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terça-feira, 13 de setembro de 2022

Eleições e espiritualidade

 Marcelo Barros


Há menos de um mês das eleições para presidente da República, governadores dos Estados, senadores e deputados, um fator que todos sabem que terá grande peso será a questão religiosa. Infelizmente, a fé e a espiritualidade estão sendo usadas de forma desonesta e não para tornar o mundo melhor e mais justo e amoroso. Conforme o evangelho, Jesus denunciou como errados os fariseus e doutores da lei que se achavam de Deus e desprezavam os outros. Grupos religiosos tradicionalistas, padres católicos e pastores evangélicos ou pentecostais que apregoam notícias falsas, provocam medo nas pessoas e inventam perigos que não existem não têm nada a ver com Jesus e o seu evangelho. Há  ministros desonestos que afirmam publicamente que se Lula ganhar, vai fechar Igrejas. Ao lado disso, a atual mulher do presidente da República convoca evangélicos para um jejum para pedir a Deus a vitória contra o inimigo como se a campanha eleitoral fosse um combate entre crentes e ateus.

Ao contrário desse procedimento desonesto, nestes dias, uma carta aberta ao povo brasileiro, assinada por centenas de padres de todo o país pede que não permitamos que o nome de Deus seja usado para interesses partidários e eleitorais. É preciso sempre lembrar que Jesus afirmou: “Não são as pessoas que ficam gritando Senhor, Senhor que entram no reino dos céus e sim as pessoas que fazem a vontade do Pai que está nos céus” (Mt 7, 21).

De fato, a  Política não deve depender de padres e pastores. A espiritualidade deve influir na Política de modo positivo: ao valorizar o compromisso político com o bem comum e a proteção da vida na natureza e da justiça para todas as pessoas, principalmente as mais vulneráveis. Ama a Deus quem testemunha que Deus é Amor e inclusão. O deus que favorece amigos e abandona a outros não é o Deus de Jesus. É um ídolo.

Na primeira metade do século XX, Simone Weil, espiritual francesa afirmava: “Eu reconheço quem é de Deus não por falar de Deus e sim pelo seu modo de viver e de se relacionar com as outras pessoas”. 

 Quem é de Deus deve colaborar para construir uma sociedade mais justa e não favorecer quem prega ódio e intolerância. Quem favorece armas e violência não tem nada a ver com Deus. O evangelho diz que devemos julgar as pessoas e partidos conforme a prática e pelos seus resultados. “Pelos frutos bons, vocês podem discernir que a árvore é boa, assim como pelos maus frutos, verão que uma árvore é má. Pelos frutos, vocês podem discernir se a árvore é boa ou má” (Mt 7, 18). 

 

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

A independência inconclusa do Brasil mas promessa de futuro para toda a humanidade

                                             Leonardo Boff


O dia 7 de setembro de cada ano celebramos o dia da Independência do Brasil. Mas se trata de uma independência inconclusa. Foi feita por Dom Pedro I montado em cima de um burro e não como épica e falsamente o pinta Meireles montado num belo cavalo.

Ao independizar-se do Brasil, foram mantidas as mesmas relações da época colonial, dos senhores da Casa Grande e dos escravizados da senzala. Não esqueçamos o fato de que a Independência se fez ainda no quadro do escravismo que foi brutal e cruel para milhões de pessoas trazidas de África e aqui escravizadas. Mesmo depois da Lei Áurea de 1888, os escravizados não tiveram nenhuma compensação seja em terras, trabalhos e oportunidades. Foram lançados ao deus-dará sem absolutamente nada. Hoje os afrodescendente constituem de 54% de nossa população para a qual nunca saldamos a nossa dívida por tudo o que sofreram e ajudaram a construir esta nação.

Como país, fomos sempre dependentes. Primeiro de Portugal, depois da Inglaterra, em seguida dos USA e atualmente dos países opulentos com suas mega corporações que exploram nossas riquezas.

Nunca houve um projeto de nação. Sempre predominou, como foi amplamente mostrado pelos historiadores, uma política de conciliação das classes endinheiradas entre si e de costas para o povo, excluído e covardemente desprezado e odiado. Elas ocuparam  o Estado e seus aparelhos para garantirem seus privilégios, usufruírem das vantagens dos grande projetos, das propinas e da corrupção simplesmente naturalizada. Por isso temos um país profundamente dividido entre um pequeno número de miliardários e bilhardários, uma porção de classe média e entre as grandes maiorias marginalizada e excluídas dos bens da civilização.

Houve, na época colonial, resistências e revoltas de gente do povo, de negros e indígenas, todas esmagadas violentamente com enforcamentos, fuzilamentos ou, no melhor dos casos, com o exílio e com golpes e ditaduras na época republicana.

Na verdade, aqui a democracia delegatícia foi e continua sendo de baixa e até de baixíssima intensidade, com uma  liberdade somente formal e jurídica mas sem o seu insubstituível complemento, a igualdade. Por isso grassa uma vergonhosa desigualdade, das maiores do mundo, que é uma injustiça social tão grave que clama aos céus pelas vítimas que produz.

Olhando para trás nossa história pátria é marcada por sombras escuras, do genocídio indígena, da colonização, do escravismo e da dominação das elites do atraso, como a qualifica o sociólogo Jessé  Souza.

Quando alguém vindo do andar de baixo, sobrevivente da grande tribulação brasileira, chegou ao poder, Luis Inácio Lula da Silva e com sua sucessora Dilma Rousseff introduziram políticas sociais de inserção de milhões de pobres e famintos, logo se armou contra eles um golpe jurídico-parlamentar-judiciário. Desta forma se salvou a velha ordem (da desordem social) e foi continuada por uma figura insana e psicopática que tirou do armário de partes importantes da população tudo o que havia de ódio e de perversão, recalcadas e fruto tardio do tempo da escravidão. Os escravizados eram simplesmente “peças” a serem vendidas e compradas no mercado e tratadas com os famosos três Ps: pau, pão e pano, pau como chibatadas desumanas, pão para não morrem de forme e pano para esconderem as vergonhas. A prática era da violência que continua ainda hoje com a população negra e pobre.

Fine finaliter: aqui nossa independência foi manca e inacabada, o que nos tira qualquer sentido de celebração. Como nunca houve uma revolução, como nos grandes países qu deram seu salto de qualidade, que apeasse do poder-dominação a classe do privilégio e do enriquecimento fácil, nunca nos foi dada a oportunidade de fundar uma nação com um projeto para todos, altivo e ativo. Apenas prolongamos o regime de dependência de vários outros poderes forâneos até a presente data.

Qual seria a nossa chance e o nosso destino? Olhar para frente e par o futuro. Somos uma nação continental, com a maior riqueza ecológica do planeta em termos de água doce, florestas tropicais, solos férteis, imensa biodiversidade e um povo aberto, hábil e inteligente que conseguiu sobreviver a todo tipo de opressão.

Sabemos que a Terra alcançou o seu limite.No dia 28 de julho de 2022 ocorreu o Dia da Sobrecarga da Terra (The Eath Overshoot Day) ou seja, utilizamos todos os bens e serviços naturais indispensáveis para a vida. Entramos no cheque especial. Usamos nos sete meses passados, todo o estoque de água, minerais, vegetais e energia que o planeta pode produzir e regenerar no período de 365  dias. Para continuarmos a viver seria necessária a biocapacidade de 1,75 Terras que não temos.

Com o crescimento inesperado do aquecimento global e com o que já existe de CO2 e metano acumulados na atmosfera, os eventos extremos serão inevitáveis. Chegamos atrasados. Com ciência e técnica podemos apenas mitigar os efeitos extremos que virão com destruição de ecossistemas e milhares de vidas humanas. Segundo dados deste ano do IPCC isso poderá ocorrer nos próximos 3-4 anos. Há muitas nações que não conseguem produzir o que sua população necessita, situação agravada pela intrusão do Covid-19.

Esta realidade sombria poderá se tornar uma catástrofe global. É nesse ponto que entra a  independência possível e real do Brasil. Ele pode ser a mesa posta para as fomes e as sedes de toda a humanidade. Esta dependerá em grande parte do Brasil, da umidade de nossa Amazônia, da proteína de nosso gado e aves e da produção de alimentos de nossos solos. Grande parte dos países, hoje independentes, serão dependentes de nós. Finalmente teremos alcançado a nossa real independência, não para nosso orgulho e benefício mas como serviço para a vida na Terra e a sobrevivência da humanidade.

Finalmente poderemos entoar a canção carnavalesca:”Liberdade, Liberdade! Abre as asas sobre nós. E que a voz da Igualdade seja sempre a nossa voz” e de toda a humanidade.

Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor e escreveu O doloroso parto da Mãe Terra, Vozes 2021; Habitar a Terra, Vozes 2022.

 

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

DEPENDÊNCIA E MORTE

 Frei Betto


 

      Com a exposição de um coração atribuído a D. Pedro I, importação cara e necrófila feita pelos atuais ocupantes do Planalto, o Brasil comemora 200 anos de independência de Portugal. Deixamos Portugal para cair nos braços da Inglaterra, da União Europeia e, sobretudo, dos EUA. 

      As narrativas sobre o episódio “às margens do Ipiranga” são quase todas elitistas. Afonso Taunay (1876-1958), ao encomendar pinturas para o Museu Paulista, fez questão de excluir as lutas populares pela Independência e favorecer uma versão oligárquica e pacifista.

      A participação dos indígenas em nossa Independência é ignorada ainda hoje. Na estátua de D. Pedro I na Praça Tiradentes, no Rio, o pedestal retrata indígenas e animais de nossas selvas. Ao ser  inaugurada, em 1862, o historiador Mello Morais chegou a indagar: “Que parte tiveram esses índios e aqueles jacarés na Independência do Brasil?” 

      Quase todas as narrativas sobre nossos povos originários anterior a 1980 soam como “crônicas de morte anunciada”, como se estivessem condenados ao extermínio ou a serem assimilados pela população em geral. Só em 1988 a Constituição assegurou a eles direito à terra e às suas tradições e culturas. Pela primeira vez, o Estado brasileiro se reconheceu multiétnico.

      Criou-se o mito de que a Independência assegurou a unidade territorial do Brasil. Ora, D. Pedro I se interessava apenas por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas. Não dava ouvidos às outras províncias. Por isso, teve que enfrentar várias revoltas regionais contra o governo imperial, como Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul; Cabanagem (1835-1840), no Pará; e a Sabinada (1837-1838), na Bahia. Maranhão e Pará eram províncias apartadas do Brasil até 1820. O Acre pertencia ao Peru e à Bolívia, e só foi anexado ao Brasil em 1903. 

      D. Pedro I chegou a contratar o lorde inglês Thomas Cochrane (1775-1860) para reprimir rebeliões populares. No Pará, o cônego Batista Campos (1782-1834), que se opunha ao trabalho escravo, sofreu tortura em praça pública, enquanto 256 aliados dele eram asfixiados no porão de um navio. É considerado o autor intelectual da Cabanagem, que teve importante participação indígena. Na versão da elite, “cabano” significa aquele que vivia em cabanas à beira dos rios. Na versão dos ribeirinhos, o termo é associado aos brancos repressores que se vangloriavam da sanha repressora: “Acabamos com tudo”. 

      Se D. Pedro I tinha pouco interesse pelo resto do Brasil, por que o nosso país, então integrado por 18 províncias, não se fragmentou, como ocorreu em tantas regiões da América Latina? Entre várias hipóteses fico com a mais vergonhosa: a unidade territorial se manteve por força do projeto escravagista voltado à exploração mineral. O regime escravocrata uniu as elites provincianas e alicerçou a formação do Estado brasileiro. 

      Outro fator que influiu em nossa coesão territorial foi a vinda da Corte portuguesa para o Brasil em 1808. A frase atribuída ao governador de Minas, Antônio Carlos de Andrada, em 1930 – “façamos a revolução antes que o povo a faça” -, poderia ter sido dita no período colonial. D. Pedro I, filho de D. João VI, proclamou a Independência antes que as rebeliões populares, como a Conjuração Mineira, lograssem devolver a Corte a Portugal. 

      Não eram só as revoltas populares, pipocando Brasil afora e agravadas pelos quilombos, habitados por escravos libertos, que tiravam o sono do imperador. Ele sabia que os nossos vizinhos na América do Sul se independentizavam da Coroa espanhola: Bolívar comandou as independências de Colômbia (1810); Venezuela (1811); Equador (maio de 1822); e, em 1825, Bolívia. San Martin liderou as da Argentina (1816) e Peru (1821), e deu apoio à libertação do Chile (1818).

      “Façamos a Independência antes que o povo a faça.” Aqui ela foi consumada “por cima”, a ponto de adotar uma bandeira que não traz o azul dos nossos céus, como aprendi na escola, e sim a cor símbolo da nobreza (“sangue azul”); o amarelo do ouro; e o verde que não retrata as nossas matas, e sim a cor da Casa Real de Bragança. Já a iconografia das bandeiras dos países hispânicos alude a movimentos de libertação e processos revolucionários.

      O senso de brasilidade é tardio. Até final do século 18 os habitantes daqui se consideravam “portugueses da América” e muitos reivindicavam igualdade de direitos com os portugueses de Portugal. Isso incomodava a elite de Lisboa, que se arvorava em centro do Império. D. Pedro então foi pressionado a estabelecer uma Assembleia Legislativa no Brasil que adotasse leis próprias. Só então se popularizou a ideia de ser brasileiro.

      Concordo com Caio Prado Junior e Florestan Fernandes: ao lograr a emancipação política do Brasil, a Independência criou um Estado capaz de preservar as estruturas econômicas e sociais do período colonial. 

      Ainda resta muito a conquistar. E as eleições estão à porta. Votemos pela independência do povo brasileiro!

 

Frei Betto é escritor, autor de “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

  

Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

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quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Palavra de Pedro: Coexistência fraternal-sororal

 Dom Pedro Casaldáliga


 

“Essa é a síntese do novo mandamento. Este é o maior e mais diário desafio para indivíduos, comunidades e povos. Conviver, não apenas coexistir; viver afetuosamente em fraternidade e irmandade; não apenas na tolerância mútua. Ajudando a tornar a vida agradável.”

 

Pedro Casaldáliga,

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

A Terra em dores de parto: virá o grande salto salvador?

Leonardo Boff


Ninguém pode negar que nosso Lar Comum, a Terra viva, está se preparando para uma grande transição. O que foi vivido nos últimos séculos, como paradigma de civilização, vale dizer, a forma como habitamos e organizamos a Casa Comum, à base da ilimitada exploração de seus recursos naturais, não pode mais continuar. Este paradigma esgotou suas potencialidades de realização. Entrou em agonia. Mas esta pode se prolongar ainda por bom tempo.

Ele armou para si, involuntariamente, uma grande cilada: começou com o maior ato terrorista cometido pelos USA lançando duas bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki,devastando todo tipo de vida. Logo, J.P.Sartre reagiu dizendo: nós nos apropriamos de nossa própria morte e podemos pôr fim à nossa espécie. Severo, foi um dos maiores historiadores modernos Arnold Toynbee ao constatar, consternado: ”coube à nossa geração assistir o modo de nossa  autodestruição; ela não será obra de Deus mas de nós mesmos”. Inventamos o princípio de autodestruição das mais diferentes formas. A tecno-ciência moderna que tantos benefícios nos trouxe, tornou-se irracional  e enlouquecida porque suicidária.

As múltiplas crises pelas quais o inteiro planeta está passando,  representam uma espécie dores de parto. A maior delas foi e é a intrusão do coronavírus. Ele atingiu somente os seres humanos. Não respeitou os limites de soberania dos países e tornou irrisória a máquina mortífera das potências militaristas.

Para quem não apenas constata fatos mas procura discernir neles a mensagem escondida, deve se interrogar: que coisa Gaia, a Terra viva, nos quer comunicar com o Covid-19 que já fez milhões de vítimas?

Seguramente é um contra-ataque da Mãe Terra contra as sistemáticas violências que seus filhos e filhas já há séculos estão movendo contra ela, uma verdadeira Guerra,sem  nenhuma chance de ganhá-la. Ultrapassamos os limites  suportáveis do sistema-Terra de tal modo que precisamos de mais de um planeta e meio (1,7) para atender nosso estilo consumista de vida. É a assim chamada Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot). Todos os sinais entraram no vermelho  e estamos no cheque especial. Em outras palavras: os bens e serviços necessários para garantir a vida estão se esgotando. Um pouco mais, miais um pouco poderá ocorrer um colapso das bases que sustentam ecologicamente a vida no planeta.

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Quem dos chefes de Estado e dos grandes gerentes (CEOs) das mega-corporações refletem e tomam decisões face de tal situação-limite de nossa Casa Comum? Talvez tomam conhecimento da real situação. Mas não lhe dão importância porque, caso contrário, deveriam mudar completamente o modo de produção, renunciar aos fabulosos ganhos econômicos, mudar sua relação para com a natureza e se acostumar a um consumo mais frugal e mais solidário.

Porque isso não ocorre, entendemos as palavras do Secretário Geral da ONU, António Guterrez, há pouco tempo, num encontro sobre as mudanças climáticas em Berlim:”Temos uma única escolha: a ação coletiva ou o suicídio coletivo”. Antes, em Glasgow por ocasião da COP 26 sobre as mudanças climáticas asseverou peremptoriamente: ”ou mudamos ou estamos cavando a nossa própria sepultura”.

Talvez o risco mais iminente da mudança de situação de nossa Casa Comum seja o alarmante aquecimento global, constatado nos últimos tempos. A partir do Acordo de Paris de 2015 havia-se acordado de evitar até 2030 a subida de 1,5 graus Celsius, para evitar grandes danos para biosfera. Com a entrada maciça de metano,devido ao degelo das calotas polares e do parmafrost (que vai do Canadá até os confins da Sibéria) foram liberadas milhões de toneladas de metano.Este é 28 vezes mais danosos que o CO2. Em razão desta mudanças o ICLL admitiu que não mais em 2030 mas até em 2027 ocorreria aumento  da temperatura para além de 1,5 até 2,7 graus Celsius.

Os eventos extremos que atualmente estão ocorrendo na Europa, na Índia e em outros lugares, com grandes queimadas e níveis de calor nunca experimentados antes, e ao mesmo tempo, o frio inusitado  no Sul do mundo estão dando mostras de que a Terra perdeu seu equilíbrio e está procurando outro.

Resumindo o discurso: a seguir esta tendência que futuro nos esperará? Poderá a espécie humana ter atingido o seu clímax, como todas as espécies a seu tempo e daí desaparecerá? Ou pode ocorrer, pelo ingênio humano ou pelas próprias forças do planeta Terra conjugadas com as energias do universo, dar um salto de qualidade e assim inaugurar uma nova ordem e dar continuidade à espécie humana? Se isso ocorrer, o que auguramos, não se fará sem pesados sacrifícios de vidas da natureza e da própria humanidade.

Há  67 milhões de anos caiu um meteoro de quase 10 km de extensão no Caribe que dizimou todos os dinossauros e 75% de todas as formas de vida, poupando nosso ancestral. Não poderia ocorrer algo semelhante com o nosso planeta Terra? Provavelmente não um meteoro rasante mas qualquer outro incomensurável desastre ecológico-social.

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Se sobrevivermos, a Terra terá dado o salto salvador e  realizado o parto tão esperado. As dores de parto terão passado e, finalmente, se gerou o bioceno e o ecoceno. A vida (bio) e o fator ecológico (eco) ganharão centralidade, comprometendo o nosso cuidado e todo o nosso coração. Que esse desiderato seja uma utopia viável que nos permitirá continuar sobre esse belo e ridente planeta.

Leonardo Boff escreveu O doloroso parte da Mãe Terra, Vozes 2021.

 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

ENCONTROS COM GORBACHEV

Frei Betto


 

      Em março de 1985, Mikhail Gorbachev assumiu a direção da União Soviética e introduziu reformas que a levariam a se desintegrar, abandonar o socialismo e      ingressar na órbita do capitalismo.

      Em maio de 1986 visitei o Kremlin, mas não estive com o líder soviético. Só fui encontrá-lo no ano seguinte, quando participei, em Moscou, do Fórum por um Mundo sem Armas Nucleares e pela Sobrevivência da Humanidade.  

      Em torno de Gorbachev já não havia o mesmo consenso do ano anterior. Muitos o aplaudiam por erradicar a gerontocracia e levar aos cárceres, como corruptos, autoridades durante décadas tidas como intocáveis. Outros, contudo, o criticavam por permitir que dissidentes de ontem caminhassem, hoje, livremente pelas ruas de Moscou. 

      O Fórum reuniu cerca de mil participantes, oriundos de 80 países. Gente das mais diferentes tendências políticas e atividades profissionais, de banqueiros a generais, de escritores a religiosos, de cientistas a artistas de cinema. Óbvio que a atenção da mídia e do público se centrava em figuras como Yoko Ono, Gregory Peck, Michel Legrand, Paul Newman e Shirley MacLaine. Do Brasil, participaram também o maestro Cláudio Santoro, o compositor Marlos Nobre e o professor Cândido Mendes.

      Ao chegar ao Kremlin para o encerramento do Fórum, entramos pela porta da antiga biblioteca de Lenin e ingressamos no Palácio dos Congressos. Gorbachev tomou assento sob a grande estátua de Lenin.

      Mereceu mais aplausos do que o anfitrião o escritor inglês Graham Greene que, com bom humor, falou de improviso em nome de homens e mulheres da cultura:      

      — Marx previra um mundo melhor, quando já não tivessem igrejas e mosteiros. Mas vivi anos na América Latina e posso assegurar que ali há cooperação entre católicos e comunistas. Juntos, lutam contra os esquadrões da morte Portanto, antes de morrer espero ver um embaixador da União Soviética no Vaticano.

      Gorbachev riu e aplaudiu, talvez sem dar importância à premonição que ele próprio haveria de cumprir, pois em janeiro de 1989 a URSS e o Vaticano estabeleceram relações diplomáticas. 

      Em seu discurso de uma hora e três minutos, o autor da perestroika recordou Hiroshima e Nagasaki para advertir:

      — Agora, um único submarino estratégico contém mais poder de destruição que todas as armas da Segunda Guerra Mundial. Do dilúvio nuclear não poderá se salvar uma nova Arca de Noé.

         Em seguida, ridicularizou o presidente Reagan por ter lhe proposto, num encontro, uma ação conjunta URSS-EUA, caso o nosso planeta fosse atacado por seres extraterrestres! Caímos na risada. Gorbachev defendeu a destruição imediata de todas as armas capazes de provocar genocídio; a inspeção das bases usamericanas no exterior; e o retorno de suas tropas aos EUA. Assegurou que a União Soviética estava retirando seus soldados da Mongólia e do Afeganistão, e concluiu:

      — É preciso salvar na Terra o dom sagrado da vida, possivelmente único no Universo. Para isso, é preciso acabar de vez com as armas nucleares, esse ídolo que exige sempre novos sacrifícios. Nem a União Soviética nem os Estados Unidos tem o direito de decretar pena de morte à humanidade. É preciso pôr um fim à separação entre política e moral. Queremos traduzir nossa filosofia moral na linguagem da práxis política.

      Não se ateve apenas às questões de política externa; abordou também a perestroika:

      — Vocês chegaram aqui quando realizamos reformas revolucionárias. Só compreendendo a essência delas é possível entender nossa política interna. É ela que determina nossa política externa. E o seu objetivo é o pleno e livre funcionamento de todas as formas de organização da sociedade. Queremos democratizar toda a vida social. Almejamos mais socialismo e, portanto, mais democracia.

      Encerrou sem citar nenhum clássico do marxismo. Findo os discursos, passamos todos ao salão de recepção, dividido em diversos patamares. Logo, os alto-falantes anunciaram que, dentro em pouco, "o presidente Mikhail Serguêievitch Gorbachev ingressará no salão e todos devem permanecer em suas mesas, pois ele passará cumprimentando um por um", advertiu o locutor.

      Comentei com Emílio Monte, pastor evangélico argentino sentado ao meu lado, que aquilo não daria certo. Bem fazia Fidel ao postar-se à entrada do salão, estender a mão a cada convidado e, em seguida, desaparecer.

      — Quando Gorbachev aparecer ali embaixo, ninguém segura essa boiada - adverti ao pastor. — Se quisermos cumprimentá-lo, teremos de descer.

      — Descer como? Os seguranças não nos deixarão passar.

      — Vamos descer - insisti. — Duvido que nos barrem. Devem pensar que todos aqui são muito importantes.

      Puxado por mim, o pastor se animou. Passamos pelos seguranças sem ser molestados. Logo, instalou-se um forte movimento centrífugo abaixo. Gorbachev havia entrado e, conforme eu previra, as personalidades vips súbito trocaram a etiqueta pela tietagem. 

      — Avistei ali Marcello Mastroianni - comentei com o pastor.

      — Onde? Onde? 

      O homem perdeu a compostura. Não queria mais nada com Gorbachev. Suplicou para ajudá-lo a descobrir o ator italiano. Entramos num impasse: eu queria ir na direção de Gorbachev e, ele, na de Mastroianni. Os alto-falantes rogavam, em vão, que as pessoas retornassem às mesas. Previ que Gorbachev não daria mais nenhum passo para dentro do salão e, o quanto antes, trataria de fugir daquela turba. Minha intuição sugeriu que ele faria uma curva antes de alcançar a porta de saída. Postei-me no local da curva, em companhia do pastor, que prosseguia de pescoço esticado à cata de Marcello Mastroianni. Logo, Gorbachev veio em nossa direção, acompanhado pelo empresário estadunidense Armand Hammer, que fora amigo de Lenin e, na Guerra Fria, servira de vínculo confiável entre a Casa Branca e o Kremlin. 

       Antes de nos movermos ao seu encontro, o dirigente soviético veio em nossa direção.  Mas logo se viu de novo cercado por outros ansiosos por cumprimentá-lo. Estampando seu sorriso tímido, Gorbachev tratou de apressar o passo e desapareceu atrás da porta que lhe prometia tranquilidade.

      Anos mais tarde, reencontrei-o no norte da Itália em um evento cultural. Já não atraía a atenção, talvez por ter deixado como legado um país imerso no mais visceral capitalismo, governado por um caudilho e impregnado das mesmas ambições expansionistas do antigo Império Russo e da União Soviética.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

  

Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio.