. Solidária aos famintos, permitia-se uma ração diária tão exígua que acabou compromentendo a saúde. Morreu em 1943, aos 34 anos.

       O epílogo de A peste comprova a fé de Camus no ser humano: "(…) o doutor Rieux resolveu compor este relato que aqui termina, para não ser daqueles que se calam, para testemunhar em favor desses pestíferos, para deixar ao menos uma recordação da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas, e para dizer simplesmente o que se aprende nos flagelos, que há nos homens mais coisas a admirar do que a desdenhar".

       Essa exaltação do humano marca a literatura de Camus, ensolarada pela ênfase na felicidade, tributo de sua origem mediterrânea. Não é o destino que o preocupava, mas o presente, a possibilidade de ser feliz agora. Seu time é o de Montaigne, Voltaire e Rabelais, e não o de Pascal, Baudelaire e Rimbaud, que oscilam entre a angústia e o desespero. "No âmago de minha obra há um sol invencível", declarou ele em entrevista a G. d’Aubarède (Nouvelles littéraires, nº 1236, 10/05/1951). "Não há vergonha em ser feliz", exclamou ao entrevistador. "Há vergonha em ser feliz sozinho", completou pela boca de Rambert, em A peste.

       Camus está morto e é inútil indagar se, ao ser acidentado, corria na ânsia de encontrar Aquele que procurava. Mas não há dúvida de que ele fez de sua estética uma radical apologia da ética, conforme atesta este trecho de A Peste: "Em resumo, disse Tarrou com simplicidade, o que me interessa é saber como um homem se torna um santo. Mas o senhor não acredita em Deus, respondeu-lhe Rieux. Justamente. O único problema concreto que hoje me preocupa é saber se um homem pode tornar-se santo sem Deus."

Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.

Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 
  
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com



terça-feira, 13 de novembro de 2018

DEMOCRATIZAR A DEMOCRACIA



Por Marcelo Barros

Nessa semana em que o Brasil comemora o 15 de novembro, dia da proclamação da República, é importante reafirmar nosso compromisso com a Democracia. A Democracia só pode ser construída quando se cria consciência de cidadania. Não há democracia sem cidadãos. Essa cidadania não pode ser exercida apenas na hora de votar. É preciso aprofundar a opção por uma sociedade democrática, na qual o direito de todos à cidadania seja exercido verdadeiramente como participação nas decisões sociais e políticas.

No mundo moderno, a Democracia passou a ser a bandeira de todos os sistemas, mesmo os que mantêm estruturas de império. Nações europeias colonizaram a África sob o pretexto de levar às populações tribais a civilização e a democracia. O governo dos Estados Unidos usa a democracia como pretexto para perseguir qualquer país que tente ser livre dos seus interesses imperialistas. No entanto, apesar disso, não podemos renunciar à causa da Democracia. Ao contrário, temos de reafirmá-la e radicalizá-la cada vez mais. Para nós, Democracia é uma forma de existência social, baseada na igualdade e no respeito à dignidade de todos/as. Isso supõe uma sociedade aberta que permita a consciência e o respeito aos direitos civis e sociais. Pela Constituição, todos os brasileiros têm alguns direitos que foram inscritos na lei, mas ainda não foram postos em prática. No Brasil, muitos cidadãos não podem exercer seus direitos à habitação, saúde, educação e outros que a Constituição prescreve. No entanto, em 1948, a ONU já havia afirmado serem direitos de todos os seres humanos. Os movimentos sociais têm procurado transformar os direitos declarados pela lei em conquistas reais das pessoas. Foi assim que as lutas pela igualdade entre homem e mulher, pelo fim das discriminações raciais e as campanhas pelas liberdades civis ampliaram os direitos sociais de todos/as. Os movimentos sociais também exigiram o reconhecimento dos direitos das crianças, idosos, minorias étnicas e sexuais. Nas lutas ecológicas, a Democracia é o direito ao meio ambiente sadio.

Nas lutas pelos direitos, muitos grupos reivindicam “ações afirmativas”. Chamam-se assim propostas concretas que garantam os direitos sociais e a superação das desigualdades, das discriminações e dos preconceitos. Essas lutas exigem uma articulação da sociedade civil. Nisso, a juventude tem um papel importante. As Escolas e Universidades têm importante colaboração a dar. Para funcionar corretamente, a Democracia tem de ser também cultural. Todos temos direito de aproveitar os bens culturais. Ainda há brasileiros que nunca entraram em um cinema ou viram uma peça teatral. Não aprenderam a valorizar um museu ou exposição de arte. Todos/as têm esse direito, embora a cultura seja muito mais ampla do que apenas o acesso às expressões da cultura dominante. Devemos defender a diversidade de culturas e o direito dos diferentes grupos expressá-la em suas formas próprias, sem hierarquia ou dominação de uma sobre outra. 

Uma sociedade democrática é aquela na qual os cidadãos não só têm direito de receber as informações, mas têm também o direito de produzir informações e comunicá-las. Mas, como isso pode acontecer em um país como o Brasil, no qual a maioria dos meios de comunicação (jornais, rádios e emissoras de televisão) está nas mãos de apenas seis famílias da elite?

A sociedade civil organizada não aceita mais continuar acuada e sufocada, tanto no plano internacional, como no nível nacional. Durante a campanha presidencial e nos pronunciamentos do presidente eleito não faltaram ameaças e ataques ao que ele chama de esquerda e de comunismo. Parece que voltamos a viver nos anos 60 do século passado, quando qualquer grupo de estudantes que, em sua escola, fundassem um grêmio literário podiam ser chamados de comunistas.

Na América Latina, os povos indígenas têm proposto à sociedade o paradigma do Bem Viver individual e coletivo como objetivo do Estado e critério das relações sociais e políticas. É nova forma de compreender o Socialismo Democrático. No sul do México, os índios propõem que as autoridades mandem obedecendo. Nos evangelhos, Jesus já propunha que as pessoas que exercem o poder façam isso para servir e para garantir que todos possam viver dignamente.  Essa é a verdadeira revolução.

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br