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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Onde estávamos há 50 anos




 Por Maria Clara Bingemer


     Ao longo de toda uma vida, alguns dias – não muitos - nos deixaram marcas: lembramos onde estávamos, o que fazíamos, que roupa vestíamos, em que circunstância determinado fato ocorreu.  Devido à sua importância, a memória jamais descartou aquele dia ou deixou-o guardado no arquivo morto.  Ele permanece vivo e frequentemente faz com que o recordemos, revisitando assim nossa experiência naquela ocasião.

             Assim foi para mim o dia 22 de novembro de 1963.  Estava em casa, estudando.  Tinha 14 anos e cursava o colegial.  De repente, ouvi um grito.  Era minha avó ao telefone.  O grito dela foi secundado pelo de minha mãe.  Exclamavam, nitidamente impressionadas: “O Kennedy? Mas como? Um tiro?” Acabavam de matar John F. Kennedy, presidente dos Estados Unidos, em Dallas, Texas.
            Dali para frente foi uma sucessão de leituras de jornais, imagens na televisão, noticiários nas rádios. Kennedy, a personificação do sonho americano, estava morto.  O homem louro e belo, casado com a mulher mais elegante do planeta, pai das crianças mais lindas do mundo, tivera o cérebro explodido por uma bala e jazia morto.  O homem mais poderoso do mundo era agora um cadáver impotente.  O católico John F. Kennedy fora assassinado e as imagens que  então víamos eram de Jacqueline, sua esposa, com o elegante vestido rosa manchado de sangue, ao lado do vice-presidente Lyndon Johnson, que fazia seu juramento à Constituição para substituir JFK na Casa Branca.
            Em nossa casa havia uma hierarquia de celebridades e heróis venerados pelos membros adultos da família.  E, depois do Sagrado Coração de Jesus, que presidia a vida de todos nós; do Papa, que enviara uma bênção especial a minha avó e cuja foto brilhava, devidamente emoldurada enfeitando a parede, John Kennedy era uma das principais figuras dessa galeria.
            Lembro-me de uma fotografia do presidente em uma revista internacional, ajoelhado, de mãos postas, rezando com os olhos fixos no Sacrário.  Todos estremeciam de emoção ao vê-la.  Recordo-me igualmente de seu discurso sobre a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba.  A operação foi um retumbante fracasso de Kennedy contra a diminuta Ilha de Fidel Castro.  Mas a mídia levava todos a crer que havia sido um sucesso.
            Quando cresci e fui adquirindo mais discernimento para avaliar as coisas com um pouco de senso crítico, a figura admirada e quase idolatrada de JFK começou a mostrar suas ambiguidades, próprias de todo ser humano.  No entanto, para a figura do estadista que ele fora, essas ambiguidades apareciam magnificadas.  Sua vida de infidelidades a Jackie, os inúmeros casos de mulheres introduzidas na Casa Branca para namorar o president, contradiziam sua imagem de irrepreensível chefe de família católico fabricada pela mídia.  É parte constitutiva de sua biografia a figura de Marilyn Monroe cantando parabéns em seu aniversário.  A morte trágica da linda loura, cobiçada por tantos, em 1962, foi depois explorada pelos biógrafos.  E a ligação amorosa com JFK apareceu como um dos elementos que contribuíram para seu declínio e seu triste fim.
            Mais tarde, os numerosos filmes sobre a Guerra do Vietnã traziam novamente a figura de JFK à baila com uma tinta mais negativa ainda.  Kennedy deu continuidade ao que Eisenhower havia começado.  Entre outras coisas, concordou em usar “zonas livres para disparar” napalm e agente laranja pelos aviões americanos, deixando um rastro de morte e horror entre civis inocentes, entre os quais muitas crianças vietnamitas. A certa altura, Kennedy teria planejado retirar as tropas do país asiático até 1965, mas morreu antes. Lyndon Johnson manteve os militares no Vietnã e intensificou o conflito.
            Ao mesmo tempo, o presidente Kennedy teve momentos importantes. Talvez um dos mais intensos de todos, já perto de sua morte, em junho de 1963, ocorreu em Berlim quando, diante de um mar de gente, proclamou diante da cidade dividida pela cortina de ferro: “Há dois mil anos não havia frase que se dissesse com mais orgulho do que “civis Romanus sum” (eu sou um cidadão romano).  Hoje, no mundo da liberdade, não há frase que se diga com mais orgulho que “Ich bin ein Berliner”. Todos os homens livres, onde quer que vivam, são cidadãos de Berlim e, portanto, como um homem livre, eu me orgulho das palavras ”Ich bin ein Berliner”!
            Hoje, 50 anos depois, JFK ainda aparece como um ícone na história do Ocidente em termos de liberdade e democracia.  Mas, com a justiça feita pelo tempo e pela história, aparece não como um santo ou uma estátua de moralidade.  Mas como um homem brilhante, que nem sempre esteve à altura do cargo que ocupou e que carregava em sua pessoa uma razoável dose de ambiguidade.  Sua vida e sua morte ensinam que nem tudo que reluz é ouro e que é preciso buscar a verdade por trás das aparências que insistem em distorcê-la para mais ou para menos.

  Maria Clara Bingemer é Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A   teóloga é autora de “Ser cristão hoje" (Editora Ave Maria).   http://agape.usuarios.rdc.puc-rio.br/
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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Olho espião



Por Frei Betto



     As recentes denúncias do jovem Edward Snowden nos permitiram saber que a maior espionagem praticada na história da humanidade é “made in USA”. Os EUA, que consideram a segurança mais importante que a liberdade, e o capital, que os direitos humanos, metem o nariz na vida de pessoas, governos, empresas e instituições.

       O governo estadunidense, através de sua Agência Nacional de Segurança (ANS), espionou (ou ainda espiona?) a presidente Dilma e a Petrobrás. Com certeza, fez e fará muito mais.

     Para mim, a notícia não constitui nenhuma novidade. Sei, por documentos oficiais obtidos no Arquivo Nacional (Habeas Data), que fui monitorado pelos espiões do regime militar brasileiro, então chamados de arapongas, de junho de 1964, quando me prenderam pela primeira vez, a 1992 – sete anos apos o fim da ditadura!

     Em agosto de 2003, quando eu trabalhava no Planalto, aparelhos de escuta foram descobertos na sala do presidente Lula. Uma informação governamental vale fortunas. Se acionistas e correntistas sabem, de antemão, que o Banco Central decretará a falência de um banco, isso não tem preço. Quem soube que o presidente Collor confiscaria toda a poupança dos brasileiros, deve estar rindo até hoje da multidão que foi apanhada de surpresa.

      A Guerra Fria só não esquentou porque a União Soviética espionava os EUA, assim como os EUA a União Soviética. Com frequência o espião de um lado era trocado por outro que servia à potência inimiga. Não é à toa que a Rússia decidiu conceder asilo a Snowden. Ele sabe demais a respeito da espionagem ianque.

    No tempo da máquina de escrever era impossível conhecer o conteúdo da mensagem, a menos que se obtivesse cópia do texto ou se pudesse fotografá-lo. Agora, todos os meios eletrônicos, de computadores a celulares, podem ser “radiografados” pelos serviços de segurança dos EUA. O “Big Brother” sabe tudo que se passa em nossa casa.

       Ainda que a Casa Branca apresente desculpas à presidente Dilma, isso não significa que a ANS deixará de rastrear os computadores do Planalto e saber o que, quando e com quem a presidente conversou. Informação é poder – de nos submeter aos interesses do mais poderoso império já existente na história da humanidade.

      Apenas uma nação tem conseguido driblar a espionagem estadunidense: Cuba. Isso tanto irrita a Casa Branca que, contrariando todos os princípios do Direito, mantém presos nos EUA os cinco heróis cubanos que tinham por missão evitar atos terroristas preparados sob as barbas de Tio Sam.

       Encerro com uma pergunta que não quer calar: por que, em vez de atacar o povo  sírio, os EUA não bombardeiam fábricas de armas químicas, como a Combined Systems, localizada na Pensilvânia? Que o digam os vietnamitas atingidos, mortos e deformados pelo “agente laranja” espalhado pelas Forças Armadas dos EUA durante a guerra do Vietnam.

 Frei Betto é escritor, autor de “Hotel Brasil – o mistério das cabeças degoladas” (Rocco), entre outros livros.

http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Complexo de Asterix



Por Marcelo Barros


Contam os quadrinhos de Asterix que os antigos gauleses só tinham medo de uma coisa: que o céu caísse sobre as suas cabeças. Hoje, essa ameaça parece mais possível e concreta, não por alguma hecatombe cósmica desconhecida, mas porque a camada de ozônio que protege a atmosfera terrestre está sendo destruída. Com esse fenômeno, o céu cai sobre nossas cabeças na forma de raios ultravioletas do sol que geram enfermidades e problemas de todo tipo.  

No início de dezembro, as Igrejas cristãs entram no novo ano litúrgico recordando a meta da história. Ouvem-se trechos dos evangelhos que muitos cristãos interpretam como anúncios do fim do mundo. No ano passado, isso coincidiu com o fato de que, segundo a cultura maia, o dia 21 de dezembro marcava o final de uma era. Muita gente logo associou isso com a destruição do planeta Terra. Quem se preocupa com o aquecimento global, viu a aproximação desse final dos tempos na crise ecológica que abala a convivência da humanidade com a natureza. Ao contrário, conforme notícias veiculadas pela grande imprensa, algumas agências de turismo programaram viagens e passeios nas ruínas do império maia para que as pessoas curtissem melhor o clima de expectativa e medo que as profecias podem gerar. 

Sem dúvida, as armas nucleares e também o agravamento da poluição ecológica, assim como o aquecimento do planeta podem destruir o nosso planeta. E o que então acontecer dessa vez, nova era do gelo ou do fogo, não ocorrerá por um fenômeno natural e sim como resultado da ação da sociedade humana. Por isso, é urgente estabelecer novas relações de respeito e cuidado com a natureza. No entanto, não tem sentido pensar que profecias bíblicas ou maias tenham previsto futuro e menos ainda anunciem o fim de mundo. Textos religiosos antigos são poemas simbólicos e têm muito mais o objetivo de convidar a humanidade a se engajar em uma nova esperança do que em ameaçá-la com o fim de tudo. Conforme o discurso atribuído pelos evangelhos a Jesus, vários dos sinais no céu que deveriam anunciar aqueles dias, de fato ocorreram na tarde em que Jesus morreu na cruz. A morte de Jesus determinou o fim de um mundo e o começo de outro. A profecia maia, ao dividir a história em etapas, previu a mesma coisa que, em outra linguagem e de modo diferente, o evangelho tinha profetizado: a história humana está grávida de uma vida nova. Mesmo se nesse plano cósmico e histórico, não existe parto sem dor, o anúncio dessa nova forma de organizar o mundo e viver as relações sociais é o próprio grito do processo atual dos fóruns sociais mundiais: Outro mundo é possível! O Evangelho de Lucas chega a dizer: “Quando virem essas coisas acontecerem, alegrem-se e levantem a cabeça. É a libertação de vocês que se aproxima” (Lc 21, 28).


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
 
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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Seremos uma célula cancerígena a ser extirpada?

Por Leonardo Boff


Há  negacionistas da Shoah (eliminação de milhões de judeus nos campos nazistas de extermínio) e há negacionistas das mudanças climáticas da Terra. Os primeiros recebem o desdém de toda a humanidade. Os segundos, que até há pouco sorriam cinicamente, agora veem dia a dia suas convicções sendo refutadas pelos fatos inegáveis. Só se mantem coagindo cientistas para não dizerem tudo o que sabem como foi denunciado por diferentes e sérios meios alternativos de comunicação. É a razão ensandecida que busca a acumulação de riqueza sem qualquer outra consideração.

Em tempos recentes temos conhecido eventos extremos da maior gravidade: Katrina e Sandy nos USA, tufões terríveis no Paquistão e em Bengladesh, o tsunami no Sudeste da Ásia e o tufão  no Japão que perigosamente danificou as usinas nucleares em Fukushina e ultimamente o avassalador tufão Haiyan nas Filipinas com milhares de vítimas.

Sabe-se hoje que a temperatura do Pacífico tropical, de onde nascem os principais tufões, ficava normalmente abaixo de 19,2ºC. As águas marítimas foram aquecendo a ponto de, a partir de 1976, ficarem por volta de 25ºC e, a partir de 1997/1998, alcançaram 30ºC. Tal fato produz grande evaporação de água. Os eventos extremos ocorrem a partir de 26ªC. Com o aquecimento, os tufões estão acontecendo com cada vez mais frequência e maior velocidade. Em 1951 eram de 240 km/h; em 1960-1980 subiram para 275 km/h; em 2006 chegaram a 306 km/h e em 2013 aos terrificantes 380 km/h.

Nos últimos meses quatro relatórios oficiais de organismos ligados a ONU lançaram veemente alerta sobre as graves consequências do crescente aquecimento global. Com 90% de certeza é comprovadamente provocado pela atividade irresponsável dos seres humanos e dos países industrializados.

Em setembro o IPPC que articula mais de mil cientistas o confirmou; o mesmo o fez o Programa do Meio Ambiente da ONU (PNUMA); em seguida o Relatório Internacional do Estado dos Oceanos denunciando o aumento da acidez  que por isso absorve menos C02; finalmente em 13 de novembro em Genebra a Organização Meteorológica Mundial. Todos são unânimes em afirmar que não estamos indo ao encontro do aquecimento global: já estamos dentro dele. Se nos inícios da revolução industrial o CO2 era de 280 ppm (parte de um milhão), em 1990 elevou-se a 350 ppm e hoje chegou a 450 ppm. Neste ano noticiou-se que em algumas partes do planeta já se rompeu a barreira dos 2ºC o que pode acarretar danos irreversíveis para os seres vivos.

Poucas semanas atrás, a Secretária Executiva da Convenção do Clima da ONU, Christina Figueres, em plena entrevista coletiva, desatou em choro incontido por denunciar que os países quase nada fazem para a adaptação e a mitigação do aquecimento global. Yeb Sano das Filipinas, na 19ª Convenção do Clima em Varsóvia ocorrida entre 11-22 de novembro, chorou diante de representantes de 190 países contando o horror do tufão que dizimou seu pais, atingindo sua própria família. A maioria não pode conter as lágrimas. Mas para muitos eram lágrimas de crocodilo. Os representantes já trazem no bolso as instruções previamente tomadas por seus governos e os grandes dificultam por muitos modos qualquer consenso. Lá estão também os donos do poder no mundo, donos das minas de carvão,  muitos acionistas de petrolíferas ou de siderurgias movidas a carvão, as montadoras e outros. Todos querem que as coisas continuem como estão. É o que de pior nos pode acontecer, porque então o caminho para o abismo se torna mais direto e fatal. Por falta de consenso entre os representantes dos povos, desprezando os dados científicos, se entende que as centenas ONGs presentes na 19.Convenção sobre o clima em Varsóvia abandonaram as discussões e em protesto foram embora.

Por que essa irracional resistência às mudanças que nos podem salvar?

Respondendo, vamos diretos à questão central: esse caos ecológico é tributado ao nosso modo de produção que devasta a natureza e alimenta a cultura do consumismo ilimitado. Ou mudamos nosso paradigma de relação para com a Terra e para com os bens e serviços naturais ou vamos irrefreavelmente ao encontro do  pior. O paradigma vigente se rege por esta lógica: quanto posso ganhar com o menor investimento possível, no mais curto lapso de tempo, com inovação tecnológica e com maior potência competitiva? A produção é para o puro e simples consumo que gera a acumulação, este, o objetivo principal. A devastação da natureza e o empobrecimento dos ecossistemas aí implicados são meras externaliddes (não  entram na contabilidade empresarial). Como a economia neoliberal se rege estritamente pela competição e não pela cooperação, se estabelece uma guerra de mercados, de todos contra todos. Quem paga a conta  são os seres humanos (injustiça social) e a natureza (injustiça ecológica).

Ocorre que a Terra não aguenta mais este tipo de guerra total contra ela. Ela precisa de um ano e meio para repor o que lhe arrancamos durante um ano. O aquecimento global é a febre que denuncia estar doente e gravemente doente.

Ou começamos a nos sentir parte da natureza e então a respeitamos como a nós mesmos, ou passamos do paradigma da conquista e da dominação para aquele do cuidado e da convivência e produzimos respeitando os ritmos naturais e dentro dos limites de cada ecossistema ou então preparemo-nos para as amargas lições que a Mãe Terra no dará. E não é excluída a possibilidade de que ela já não nos queira mais sobre sua face e se liberte de nós como nos libertamos de uma célula cancerígena. Ela continuará, coberta de cadáveres, mas sem nós. Que Deus não permita semelhante e trágico destino.


Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra e cuidar da vida: como escapar do fim do mundo, Record, Rio de Janeiro 2011.


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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Juventude transviada revista aumentada




Por Maria Clara Bingemer



    Quando éramos jovens, os da minha geração ouviam falar muito em juventude transviada.  Vinha o conceito do famoso filme lançado em 1955, “Rebel without a cause”, com o prematuramente falecido grande artista James Dean.  E incluía moto (ou lambreta), casaco de couro, comportamento rebelde, prisão etc.

          No filme, Jim Stark (James Dean) é um jovem que se mete em várias encrencas, a ponto de obrigar os pais a mudarem de cidade.  Devido a seu comportamento transviado (ou seja, desviado do rumo certo) é preso de madrugada por embriaguez e desordem.  Na prisão encontra Judy (Natalie Wood), com quem vai tentar um relacionamento mais próximo, sendo interceptado pelo noivo da moça.  O filme acaba, é óbvio, com trágicas consequências.

          James Dean criou um estilo imorredouro em termos de moda, perfil e estilo, para os jovens de várias gerações como o ícone da juventude rebelde que contestava os padrões da sociedade burguesa estabelecida dos Estados Unidos bem comportados. Esse padrão foi exportado mundo afora na medida em que as diversas sociedades, sobretudo a ocidental em que vivemos, mimetizava tudo o que vinha das terras do tio Sam.

          Lembro-me da preocupação dos pais de minha geração de que suas filhas namorassem rapazes que se enquadrassem no modelo transviado de lambreta, casaco de couro e cigarrinho na boca.  Assim como de que os filhos adotassem esse perfil.  Mal sabiam eles que a juventude transviada de James Dean, embora se autointitulasse rebelde sem causa, tinha - e como! – causas profundas para ser como era.  Era uma rebeldia  profundamente subjetiva, deixando emergir as frustrações e descaminhos de uma geração que começava a querer um modelo alternativo de sociedade e que pouco mais de uma década após o filme faria acontecer o grande evento sociocultural de maio de 1968.

          Certamente James Dean não poderia imaginar que seu transvio pareceria brincadeira de criança diante dos novos ídolos da juventude hodierna.  Que suas confusões pareceriam inocentes e mínimas diante, por exemplo, do comportamento do astro canadense Justin Bieber, de cabelinho louro e carinha de anjo barroco que acaba de fazer tournée artística pela América do Sul. Depois de ofender e destratar fãs que pagaram 3 mil reais para vê-lo emitir seus sons no palco, ser fotografado saindo de uma casa de massagem e filmado por uma desconhecida enquanto dormia, o queridinho teen ainda se deu o desplante de pichar muros no Rio de Janeiro sendo então autuado pela polícia.

          Mas isso era pouco e Bieber foi além.  Em São Paulo foi atingido por uma garrafa d´água e abandonou o palco em meio ao show.  Azar de quem pagou os absurdos 3 mil reais.  E na Argentina simplesmente “varreu” com o pé do microfone a bandeira nacional para fora do palco. Ou seja, seu desrespeito não é somente por seres humanos, mas também por símbolos nacionais.  Portanto, não se deve deixar nada que mereça respeito perto de Bieber, porque corre o risco de receber uma pichação, uma varredura inesperada ou sabe-se lá o que mais.

          Dá muita tristeza ver que o comportamento desse jovem artista, que deveria estar motivando e encantando os jovens que o escutam com sua arte, se “transvia” em um vandalismo totalmente sem fundamentos ou objetivos.  O que quer Justin com o que faz?  Nada.  Nada além de fazer o que lhe dá na telha, como se o resto da humanidade não existisse.  Nada além de reafirmar-se diante de si mesmo como o astro das multidões teen que enlouquecem diante de seu canto. 

          Nós nos perguntamos que modelos, que referências as novas gerações estão buscando e encontrando.  Se é alguém como Justin Bieber...valha-nos Nossa Senhora da Penha! Vibrar com o artista que admiramos, cantar com ele, ir aos shows...tudo bem, tudo ótimo.  Quem é que já não fez isto na vida?  Mas legitimar o comportamento transviado e equivocado do ídolo já é outra coisa.

          Já dizia a Bíblia que os ídolos não são nada.  São menores que nós, pois fabricados por nós mesmos ou por algum ourives, artesão que lhes põe ouro, pedras preciosas e outros adereços que o façam atrativo.  No caso de Justin Bieber, a mídia e a publicidade o adereçaram bastante.  Mas seu comportamento o mostra tal qual ele é.  Tão transviado que faz James Dean parecer um inocente garoto de subúrbio americano.
         
    Maria Clara Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio. A   teóloga é autora de “Ser cristão hoje" (Editora Ave Maria).
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