Por Maria
Clara Bingemer
O documento começa destacando os problemas “inéditos” sobre a família e o
casamento que a Igreja tem de enfrentar hoje. Não é de admirar que por aí
comecem as preocupações do Vaticano. Nos últimos tempos, poucas
instituições têm conhecido tão profundas e radicais mudanças como esta que,
para a Igreja, sempre foi a célula mater da evangelização.
O texto, apresentado em seis línguas, declara em sua parte inicial: “Hoje se
perfilam problemáticas até há poucos anos inéditas, desde a difusão dos casais
de fato, que não acedem ao matrimônio e às vezes excluem esta própria idéia, até
as uniões entre pessoas do mesmo sexo, às quais não raramente é permitida a
adoção de filhos”.
Embora reafirme as linhas de força do ensinamento tradicional católico sobre a
família, qual sejam: o matrimônio indissolúvel e a primordialidade da
procriação como fim do casamento entre o homem e a mulher, sente-se um tom de
maior abertura e uma atitude de maior escuta do que em ocasiões anteriores.
Sem afastar-se daquilo que considera pontos não negociáveis de sua doutrina
sobre o matrimônio e a família, a Igreja demonstra preocupação com os fiéis
que, por viverem situações matrimoniais e familiares irregulares, encontram-se
afastados dos sacramentos.
Alude, por exemplo, ao fato de que muitos adolescentes e jovens, “nascidos de
matrimônios irregulares”, poderão “nunca ver os seus pais aproximar-se dos
sacramentos”. E declara que “na época em que vivemos, a evidente crise
social e espiritual torna-se um desafio pastoral, que interpela a missão
evangelizadora da Igreja para a família, núcleo vital da sociedade e da
comunidade eclesial”. A partir daí, o documento salientae a importância
do desafio que a partir da família é apresentado hoje à Igreja para realizar
sua missão de evangelizar.
O texto deixa transpirar ainda uma preocupação evidente com o sofrimento que
muitos católicos, vivendo em situação matrimonial e familiar irregular,
experimentariam pelo fato de não poderem se aproximar dos sacramentos. A
preocupação de que isso os faça sentir-se marginalizados deixa entrever a
esperança de que o Sínodo se empenhará por encontrar vias de solução para tal
problema, flexibilizando uma atitude que até os dias de hoje nunca admitiu
muitos questionamentos.
Alude ainda a “situações matrimoniais difíceis”, como a convivência ‘ad
experimentum’ (experimental), as “uniões livres de fato”, os “separados e os
divorciados recasados”, para perguntar – com preocupação maternal - “como vivem
os batizados a sua irregularidade”. E pergunta-se ainda se a
simplificação do processo de reconhecimento da “nulidade do vínculo
matrimonial” poderia oferecer uma “contribuição positiva real para a solução
das problemáticas das pessoas interessadas”.
Há um ponto, porém, que me parece central na reflexão que o Sínodo possa fazer
sobre a família. Trata-se da identidade desta instituição que é chamada a
entrar em diálogo com a Igreja. Esta, investida da missão de proclamar a
Boa Notícia do Evangelho, está hoje mais que nunca chamada a não esquecer que a
família não existe para si mesma ou para construir-se e comprazer-se na sua
própria excelência comunitária. Embora os laços afetivos e a convivência
relacional sejam fundamentais para o crescimento pessoal, o equilíbrio
emocional e a realização das plenas potencialidades dos membros do núcleo familiar,
toda família estará fracassando em sua vocação não apenas cristã, mas humana,
se sucumbir à tentação do modelo burguês, fechado em si mesmo, confinado à
esfera do privado, instaurando uma dicotomia malsã entre o privado do interior
do lar e a dimensão pública do mundo e da sociedade.
A família existe no mundo e para o mundo. E é atenta às necessidades e
prioridades deste mundo e desta sociedade que deve desenvolver sua identidade e
suas prioridades formativas e ativas. A família não é um fim em si mesma,
mas existe para que o mundo seja melhor e mais humano. O documento de
preparação nos permite esperar que este ponto forme parte integral e
constitutiva do acontecimento sinodal que acontecerá no próximo ano.
Maria Clara Bingemer é professora
do departamento de teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Ser
cristão hoje" (Editora Ave Maria).
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CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
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