Por Maria Clara Bingemer
Ao longo de toda
uma vida, alguns dias – não muitos - nos deixaram marcas: lembramos onde
estávamos, o que fazíamos, que roupa vestíamos, em que circunstância
determinado fato ocorreu. Devido à sua importância, a memória jamais
descartou aquele dia ou deixou-o guardado no arquivo morto. Ele permanece
vivo e frequentemente faz com que o recordemos, revisitando assim nossa experiência
naquela ocasião.
Assim foi para mim o dia 22 de novembro de 1963. Estava em casa,
estudando. Tinha 14 anos e cursava o colegial. De repente, ouvi um
grito. Era minha avó ao telefone. O grito dela foi secundado pelo
de minha mãe. Exclamavam, nitidamente impressionadas: “O Kennedy? Mas
como? Um tiro?” Acabavam de matar John F. Kennedy, presidente dos Estados
Unidos, em Dallas, Texas.
Dali para frente foi uma sucessão de leituras de jornais, imagens na televisão,
noticiários nas rádios. Kennedy, a personificação do sonho americano, estava
morto. O homem louro e belo, casado com a mulher mais elegante do
planeta, pai das crianças mais lindas do mundo, tivera o cérebro explodido por
uma bala e jazia morto. O homem mais poderoso do mundo era agora um
cadáver impotente. O católico John F. Kennedy fora assassinado e as
imagens que então víamos eram de Jacqueline, sua esposa, com o elegante
vestido rosa manchado de sangue, ao lado do vice-presidente Lyndon Johnson, que
fazia seu juramento à Constituição para substituir JFK na Casa Branca.
Em nossa casa havia uma hierarquia de celebridades e heróis venerados pelos
membros adultos da família. E, depois do Sagrado Coração de Jesus, que
presidia a vida de todos nós; do Papa, que enviara uma bênção especial a minha
avó e cuja foto brilhava, devidamente emoldurada enfeitando a parede, John
Kennedy era uma das principais figuras dessa galeria.
Lembro-me de uma fotografia do presidente em uma revista internacional,
ajoelhado, de mãos postas, rezando com os olhos fixos no Sacrário. Todos
estremeciam de emoção ao vê-la. Recordo-me igualmente de seu discurso
sobre a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba. A operação foi um retumbante
fracasso de Kennedy contra a diminuta Ilha de Fidel Castro. Mas a mídia
levava todos a crer que havia sido um sucesso.
Quando cresci e fui adquirindo mais discernimento para avaliar as coisas com um
pouco de senso crítico, a figura admirada e quase idolatrada de JFK começou a
mostrar suas ambiguidades, próprias de todo ser humano. No entanto, para
a figura do estadista que ele fora, essas ambiguidades apareciam
magnificadas. Sua vida de infidelidades a Jackie, os inúmeros casos de
mulheres introduzidas na Casa Branca para namorar o president, contradiziam sua
imagem de irrepreensível chefe de família católico fabricada pela mídia.
É parte constitutiva de sua biografia a figura de Marilyn Monroe cantando
parabéns em seu aniversário. A morte trágica da linda loura, cobiçada por
tantos, em 1962, foi depois explorada pelos biógrafos. E a ligação
amorosa com JFK apareceu como um dos elementos que contribuíram para seu
declínio e seu triste fim.
Mais tarde, os numerosos filmes sobre a Guerra do Vietnã traziam novamente a
figura de JFK à baila com uma tinta mais negativa ainda. Kennedy deu
continuidade ao que Eisenhower havia começado. Entre outras coisas,
concordou em usar “zonas livres para disparar” napalm e agente laranja pelos
aviões americanos, deixando um rastro de morte e horror entre civis inocentes,
entre os quais muitas crianças vietnamitas. A certa altura, Kennedy teria
planejado retirar as tropas do país asiático até 1965, mas morreu
antes. Lyndon Johnson manteve os militares no Vietnã e intensificou o
conflito.
Ao mesmo tempo, o presidente Kennedy teve momentos importantes. Talvez um dos
mais intensos de todos, já perto de sua morte, em junho de 1963, ocorreu em
Berlim quando, diante de um mar de gente, proclamou diante da cidade dividida
pela cortina de ferro: “Há dois mil anos não havia frase que se dissesse com
mais orgulho do que “civis Romanus sum” (eu sou um cidadão romano). Hoje,
no mundo da liberdade, não há frase que se diga com mais orgulho que “Ich bin
ein Berliner”. Todos os homens livres, onde quer que vivam, são cidadãos de
Berlim e, portanto, como um homem livre, eu me orgulho das palavras ”Ich bin
ein Berliner”!
Hoje, 50 anos depois, JFK ainda aparece como um ícone na história do Ocidente
em termos de liberdade e democracia. Mas, com a justiça feita pelo tempo
e pela história, aparece não como um santo ou uma estátua de moralidade.
Mas como um homem brilhante, que nem sempre esteve à altura do cargo que ocupou
e que carregava em sua pessoa uma razoável dose de ambiguidade. Sua vida
e sua morte ensinam que nem tudo que reluz é ouro e que é preciso buscar a
verdade por trás das aparências que insistem em distorcê-la para mais ou para
menos.
Maria Clara Bingemer é Professora do Departamento
de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Ser cristão
hoje" (Editora Ave Maria). http://agape.usuarios.rdc.puc-rio.br/
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