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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A coragem e a lucidez da Irmã Lúcia Caram

 

 Eduardo Hoornaert.


 

Uma das últimas notícias do ano 2021, no campo religioso, é das mais insólitas. E mais interessantes. No início de dezembro, o Convento de Santa Clara, en Manresa, na Catalunha (Espanha), anunciou que deixava de ser um convento de clausura para poder exercer um trabalho em favor dos mais vulneráveis da sociedade.

Santa Clara de Manresa é uma fundação muito antiga, oriunda do movimento franciscano em seus inícios. Já entre o final do século XIII e início do século XIV, irmãs de Santa Clara se estabelecem em Manresa, no exato lugar onde Inácio de Loyola, mais de dois séculos depois (no século XVI) vai meditar e planejar a formação da Companhia de Jesus. O impressionante conjunto de edifícios passa, no XVII, para as mãos de irmãs dominicanas de clausura.

Agora, recentemente, a religiosa dominicana Lúcia Caram, de origem argentina, passou a ser superiora de Santa Clara e começou uma experiência de passagem de vida contemplativa à vida religiosa ativa, de caráter social. Seguida por diversas religiosas, apoiada pelo Papa Francisco,

 

a irmã Lúcia Caram (à direita do papa, na foto), juntamente com um grupo de religiosas dominicanas, conseguiu se desvincular da Federação Dominicana chamada Imaculada e mudar as regras de vida da comunidade religiosa. O grupo conseguiu superar impedimentos burocráticos. A iniciativa no sentido de abandonar uma regra incompatível com um trabalho social em favor dos necessitados - algo que essas irmãs vêm realizando desde mais de uma década sob a liderança de Lúcia Caram através da ‘Fundação do Convento de Santa Clara’ – tem redundâncias de longo alcance e nos aponta a possibilidade de abandono de um princípio, que orienta a vida religiosa desde muitos séculos. Uma mudança ainda incerta nos dias que correm (afinal, a experiência de Santa Clara em Manresa é algo muito isolado pelo momento), mas que merece nossa atenção e reflexão. Daí o texto que segue.

 

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O princípio contemplativo.

 

Temos de cavar fundo na história para perceber o que está por trás da decisão daquelas irmãs de Santa Clara em Manresa. Na opção por vida contemplativa, entra um fator absoluto e um fator relativo. O fator absoluto reside na vinda de Deus numa vida humana, o relativo ao fato que a resposta ao apelo de Deus é historicamente condicionada e, portanto, sujeita a precariedades, provisoriedades e fragilidades próprias de tudo que é histórico. No caso da opção por uma vida contemplativa, entram, ao lado do mencionado fator absoluto, os condicionamentos da tradição cristã no longínquo século III.  

No século III dC, o cristianismo se impregna progressivamente de elementos da cultura helenística, hegemônica em toda extensão do Império Romano da época. Forma-se um só tecido, em que sabedoria grega e espírito cristão de tal modo se entrelaçam que fica quase impossível destrinchar o que provém do evangelho e o que deriva de influências helenísticas na época, concretamente da sabedoria neoplatônica.   

 

Explico-me. Quando, no ano 244 dC, o filósofo alexandrino neoplatônico Plotino (203-269 dC), aparece em Roma e aí forma uma escola de filosofia, ele alcança um renome extraordinário em poucos anos. A filosofia de Plotino, na realidade uma sabedoria de vida, capta admiravelmente a solidão dos indivíduos nas grandes cidades do Império Romano. Ao sentimento de vazio, ela responde com uma arte de vida que ensina o amor pelas realidades espirituais, a purificação do amor, partindo do que é ‘material’ ao que é ‘espiritual’.

O sucesso dessa filosofia é tão intenso que o neoplatonismo vai permeando aos poucos a inteligência e a espiritualidade cristãs. Não exagero quando falo aqui em ‘violação'. A ‘alma’ (psuchè) da filosofia platônica de tal modo subjuga o ‘espírito’ (ruah) da tradição bíblica, que esse último quase desaparece. Uma absorção quase completa. Cria-se uma confusão que perdura por longos séculos. Muitos confundem ‘alma’ (princípio oposto a ‘corpo’, segundo Platão) com ‘espírito’ em sentido bíblico. Passa-se a falar em ‘espiritualidade’ num sentido platônico, dentro da pressuposição de um ‘espírito mergulhado em matéria’.

Nas comunidades cristãs se opera um progressivo processo avassalador. Tudo começa nas comunidades de Alexandria, no Egito, a segunda cidade do Império Romano, onde, já no início do século III, as interpretações neoplatônicas tomam conta da reflexão cristã, como se verifica nos escritos de Clemente de Alexandria e Orígenes, e se alastra pelas comunidades espalhadas pelo universo do Império Romano. Aparece uma multiplicidade heterogênea de filosofias e ‘artes de vida’, todas inspiradas nas ideias do filósofo grego Platão, atingindo comunidades cristãs pelo mundo afora. Podemos dizer que Plotino promove uma síntese entre o pensamento grego e a visão bíblica do mundo, o que, para muitos observadores, é um enriquecimento. Não será que estamos aqui, na realidade, diante de um ocultamento? O ocultamento da dimensão social da vida cristã, o esquecimento do imperativo evangélico da opção por fracos e despossuídos?

 

O neoplatonismo cristão, ao se caracterizar por uma categórica oposição entre o espiritual e o carnal, resulta na aversão frente ao mundo dos sentidos, os cinco sentidos que nos colocam em relação ao mundo e nos fazem enxergar o que nele se passa. O mestre neoplatônico recomenda uma rigorosa ascese, com a finalidade de a pessoa se libertar da matéria. Isso fica claro nos escritos dos Padres da Igreja, os intelectuais dos séculos III a V, todos, de um ou outro modo, afetados pelo neoplatonismo. No século V, Agostinho abre largas portas para sabedorias neoplatônicas, que doravante se infiltram em sermões, catecismos, teologias. No neoplatonismo agostiniano, tempo e história perdem seu sentido. O cristão neoplatônico não pensa em política, nem em questões sociais. Para ele, o drama se processa entre a alma e Deus. Os impulsos do corpo devem ser controlados e possivelmente eliminados. O acento cai na contemplação e na meditação, nos chamados ‘exercícios espirituais’. Enfim, tudo emana da razão e da vontade, não dos impulsos do corpo. O corpo deve ser mortificado.

 

Dou alguns dados a mais, acerca da compreensão platônica do mundo e da vida. Abaixo do mundo divino, onde o mal não penetra, existe a matéria, onde a luz divina só penetra em forma de sombra (veja o ‘mito da caverna’, de Platão). A matéria é o último reduto das trevas, a raiz do mal que afeta a vida humana. O corpo, morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: ou se deixa seduzir pelas formas vãs da matéria, ou se fascina com a luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro, mas pode se tornar trampolim para a luz. Precisa a alma tomar distância diante dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas realidades espirituais, pela purificação do amor. O homem precisa deixar para trás o mundo material e caminhar para o mundo espiritual. Precisa a alma arrancar tudo de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da materialidade e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos olhos esperam a chegada da luz do sol. Para perceber a luz espiritual, há de se exercitar a ‘contemplação’. Quando o sol chega, ele logo toma conta de tudo. A luz espiritual dissipa as trevas da matéria. Eis algumas imagens usadas por Plotino.

 

O resultado: enquanto o neoplatonismo se ‘cristianiza’, o cristianismo se ‘neoplatoniza’. Esse é o processo. A perspectiva social, onipresente nos evangelhos, desvanece. Aparece um drama de outro tipo, o drama que se processa entre a ‘alma’ e Deus. Os impulsos do corpo são controlados e possivelmente eliminados, enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a contemplação de Deus.

A facilidade com que o neoplatonismo penetra no mundo cristão se deve, entre outros, ao fato que ele, impregnado de um senso religioso agudo e místico em seus intentos, parte de uma concepção muito próxima ao monoteísmo bíblico, o que faz com que muitos confundam as coisas e não consigam distinguir com clareza entre cristianismo e neoplatonismo.

 

Termino ressaltando que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma lenta, quase imperceptível. Nem sempre aparece com clareza no nível dos textos. Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão imbuído de ideias neoplatônicas ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos cristãos. O caso de Agostinho (século V) é sintomático: será ele um místico neoplatônico que usa categorias cristãs ou um místico cristão que recorre a categorias platônicas? Quem dirá?

 

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Conventos de clausura.

 

A expressão convento de clausura, que aparece nos termos da decisão tomada pela Irmã Lúcia Caram e suas coirmãs em Manresa, tem a ver com o que acabo de descrever. Tem a ver com espiritualidade neoplatônica.

 

Explico. Sendo a filosofia neoplatônica uma arte de viver, ela tem um grande impacto na vida cotidiana, não só nas altas classes romanas, mas igualmente no meio do povo, nas comunidades cristãs. É dessa impregnação que nasce o movimento monacal. Já no século III, o século de Plotino, grupos andam pelo mundo à procura de ‘espiritualidade’. Grupos compostos de pessoas que rejeitam o modo de vida na cidade e preferem andar pelo mundo. Os ‘monachoi’ são, em sua maioria, camponeses que vivem à margem do mundo estabelecido, nos terrenos ainda inexplorados que rodeiam as cidades e vilarejos do Oriente cristão. Sua experiência nos fornece um ‘insight’ na vida de coptas, sírios, palestinenses, capadócios, habitantes do Ponto, africanos do norte, etc. nos séculos III e IV. Gente que, de outro modo, nunca teria entrado na literatura.

O ‘monachos’ (monge) anda sozinho, ele não se estabelece numa ‘casa’, mas anda só, sem vínculo (em grego, a palavra ‘monos’ significa ‘solitário, sem vínculo’), recusa a vida cidadã sedentária. Ele ‘foge do mundo’ e ‘vai ao deserto’.

Todas as localidades do mundo romano antigo têm seu ‘deserto’ (seu ‘erèmos’, em grego). Ou, para falar em termos brasileiros, seu ‘mato’. É no mato, em torno das conglomerações humanas, onde vivem os bichos, que encontramos o monge, que precisa vencer o medo dos bichos (alguns perigosos como leões e cobras) e saber arranjar sua comida (normalmente por mendicância) para sobreviver. Normalmente, a distância topográfica entre a cidade e o ‘deserto’ é pequena. Muitos desses ‘anacoretas’, ‘eremitas’ ou ‘monges’ vivem ao alcance da vista das pessoas que vivem na cidade ou no vilarejo. O monge fica por um período longo numa cela solitária rezando, jejuando, sem falar com ninguém. A qualquer momento ele parte de novo e vai caminhando, se for monge de verdade.

Com o tempo, principalmente na imensidão do Egito, esses ‘monges’ e ‘monjas’ se congregam em casas comuns, em ‘mosteiros’ ou ‘conventos’.  Exemplo paradigmático é a ‘congregação’ em torno do monge Pacômio, que já conta com três mil mosteiros em 340, data de sua morte.

A experiência se desdobra, ganha corpo, atravessa os séculos, conquista o universo cristão e acaba marcando profundamente o universo cristão, tanto no Ocidente como no Oriente.

 

Sabemos todos/as que o monarquismo não se restringe ao mundo cristão e que existem, milenarmente, monaquismos budistas, hinduístas e shintoistas, hoje com crescente influência no mundo cristão. Por isso quero deixar claro que aqui só trato de monaquismo cristão de cunho platônico e que me limito a afirmar que é esse tipo de monaquismo que se espalhou larga e longamente no universo cristão e o caracteriza até hoje. Meu intento consiste em mostrar que a impressionante proliferação de conventos de clausura e mosteiros, ao longo de séculos, muito tem a ver com um movimento de espiritualidade grego-cristã, denominado neo-platonismo, com os pressupostos acima descritos.

 

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A coragem e a lucidez da Irmã Lúcia Caram.

 

Diante desse painel histórico, as figuras da Irmã dominicana Lúcia Caram e de suas coirmãs ganham alto relevo. Essas mulheres captam o que se passa no mundo e percebem que um modelo de vida religiosa vai esvaecendo. Decidem abandonar a vida ‘contemplativa’ e abraçar a vida religiosa ‘ativa’. Vanguarda de uma geração que entende que o declínio do paradigma contemplativo acontece por toda parte, de modo variado e intermitente, com altos e baixos, sucessos e derrotas, oposições e adesões.

As religiosas de Manresa sabem que o instituto eclesiástico, em geral, reage com nervosismo diante desse declínio em marcha e não se sente bem no novo mundo que vai se delineando. Sabem que isso gera um labirinto tão intricado de explicações, controvérsias e hipóteses, que resulta praticamente impossível traçar linhas minimamente claras. Elas sabem igualmente que a ´vida religiosa‘, em não poucos aspectos proveniente do passado, está na iminência de perder o trem da história e que a igreja está numa encruzilhada, parada. Ainda não decidiu que direção tomar, ainda não respondeu aos desafios de nosso tempo.

O perigo de descarrilamento é real. Se não houver posicionamento por parte dos/as próprios/as religiosos/as, muitos conventos, principalmente os que se situam em centros históricos (e turísticos) de cidades importantes, seguirão a lógica do mercado imobiliário, ou seja, serão transformados em hotéis, pousadas ou restaurantes de luxo.

- Aqui em Salvador, já faz anos que o histórico Convento do Carmo, no centro turístico da cidade, virou um hotel cinco estrelas. 

- Na cidade em que nasci (Bruges, na Bélgica, cidade histórica), o Convento de Santa Clara foi vendido e as irmãs foram morar num castelo no sul da França.

- Em muitos lugares turísticos, ‘pousadas’ são na realidade conventos transformados.

Refiro-me apenas a alguns casos que conheço pessoalmente. Não conferi dados estatísticos (se é que existem).

 

Penso que se trata de um tema que interessa a todos/as que participamos da cultura ocidental, que sejamos cristãos ou não. Pois, não raramente, os conventos constituem um patrimônio cultural de valor e, nesse sentido, podem ser considerados patrimônios da sociedade como um todo. Seu destino interessa à sociedade como um todo.

Será tão inconveniente ver roupa lavada estendida em janelas de conventos, encontrar crianças brincando nos venerandos pátios e moradores de rua cuidando, com todo respeito, em preservar o ‘patrimônio’ em que residem? O destino, irremediavelmente, tem de ser a hotelaria, o turismo, a lógica imobiliária? Isso é irreversível?  Moradores de rua, hoje, já não se abrigam em degraus de igrejas e conventos, nos centros de nossas cidades? Por que não se lhes abre a porta?

 

Falo de um processo que só tem chances de surtir efeito por meio de uma decisão por parte dos/as efetivos religiosos/as de convento, como demonstra o exemplo das Irmãs de Manresa. Aqui, mais que em outros processos, decisões de cima para baixo correm o perigo de não dar em nada. Os superiores podem incentivar a reflexão, mas - afinal – a transformação da vida ‘contemplativa’ em vida ‘ativa’ depende de uma transformação no foro interior dos próprios habitantes de conventos. Por isso as considerações de teor histórico, que pincelei acima.

 

Termino com os depoimentos de duas pessoas que conhecem de perto a experiência de Santa Clara de Manresa:

- Josep Miquel Bausset (81 anos), monge de Montserrat na Catalunha, ao aludir à decisão das Irmãs de Manresa: A vida contemplativa se torna um problema quando deixamos de viver como discípulos de Jesus e nos tornamos uma caricatura do que teríamos de ser. Como a figueira estéril que não dá fruto.

- Gemma Morató, uma religiosa catalã muito ‘mediada’:  Não creio que nada morra com essa iniciativa das irmãs de Santa Clara. Ao contrário, é uma inovação. Oxalá muitos conventos, mosteiros, congregações e institutos se mostrem capazes de se perguntar o que lhes inspira o Espírito hoje.

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