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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

GÊNERO, MÍSTICA E LITERATURA: CLARICE LISPECTOR

por MARIA CLARA BINGEMER


   Clarice Lispector é um mistério em si mesma.  Para além de sua pertença religiosa, trata-se de uma mulher de fé, de cuja pena jorra a palavra Deus diretamente nomeado e deixando perceber uma sensibilidade espiritual imensa para qualquer manifestaçãIo da Transcendência que possa acontecer em todas as dimensões da existência.

      Apresentando quase sempre personagens femininas que buscam ardentemente sua identidade e que muitas vezes monologam, Clarice narra em seus romances verdadeiras experiências místicas. Suas personagens não recuam diante de nada na ânsia de chegar ao mais profundo de sua condição humana e à comunhão com o outro.

        Na peregrinação ao fundo de si e ao encontro do outro, o silêncio é muito valorizado e sublinhado.  Como, por exemplo, nesta passagem da obra Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres: “ O que se passara no pensamento de Lóri naquela madrugada era tão indizível e intransmissível como a voz de um ser humano calado. Só o silêncio da montanha lhe era equivalente.” Silêncio que deve ser vivido e sofrido: “O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não se pode falar do silêncio como se fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras.“ O silêncio é o caldo de cultura adequado para a “aprendizagem” de ser: “Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.” 

          Neste reconhecimento mora a pergunta que no fundo é a pergunta de todo ser humano: “ Ele é o Silêncio.  Ele é o Deus? “E ainda, tocando os limites da alteridade do divino que se revela em meio ao silêncio: “O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão.“ 

          A palavra “submissão” traz a conotação mística da experiência que Clarice narra.   A personagem Lori vai aprendendo e esperando para viver plenamente o amor de um homem, onde Eros é um componente essencial.  Mas deverá compreender que não rege o processo.  Outro tem nas mãos as rédeas do comando.  Outro a quem ela não pode senão submeter-se na nudez ardente e dolorosa da noite escura que atravessa.  Nesta aprendizagem feita de palavra e silêncio, de dor e alegria, de solidão e encontro, as personagens de Clarice vão experimentar a comunhão do amor pleno e maduro, feito de Eros e ágape.

      E descobrem que “a palavra de Deus era de tal mudez completa que aquele silêncio era Ele próprio.” Descobrem igualmente que o  caminho do autoconhecimento é angustiante, porém salvador. Tira o Ser do estado de ruína e de esquecimento em que se encontra e o conduz à passagem para um humilde êxtase que é ao mesmo tempo êxodo de si mesmo e descoberta de si mesmo no “estar sendo”. É quando sentem “estar sendo” juntos e em comunhão que os seres humanos encontram de fato o amor. 

      Mas é sobretudo em A Paixão segundo GH que podemos encontrar a mística de Clarice mais profundamente narrada. GH, a mulher sem paixão, vai se defrontar com o pathos, com a paixão,  a partir da viagem kenótica que faz ao coração da matéria, ao submundo das entranhas de um inseto, ao caos primitivo antes que ele seja pelo Criador resignificado em cosmos. O romance de Clarice falará de um pathos instituinte, de um ser humano que padece sem nada poder fazer por sua própria iniciativa para tal, a revelação da transcendência a partir de uma experiência que foge a toda “normalidade”: a aparentemente abjeta “comunhão” com as entranhas de uma barata morta. 

      Não cremos ser um “abuso” proveniente da nossa área de competência – a teologia – classificar a viagem de G. H. ao entrar no quarto humilde de sua empregada e defrontar-se com o inseto que a fita e provoca,  como mística.  Ou até mesmo – ousaria mais – como crística.  Pois crístico não é o movimento que faz o Filho de Deus ao não aferrar-se a suas prerrogativas e a esvaziar-se, despojar-se, humilhar-se, obediente até a morte, e morte de cruz? E místico não é o movimento bilateral que faz a  divindade unir-se à humanidade e vir resgatá-la a partir da lama do pecado onde se encontra mergulhada, cristificando-a e unindo-a a Si mesmo no Espírito Santo, que habita em nós, em kenosis amorosa, podendo ser abafado, contristado e mesmo extinto, como afirma Paulo de Tarso?

     O itinerário de G. H. é místico.  E é místico porque ascético e purificador, enquanto prepara o alargamento do eu que se segue à sua morte pelo sacrifício ascético de mergulhar no coração da matéria.  Toca os extremos da condição humana, quais sejam: a vida e a morte. “A descida na direção dessa existência impessoal produz-se como verdadeira ascese: a personagem desprende-se do mundo e experimenta, após gradual redução dos sentimentos, das representações e da vontade, a perda do eu”

        Ao realizar o que chama de “ato ínfimo” – comungar com a matéria viva, no coração das coisas -  G. H. chega à plenitude ansiada e desejada. Não compreender, não dominar, não pairar por cima das coisas.  Mas descer, mergulhar, sujeitar-se ao ínfimo, ao coração da matéria, mergulhar na descida para encontrar então aquilo que não consegue nomear, mas cujo nome existe e é Mistério inexpugnável.  Atraída por Eros, misteriosamente, à beleza invertida daquilo que o vulgo convencionou chamar de feio, encontra ágape em amor oblativo, gratuito, adorante. “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.”

 
 http://agape.usuarios.rdc.puc-rio.br

Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre  ética,   mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.


Copyright 2012 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br) 



O QUE O NATAL NOS PROPÕE

por MARCELO BARROS


As propostas para os dias de Natal são as mais diversas. Agências de turismo oferecem passeios paradisíacos. No comércio, há sempre um Papai Noel para dar algum presente que a pessoa tem de comprar. E em muitas famílias e empresas, Natal é época de comer e beber desenfreadamente. Além dessas propostas consumistas, Natal pode ser ocasião de bons encontros e confraternizações. Entretanto, se você quiser mais do que isso, lembre-se que, originalmente, Natal significa renascimento. Embora ninguém saiba a data exata do nascimento de Jesus, desde o século IV, os cristãos tomaram o 25 de dezembro, solstício do inverno no hemisfério norte, como referência para celebrar a vinda do Cristo, como sol que ilumina e dá sentido novo a nossas vidas. No hemisfério norte, o sol quase desaparece totalmente, quando, a partir desse dia do solstício, como que renasce e volta a brilhar no horizonte. Assim também, os cristãos festejam o nascimento do Cristo que renasce em nós para nos fazer renascer com ele. Por sua origem de festa solar, o Natal é mais a celebração do renascimento do que do simples nascer. 

Aliás, o que significaria nascer, se não fosse para se dispor a um constante renascer? O poeta Pablo Neruda afirmava: “Nascemos como esboço – É preciso sempre renascer. Nascemos para renascer”. Podemos dizer que renascemos toda vez que realizamos os passos que a vida exige. Eles acarretam um superar uma etapa que exige de nós como morrer para o jeito de ser anterior e assumir o compromisso de renascer para uma nova etapa de vida. Continuamente. Paulo escreve: “Quando eu era criança, pensava como criança, falava como criança. Ao me tornar adulto, deixei as coisas de criança” (1 Cor 13, 11). Em cada idade física, o ser humano larga uma idade e renasce para outra. Em uma conversa com Nicodemos, Jesus explica: “O que nasce conforme o mundo (ou no modo de falar hebraico: o que nasce da carne) é carne, ou seja, do mundo. O que nasce do Espírito, é espírito. Por isso, insisto, é preciso nascer de novo, nascer do Espírito” (Jo 3, 7).

O sentido mais profundo da celebração do Natal é nos dispor a renovar em nós essa disposição do renovar-se interiormente, ou como diz Paulo: deixar de lado o velho modo de ser e revestir-se interiormente de um novo modo de ser. Conforme os evangelhos, foi isso que Jesus fez durante toda a sua vida. “Ele cresceu em sabedoria, em idade e em graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 40). Em grego, o termo “Cristo” significa “ungido” ou “consagrado”. Na história bíblica, vários profetas e personagens importantes foram chamados de Cristo ou de consagrado. Jesus de Nazaré viveu essa vocação de modo tão profundo e pleno que, ao dizermos “Jesus é o Cristo, o consagrado de Deus”, tomamos essa afirmação como se fosse um nome próprio: Jesus Cristo. E ele faz de nós irmãos seus porque nos dispõe para sermos também, cada um/uma do seu modo, Cristos, consagrados de Deus nesse mundo para testemunhar o projeto que Deus tem de amor e justiça para o universo.

A festa do Natal é a celebração desse novo renascimento. A cada ano, marcamos um passo a mais nesse caminho. Cada pessoa é chamada a fazer de sua vida uma gruta natalina, uma caverna que como útero grávido, acolha o nascimento do novo ser que somos chamados a ser e que no Natal nos comprometemos a nos tornar: humanos como Jesus.   

OSCAR NIEMEYER, AUTODEFINIÇÃO

por FREI BETTO

     Foi o meu editor e compadre Ênio Silveira que, na década de 1970, me apresentou a Oscar Niemeyer. Durante a Eco-92,no Rio, o arquiteto me disse que teria prazer em receber Fidel Castro no seu escritório, na Avenida Atlântica, para um encontro com formadores de opinião. 

     Na noite de domingo, 14 de junho, acompanhei o presidente de Cuba ao encontro. O anfitrião nos aguardava à porta. Subimos pelo velho elevador de grade sanfonada. Casa de ferreiro, espeto de pau. O mais famoso arquiteto brasileiro mantinha seu escritório num antigo prédio cujos elevadores funcionavam precariamente.
 
     Cerca de 40 intelectuais e artistas ali se encontravam, entre eles Darcy Ribeiro, Ênio Silveira, Moacyr Werneck de Castro, Antonio Callado, Leandro Konder, Ferreira Gullar, Eric Nepomuceno, Íttala Nandi, Leonardo Boff, Ivo Lesbaupin, Hugo Carvana, Emir Sader e tantos outros.

     Ao cumprimentar Barbosa Lima Sobrinho, Fidel disse não acreditar que ele tivesse 95 anos:
     — Precisamos colher algumas amostras genéticas do senhor - brincou.
     Fidel falou durante uma hora da situação de Cuba e de política internacional, até que o interrompi:
     — Afinal, convidamos o Comandante para um encontro, e não uma conferência.
 
     A roda se descontraiu, Fidel reclamou:
     — Não há nada que beber ou comer aqui?
     Tomou uma dose de uísque e comeu com apetite variados canapés.
 

     À meia-noite nos retiramos. A segurança avisou que o elevador social parara e o de serviço só chegava até o 7º andar. Sob luzes de lanternas, Fidel e eu descemos do 9º andar por estreitas escadas. Para chegar ao elevador de serviço, fomos obrigados a passar por dentro do apartamento de uma família, cruzando a sala e a cozinha.
 
     A 29 de janeiro de 2008, participei em Cuba, na Universidade de Ciências Informáticas, da inauguração da escultura que Oscar Niemeyer dera de presente aos 80 anos de Fidel: uma enorme cara vermelha do imperialismo cuspindo fogo, e a pequena Cuba erguendo a bandeira diante dela, resistindo. Fazia muito frio e havia milhares de estudantes na praça.

      No discurso que proferi, comparei Niemeyer a Martí: os dois eram latino-americanos, revolucionários, poetas e anti-imperialistas. Elogiei a coerência e a modéstia de Niemeyer, cujas obras conheci desde criança na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte.
 

      A última vez que estive com Niemeyer, em seu escritório, foi a 3 de junho de 2010, quando levei até ali Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado de Cuba. O arquiteto demonstrava muito bom humor e nos falou entusiasmado do álbum de fotos de todas as igrejas que ele havia projetado:
 
      —Tive formação religiosa. Na fazenda de meus avós – contou – os janelões da sala eram entremeados de oratórios. Minha avó nos obrigava a ajoelhar e rezar antes de cada refeição. Depois deixei de ter fé. Mas sempre gostei de desenhar igrejas.

      Ressaltei a beleza da catedral de Brasília, cujas linhas arrojadas lembram mãos abertas ao Transcendente, botão de flor se abrindo ao Infinito, feixe de ramos de trigo evocando o Pão da Vida, o coração de boca aberta à fome de Deus.
 
      Niemeyer, então com 102 anos, comentou que uma vez por semana recebia um grupo de amigos para aulas de cosmologia e astrofísica ministradas ali no escritório por um professor de física. Seu entusiasmo com o que aprendia lembrava um jovem estudante.
 

      Guardei dele este belo poema intitulado
 Autodefinição: Na folha branca de papel faço o meu risco / Retas e curvas entrelaçadas. / E prossigo atento e tudo arrisco / na procura das formas desejadas. / São templos e palácios soltos pelo ar, / pássaros alados, o que você quiser. / Mas se os olhar um pouco devagar, / encontrará, em todos, os encantos da mulher. / Deixo de lado o sonho que sonhava. / A miséria do mundo me revolta. / Quero pouco, muito pouco, quase nada. / A arquitetura que faço não importa. / O que eu quero é a pobreza superada, / a vida mais feliz, a pátria mais amada.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco), entre outros livros.



 
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NATAL: UM MITO VERDADEIRO

por LEONARDO BOFF

Há poucas semanas, com pompa e circunstância, o atual Papa mostrou-se novamente teólogo ao lançar um livro: “A Infância de Jesus”. Apresentou a versão clássica e tradicional que vê naqueles relatos idílicos uma narrativa histórica. O livro deixou os teólogos perplexos, pois a exegese bíblica sobre estes textos, já há pelos menos 50 anos, mostrou que não se trata propriamente de um relato histórico, mas de alta e refinada teologia, elaborada pelos evangelistas Mateus e Lucas (Marcos e João nada falam da infância de Jesus) para provar que Jesus era de fato o Messias, o filho de Davi e o Filho de Deus.

Para esse fim, recorrem a gêneros literários para apresentar uma mensagem, transmitida como se fossem histórias mas que de fato não passam de recursos literários, como, por exemplo, os magos do Oriente (representando os pagãos e os sábios), os pastores (os mais pobres e considerados pecadores por estarem às voltas com animais que os tornavam impuros), a Estrela e o anjos (mostrando o caráter divino de Jesus), Belém que não seria uma referência geográfica mas teria um significado teológico: o lugar onde, segundo as profecias, nasceria o Messias, diferente de Nazaré, totalmente desconhecida, onde Jesus provavelmente teria nascido de fato. E assim outros tópicos como detalhadamente analisei em meu Jesus Cristo Libertador (capitulo VIII).Mas tudo isso não é muito importante porque exige conhecimentos muito especializados.

Importante mesmo é compreender que face aos relatos tão comovedores do Natal estamos diante de um grandioso mito, entendido positivamente como os antropólogos o fazem: o mito como a transmissão de uma verdade tão profunda que somente a linguagem mítica, figurada e simbólica é adequada para expressá-la. É exatamente o que o mito pretende. O mito é verdadeiro quando o sentido que quer transmitir é verdadeiro e ilumina toda a comunidade. Assim o Natal é um mito cristão cheio de verdade, da proximidade de Deus e da familiaridade.

Nós hoje usamos outros mitos para mostrar a relevância de Jesus. Para mim é de grande significação um mito antigo, que a Igreja aproveitou na liturgia do Natal para revelar a comoção cósmica face ao nascimento de Cristo. Ai se diz:
”Quando a noite estava no meio de seu curso e fazia-se profundo silêncio: então as folhas que farfalhavam pararam como mortas; então o vento que sussurrava, ficou parado no ar; então o galo que cantava parou no meio de seu canto; então as águas do riacho que corriam, se paralisaram; então as ovelhas que pastavam, ficaram imóveis; então o pastor que erguia o cajado para golpeá-las, ficou petrificado; então nesse momento tudo parou, tudo silenciou, tudo se suspendeu porque nasceu Jesus, o salvador da humanidade e do universo”.

O Natal nos quer comunicar que Deus não é aquela figura severa e de olhos penetrantes para perscrutar nossas vidas. Não. Ele surge como uma criança. Ela não julga; só quer receber carinho e brincar.
Eis que do presépio veio uma voz que me sussurrou: ”Oh, criatura humana, por que tens medo de Deus? Ele não se fez criança? Não vês que sua mãe enfaixou seus bracinhos e seu corpinho frágil? Não percebes que ela não ameaça ninguém? Nem condena ninguém? Não escutas o seu chorinho doce? Mais que ajudar, essa criança precisa ser ajudado e coberta de carinho porque sozinha não pode fazer nada; não sabes que ela é o Deus-conosco-como nós?”

E ai já não pensamos mais mas damos lugar ao coração que sente, se compadece e ama. Poderíamos fazer outra coisa diante desta Criança, sabendo que é o Deus humanado?
Talvez poucos escreveram tão bem sobre o Natal, sobre Jesus Criança, que o poeta português Fernando Pessoa: ”Ele é a eterna criança, o Deus que faltava. Ele é o divino que sorri e que brinca. É a criança tão humana que é divina”.

Mais tarde transformaram o Menino Jesus no São Nicolau, no Santa Claus e, por fim, no Papai Noel. Pouco importam os nomes, porque no fundo, o espírito de bondade, de proximidade e de Presente divino está, de alguma forma, lá.

Acertado foi o editorialista Francis Church do jornal The New York Sun de 1897 respondendo a uma menina de 8 anos, Virgínia, que lhe escreveu: “Prezado Editor: me diga de verdade, o Papai Noel existe?” E ele sabiamente respondeu:
“Sim, Virgínia, Papai Noel existe. Isto é tão certo quanto a existência do amor, da generosidade e da devoção. E você sabe que tudo isto existe de verdade, trazendo mais beleza e alegria à nossa vida. Como seria triste o mundo se não houvesse o Papai Noel! Seria tão triste quanto não existir Virgínias como você. Não haveria fé das crianças, nem a poesia e a fantasia que tornam nossa existência leve e bonita. Mas para isso temos que aprender a ver com os olhos do coração e do amor. Então percebemos que não há nenhum sinal de que o Papai Noel não exista. Se existe o Papai Noel? Graças a Deus ele vive e viverá sempre que houver crianças grandes e pequenas que aprenderam a ver com os olhos do coração”

Nesta festa, tentemos a olhar com os olhos do coração, pois todos fomos educados a olhar com os olhos da razão. Por isso somos frios. Hoje vamos resgatar os direitos do coração que é caloroso: deixar-nos comover com nossas crianças, permitir que sonhem e nos encher de estremecimento diante da Divina Criança que sentiu prazer e alegria ao decidir ser um de nós pela encarnação.

PS. Desejo aos leitores e leitoras de meu blog um Natal de esperança pois precisamos dela no meio de um mundo em voo cego rumo a um futuro incerto. Mas uma Estrela como a de Belém nos mostrará um caminho salvador. E chamaram Jesus de Emanuel, o Deus que caminho conosco.

domingo, 9 de dezembro de 2012

OSCAR NIEMAYER, A VEJA ONLINE E O ESCARAVELHO

por LEONARDO BOFF


Com a morte de Oscar Niemeyer aos 104 anos de idade ouviram-se vozes do mundo inteiro cheias de admiração, respeito e reverência face a sua obra genial, absolutamente inovadora e inspiradora de novas formas de leveza, simplicidade e elegância na arquitetura. Oscar Niemeyer foi e é uma pessoa que o Brasil e a humanidade podem se orgulhar. 

E o fazemos por duas razões principais: a primeira, porque Oscar humildemente nunca considerou a arquitetura a coisa principal da vida; ela pertence ao campo da fantasia, da invenção e do lúdico. Para ele era um jogo das formas, jogado com a seriedade com que as crianças jogam. 

A segunda, para Oscar, o principal era a vida. Ela é apenas um sopro, passageira e contraditória. Feliz para alguns mas para as grandes maiorias cruel e sem piedade. Por isso, a vida impõe uma tarefa que ele assumiu com coragem e com sérios riscos pessoais: a da transformação. E para transformar a vida e torná-la menos perversa, dizia, devemos nos dar as mãos, sermos solidários uns para com os outros, criarmos laços de afeto e de amorosidade entre todos. Numa palavra, nós humanos devemos aprender a nos tratar humanamente, sem considerar as classes, a cor da pele e o nível de sua instrução.

Isso foi que alimentou de sentido e de esperança a vida desse gênio brasileiro. Por aí se entende que escolheu o comunismo como a forma e o caminho para dar corpo a este sonho, pois, o comunismo, em seu ideário generoso, sempre se propôs a transformação social a partir das vítimas e dos mais invisíveis. Oscar Niemeyer foi um fiel militante comunista.
Mas seu comunismo era singular: no meu modo de ver, próximo dos cristãos originários pois era um comunismo ético, humanitário, solidário, doce, jocoso, alegre e leve. Foi fiel a esse sonho a vida inteira, para além de todos os avatares passados pelas várias formas de socialismo e de marxismo.

Na medida em que pudemos observar, a grande maioria da opinião pública mundial, foi unânime na celebração de sua arte e do significado humanista de sua vida. Curiosamente a revista VEJA de domingo, dedica-lhe 10 belas páginas. Outra coisa, porém, é a revista VEJA online de 7 de dezembro com um artigo do blog do jornalista Reinado Azevedo que a revista abriga.

Ele foi a voz destoante e de reles mau gosto. Até agora a VEJA não se distanciou daquele conteúdo, totalmente, contraditório àquele da edição impressa de domingo. Entende-se porque a ideologia de um é a ideologia do outro. Pouco importa que o jornalista Azevedo, de forma confusa, face às críticas vindas de todos os lados, procure se explicar. Ora se identifica com a revista, ora se distancia, mas finalmente seu blog é por ela publicado.
Notoriamente, VEJA se compraz em desfazer as figuras que melhor mostram nossa cultura e que mais penetraram na alma do povo brasileiro. Essa revista parece se envergonhar do Brasil, porque gostaria que ele fosse aquilo que não é e não quer ser: um xerox distorcido da cultura norte-americana. Ela dá a impressão de não amar os brasileiros, ao contrário expõe ao ridículo o que eles são e o que criam. Já o titulo da matéria referente a Oscar Niemeyer da autoria de Azevedo, revela seu caráter viciado e malevolente: ”Para instruir a canalha ignorante. O gênio e o idiota em imagens”. Seu texto piora mais ainda quando, se esforça, titubeante, em responder às críticas em seu blog do dia 8/12 também na VEJA online com um título que revela seu caráter despectivo e anti-democrático:”Metade gênio e metade idiota- Niemeyer na capa da VEJA com todas as honras! O que o bloco dos Sujos diz agora?” Sujo é ele que quer contaminar os outros com a própria sujeira de uma matéria tendenciosa e injusta.

O que se quer insinuar com os tipos de formulação usados? Que brasileiro não pode ser gênio; os gênios estão lá fora; se for gênio, porque lá fora assim o reconhecem, é apenas em sua terceira parte e, se melhor analisarmos, apenas numa quarta parte. Vamos e venhamos: Quem diz ser Oscar Niemeyer um idiota apenas revela que ele mesmo é um idiota consumado. Seguramente Azevedo está inscrito no número bem definido por Albert Einstein: ”conheço dois infinitos: o infinito do universo e o infinito dos idiotas; do primeiro tenho dúvidas, do segundo certeza”. O articulista nos deu a certeza que ele e a revista que o abriga possuem um lugar de honra no altar da idiotice.

O que não tolera em Oscar Niemeyer que, sendo comunista, se mostra solidário, compassivo com os que sofrem, que celebra a vida, exalta a amizade e glorifica o amor. Tais valores não cabem na ideologia capitalista de mercado, defendida por VEJA e seu albergado, que só sabe de concorrência, de “greed is good”(cobiça é coisa boa), de acumulação à custa da exploração ou da especulação, da falta de solidariedade e de justiça em nível internacional.

Mas não nos causa surpresa; a revista assim fez com Paulo Freire, Cândido Portinari, Lula, Dom Helder Câmara, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, frei Betto, João Pedro Stédile, comigo mesmo e com tantos outros. Ela é um monumento à razão cínica. Segue desavergonhadamente a lógica hegeliana do senhor e do servo; internalizou o senhor que está lá no Norte opulento e o serve como servo submisso, condenado a viver na periferia. Por isso tanto a revista quanto o articulista revelam um completo descompromisso com a verdade daqui, da cultura brasileira.

A figura que me ocorre deste articulista e da revista semanal, em versão online, é a do escaravelho, popularmente chamado de rola-bosta. O escaravelho é um besouro que vive dos excrementos de animais herbívoros, fazendo rolinhos deles com os quais, em sua toca, se alimenta. Pois algo semelhante fez o blog de Azevedo na VEJA online: foi buscar excrementos de 60 e 70 anos atrás, deslocou-os de seu contexto (ela é hábil neste método) e lançou-os contra Oscar Niemeyer. Ela o faz com naturalidade e prazer, pois, é o meio no qual vive e se realimenta continuamente. Nada de surpreendente, portanto.

Paro por aqui. Mas quero apenas registrar minha indignação contra esta revista, em versão online, travestida de escaravelho por ter cometido um crime lesa-fama. Reproduzo igualmente dois testemunhos indignados de duas pessoas respeitáveis: Antonio Veronese, artista plástico vivendo em Paris e João Cândido Portinari, filho do genial pintor Cândido Portinari, cujas telas grandiosas estão na entrada do edifício da ONU em Nova York e cuja imagem foi desfigurada e deturpada, repetidas vezes, pela revista-escaravelho.

*Leonardo Boff é filósofo, teólogo, escritor e comisionado da Carta da Terra.

JOELMIR E FIDEL


por FREI BETTO

  
 Conheci Joelmir Beting na década de 1980. Devido a seus sutis comentários econômicos críticos à ditadura, recheados de metáforas e tiradas brilhantes, convidei-o a proferir palestra na Semana do Trabalhador, em São Bernardo do Campo.

      Pouco depois, sugeri a Fidel Castro, interessado em conhecer melhor a economia brasileira, convidar Joelmir Beting para visitar Cuba. Desembarcamos em Havana na quinta, 9 de maio de 1985.

      Fidel perguntou ao jornalista brasileiro:

      — Qual o seu trabalho diário?

      — Faço uma hora e meia de programa de rádio e, à noite, meia-hora de TV. Escrevo também uma coluna diária, reproduzida em vinte e oito jornais.

      Joelmir narrou-lhe sua história: era filho de um boia-fria morto, como tantos outros lavradores ainda hoje, devido à queda do caminhão que o levava ao trabalho. Cresceu entre lavouras de cana e café, criado pelo venerável padre Donizetti, em Tambaú, interior de São Paulo. Estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e trabalhou como professor primário - o que lhe deu facilidade para traduzir o economês em linguagem acessível ao grande público.

      — São Paulo tem muita cana? - perguntou Fidel.

      — Produz setenta por cento da cana de açúcar do Brasil - esclareceu Joelmir, que aproveitou a deixa para fazer uma pergunta. - O que o senhor lê todos os dias?

      — Todas as manhãs recebo uma pasta com as notícias do dia selecionadas por índice: Cuba, Açúcar, Estados Unidos  etc. Primeiro, confiro as fontes. Sei que as agências dos Estados Unidos não são imparciais. Gasto nisso entre uma hora e uma hora e meia. Assim, tenho uma visão global de tudo que as agências internacionais informam sobre cada item.

      — Ninguém conhece o computador que o ser humano tem na cabeça - comentou Joelmir. — Como é o seu trabalho?

      — É um trabalho tenso, difícil, que encerra uma responsabilidade muito grande. Mas se habitua. Trato de aprender em conversas com visitantes. Através de amigos, sei como se pensa em muitos países.

      — Mas o senhor gosta de falar em público?

      — Tenho medo cênico. Falo de improviso, porque o povo não gosta de discursos escritos. Parto de argumentos. É claro que chego tenso, mas a reação do público estimula. Chego como quem se apresenta a um exame. Quando devo falar de saúde, por exemplo, preciso memorizar as cifras. Se  trata-se de gravar os índices de mortalidade infantil, consigo-o rápido. É mais difícil quando o problema está determinado por quinze ou mais fatores. Tenho que dominar o tema e ordená-los. Há gente que explica o que não entende. Se não domino um tema, não procuro explicá-lo.

      — Em Cuba, o projeto social está realizado? - quis saber Joelmir Beting.

      — Sim, no essencial.

      — Este é o modelo cubano?

      — Há muito de cubano. O sistema eleitoral é todo cubano. Cada circunscrição, com dez mil eleitores, elege seu delegado ao Poder Popular.  São os vizinhos que votam. E são eles que propõem um nome para delegado. Sugerem o máximo de oito nomes e o mínimo de dois. O Partido não se mete nisso. São eleitos aqueles que obtêm mais de cinquenta por cento dos votos. Esses delegados formam a Assembleia Municipal e elegem o poder executivo municipal. Depois, se reúnem as comissões, integradas pelo Partido e pelas organizações de massa, para eleger os delegados da Província e os quinhentos deputados da Assembleia Nacional. Mais da metade desses deputados sai da base. A cada três meses, os vizinhos se reúnem com o delegado da circunscrição para avaliar o seu desempenho. E podem inclusive cassá-lo. Esse sistema de a população apontar os candidatos que integram metade da Assembleia Nacional é a democracia de baixo para cima. Não é como um político burguês que, depois de eleito, passa quatro anos sem prestar contas e sem que possam cobrar dele. O Poder Popular nomeia o responsável pela saúde na Província mas, para evitar choques, consulta antes o ministério. É uma forma de evitar tensões entre o Poder Popular e o poder central.

      O diálogo entre Fidel e Joelmir Beting foi reproduzido em forma de entrevista em todos os jornais brasileiros para os quais Joelmir Beting colaborava na época e, em agosto de 1985, editado em livro pela Brasiliense, sob o título Os juros subversivos.



Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mário Sérgio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papirus), entre outros livros.



 
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CRISE E DIREITOS HUMANOS


por MARCELO BARROS

Neste 10 de dezembro, o mundo comemora os 64 anos da assinatura da declaração universal dos direitos humanos. Esse aniversário é desafiador porque, tantos anos depois, diversos dos compromissos assumidos pela ONU em 1948, até hoje, ainda não foram postos em prática. Direitos básicos como segurança alimentar, moradia, saúde e trabalho têm sido sistematicamente negados pelo sistema social e econômico dominante. Sem esses, outros direitos como à informação ou à liberdade de associação e culto, ficam prejudicados. No entanto, o fato ainda mais grave é que a sociedade regrediu. Em anos recentes, mesmo direitos básicos, anteriormente adquiridos pela humanidade, têm sido ignorados. Países nos quais o Estado garantia saúde e educação para todos tiveram esses setores privatizados. Novas leis econômicas, provocadas pelo neoliberalismo, fizeram a sociedade internacional retroceder a relações de trabalho vigentes no começo do século XX. Empresas ignoram direitos antes adquiridos pelos trabalhadores, pelos aposentados e por outras categorias sociais. Governos e corporações econômicas usam o pretexto da crise para esvaziar a democracia. Em outras décadas, a supressão da democracia era perpetrada por ditaduras que revogavam constituições nacionais. Agora isso não é mais necessário. Mesmo sem suspender as leis, quem de fato manda é o Fundo Monetário Mundial e o mercado. Os governos se transformaram em meros lacaios dos bancos e dos conglomerados multinacionais. Um a um, os direitos sociais são eliminados. O Estado, antes sustentado pelos impostos passou a ser financiado pelos créditos. Agora, os bancos alemães são mais importantes do que a Europa e seus países. Multinacionais e governos decretam o desemprego, como forma normal de organizar a sociedade e reduzem a natureza à condição de simples mercadoria. Protestos sociais e movimentos populares são confundidos com terrorismo. Por tudo isso, a declaração dos direitos humanos, proclamados pela ONU, precisa sim de uma atualização. Aos direitos individuais, hoje se somam direitos coletivos e comunitários. Aos direitos humanos se unem direitos reconhecidos à terra e à natureza. Ao sistema democrático parlamentar, as novas constituições da Bolívia e Equador unem a democracia comunitária e social. Os critérios comuns devem ser interculturais. Enquanto houver pessoas empobrecidas e exploradas, todos os direitos humanos são desrespeitados. Não é possível direito à liberdade individual sem justiça social. 

Apesar desse quadro social, não podemos perder a esperança. Há pouco tempo, nos muros de La Paz, capital da Bolívia, havia uma grafite: “Guardemos o pessimismo para dias melhores!”. Dom Hélder Câmara gostava de afirmar: “Mesmo a noite mais escura traz em seu bojo a aurora”. Quando na luta cotidiana e no engajamento de cada dia, lutamos para transformar essa realidade, podemos testemunhar: a escuridão das injustiças e do desamor pode ser vencida e o dia da libertação e da justiça raiará em nosso horizonte. Para quem crê em Deus, a Bíblia revela que o Espírito atua no mundo e o Pai de amor maternal tem um projeto de justiça e irmandade para todos. Foi para testemunhar esse projeto e trazê-lo ao mundo que Jesus nasceu e nos chama a ser discípulos dele. Conforme o evangelho, ele afirmou: “Procurem o reinado divino e a sua justiça e tudo o mais lhes será dado por acréscimo” (Mt 6, 33).