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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

EM BOA COMPANHIA

  Maria Maria Clara Bingemer 


 

Tenho passado esses primeiros dias do ano em companhia de algumas mulheres brasileiras extraordinárias. Fico feliz quando vejo outras mulheres brilhando e fazendo diferença no mundo: além de carregar e cuidar da humanidade desde o ventre até os momentos finais da velhice e da morte, criam novos espaços e aberturas por onde a humanidade se vê maior e mais digna. 

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa é uma delas.  Já havia lido sobre ela e assisti à série da Globoplay, “Passaporte para a liberdade”. Que mulher extraordinária, em sua coragem, doçura, feminilidade e compaixão.  Seu coração batia ao compasso da dor alheia, e assim assumiu a paixão de todo um povo. 

 Casada com um dos maiores escritores brasileiros, é a figura dela que aparece e se agiganta durante a Segunda Guerra. João Guimarães Rosa homenageou sua bem-amada dedicando-lhe o maravilhoso livro “Grande Sertão Veredas”, e viveu a seu lado até morrer. 

A brasileira que figura no Yad Vashem como Justa das Nações enche o Brasil de orgulho e aviva a memória e a consciência diante do genocídio nazista para que nunca mais se repita.  Armada apenas de sua coragem e empatia, Aracy salvou muitas vidas naquele contexto de morte.  E em meio a esse trabalho cotidiano e heroico ainda encontrou tempo para o grande amor de sua vida, unida a ele em companheirismo, carinho e parceria. Heroína e mulher apaixonada, Aracy de Carvalho é uma dessas sínteses raras e brilhantes que apenas as mulheres sabem construir. 

Nara Leão, com sua voz de sussurro doce e personalidade brilhante e talentosa, é outra de minhas recentes companheiras.  Eu a ouvi muito, seguindo seus passos e seu canto livre nos anos de minha juventude. Primeiro, as canções que cantava me embalavam, depois me faziam estremecer e sentir desejo de lutar, e finalmente me acompanhavam em momentos mais maduros da vida.

Porém, a excelente série documental exibida igualmente pela Globoplay revela uma Nara da qual eu não media toda a estatura e brilho.  Mulher livre, independente, seguia a vocação que sabia ser a sua, em meio a um universo composto quase que totalmente de homens.  Passou com soberana e sobranceira liberdade em meio a este ambiente machista fazendo amigos, despertando admiração, e acrescentando novidade bonita e enriquecedora ao movimento musical que nascia e marcaria para sempre a história da música não apenas brasileira, mas de todo o mundo. 

A liberdade e o talento de Nara, com seu jeito doce e sua voz jamais estridente ou agressiva, marcaram presença e enfrentaram a cruel ditadura militar dos anos de chumbo.  Toda tentativa de calar sua voz mansa e deliciosa fracassou e ela continuou, livre e entusiasmada como sempre, fecundando o chão por onde passava e construindo beleza e arte.

A amizade com personalidades brilhantes do mundo da música, como Roberto Menescal e Chico Buarque, o casamento e parceria com Cacá Diegues que se tornou amizade, maternidade e paternidade, a relação amorosa com os dois filhos, tudo isso fez da vida de Nara um caminho salpicado de brilho e luz, que ela repartiu com seus ouvintes e fãs, que se multiplicaram.  Seu legado perdura até hoje, com a marca imortal daqueles que realmente possuem talento e são mordidos pelo fogo sagrado da inspiração.

A vida de Nara Leão foi breve, mais curta do que seria desejável.  Partiu aos 47 anos.  Justamente por isso seu legado impressiona ainda mais.  Parafraseando Camões, como pode ser para tão grande amor tão curta vida?  Como pode aquela menina de franjinha, cabelo Chanel e voz suave ser tão gigantesca e construir tanto nos anos que lhe foi tocado viver? 

Aracy viveu centenária, faleceu aos 103 anos. Sobreviveu a seu amado, morto aos 59 anos, dias após ser empossado na Academia Brasileira de Letras. 

Se é verdade que cada vez que se salva um ser humano, salva-se toda a humanidade, sua vida ainda é mais longa, mais prolífera, continuada em tantos que não teriam a chance de viver sem sua corajosa intervenção, arriscando-se em um dos sistemas mais cruéis que o mundo já conheceu. 

A paixão pela justiça e a compaixão ativa de Aracy certamente inspiraram a frase que João Guimarães Rosa escreveu em seu romance maior, “Grande Sertão Veredas: “O que a vida quer da gente é coragem”. O genial escritor viu e viveu essa coragem encarnada em sua bela, educada e poliglota mulher. 

A maneira feminina e plena de Nara estar no mundo, cantando livremente e sem abrir mão de viver aquilo para o que se sentia feita, certamente abriu caminho para que outras mulheres a seguissem e pisassem em suas pegadas.  Se Rosa tem razão, coragem Nara teve de sobra em sua tão fecunda vida, ao espalhar arte e beleza por onde passava e despertar os ouvidos de todos com sua voz tão particular e característica. 

Obrigada, irmãs, amigas, companheiras.  Vocês são a melhor companhia que eu poderia ter neste começo de ano. Amigas da vida, apaixonadas pela justiça, abertas à comunhão que é feita de beleza e encantamento, mas também de luta, dureza, risco e coragem. 

 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.

Copyright 2022 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

sábado, 29 de janeiro de 2022

“A gente somos inútil”

 

 

Prof. Martinho Condini


 

Quando revisamos a história do Brasil e verificamos a atuação das forças armadas, constatamos que, nada fizeram de útil, produtivo e relevante para a sociedade brasileira. Afinal de contas a história mostra as suas “brilhantes atuações”: Guerra do Paraguai (1864-1870), a Guerra de Canudos (1896-1897) e as atrocidades do período da Ditadura Militar (1964-1985), prisões, torturas, execuções e mortes (alguns corpos não encontrados até hoje). Vamos ficar com esses três fatos para não nos alongarmos em outras barbaridades realizadas ao longo da nossa história.

        A “cereja do bolo” foi o mais recente apoio dado pelas forças armadas ao “capetão” paraquedista da reserva, um vagabundo profissional de primeira grandeza, incompetente, negacionista e genocida que se tornou presidente. Durante o período em que foi parlamentar sempre foi medíocre, do baixo clero, sem nenhuma expressão no parlamento, a não ser quando era para mostrar a sua ignorância e grosseria, principalmente com as mulheres e homossexuais.

Se isso não bastasse, o “capetão” cloroquina ao se tornar presidente povoou de militares os ministérios e autarquias do governo federal. Ouvi dizer que militares da ativa não podem assumir cargos públicos, mas não importa se esses militares são da ativa ou da reserva, a verdade é que deram a eles mais uma teta do Estado para mamarem, algo muito comum e corriqueiro para essa horda de fardados, que já mamavam em outra teta do Estado em suas respectivas forças armadas.

        Nesse processo de militarização do governo bolsonarento tivemos a nomeação em maio de 2020 do ministro interino da saúde, um General, que ao assumir a pasta, o Brasil registrava quase quinze mil mortos pela Covid-19, quando o mesmo foi efetivado como ministro (com o apoio dos militares), o registro de mortes era de mais de cento e trinta mil mortes, e quando de sua demissão em março de 2021 o número de mortes passava de trezentas e quarenta mil.

        Mas o mais incrível de toda essa história, é que esses militares das forças armadas, se orgulham da sua inutilidade (a qual eu comparo a mesma da profissão de Mis) e acreditam piamente que são imprescindíveis para a sociedade.

        O desembolso do Brasil com a defesa em 2020 somou US$ 19,7 bilhões, o que faz o país estar no 15º lugar no ranking das 40 economias com os maiores gastos militares no mundo. O custo benefício desse gasto com as forças armadas para a nossa sociedade é zero. Supondo que a partir de amanhã não tivéssemos mais as forças armadas, o que aconteceria? O Estado teria mais de 19 bilhões de dólares para investir na educação, saúde, moradia, saneamento básico, ciência e geração de empregos. Com certeza um investimento muito mais útil do que sustentar milhares de inúteis sanguessugas do Estado, que são sustentados pelo suor da classe trabalhadora.

Desde a segunda metade do século XIX essa estrutura militarista participa ativamente da nossa história social e política sempre ao lado dos interesses da elite conservadora e dos liberais reacionários.

        Após a constituição de 1988, isso piorou, porque esses inúteis passam a ter o direito de eleger e ser eleito, e assim, passam a ocupar as cadeiras do congresso nacional e a legislar contra os interesses da população excluída desse país.

            Enfim, além de inúteis como profissionais de farda, se tornaram parlamentares a serviço do que há de pior em nossa sociedade e em nosso país. O Capetão Bolsonarento é prova viva, está aí para confirmar e reafirmar a celebre frase da música do grupo Ultraje a Rigor “A gente somos inútil”.

O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Habitar a Terra - Qual o caminho para a fraternidade universal

 


                        Leonardo Boff



Faz-se uma constatação triste: o tipo de mundo no qual vivemos é tudo menos fraternal. O que predomina é o poder que, logo de início, estabelece uma divisão entre quem tem poder e quem não tem poder. Trata-se do poder-dominação, político, econômico, ideológico, midiático, também familiar e outros. Desta divisão nasce toda sorte de desigualdades: uns se sobrepondo aos outros, a maioria colocada no andar de baixo e uns poucos no andar de cima.

A desigualdade significa injustiça social que é eticamente inaceitável. Para as pessoas de fé, a injustiça social representa um pecado contra o Criador porque ofende a Ele e a seus filhos e filhas. Portanto, estamos submetidos a uma situação que não agrada a nós e também não agrada a Deus.

Grande é a busca humana por uma sociedade livre, igualitária, justa e fraterna. Em nome dela se fizeram as grandes revoluções, sempre derrotadas, mas nunca definitivamente vencidas, pois o anelo humano por liberdade, igualdade e fraternidade é imorredouro. Haverá sempre pessoas e movimentos sociais que manterão vivo este sonho e procurarão concretizá-lo na história.

Muitos são os motivos que fundam a fraternidade. Primeiramente somos todos portadores da mesma humanidade, pouco importa a origem, a cor da pele, a religião e a visão de mundo. Todos possuímos o mesmo código genético de base, presente em todos os seres vivos: os vinte aminoácidos e as quatro bases nitrogenadas. Dito numa linguagem pedestre: somos construídos por 20 tijolinhos diferentes e por quatro tipos de cimento. Combinados os tijolinhos e amalgamados pelos vários tipos de cimento, emerge a biodiversidade. Quer dizer, existe um laço de fraternidade real entre todos os seres vivos e especialmente entre os humanos. A fraternidade é universal, a natureza incluída.

Outra razão da fraternidade é o fato de todos os seres, também os humanos, possuírem algo em comum: viemos do barro da Terra. Homo, ser humano, procede de humus terra boa e fértil. Da mesma forma, o nosso ancestral bíblico Adam  se deriva de adamah que quer dizer: terra arável e fecunda. Desse barro o Criador nos tirou e moldou como suas criaturas, todos irmanados entre si.

Estas raízes comuns clamam para vivermos em fraternidade universal e ilimitada. Este foi o sonho de Jesus advertindo que ninguém seja chamado de mestre, poque todos somos irmãos e irmãs. A fraternidade sem fronteiras foi a busca ardente de São Francisco de Assis que chamava a todos os seres da natureza com o doce nome de irmãos e irmãs. Foi conversar com o sultão muçulmano no Egito porque queria uma fraternidade universal que implicava incluir cristãos e não cristãos. É o grande sonho de Francisco de Roma, o atual Papa que escreveu uma corajosa encíclica Fratelli tutti, “todos irmãos e irmãs” como resposta a um mundo globalizado que cria sócios, mas não irmãos e irmãs, nos faz virtualmente próximos, mas realmente distantes por causa da riqueza de alguns à custa da pobreza de muitos.

Dentro do mundo atual, fundado sobre o poder-dominação sobre pessoas, sobre povos e sobre a natureza, a fraternidade universal não possui condições de realização. No entanto, se não conhece viabilidade, ela pode ser uma atitude permanente, um modo de ser, um espírito que impregna todas as relações entre as pessoas e também as institucionais, de participação igualitária e cooperativa. Tudo isso à condição de renunciarmos ao poder-dominação e de termos humildade, não como uma virtude ascética, mas como um molhar nossas raízes no mesmo humus de onde a natureza e nós garantimos nossa existência, vendo cada ser e cada pessoa um irmão e uma irmã, com a mesma origem e o mesmo destino. Entre irmãos e irmãs vigora amor, cuidado e um profundo sentimento de pertença.

Devido às ameaças sérias que pesam sobre a Mãe Terra super-explorada e a dilaceração do tecido social das nações, a fraternidade sem fronteiras, como um novo tipo de presença no mundo, nos poderá salvar. Este livro Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal quer trazer ao debate a urgência do amor social e da fraternidade universal, pelo menos como um modo de ser terno e despojado da vontade de poder-dominação, criando um laço de afeto e de cuidado entre todos do mundo natural e do mundo humano.


Leonardo Boff, 1938, doutorou-se em Munique em teologia sistemática. Foi professor de teologia por 22 anos no Instituo Teológico Franciscano de Petrópolis, posteriormente doutorou-se em filosofia na UERJ e foi professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia Filosófica na Universidade do Rio de Janeiro. Foi professor visitante em várias universidades europeias. Foi editor religioso por muitos anos da Editora Vozes e coordenou a publicação da obra completa de C.G.Jung.  É portador do prêmio Nobel alternativo da Paz de 2001 pelo Parlamento sueco. É detentor de vários títulos de doutorado honoris causa de distintas Universidades. Escreveu cerca de cem livros nas áreas da teologia, da filosofia, da espiritualidade e da ecologia.

 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A BÍBLIA APROVA RELAÇÕES HOMOAFETIVAS?

 Frei Betto


 

       O Catecismo da Igreja Católica (2357/140) considera o relato de Sodoma em Gênesis 19,1-19 uma referência fundamental para a proibição absoluta de relação homossexual. Contudo, a maioria dos exegetas, especialistas em Bíblia, afirma, com base no método histórico-crítico, que aquela passagem bíblica se refere à hospitalidade e ao abuso sexual “e não tem praticamente qualquer relevância para a discussão sobre pessoas com orientação homossexual em relacionamentos amorosos monogâmicos e comprometidos” (Todd A. Salzman e Michael G. Lawter, A pessoa sexual – por uma antropologia católica renovada, São Leopoldo, Unisinos, 2012, p. 23).

       Grécia e Roma antigas eram tolerantes com a homossexualidade. O casamento monogâmico era considerado a base da vida social, embora a prática sexual não ficasse restrita ao casamento. Entre homens e mulheres da elite relações eróticas podiam ser buscadas fora do casamento (Judith P. Hallett, Women’s Lives in the Ancient Mediterranean, in Women and Christian OriginsNova York/ Oxford: Oxford University Press, 1999, pp. 13-34). Permitiam-se o concubinato, a prostituição e a relação homossexual com escravos.

Escreveu Demóstenes: “Mantemos meretrizes pelo bem do prazer; concubinas, pelo cuidado diário de nossas pessoas; e esposas para nos dar filhos legítimos e serem fieis guardiãs de nossos lares” (Against Neaera, 122; in Demosthenis orationes, Oxford/Carendon, ed. William Rennie, 1931, p. 1385).

       Grécia e Roma admitiam o divórcio, e os romanos protegiam economicamente as mulheres divorciadas. Os dois impérios aprovavam o controle da natalidade, inclusive o aborto. O matrimônio não era uma questão de amor, e sim de assegurar herdeiros. O amor mais nobre consistia na relação entre homens. Eles desfrutavam de uma igualdade de direitos que as mulheres jamais alcançaram. Estas pertenciam aos pais e aos maridos, e a homossexualidade entre elas era considerada adultério. O mais comum era a relação entre homens adultos e homens jovens.

       Para Platão e Aristóteles, a relação sexual era algo inferior, mais próximo do reino animal. Na visão de Platão, elevados eram o bem, a beleza e a verdade. No entanto, na República e nas Leis ele defende a igualdade entre homens e mulheres. 

       Já Aristóteles se opunha. Mas quem mais influiu no enfoque cristão da sexualidade, predominante ainda hoje na cultura ocidental, foram os estoicos como Musônio Rufo, em Reliquiae, e Sêneca, em Fragmentos. Alertam que o desejo e a atividade sexual são passíveis de excesso. Para eles, a relação sexual só é moral quando tem por fim procriar. É o que prescreve, ainda hoje, a doutrina oficial da Igreja Católica. Portanto, não se justificam relações homoafetivas. Os estoicos tardios condenaram o sexo fora do casamento.

       A Bíblia foi escrita em um contexto patriarcal, machista, embora apresente exceções, como as parteiras hebreias que se recusaram a obedecer a ordem do faraó do Egito de matarem seus filhos do sexo masculino (Êxodo 1,15-22); duas filhas de Lot embebedaram o pai para se engravidar dele (Gênesis 19,30-38); Ruth se mostra sexualmente disponível para Boaz (Ruth 3, 1-15); a rainha Vasti se nega a obedecer o marido bêbado (Ester 1, 1-12); as atitudes de Jesus com as mulheres, sempre com alteridade; e Paulo adota uma postura ambígua, diz que as mulheres devem ser submissas a seus maridos (Efésios 5,22) e também defende a igualdade entre homens e mulheres (Gálatas 3,28 e 1 Coríntios 7,3-4). Ao contrário das culturas antigas, a hebraica não diviniza a sexualidade. 

       O mais erótico texto da Bíblia, o livro dos Cântico dos Cânticos, iguala homens e mulheres, pois no diálogo falam no mesmo tom, como observou Barth. 

       A Bíblia não pode ser tomada ao pé da letra. Todo texto deve ser lido dentro de seu contexto. Pinçar a frase de um autor para embasar uma afirmativa é correr o risco de adulterar o sentido da narrativa. Antes de fazer da frase bandeira das próprias convicções, um mínimo de honestidade intelectual exige que se pergunte qual o sentido na narrativa, o que o autor quis dizer, qual o significado das palavras.

       Nenhum livro sofre mais abuso de ser tomado em vão do que a Bíblia. Para nós cristãos, judeus e muçulmanos, descontextualizar a Palavra de Deus é violá-la. Há pessoas tão apegadas à letra do texto bíblico (e não ao Espírito, como sugere o apóstolo Paulo) que, por ignorância, acreditam mesmo que toda a humanidade decorre de um casal, Adão e Eva. Não se dão conta de que a Bíblia jamais teve a pretensão de fazer ciência. É um livro religioso, escrito em diferentes épocas e à luz de distintas culturas. Adão, em hebraico, significa homem feito de barro; Eva, vida. E Gênesis quer apenas nos ensinar que, graças ao Criador, a vida humana brotou da natureza.

       Ler a Bíblia fora do contexto pode induzir o fiel desavisado a odiar seu pai e sua mãe para aderir a Jesus (Lucas 14,26). Um cristão tinha por hábito sortear, toda manhã, um versículo dos evangelhos como motivação espiritual. Ao abrir o texto em “Amai o próximo como a si mesmo”, adotou, naquele dia, postura mais atenciosa com a faxineira, o ascensorista e a copeira do escritório. 

       Dia seguinte, caiu-lhe o versículo 5 do capítulo 27 de Mateus sobre a culpa de Judas: “E ele foi e se enforcou”. Ciente de que a vida é o dom maior de Deus, permitiu-se outra chance. Deparou-se com o último versículo da parábola do Bom Samaritano: “Vá e faça o mesmo”. 

       Ora, como Deus não quer o mal, ele se deu uma última oportunidade. Veio-lhe este versículo da paixão de Jesus em João: “O que tem a fazer, faça depressa” (13,27)...

       O teólogo e biblista Marcelo Barros conta a história de um pastor que, em Los Angeles, mantinha um programa de TV muito apreciado nas manhãs de sábado. Um dia, o pastor leu no auditório a carta que recebera:

       “Caro pastor Jeffrey, me chamo Jonathan Pierce. Tenho 40 anos e frequento a Igreja Batista da North Street. Há alguns dias, ao chegar em casa, encontrei minha esposa deitada com outro homem. Rompi o casamento e abandonei o lar. Minha filha adolescente deu razão à mãe, com o pretexto de que sou muito ausente e minha esposa tem direito de ser feliz”.

       “Nesse momento de grande sofrimento, recebi ajuda de um amigo de infância que é gay e sempre me quis como companheiro. Penso em fazer uma experiência nova neste caminho. No entanto, o pastor de minha Igreja avisou que eu teria de deixar a comunidade. Por isso, lhe escrevo para perguntar se o senhor receberia a mim e ao meu companheiro em sua Igreja”.

       Após ler a carta, o pastor respondeu: 

       “Caro Jonathan. Podemos aceitá-lo em nossa Igreja se você rejeitar o pecado e renunciar ao vício. Seguimos a Bíblia Sagrada e, de acordo com Levítico 20, versículo 13, se um homem deita com outro homem ambos cometem abominação e devem ser eliminados da comunidade. Portanto, se você desistir deste mau caminho e se converter, será bem-vindo em nossa Igreja. Deus o abençoe”. 

       No sábado seguinte, o pastor abriu o programa com fisionomia tensa, e explicou aos telespectadores: “Meus irmãos, a Justiça do Estado da Califórnia me obriga a ler aqui esta carta:”

       “Caro pastor Jeffrey, quero agradecer sinceramente ao senhor por ter me orientado e me guiado para o texto sagrado da Bíblia neste momento difícil que estou vivendo. O senhor citou o capítulo 20, versículo 13 do Levítico, para mostrar que não posso participar da Igreja se deito com outro homem, e isso me foi muito útil. Agradeço muito. Principalmente porque abri a Bíblia e li o capítulo. E descobri que o senhor tem toda razão. O versículo 13 diz que se eu dormir com outro homem devo ser morto. Mas, achei maravilhoso descobrir, no mesmo livro, capítulo 20, versículo 10, que a minha mulher e o homem que se deitou com ela devem ser apedrejados, e minha filha, que me rejeitou como pai e tomou posição contra mim, também (versículo 9). Portanto, venho com esta carta afirmar que renuncio a viver relações homoafetivas, mas faço questão de apedrejar minha mulher adúltera, o homem com o qual ela se deitou e a minha filha rebelde. Como sei que o senhor cumpre a Bíblia Sagrada ao pé da letra, então, peço que junte as pedras, porque no próximo sábado, às nove da manhã, na hora do culto, chegarei aí com minha mulher e minha filha amarradas e nuas, como manda a lei de Deus, e também com o homem pecador. E nós, crentes de Deus, vamos apedrejar os três até morrerem. E aí, sim, cumpriremos o capítulo do Levítico que o senhor me ensinou a ler. Muito obrigado. Atenciosamente, Jonathan Pierce”.  

       Jesus criticou duramente os fariseus por tomarem a Bíblia ao pé de letra, como pagar o dízimo, e deixarem de lado o que importa – a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mateus 23,23).

 

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de quarentena” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A coragem e a lucidez da Irmã Lúcia Caram

 

 Eduardo Hoornaert.


 

Uma das últimas notícias do ano 2021, no campo religioso, é das mais insólitas. E mais interessantes. No início de dezembro, o Convento de Santa Clara, en Manresa, na Catalunha (Espanha), anunciou que deixava de ser um convento de clausura para poder exercer um trabalho em favor dos mais vulneráveis da sociedade.

Santa Clara de Manresa é uma fundação muito antiga, oriunda do movimento franciscano em seus inícios. Já entre o final do século XIII e início do século XIV, irmãs de Santa Clara se estabelecem em Manresa, no exato lugar onde Inácio de Loyola, mais de dois séculos depois (no século XVI) vai meditar e planejar a formação da Companhia de Jesus. O impressionante conjunto de edifícios passa, no XVII, para as mãos de irmãs dominicanas de clausura.

Agora, recentemente, a religiosa dominicana Lúcia Caram, de origem argentina, passou a ser superiora de Santa Clara e começou uma experiência de passagem de vida contemplativa à vida religiosa ativa, de caráter social. Seguida por diversas religiosas, apoiada pelo Papa Francisco,

 

a irmã Lúcia Caram (à direita do papa, na foto), juntamente com um grupo de religiosas dominicanas, conseguiu se desvincular da Federação Dominicana chamada Imaculada e mudar as regras de vida da comunidade religiosa. O grupo conseguiu superar impedimentos burocráticos. A iniciativa no sentido de abandonar uma regra incompatível com um trabalho social em favor dos necessitados - algo que essas irmãs vêm realizando desde mais de uma década sob a liderança de Lúcia Caram através da ‘Fundação do Convento de Santa Clara’ – tem redundâncias de longo alcance e nos aponta a possibilidade de abandono de um princípio, que orienta a vida religiosa desde muitos séculos. Uma mudança ainda incerta nos dias que correm (afinal, a experiência de Santa Clara em Manresa é algo muito isolado pelo momento), mas que merece nossa atenção e reflexão. Daí o texto que segue.

 

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O princípio contemplativo.

 

Temos de cavar fundo na história para perceber o que está por trás da decisão daquelas irmãs de Santa Clara em Manresa. Na opção por vida contemplativa, entra um fator absoluto e um fator relativo. O fator absoluto reside na vinda de Deus numa vida humana, o relativo ao fato que a resposta ao apelo de Deus é historicamente condicionada e, portanto, sujeita a precariedades, provisoriedades e fragilidades próprias de tudo que é histórico. No caso da opção por uma vida contemplativa, entram, ao lado do mencionado fator absoluto, os condicionamentos da tradição cristã no longínquo século III.  

No século III dC, o cristianismo se impregna progressivamente de elementos da cultura helenística, hegemônica em toda extensão do Império Romano da época. Forma-se um só tecido, em que sabedoria grega e espírito cristão de tal modo se entrelaçam que fica quase impossível destrinchar o que provém do evangelho e o que deriva de influências helenísticas na época, concretamente da sabedoria neoplatônica.   

 

Explico-me. Quando, no ano 244 dC, o filósofo alexandrino neoplatônico Plotino (203-269 dC), aparece em Roma e aí forma uma escola de filosofia, ele alcança um renome extraordinário em poucos anos. A filosofia de Plotino, na realidade uma sabedoria de vida, capta admiravelmente a solidão dos indivíduos nas grandes cidades do Império Romano. Ao sentimento de vazio, ela responde com uma arte de vida que ensina o amor pelas realidades espirituais, a purificação do amor, partindo do que é ‘material’ ao que é ‘espiritual’.

O sucesso dessa filosofia é tão intenso que o neoplatonismo vai permeando aos poucos a inteligência e a espiritualidade cristãs. Não exagero quando falo aqui em ‘violação'. A ‘alma’ (psuchè) da filosofia platônica de tal modo subjuga o ‘espírito’ (ruah) da tradição bíblica, que esse último quase desaparece. Uma absorção quase completa. Cria-se uma confusão que perdura por longos séculos. Muitos confundem ‘alma’ (princípio oposto a ‘corpo’, segundo Platão) com ‘espírito’ em sentido bíblico. Passa-se a falar em ‘espiritualidade’ num sentido platônico, dentro da pressuposição de um ‘espírito mergulhado em matéria’.

Nas comunidades cristãs se opera um progressivo processo avassalador. Tudo começa nas comunidades de Alexandria, no Egito, a segunda cidade do Império Romano, onde, já no início do século III, as interpretações neoplatônicas tomam conta da reflexão cristã, como se verifica nos escritos de Clemente de Alexandria e Orígenes, e se alastra pelas comunidades espalhadas pelo universo do Império Romano. Aparece uma multiplicidade heterogênea de filosofias e ‘artes de vida’, todas inspiradas nas ideias do filósofo grego Platão, atingindo comunidades cristãs pelo mundo afora. Podemos dizer que Plotino promove uma síntese entre o pensamento grego e a visão bíblica do mundo, o que, para muitos observadores, é um enriquecimento. Não será que estamos aqui, na realidade, diante de um ocultamento? O ocultamento da dimensão social da vida cristã, o esquecimento do imperativo evangélico da opção por fracos e despossuídos?

 

O neoplatonismo cristão, ao se caracterizar por uma categórica oposição entre o espiritual e o carnal, resulta na aversão frente ao mundo dos sentidos, os cinco sentidos que nos colocam em relação ao mundo e nos fazem enxergar o que nele se passa. O mestre neoplatônico recomenda uma rigorosa ascese, com a finalidade de a pessoa se libertar da matéria. Isso fica claro nos escritos dos Padres da Igreja, os intelectuais dos séculos III a V, todos, de um ou outro modo, afetados pelo neoplatonismo. No século V, Agostinho abre largas portas para sabedorias neoplatônicas, que doravante se infiltram em sermões, catecismos, teologias. No neoplatonismo agostiniano, tempo e história perdem seu sentido. O cristão neoplatônico não pensa em política, nem em questões sociais. Para ele, o drama se processa entre a alma e Deus. Os impulsos do corpo devem ser controlados e possivelmente eliminados. O acento cai na contemplação e na meditação, nos chamados ‘exercícios espirituais’. Enfim, tudo emana da razão e da vontade, não dos impulsos do corpo. O corpo deve ser mortificado.

 

Dou alguns dados a mais, acerca da compreensão platônica do mundo e da vida. Abaixo do mundo divino, onde o mal não penetra, existe a matéria, onde a luz divina só penetra em forma de sombra (veja o ‘mito da caverna’, de Platão). A matéria é o último reduto das trevas, a raiz do mal que afeta a vida humana. O corpo, morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: ou se deixa seduzir pelas formas vãs da matéria, ou se fascina com a luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro, mas pode se tornar trampolim para a luz. Precisa a alma tomar distância diante dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas realidades espirituais, pela purificação do amor. O homem precisa deixar para trás o mundo material e caminhar para o mundo espiritual. Precisa a alma arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos olhos esperam a chegada da luz do sol. Para perceber a luz espiritual, há de se exercitar a ‘contemplação’. Quando o sol chega, ele logo toma conta de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria. Eis algumas imagens usadas por Plotino.

 

O resultado: enquanto o neoplatonismo se ‘cristianiza’, o cristianismo se ‘neoplatoniza’. Esse é o processo. A perspectiva social, onipresente nos evangelhos, desvanece. Aparece um drama de outro tipo, o drama que se processa entre a ‘alma’ e Deus. Os impulsos do corpo são controlados e possivelmente eliminados, enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a contemplação de Deus.

A facilidade com que o neoplatonismo penetra no mundo cristão se deve, entre outros, ao fato que ele, impregnado de um senso religioso agudo e místico em seus intentos, parte de uma concepção muito próxima ao monoteísmo bíblico, o que faz com que muitos confundam as coisas e não consigam distinguir com clareza entre cristianismo e neoplatonismo.

 

Termino ressaltando que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma lenta, quase imperceptível. Nem sempre aparece com clareza no nível dos textos. Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão imbuído de ideias neoplatônicas ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos. O caso de Agostinho (século V) é sintomático: será ele um místico neoplatônico que usa categorias cristãs ou um místico cristão que recorre a categorias platônicas? Quem dirá?

 

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Conventos de clausura.

 

A expressão convento de clausura, que aparece nos termos da decisão tomada pela Irmã Lúcia Caram e suas coirmãs em Manresa, tem a ver com o que acabo de descrever. Tem a ver com espiritualidade neoplatônica.

 

Explico. Sendo a filosofia neoplatônica uma arte de viver, ela tem um grande impacto na vida cotidiana, não só nas altas classes romanas, mas igualmente no meio do povo, nas comunidades cristãs. É dessa impregnação que nasce o movimento monacal. Já no século III, o século de Plotino, grupos andam pelo mundo à procura de ‘espiritualidade’. Grupos compostos de pessoas que rejeitam o modo de vida na cidade e preferem andar pelo mundo. Os ‘monachoi’ são, em sua maioria, camponeses que vivem à margem do mundo estabelecido, nos terrenos ainda inexplorados que rodeiam as cidades e vilarejos do Oriente cristão. Sua experiência nos fornece um ‘insight’ na vida de coptas, sírios, palestinenses, capadócios, habitantes do Ponto, africanos do norte, etc. nos séculos III e IV. Gente que, de outro modo, nunca teria entrado na literatura.

O ‘monachos’ (monge) anda sozinho, ele não se estabelece numa ‘casa’, mas anda só, sem vínculo (em grego, a palavra ‘monos’ significa ‘solitário, sem vínculo’), recusa a vida cidadã sedentária. Ele ‘foge do mundo’ e ‘vai ao deserto’.

Todas as localidades do mundo romano antigo têm seu ‘deserto’ (seu ‘erèmos’, em grego). Ou, para falar em termos brasileiros, seu ‘mato’. É no mato, em torno das conglomerações humanas, onde vivem os bichos, que encontramos o monge, que precisa vencer o medo dos bichos (alguns perigosos como leões e cobras) e saber arranjar sua comida (normalmente por mendicância) para sobreviver. Normalmente, a distância topográfica entre a cidade e o ‘deserto’ é pequena. Muitos desses ‘anacoretas’, ‘eremitas’ ou ‘monges’ vivem ao alcance da vista das pessoas que vivem na cidade ou no vilarejo. O monge fica por um período longo numa cela solitária rezando, jejuando, sem falar com ninguém. A qualquer momento ele parte de novo e vai caminhando, se for monge de verdade.

Com o tempo, principalmente na imensidão do Egito, esses ‘monges’ e ‘monjas’ se congregam em casas comuns, em ‘mosteiros’ ou ‘conventos’.  Exemplo paradigmático é a ‘congregação’ em torno do monge Pacômio, que já conta com três mil mosteiros em 340, data de sua morte.

A experiência se desdobra, ganha corpo, atravessa os séculos, conquista o universo cristão e acaba marcando profundamente o universo cristão, tanto no Ocidente como no Oriente.

 

Sabemos todos/as que o monarquismo não se restringe ao mundo cristão e que existem, milenarmente, monaquismos budistas, hinduístas e shintoistas, hoje com crescente influência no mundo cristão. Por isso quero deixar claro que aqui só trato de monaquismo cristão de cunho platônico e que me limito a afirmar que é esse tipo de monaquismo que se espalhou larga e longamente no universo cristão e o caracteriza até hoje. Meu intento consiste em mostrar que a impressionante proliferação de conventos de clausura e mosteiros, ao longo de séculos, muito tem a ver com um movimento de espiritualidade grego-cristã, denominado neo-platonismo, com os pressupostos acima descritos.

 

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A coragem e a lucidez da Irmã Lúcia Caram.

 

Diante desse painel histórico, as figuras da Irmã dominicana Lúcia Caram e de suas coirmãs ganham alto relevo. Essas mulheres captam o que se passa no mundo e percebem que um modelo de vida religiosa vai esvaecendo. Decidem abandonar a vida ‘contemplativa’ e abraçar a vida religiosa ‘ativa’. Vanguarda de uma geração que entende que o declínio do paradigma contemplativo acontece por toda parte, de modo variado e intermitente, com altos e baixos, sucessos e derrotas, oposições e adesões.

As religiosas de Manresa sabem que o instituto eclesiástico, em geral, reage com nervosismo diante desse declínio em marcha e não se sente bem no novo mundo que vai se delineando. Sabem que isso gera um labirinto tão intricado de explicações, controvérsias e hipóteses, que resulta praticamente impossível traçar linhas minimamente claras. Elas sabem igualmente que a ´vida religiosa‘, em não poucos aspectos proveniente do passado, está na iminência de perder o trem da história e que a igreja está numa encruzilhada, parada. Ainda não decidiu que direção tomar, ainda não respondeu aos desafios de nosso tempo.

O perigo de descarrilamento é real. Se não houver posicionamento por parte dos/as próprios/as religiosos/as, muitos conventos, principalmente os que se situam em centros históricos (e turísticos) de cidades importantes, seguirão a lógica do mercado imobiliário, ou seja, serão transformados em hotéis, pousadas ou restaurantes de luxo.

- Aqui em Salvador, já faz anos que o histórico Convento do Carmo, no centro turístico da cidade, virou um hotel cinco estrelas. 

- Na cidade em que nasci (Bruges, na Bélgica, cidade histórica), o Convento de Santa Clara foi vendido e as irmãs foram morar num castelo no sul da França.

- Em muitos lugares turísticos, ‘pousadas’ são na realidade conventos transformados.

Refiro-me apenas a alguns casos que conheço pessoalmente. Não conferi dados estatísticos (se é que existem).

 

Penso que se trata de um tema que interessa a todos/as que participamos da cultura ocidental, que sejamos cristãos ou não. Pois, não raramente, os conventos constituem um patrimônio cultural de valor e, nesse sentido, podem ser considerados patrimônios da sociedade como um todo. Seu destino interessa à sociedade como um todo.

Será tão inconveniente ver roupa lavada estendida em janelas de conventos, encontrar crianças brincando nos venerandos pátios e moradores de rua cuidando, com todo respeito, em preservar o ‘patrimônio’ em que residem? O destino, irremediavelmente, tem de ser a hotelaria, o turismo, a lógica imobiliária? Isso é irreversível?  Moradores de rua, hoje, já não se abrigam em degraus de igrejas e conventos, nos centros de nossas cidades? Por que não se lhes abre a porta?

 

Falo de um processo que só tem chances de surtir efeito por meio de uma decisão por parte dos/as efetivos religiosos/as de convento, como demonstra o exemplo das Irmãs de Manresa. Aqui, mais que em outros processos, decisões de cima para baixo correm o perigo de não dar em nada. Os superiores podem incentivar a reflexão, mas - afinal – a transformação da vida ‘contemplativa’ em vida ‘ativa’ depende de uma transformação no foro interior dos próprios habitantes de conventos. Por isso as considerações de teor histórico, que pincelei acima.

 

Termino com os depoimentos de duas pessoas que conhecem de perto a experiência de Santa Clara de Manresa:

- Josep Miquel Bausset (81 anos), monge de Montserrat na Catalunha, ao aludir à decisão das Irmãs de Manresa: A vida contemplativa se torna um problema quando deixamos de viver como discípulos de Jesus e nos tornamos uma caricatura do que teríamos de ser. Como a figueira estéril que não dá fruto.

- Gemma Morató, uma religiosa catalã muito ‘mediada’:  Não creio que nada morra com essa iniciativa das irmãs de Santa Clara. Ao contrário, é uma inovação. Oxalá muitos conventos, mosteiros, congregações e institutos se mostrem capazes de se perguntar o que lhes inspira o Espírito hoje.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Processo de diálogo nas Igrejas e no mundo

 Marcelo Barros


 

Nesta terça-feira, 25 de janeiro, data na qual as Igrejas antigas celebram a memória da conversão do apóstolo Paulo, ao cair da tarde, em Roma, o papa Francisco coordenará uma oração ecumênica com cristãos e cristãs de várias Igrejas, para concluir as celebrações da Semana de Orações pela Unidade das Igrejas. Na Europa, este evento ecumênico ocorreu nesta semana. No Brasil, a cada ano, é realizada em maio, antes da festa de Pentecostes.

Aparentemente, a preocupação com o diálogo e a busca da unidade é uma questão interna do Cristianismo. No entanto, a unidade entre as Igrejas não pode ser dissociada da busca de diálogo e cooperação das grandes religiões do mundo a serviço da justiça, da paz e do cuidado com a mãe Terra e toda a natureza que nos cerca. Atualmente, o mundo está cada vez mais marcado por imensas desigualdades sociais e dividido por tensões e conflitos que provocam sofrimentos para grande parte da humanidade. Por isso, é importante  que as Igrejas cristãs possam dar sinal de que a vocação de todos os grupos e pessoas que buscam viver a espiritualidade é o caminho do diálogo e da unidade. Na história, foram as antigas tradições espirituais que, por primeiro, escreveram em forma de diálogos. Na Índia do século V ou VI antes da nossa era, o Bhagavadgita, a divina canção, foi escrito em forma de diálogo entre Khrisna e Arjuna. Na China, os ensinamentos do mestre Confúcio foram em forma de diálogos. No Judaísmo, a maioria dos midraxes rabínicos são diálogos entre mestre e discípulo. Nos evangelhos, Jesus conta quase todas as parábolas em conversa ou respondendo pergunta a seus discípulos e discípulas. Assim, fica claro que o diálogo é caminho de espiritualidade. Na primeira encíclica que escreveu, o papa Paulo VI afirmava: “Quem inventou o diálogo foi o próprio Deus”.

Infelizmente, à medida que as religiões se tornaram dogmáticas e institucionalmente autoritárias, essa espiritualidade do diálogo foi esquecida e, ao contrário, os movimentos religiosos mais apegados à tradição consideram o diálogo como pecado contra a pureza da fé. Desse modo, as religiões acabaram semeando intolerância e mesmo violência. No decorrer dos tempos, até guerras e conflitos foram motivadas por religiões. Só nas últimas décadas, líderes religiosos de várias tradições têm afirmado: nenhuma guerra é sagrada. Nenhuma violência é santa. 

Atualmente, a ONU tem entidades inter-religiosas como a Iniciativa das Religiões Unidas (em inglês a sigla é URI) que a assessora como mediadora de conflitos e promotora da Paz, sempre que há religiões envolvidas na divisão e na contenda.

A Igreja Católica e o Conselho Mundial de Igrejas que reúne Igrejas ortodoxas, evangélicas históricas e pentecostais, propõem que se pratique o diálogo intercultural e inter-religioso em várias dimensões ou etapas que se intercruzam e muitas vezes são concomitantes:

1 - o diálogo da vida que se caracteriza pelo conhecer as pessoas e criar relações de confiança e, quando possível, amizade. 

2 – o diálogo do serviço, quando pessoas e grupos de diversas culturas e de diversas religiões se unem em defesa da Ecologia, da Justiça social, da Paz ou de qualquer causa nobre da humanidade.

3 – o diálogo da fé quando, já capazes de falar a mesma linguagem humana da confiança mútua e já unidos nas causas sociais, as pessoas ou grupos podem dialogar sobre suas crenças e suas doutrinas. Não para unifica-las, mas para aprender umas com as outras que Deus aceita falar muitos idiomas humanos e as religiões são essas linguagens humanas que, cada uma do seu jeito, expressam o amor divino.

4 – o diálogo da oração e da espiritualidade, no qual uma tradição se enriquece com a forma como a outra ora, canta e expressa o seu amor a Deus e principalmente o Amor Divino pela humanidade e pelo universo.

Assim, vemos como é importante que as Igrejas caminhem juntas na trilha da unidade e as religiões no caminho do diálogo para que a humanidade inteira, independentemente de religiões viva profundamente aquilo que o papa Francisco em sua encíclica Fratelli Tutti chamou de “fraternidade universal e amizade social”.  

 

sábado, 22 de janeiro de 2022

A religião e o futebol são o ópio do povo

 


Prof. Martinho Condini


 

A Copa São Paulo de Futebol Júnior, conhecida como "Copinha", é a maior competição de futebol júnior do Brasil, disputada por clubes juniores de todo o país. Ela começou em 1969, e só não foi realizada em 2021 por causa da pandemia.  Organizada pela Federação Paulista de Futebol, este ano é 52ª edição. Ela disputada em cidades do Estado de São Paulo e a final acontece sempre na capital paulista no dia 25 de janeiro, data de aniversário da cidade de São Paulo.

Ao ler uma reportagem da Folha de São Paulo, sobre a “Copinha”, fiquei sabendo que este ano participa um time da cidade de Irecê, no interior da Bahia, o Canaã Esporte Clube, que possui um centro de treinamento, construído a beira da BA-052, Estrada do Feijão.

Lá, os atletas têm escola, cinco refeições, são acompanhados de nutricionistas, há cinco campos de treinamento à disposição e departamento de fisioterapia. Uma estrutura compatível aos grandes clubes do Brasil. Sem sombra de dúvida uma estrutura que possibilita esses jovens se alimentarem, estudarem e quem sabe galgar a tão sonhada profissionalização como jogador num grande time do futebol do Brasil. O Canaã Esporte Clube está integrado a um projeto social que oferece educação e assistência social para cerca de 600 crianças em Irecê.

Entretanto, essa equipe e toda essa estrutura está ligada à Igreja Universal do Reino de Deus. O presidente Sérgio Correa e o diretor de futebol Mauricio Amaral, ambos são bispos da Igreja. Mas oficialmente não se confirma qualquer participação ou convênio entre o clube e a Universal.

Até aí nenhum problema, até porque vários clubes brasileiros têm por de traz de suas estruturas uma empresa também. E os jogadores desses clubes tem liberdade religiosa, política, de gênero e de se vestir como bem entenderem e usar seus cabelos como quiserem, raspado, pintado ou cumprido.

Toda via, no Canaã Esporte Clube, a banda toca de outra maneira, são estabelecidas regras rígidas, isto é, doutrinação na pior concepção da palavra. Se é que doutrinação pode ter alguma concepção positiva.

Em campo os palavrões são proibidos. No início da partida, os 11 jogadores do Canaã se ajoelham e erguem as mãos para o alto, em oração. Após o jogo, o “Pai Nosso” é rezado em uma só voz por todos os jogadores que afirmam “se Jesus é meu amigo, contra mim ninguém será. ”

Mas alguém pode dizer, fazem isso de livre e espontânea vontade. Mas é o time inteiro!?

 Além disso os atletas não podem pintar o cabelo, ter cortes considerados diferentes, usar brinco ou usar boné. Alguns carregam uma Bíblia ao sair do vestiário. Segundo jogadores e integrantes da comissão técnica, todos são convidados a frequentar os cultos evangélicos, mas não são obrigados. Há exigência de ser cristão.

Então, um jovem que frequenta o Candomblé, a Umbanda, o judaísmo, o islamismo ou nenhuma religião e é ateu não poderá fazer parte do time do Canaã Esporte Clube, é isso?

Afinal de contas, o Canaã está à procura de goleiros, zagueiros e centroavantes ou de obreiros, pastores e bispos para o seu time de fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus no interior da Bahia?

Quando as religiões são utilizadas para ludibriar as pessoas, elas simplesmente perdem todo o sentido da sua existência, se é que elas têm algum sentido. Aí me remeto a Marx que dizia que a “religião é o ópio do povo”.

Em relação a essa afirmação de Marx, lembro-me do grande Dom Helder Camara, que um dia afirmou “Se Marx tivesse conhecido as comunidades eclesiais de base, não diria que a religião é o ópio do povo” e acrescento, também a Teologia da Libertação.

E há também os que dizem que o futebol é o ópio do povo. Essa afirmação pode ser confirmada com pelo menos dois fatos. Na Copa do Mundo de Futebol no México em 1970, a vergonhosa Ditadura Militar no Brasil, utilizou a conquista do tri campeonato mundial para esconder o que estava acontecendo nos porões da ditadura, as torturas e mortes, para a grande maioria da população brasileira. Em relação a postura dos jogadores e comissão técnica daquele elenco naquele período sem comentários. Poderiam ter falado para o mundo o que se passava nesse Brasil do “Ame ou deixe-o”, mas simplesmente se calaram.

O mesmo ocorreu na Argentina no período da ditadura militar, quando em 1978 realizou a Copa do Mundo de Futebol em seu território, e não só esconderam as mazelas do regime opressor, como também manipularam resultado para chegar à final e se tornarem campeões mundiais. E nem uma palavra dos vencedores sobre o que ocorria com os hermanos argentinos.

Enfim, não sei até onde o Canaã Esporte Clube vai chegar nessa “Copinha”, nem é isso que interessa. O mais importante é que esses jovens com tantos sonhos, não deixem que suas vontades, e principalmente que suas liberdades sejam castradas ou por instituições religiosas ou times de futebol inescrupulosos.

Que os “Deuses do Futebol” olhem para esses meninos afim de orientá-los para que possam ser livres em suas atitudes, escolhas e pensamento. Nada é mais precioso que a liberdade.

 O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com