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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

COMO SE FAZ UM ANO NOVO




Por Marcelo Barros[1]

Nos ritos sociais da festa de Ano Novo, as famílias se reúnem para o réveillon, abrem garrafas de champanhe e se abraçam com os mais sinceros desejos de um feliz 2020. A televisão mostra como pelo mundo inteiro, ocorrem espetáculos de luzes e esplendor. Oráculos predizem a sorte e jogam búzios para ver como será esse novo ano. Nas praias, se  oferecem flores a Iemanjá e quem é mais ligado à Igreja, se reúne em vigília pela paz do mundo.
O ano novo lembra ritos de culturas mais antigas. Em algumas tribos, as pessoas jogam fora roupas velhas para significar o desejo de ser transformados. Outros grupos costumam peregrinar a uma alta montanha ou banhar-se no rio ou no mar, no primeiro momento do ano, para acolher o tempo novo dado por Deus.
As comunidades judaicas celebram o ano novo em setembro. Mas, por algum tempo, o antigo povo bíblico celebrava o ano novo na primavera. Era a Páscoa. Naquele tempo, o fermento que se tinha era o da massa de pão que, cada vez, ia se misturando com a massa nova. Por isso, o fermento era símbolo de corrupção e mentira. Até hoje, nos dias da Páscoa, as famílias judaicas eliminam das casas todo o fermento. Nas sinagogas antigas, o rabino sugeria o que Paulo escreveu: “Joguem fora de suas vidas o fermento da malícia e da corrupção para serem uma massa nova, como pão ázimo (não fermentado) na sinceridade e na verdade” (1 Cor. 5, 7).
Nas sociedades antigas, o rito ocupava um espaço central e era elemento de unidade e de renovação. De certa forma, correspondia ao que, nas sociedades atuais seriam técnicas e dinâmicas de terapia comunitária. Evidentemente, não serão apenas ritos e gestos que vão garantir que os nossos desejos de um ano novo mais feliz e de paz se cumpram. É importante que os nossos ritos do ano novo sejam marcados pelo amor e pela solidariedade e não pelo consumismo que reforça a desigualdade social e as injustiças. Se a noite do Ano Novo consistir apenas em comilanças e bebedeiras, que esperança podemos ter de um ano novo de paz e felicidade para a terra e os que nela habitam?
Em termos de Brasil, 2020 só será um ano mais feliz se conseguirmos superar o ambiente de ódio, intolerância e indiferença com os sofrimentos humanos que os meios de comunicação de massa e o império conseguiram disseminar na sociedade e mesmo nas famílias. Mesmo nas Igrejas cristãs ainda predomina a visão de um Deus narcisista e intransigente, amigo de seus amigos e implacável com quem não segue as normas de sua Igreja. No plano político, a elite sempre garante seus interesses. Os movimentos sociais tentam recompor sua unidade e reconstruir na sociedade o senso de cidadania e a dignidade da Política. Em outubro próximo teremos novas eleições municipais e podem ser importantes para garantir novas bases para uma transformação social e política cada vez mais urgente. No entanto, a Política terá de ser principalmente o cuidado com o bem-comum. Nas cidades, como em nossas casas, organizemos a vida a partir da solidariedade. Se fizermos isso, vamos experimentar o que diz o Novo Testamento: “Há mais alegria em dar do que em receber”.  A maioria festejará a vida e a paz que virão através da justiça. Assim, nesta noite de ano novo, cada pessoa poderá dizer ao seu vizinho uma antiga bênção irlandesa: “Que o caminho seja brando a teus pés. O vento sopre leve em teus ombros. Que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas em teus campos. E até que, de novo, eu te veja, que Deus te guarde na palma da sua mão”.




[1] - MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

BALANÇO DE 2019: O IMPÉRIO DA IMPOSTURA



por leonardo boff

Afora os grandes empresários que aplaudem calorosamente o ministro Paulo Guedes porque ganham com a crise, o balanço de 2019 na perspectiva das vítimas dos ajustes fiscais, dos que perderam direitos na reforma da previdência e dos resistentes é repudiável.
Instalou-se aqui o império da impostura. Um presidente que deveria dar exemplo ao povo de virtudes que todo governante deve ter, realizou atos acintosos que na linguagem religiosa, bem entendida por ele, são verdadeiros pecados mortais. Pela moral cristã mais tradicional é pecado mortal caluniar certas ONGs, bem o ator Leonardo di Caprio culpando-os de incentivar os incêndios da Amazônia ou difamando o reconhecido educador Paulo Freire e o cientista Ricardo Galvão ou mentir contumazmente mediante fake news e alimentar ódio e rancor contra homoafetivos, LGBTI, indígenas, quilombolas, mulheres e nordestinos. A lentidão no julgamento do massacre de Brumadinho-MG e de Mariana-MG está mostrando a insensibilidade das autoridades. Algo parecido ocorreu com o derrame ignoto(?) de petróleo em 300 praias de 100 municípios do Nordeste.
Não cabe a ninguém julgar sua intenção subjetiva. Isso é coisa para Deus. Mas cabe fazer um juízo  sobre fatos e atos, portanto, realidades objetivas e concretas para as quais cabe um juízo ético e teológico. Tal atitude imoral foi entendida por muitos como carta branca para desmatar mais, assassinar lideranças indígenas e a polícia tornar-se mais violenta e até assassina.
Estamos vivendo sob o império da impostura no campo nacional e no internacional. Um psicanalista francês, Roland Gori escreveu um instigante livro “La fabrique des imposteurs”(Paris 2013). Para ele o impostor é aquele que prefere os meios aos fins, que nega as verdades científicas, que distorce a realidade solar, que não se rege por valores porque é apenas um oportunista, que afirma algo e logo depois o nega conforme suas conveniências, que pratica a arte de iludir as pessoas ao invés de emancipá-las pelo pensamento critico, que despreza o cuidado pelo meio ambiente, que passa por cima das leis, que culpabiliza os pobres e que não demonstra  amor nem  piedade.
O que transcrevi aqui está referido no livro “La fabrique des imposteurs e representa um retrato da atmosfera de impostura reinante nas mais altas instâncias políticas do Brasil.
As medidas contra a educação, a saúde, a ciência, ao meio ambiente e aos direitos humanos concretiza a mais rude impostura contra tudo o que se construiu de positivo nos últimos decênios. Somos conduzidos a um estágio regressivo, anterior ao iluminismo, numa mentalidade fundamentalista com viés fascistóide.
Talvez o ato para nós mais humilhante foi o gesto de vassalagem explícita do atual governante ao presidente dos USA, oferecendo-lhe o que podia sem receber nada em troca. Risível e ridículo foi quando, numa recepção de chefes de estado lhe diz a Trump “I love you” e recebeu apenas 17 segundos de atenção.
A impostura grassa veemente, em primeiro lugar, nos USA onde o presidente Trump, segundo repete Paul Krugman, Nobel de economia, constitui um perigo para a humanidade. Mente a mais não poder e se justifica ao dizer que são “verdades alternativas”. Igual impostura ocorre nos países ultra neoliberais onde o povo se rebela como no Chile, no Equador,na Colômbia, culminando com um golpe de estado contra a população indígena e seu representante na Bolívia, lançando o povo na fome e no desespero.
Perigosa impostura ocorreu na COP25 em Madrid que contra todas as evidências e dados científicos predominaram os negacionistas do aquecimento global, o Brasil incluído. Contra eles o relatório final recolhe a advertência da ONU:”Se nada fizermos, no final do século, a temperatura pode aumentar de 4-5 graus”. Com estes níveis, a vida que conhecemos não subsistirá. Será um verdadeiro Armagedom ecológico. Nossa espécie correrá perigo.
Não obstante esta atmosfera tenebrosa cabe celebrar a libertação de Lula, vítima da aplicação da law fare, instrumento de perseguição política com o objetivo de prendê-lo. O que ocorreu.
Termino com as palavras severas do prêmio Nobel de medicina de 1974, Christian de Duve:”A perspectiva não é apenas preocupante: é aterrorizante. Se não conseguirmos conter o crescimento demográfico (poderia dizer o aquecimento global) racionalmente, a seleção natural fará isso por nós irracionalmente, às custas de privações sem precedentes e de danos irreparáveis ao meio ambiente. Tal é a lição que quatro bilhões de anos  nos oferece a história da vida na Terra”(Poeira vital 1997,369).
Bem o enfatizava o Papa Francisco em sua encíclica ecológica:”as previsões catastróficas não se podem olhar com desprezo e ironia”(n,161). A impostura nos faz surdos a estes clamores. Por causa disso, o destino humano dificilmente escapará de uma tragédia.
Leonardo é teólogo e filósofo e escreveu:A saudade de Deus-a força dos pequenos, Vozes 2019.


quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

DECRETOS DE NATAL





Por FREI BETTO

        Fica decretado que, neste Natal, em vez de dar presentes, nos faremos presentes junto aos famintos, carentes e excluídos. Papai Noel que nos desculpe, mas lacradas as chaminés, abriremos corações e portas à chegada salvífica do Menino Jesus.  
       Por trazer a muitos mais constrangimentos que alegrias, fica decretado que o Natal não mais nos travestirá no que não somos: neste verão, arrancaremos da árvore de Natal todos os algodões de falsas neves; trocaremos nozes e castanhas por frutas tropicais; renas e trenós por carroças repletas de alimentos não perecíveis; e se algum Papai Noel sobrar por aí, que apareça de bermuda e chinelos.  
       Fica decretado que, cartas de crianças, só as endereçadas ao Menino Jesus, como a do Pedrinho, que escreveu convencido de que Caim e Abel não teriam brigado se dormissem em quartos separados; propôs ao Criador ninguém mais nascer nem morrer, e todos nós vivermos para sempre; e, ao ver o presépio, prometeu enviar seu agasalho ao filho desnudo de Maria e José. 
       Fica decretado que as crianças, em vez de brinquedos e bolas, pedirão bênçãos e graças, abrindo seus corações para destinar aos pobres todo o supérfluo que entulha armários e gavetas. A sobra de um é a necessidade de outro, e quem reparte bens partilha Deus.
        Fica decretado que, pelo menos um dia, desligaremos toda a parafernália eletrônica, inclusive o telefone celular e, recolhidos à solidão, faremos uma viagem ao interior de nosso espírito, lá onde habita Aquele que, distinto de nós, funda a nossa verdadeira identidade. Entregues à meditação, fecharemos os olhos para ver melhor. 

       Fica decretado que, despidas de pudores, as famílias farão ao menos um momento de oração, lerão um texto bíblico, agradecerão ao Pai e Mãe de Amor o dom da vida, as alegrias do ano que finda, e até dores que exacerbam a emoção sem que se possa entender com a razão. Finita, a vida é um rio que sabe ter o mar como destino, mas jamais quantas curvas, cachoeiras e pedras haverá de encontrar em seu percurso. 

       Fica decretado que arrancaremos a espada das mãos de Herodes e nenhuma criança será mais surrada ou humilhada, nem condenada ao trabalho precoce e à violência sexual. Todas terão direito à ternura e à alegria, à saúde e à escola, ao pão e à paz, ao sonho e à beleza.  
       Como Deus não tem religião, fica decretado que nenhum fiel considerará a sua mais perfeita que a do outro, nem fará rastejar a sua língua, qual serpente venenosa, nas trilhas da injúria e da perfídia. O Menino do presépio veio para todos, indistintamente, e não há como professar que é “Pai Nosso” se o pão também não for nosso, mas privilégio da minoria abastada.  
       Fica decretado que toda dieta se reverterá em benefício do prato vazio de quem tem fome, e que ninguém dará ao outro um presente embrulhado em bajulação ou escusas intenções. O tempo gasto em fazer laços será muito inferior ao dedicado a dar abraços.
        Fica decretado que as mesas de Natal estarão cobertas de afeto e, dispostos a renascer com o Menino, trataremos de sepultar iras e invejas, amarguras e ambições desmedidas, para que o nosso coração seja acolhedor como a manjedoura de Belém.
        Fica decretado que, como os reis magos, daremos todos um voto de confiança à esperança, para que ela conduza este país a dias melhores. Não buscaremos o nosso próprio interesse, mas o da maioria, sobretudo dos que, à semelhança de José e Maria, foram excluídos da cidade e, como uma família sem-terra, obrigados a ocupar um pasto, onde nasceu Aquele que, segundo sua mãe, “despediu os ricos com as mãos vazias e encheu de bens os famintos” e, no Sermão da Montanha, exaltou como “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”.

Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
   ®Copyright 2019 – FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 
  
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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

POEMAS DE HELDER CAMARA: O DEUS ESCONDIDO




Por Eduardo Hoornaert

Neste texto faço um apanhado de poemas espirituais de Helder Camara. Só contemplo os anos 1964 a 1966, desde a época em que ele participa das duas últimas sessões do Concílio Vaticano II até seus primeiros anos como Arcebispo em Recife. As citações provêm da edição das Obras Completas de Helder Camara ainda em curso, a cargo da Editora Cepe, do Governo do Estado de Pernambuco, em Recife. Limito-me a apresentar uma seleção de poemas que aparecem nos volumes I, II e III de dita edição.

A originalidade da vida de Helder Camara, sem dúvida, está no fato que ele, desde sua ordenação sacerdotal em 1931, interrompe seu sono, por volta de meia-noite ou por volta de uma da madrugada, durante uma hora ou uma hora em meia, para meditar. Pelo que me consta, ele pratica essa Vigília noturna desde 1931 até 1984, por conseguinte por 53 anos, pelo menos, com poucas interrupções. A Vigília, com o tempo, vai impregnando sua personalidade. Pode-se dizer que a figura do Padre José (que evoquei em dois textos anteriores neste blog: ‘quando Helder Camara capta a dor do mundo’, ‘quando Helder Camara capta a dor da igreja’) aparece em função dessas Vigílias. O Padre José, ao mesmo tempo, transfigura e esconde o Bispo, que – ao insistir na importância da Vigília em sua vida - costuma dizer que de dia, na balbúrdia e na agitação, fica difícil se concentrar no que realmente importa, enquanto de noite as coisas ficam mais claras. Na Vigília da noite, Helder encontra o rumo de sua vida, que consiste em viver dentro de Deus (Carta Circular 28/02/1965, II, II, p. 222).

A força espiritual das Vigílias faz com que Helder consiga, a qualquer momento e dentro das mais diversas circunstâncias, mergulhar em Deus. Mesmo em meio a mais intensa agitação externa ou interna. Em fevereiro 1965, por exemplo, pouco antes de viajar a Roma para participar da última sessão do Concílio Vaticano II, ele caminha pelas ruas de Nova Iorque e, ao contemplar o povo em seu redor, logo mergulha em Deus e poetiza:

Caminhar pelas ruas de Nova Iorque
Contemplando os Anjos
Contemplando o povo
Mergulhando em Deus
E rezando (Circular 3-4/2/1965, II, II, p. 158).

Quem quiser entender Helder tem de entrar com ele na via contemplativa:

Se me queres entender
Só há um remédio:
Entra em mim,
Sê um comigo,
No Cristo (Carta Circular 22/08/1966, III, II, p. 146).

Não pares
Em meu rosto de pecador
Em minha voz de pecador.
Descobre o rosto
Escuta a voz
Do Filho muito amado (Carta Circular 5/08/1966, III, II, p. 117).

Uma cana posta na moenda, o reflexo da lua numa poça d´água, os primeiros cajus do ano, as primeiras mangas, primeiras jacas, primeiras frutas, tudo é ocasião de um mergulho em Deus.

Por que não oferecer ao Pai os peixes todos, de tamanhos, feitios e cores tão variados, com maneiras de nadar e mergulhar que lembram baleias? No cimo das montanhas contemplamos os primeiros raios de luz, ainda não tocados, não poluídos, tais como brotaram do Poder Criador. Acordem, intérpretes da Criação, cantores de Deus! Quanta maravilha esperando para ser, de desejo, de coração, tomada nas mãos e apresentada ao Senhor e Pai? (texto citado por Rocha, Z., 2005).

Entrando em Recife na qualidade de Arcebispo recém-nomeado, no dia 12 de abril de 1964, ele enxerga Deus no rosto do povo nordestino: no Nordeste, Cristo se chama Zé, Antônio, Severino.

Muitas leituras, que Helder recomenda nas Cartas Circulares à Família Messejanense, são meras oportunidades para um mergulho em Deus. E quando ele encontra textos de uma poetisa como Cecília Meireles, os poemas fluem ao longo de diversas Vigílias:

Se quiseres apanhar
Para além do corpo
Flagrantes da alma,
Ainda ficarás
Muito na superfície.
Te chamarei fotógrafo
Se, para além do corpo e da alma,
Surpreenderes
Quem mora comigo (Carta Circular 13/03/ 1966, III, I, p. 190)

Uma semana depois:

Que privilégio
Ter olhos na noite escura,
Ter ouvidos no silêncio imenso,
Para contemplar
O amadurecer das frutas
E a formação do perfume
No coração das flores!
Ir mais longe
Só se Deus permitir
Acompanhar
No interior do homem
O nascimento do amor (Carta Circular 20-21/03/1966, III, I, p. 203).

É no pobre que Deus aparece de modo mais surpreendente. Poucos dias depois de chegar a Recife como Arcebispo, andando por bairros pobres, Helder é convidado por um morador a almoçar em sua casa:

No casebre miserável.
´mocambo’, como se diz aqui,
O pobre me convidou
Para o almoço.
Não estivesse tão acompanhado
E ficaria.
Que teria ele,
No barraco sórdido,
Metido na lama,
Para oferecer?
Pergunto por perguntar.
Ele apenas te emprestou os lábios.
O convite partiu de Ti,
O anfitrião eras Tu. (Carta Circular 18-19/4/1964, II, I, p. 21).

A presença de Deus no pobre sempre surpreende: de repente, comecei a conversar com Deus escondido no pobre. Aí foi conversa de doido (Carta Circular 22-23/3/1965, II, II, p. 295).

No final da terceira sessão do Concílio Vaticano II, nos últimos dias em Roma, antes de voltar ao Rio de Janeiro (onde ele saberá de sua nomeação como Arcebispo de Recife), Helder sente subitamente uma exuberante alegria a invadir seu coração:

Deus põe música
Na alma de todos
E é traição ao Criador
Não a despertar
Dentro de nós. (Carta Conciliar 2-3/3/1964, I, I, p. 386).

Quando Te chamo
Descubro, feliz,
Que o meu brado
É eco de Tua voz (ibidem, p. 385).

Pranto de pura felicidade
Porque existes
E és quem és. (Carta Conciliar 3-4/3/1964, I, I, p. 390).

Já que estás em mim
No mais íntimo de mim mesmo,
Obriga-me a ser
Como me entreviste
Em teus planos divinos
Ao arrancar-me do nada (ibidem, p. 391).

Podes rir,
Podes gargalhar.
Nem imaginas
Quem, dentro de mim,
Ultrapassa os limites,
Rompe as barreiras,
Atinge as dimensões de Deus (Carta Conciliar 7-8/3/1964, I, I, pp. 412-413).

Um mês depois, já sendo nomeado Arcebispo de Recife:

És Tu, meu Deus Uno e Trino,
Que amas teu universo
Através de minhas entranhas (Carta Circular 18/04/1964, II, I, 20).

Quase um ano mais tarde, fazendo o balanço do primeiro ano como Arcebispo, a alegria já aparece temperada por sofrimento:

Aqui estou,
Diante de Deus,
Dentro de Deus (Carta Circular 28/02/1965, II, II, p.222).

O sofrimento autêntico
É sempre assim:
Tem alta e profunda origem...
Quando não nasce da beleza,
Nasce da verdade,
do bem,
do Um (Carta Circular 12-13/03/1966, III, I, 189).

Anos ‘de chumbo’ se anunciam (os anos mais pesados da ditadura militar no Brasil, entre 1968 e 1975). Mas o mergulho em Deus persiste, resiste, traz força e alívio.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.



terça-feira, 24 de dezembro de 2019

A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO NATAL



Por Marcelo Barros

No começo deste mês, o papa Francisco iniciou a celebração do Advento por uma peregrinação à localidade de Greccio, em meio aos bosques do Lácio, na Itália, onde, em 1223, São Francisco de Assis construiu o primeiro presépio de Natal. Ali, o papa no, o papa Francisco assinou a carta apostólica Admirabile Signum sobre o significado e o valor do presépio. Ao armar em nossas casas e comunidades um presépio, estamos significando que queremos nós mesmos ser os personagens verdadeiros de um presépio vivo de Natal. Não se trata de representar ou repetir o conto de Belém e sim manifestar hoje no mundo o fato de que Deus assume nossa humanidade e se manifesta nas pessoas que aceitam ser testemunhas do seu amor pela humanidade.

O evangelho conta que, na primeira noite de Belém, assim que os anjos se foram, os pastores correram para ver o que de fato acontecera. Os anjos haviam dado um sinal: “vocês encontrarão um menino recém-nascido deitado em uma manjedoura”. E eles encontraram tudo, conforme lhes fora anunciado. Nesse relato do Natal, a primeira coisa que chama a atenção é a enorme contradição entre o esplendor do anúncio dos anjos e a pobreza do que os pastores encontraram: uma manjedoura e uma criança pobre, nela depositada. Ali aprendemos a reencontrar a presença divina no que há de mais humano e, principalmente, na realidade das pessoas feridas pela pobreza, pela injustiça e pela marginalidade. Ao insistir que Jesus nasceu como migrante, em uma Belém “onde não havia lugar para eles na hospedaria”, a tradição não quer apenas sublinhar que Deus está presente junto aos empobrecidos, mas que está para lutar a seu favor contra as injustiças do mundo.

Os antigos pastores da Igreja ensinavam que a cruz de Jesus foi feita com a mesma madeira do presépio de Belém. Era o seu modo de dizer que, ao deitar na manjedoura, Jesus já estava assumindo sua condição de pobre, marginal e condenado pelo poder do mundo. Assim como a cruz, também o presépio não era apenas um enfeite piedoso, como, às vezes, ocorre em nossas casas. O presépio é um sinal da solidariedade de Deus conosco; um modo de dizer a toda pessoa injustamente marginalizada: Deus está do seu lado e vem lutar junto com você por sua libertação.

No Natal de hoje, temos também os que continuam a função de Herodes. De acordo com a cultura dominante no atual desgoverno brasileiro, a violência policial toma proporções inimagináveis. Inimigos da humanidade reabrem a temporada de caça a líderes e representantes dos povos indígenas, de trabalhadores rurais e de defensores dos direitos humanos. No entanto, as comunidades continuam a caminhada. Nesse Natal, o presépio de Jesus se apresenta a nós no leito de dor e de paciência do querido profeta Dom Pedro Casaldáliga, que, com toda a sua fragilidade continua sendo símbolo e testemunha do amor e da predileção divina pelos pequeninos. Cada um/uma de nós tem em sua vida pessoal aspectos que parecem menos nobres e apresentáveis. Esse lado de nossa vida é como manjedoura na qual a presença divina vem se manifestar. Jesus repousa nas palhas de nossa vida para nos conduzir a uma mudança de vida e à transformação do mundo. Esse é o caminho novo do Natal.

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados, dos quais os mais recentes são: “Labirintos", Ed. Sensu e ”Teologias para os nossos dias, Editora Vozes. Email: irmarcelobarros@uol.com.br   



domingo, 22 de dezembro de 2019

ESCOBAR: CELEBRANDO UM SÉCULO DE VIDA.



Por Marcelo Barros

Estou voltando de uma celebração eucarística em ação de graças pelos 100 anos da irmã Ármia Escobar. Eu a conheci nos anos 60,  quando ela ainda era jovem e Dom Helder a escolheu como assessora dele para a comunicação social. E ela era genial. Colocou a arquidiocese no mundo das comunicações com programa de rádio, com capacidade de falar a linguagem da Tv que surgia. 

 Dom Helder confiava tanto nela que a levou como assessora dele para a 4ª sessão do Concílio Ecumênico Vaticano II. Penso que Escobar foi das primeiras mulheres a entrar na sala do concílio em meio aos bispos e peritos.

No Recife, Escobar fez teatro e circo e fundou um circo com crianças de rua: O Arrecirco. Fundou o Centro de Educação Social do Nordeste (CECOSNE) onde trabalhei com ela por alguns anos. Um dia, morre a irmã que a ajudava (Carvalhinho) e a congregação tira dela o Cecosne, como se tudo aquilo não tivesse sido construído por ela. Ela aceita sem criar problema. A provincial quer força-la a voltar a morar no convento. Ela rejeita e sofre muito. 

Mesmo sozinha e sem meios, continuou trabalhando e sonhando. Sonhou e organizou a Universidade Popular das Artes (UPA). Conseguiu até espaço e professores para atuarem, mas não recebeu nenhum apoio para isso e ficou na ideia. Imaginou um permanente Festival Internacional das Crianças. Sempre tinha um projeto novo e transformador. 


Só agora com quase cem anos, a congregação voltou a acolhê-la e a inseriu em uma casa de idosas. Escobar sempre foi para mim um modelo de profecia e liberdade interior. Uma pessoa de Deus. Uma religiosa que nunca ligou o piloto automático. Sempre viveu a busca profunda de, a cada dia, saber o que Deus queria dela e como deveria realizar o projeto divino no mundo a favor das crianças abandonadas (ela conseguia adoções) e dos pobres. 

Deus seja bendito pela vida de Escobar.