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terça-feira, 31 de agosto de 2021

HERANÇA DA PROFECIA PARA HOJE

 

Marcelo Barros

Enquanto em Brasília, o presidente se esmera em diariamente fabricar alguma crise para distrair o povo e desviar a atenção da tragédia atual que o Brasil atravessa, os movimentos sociais e os grupos  organizados nas bases preparam para a próxima semana mais um Grito pela Vida e pelos Direitos de todos/as. Nesse contexto, recordamos a memória de três bispos católicos que, pela sua atuação para além da Igreja, se tornaram profetas da paz e da justiça para todo o nosso povo. No mesmo dia 27 de agosto, recordamos o falecimento de Dom Helder Camara, (1999) que foi arcebispo de Olinda e Recife, Dom Luciano Mendes de Almeida (2006) que presidiu a conferência dos bispos católicos no Brasil e foi arcebispo de Mariana, MG e de Dom José Maria Pires (2017), arcebispo de João Pessoa, PB. Poucos dias antes,
lembrávamos Dom Antônio Fragoso, bispo emérito de Crateús, que também nos deixou em agosto (12/08/2006). Cada um desses pastores tinha o seu carisma próprio e o seu jeito de ser profeta, mas todos viveram o serviço pastoral, procurando despertar a vocação profética de todas as pessoas movidas pelo amor solidário.

Nenhum desses pastores passou pelo sofrimento de ver, em nossos dias, setores das Igrejas cristãs se revelarem cúmplices do governo do ódio e defenderem a barbárie. Pastores e grupos eclesiais tradicionalistas parecem dar razão ao que dizia o famoso cineasta norte-americano Woody Allen: “Deus deve ser um cara bom, mas os amigos dele, eu não recomendaria”.

Esse é um desafio que vem desde a época de Jesus: o nosso modo de viver a fé e a nos inserir na vida social testemunha quem é o Deus no qual acreditamos. A maior revolução dos evangelhos foi que Jesus contestou a religião cultual e discriminatória do templo de Jerusalém e nos ensinou que Deus é Amor e só pode amar. Se é Deus, não poderia ser o Senhor todo-poderoso, amigo dos seus amigos e inimigo perigoso de quem não aceitar submeter-se aos seus caprichos.

Infelizmente, quando, na história, uma Igreja cristã adere a um império e se torna aliada dos poderosos do mundo, ela legitima uma visão cruel e mesquinha de Deus. Assim, os povos originários das Américas, assim como africanos e asiáticos, conheceram o Cristianismo colonizador e aliado dos europeus conquistadores.  Apesar da resistência de alguns missionários, quase todas as Igrejas foram coniventes com a escravidão e corresponsáveis pela perseguição e condenação às culturas originárias de nossos povos. Por isso, temos uma dívida histórica com as comunidades indígenas e negras. E esses bispos profetas, dos quais, neste final de agosto, recordamos a memória, nos deram exemplo de consagração a serviço dos mais pobres.

Atualmente, em todo o continente latino-americano, os povos indígenas se articulam em organizações independentes que propõem um novo paradigma de civilização para toda a humanidade: o bem viver. Trata-se de uma transformação social e política baseada na prioridade do bem comum e da relação do ser humano consigo mesmo e com a mãe Terra e toda a natureza. Essa busca do bem-viver radicaliza a democracia a partir do diálogo comunitário e aprofunda uma espiritualidade que vê o Amor divino presente em todo o universo. Exige profunda transformação cultural e social. Para quem é cristão, lembra o que escreveu Paulo aos romanos: “Não se conformem com esse mundo, mas o transformem pela renovação de suas mentes” (Rm 12, 1).


 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019Email: irmarcelobarros@uol.com.br 

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

SOMOS TODAS AFEGÃS

                         Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

Os Estados Unidos surpreendeu o mundo e também seus aliados ao assegurar a saída do Afeganistão de suas tropas, diplomatas e cidadãos. Outros países estrangeiros procederam da mesma forma.  E os afegãos, aterrorizados com a chegada do novo governo, despertaram a compaixão mundial ao buscar desesperadamente os aeroportos e outras caminhos para deixar o Afeganistão.

Embora os dirigentes do Talibã tenham declarado que os direitos humanos serão respeitados, reina a apreensão em quase todas as esferas, dentro e fora do país de que tal não aconteça. 

Há um segmento da população que nesse momento se encontra especialmente presente no coração de todos: as mulheres e meninas afegãs, que com a chegada do regime de força, veem-se ameaçadas de perder liberdade e direitos duramente conquistados nos últimos anos.  

Em universidades afegãs, professoras e alunas se despedem por ter certeza de não poder manter as atividades acadêmicas.  O Talibã segue à risca uma interpretação da lei islâmica, segundo a qual as mulheres não devem frequentar lugares públicos, como escolas e universidades; não podem sequer sair à rua se não forem acompanhadas por uma pessoa do sexo masculino; devem cobrir inteiramente o corpo e o rosto, usando burca, além de véu. 

 A ética do Talibã, que não é a do Islã como um todo nem sequer a da maioria, proíbe que o corpo da mulher seja visto por outro homem que não o marido. Isso confina as mulheres ao espaço doméstico e exila-as de possibilidades de crescimento pessoal, como estudos, trabalho, mobilidade nos transportes, viagens etc. Vestes que não sejam a burca são terminantemente proibidas, invisibilizando assim corpos e rostos das mulheres.  Para as meninas, vigora a mesma lei. Não podem sequer escolher seu futuro, que será decidido pelo pai ou, na falta deste, por algum parente do sexo masculino. 

Diante do que pode acontecer com as afegãs, algumas mulheres ilustres manifestaram sua preocupação e desacordo.  A chanceler alemã Angela Merkel, ao se inteirar da volta do Talibã a Cabul, qualificou a situação de “amarga, dramática e terrível”. Hillary Clinton, secretária de estado dos EUA durante o governo Obama, e o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau manifestaram também preocupação.

Nas ruas de Cabul reina o silêncio.  Os cartazes onde aparecem mulheres com rosto descoberto, maquiagem e cabelos à mostra são cobertos com tinta. Algumas ativistas de direitos de mulheres e crianças no Afeganistão estão dispostas a conversar com o governo talibã,  para mostrar a riqueza de recursos humanos que são as mulheres afegãs e tentar negociar a manutenção de direitos e liberdades conquistadas.  No entanto, há insegurança e apreensão no ar.  A vulnerabilidade das mulheres é como um fantasma que hoje paira sobre a cabeça de cada menina ou mulher afegã. 

Em 2009, aos 11 anos, Malala Yousafzai, ativista paquistanesa, assistiu à chegada do Talibã no Paquistão, onde vivia, e escreveu em um blog, sob pseudônimo, que se despedia para sempre de sua escola e amigas, certa de que não poderia mais voltar a estudar. A jovem se tornou conhecida no mundo inteiro por sua defesa da educação feminina no Paquistão. 

Em 2013, a caminho da escola, Malala foi baleada na cabeça e teve o olho esquerdo perfurado pelas armas talibãs, que assim procuravam impedir a repercussão de suas denúncias.  O governo britânico mandou um avião buscá-la no Paquistão e a menina recuperou-se após várias cirurgias. Aos 17 anos, Malala emocionou o  mundo ao receber o Nobel da Paz, sendo a mais jovem da história a quem foi outorgado este prêmio.  

Apaixonada pelos estudos e pela vida acadêmica, frequentou a universidade de Oxford, na Inglaterra, de grande prestígio, onde se formou em filosofia, política e economia, em 2020. Diante da tomada de Cabul pelo Talibã, a ativista usou as redes sociais para pedir ajuda das potências globais, sobretudo para mulheres, minorias e defensores dos direitos humanos. 

Impressiona a igualmente trágica trajetória de opressão da mulher pelo mundo por parte das estruturas patriarcais e pela força da violência. Susan Sontag, conhecida pensadora estadunidense, escreveu sobre o fato de a violência e a guerra serem um jogo masculino do qual as mulheres participam pouco ou nada.  Acrescentamos que a exclusão das mulheres de atividades que poderiam trazer-lhes desenvolvimento pessoal e social também o é. Assim como o desrespeito e a apropriação indébita e violenta dos corpos das mulheres, que sistematicamente têm sido velados, cobertos, invisibilizados, ao mesmo tempo em que suas vozes são silenciadas.  A resistência feminina é muitas vezes punida com a violência e a morte. O crescimento do feminicídio em tantos países, entre eles o Brasil, é uma prova cabal. 

Que neste momento tão difícil e delicado que vive o Afeganistão, suas mulheres não percam o que construíram ao longo de suas vidas; que suas meninas e jovens não sejam impedidas de sonhar e desejar um futuro e possam a ele ter acesso por meio da educação, do trabalho e da vida pública. Que os corpos e espíritos femininos possam ser e viver livres, como livres  foram pensados pelo Criador. Enquanto isso não estiver assegurado, as mulheres do mundo inteiro devem  repetir: “Somos todas afegãs”. 

 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Teologia Latino-Americana: raízes e ramos.

 Copyright 2021 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

domingo, 29 de agosto de 2021

UM BRADO CONTRA A HIPOCRISIA


 Chico Alencar 


(Breve reflexão para cristãos ou não)

Nesse domingo, em milhares de comunidades cristãs pelo mundo, ecoa um clamor: o de Jesus de Nazaré contra a hipocrisia, a falsidade, o fingimento. Contra a cultura da aparência, que nega a essência. Contra os chefes do Templo e os doutores da Lei que não praticavam o que pregavam (Mc, 7, 1-8, 14-15, 21-23).

Na sociedade de consumo, hoje, esse "farisaísmo" do tempo de Jesus está mais forte ainda: o parecer vale mais do que o ser. A mentira faz morada nas pessoas e em quase todas as instituições. Jesus denuncia, citando o profeta Isaías, os que "honram (a Deus) com os lábios, mas têm o coração longe". Contesta aqueles muitos que vivem defendendo a "tradição" mas não exercem a compaixão.  Denuncia os que fazem cultos e ritos e não escutam o grito dos aflitos.

Ele desafia sua gente, a começar pelos discípulos, a descobrir a sacralidade de todas as pessoas e coisas, e a ter uma postura de amor e respeito diante delas: "o que vem de fora não torna ninguém impuro, e sim o que sai dele". O nosso interior, o nosso coração é a grande usina da generosidade... ou das más intenções (maldade, roubo, inveja, calúnia, orgulho, ambição). 

Toda religiosidade autêntica transforma a vida das pessoas. Faz com que o que ela reza, ora, celebra, transborde para a vida cotidiana, na relação com os outros e com a natureza. Sem isso, são palavras vazias de "gente estúpida, gente hipócrita". 

Isso vale não apenas para quem professa uma fé - que "sem obras, é vã" - mas para todo ser humano que não faz o que fala, que é incoerente-raiz. Tantos por aí...

Ser autêntico, viver o que se diz é caminho para crescer e ser feliz: "Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além" (Paulo Leminski, 1944-1989).

D. Pedro Casaldáliga (1928-2020), bispo, poeta e profeta, nos desafia: "Ser o que se é, falar o que se crê, crer no que se prega, viver o que se proclama - até as últimas consequências".

Caminhemos e, junto/as, pratiquemos!

REFLEXÃO DO 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM - Pe. JOSÉ OSCAR BEOZZO


 

sábado, 28 de agosto de 2021

PROTAGONISTA JAMAIS...ALIADO SEMPRE

 


Prof. Martinho Condini

        Algumas pessoas defendem a ideia que não se deva misturar esporte com protestos sociais ou políticos, partindo do princípio que o esporte é algo para as pessoas se divertirem.

         Porém, o esporte é algo que não esta separado da vida real a qual todos nós estamos envolvidos. Viver é uma ação política. Acredito que o esporte em vários momentos foi utilizado como instrumento ideológico, principalmente em regimes autoritários.

         Mas também é verdadeiro que atletas que ao longo da história se engajaram em movimentos de protestos por causas nobres, como por exemplo a luta contra o racismo, o preconceito e a violência contra negros e negras. Esse ativismo desses atletas ficaram marcados na marcados na história das suas modalidades, agremiações e do seu país.  A atitudes desses atletas prova que o esporte não só entretenimento, mas atitude diante das injustiças.

         Os jogos olímpicos em Berlim em 1936 serviram para o regime nazista de Adolf Hitler tentar provar ao mundo a superioridade da raça ariana em relação às demais – crença sustentada pela ideologia nazista.

         Mas o norte americano negro Jesse Owens, atleta dos 100 e 200 metros rasos, salto em distância e revezamento 4×100 metros, garantiu quatro medalhas de  outro para os americanos. Owens derrotou o atleta alemão Luz Long, grande esperança no salto em distância. Apesar de não se tratar de nenhuma manifestação política específica, a gloriosa vitória de Owens acabou por frustrar as intenções dos nazistas de tornar os Jogos em um grande símbolo de seu regime.

         Em 1968, nos jogos olímpicos da cidade do México os atletas negros norte-americanos Tommie Smith e John Carlos protagonizaram uma das cenas mais emblemáticas da história dos jogos olímpicos. Ao subirem ao pódio e receberem as medalhas de ouro e bronze na prova dos 200 metros rasos, ao tocar o hino do seu país baixaram a cabeça e ergueram o punho usando luvas pretas, saudação dos Panteras Negras (organização política socialista e revolucionária estadunidense). Um gesto de protesto contra o racismo, o preconceito e a violência contra os negros nos Estados Unidos.Lembrando que na década em que ocorreram os jogos olímpicos no México os líderes negros Malcom X e o pastor protestante Martin Luther King foram assassinados.

         Nesta mesma década, o pugilista negro Cassius Clay (que posteriormente mudou o seu nome para Mohammed Ali) campeão olímpico e mundial de boxe perdeu seu cinturão por se negar a ir lutar na Guerra do Vietnã (1955-1975). Mohammed Ali sempre foi uma voz importante na luta contra a violência a comunidade negra norte-americana.

         Em 2016 Colin Kaepernick, jogador de futebol americano, iniciou um grande protesto nos Estados Unidos ao ajoelhar-se no momento do hino americano, para mostrar o seu descontentamento em relação ao assassinato de cidadãos negros. Sua atitude inspirou outros jogadores, que passaram a ter o mesmo gesto. Até de outras ligas, como os astros da NBA Stephen Curry e Carmelo Anthony. Na época o então presidente Barack Obama, endossou a atitude. Naquela época, já havia a campanha "Black Lives Matter" (Vidas Negras Importam), que hoje espalhou-se pelo mundo.

         Em 2020 os jogadores de basquete negros e brancos do Milwakee Bucks boicotaram as partidas dos playoffs da NBA, em protesto pelo assassinato de um cidadão negro, George Floyd, por um policial branco. 

         Um dos astros do basquete norte americano, o negro Lebron James do Los Angeles Lakers frequentemente utilizou as quadras como espaço do movimento ativista afro americano Black Lives Mater.

         E nos últimos jogos olímpicos na cidade de Tóquio, a atleta americana, a negra  Raveb Saunders medalhista de prata no arremesso, após receber a medalha levantou os braços e cruzou os punhos sobre a cabeça como um gesto de apoio e solidariedade em favor dos oprimidos espalhados pelo mundo.

         Enfim, diante dessas atitudes tão significativas só me resta reverenciá-los e dizer que jamais serei um protagonista nessa luta...aliado sempre!


 O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com         

 

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

“AINDA QUE DEVESSE PASSAR PELO VALE DA SOMBRA DE MORTE”

 


Leonardo Boff


Nestes tempos sombrios sob a ação perigosa do Covid-19 um manto de temor e de angústia se estende sobre nossas vidas. Vivemos cansados existencialmente, pelas pessoas queridas que perdemos,  pelas ameaças de sermos contaminados e ainda mais por não entrevermos quando tudo isso vai acabar. O que virá depois?

taUm israelita piedoso passou pela mesa angústia e nos deixou retrada a sua situação no famoso salmo 23:”O Senhor é meu pastor e nada me falta”. Nele há um verso que vem a calhar exatamente para a nossa  situação:”Ainda que devesse passar pelo vale da morte, nada temerei porque tu vais comigo”.

Morte biblicamente, deve ser entendida não apenas como o fim da vida, mas existencialmente como a experiência de crises profundas como grave risco de vida, perseguição feroz de inimigos, humilhação, exclusão e  solidão devastadora. Fala-se então, de descer aos infernos da condição humana.

Quando se reza no credo cristão que Jesus desceu aos infernos se quer expressar que ele conheceu a solidão extrema e o absoluto abandono, até por parte de seu Pai (cf. Mc 15,34). Ele passou, efetivamente, pelo vale da sombra de morte, pelo inferno da condição humana. É consolador, então, ouvir a palavra do Bom Pastor:”não temas eu estou contigo”.

Nosso grande romancista João Guimarães Rosa em Grande Sertão:Veredas bem observou: “viver é perigoso”. Sentimo-nos expulsos do jardim do Eden. Estamos sempre buscando construir um paraíso possível. Vivemos fazendo travessias arriscadas. Ameaças nos espreitam por todos os lados. E nesse momento com o vírus, como nunca antes.

Por mais que nos esforcemos e as sociedades para isso se organizem, nunca podemos controlar todos os fatores de risco. O Covid-19 nos mostrou a imprevisibilidade e a nossa vulnerabilidade Por isso, é dramática e, por vezes trágica, a travessia humana. No termo, quando se trata de assegurar nossa vida, somos forçados a  nos confiar, além da medicina e da técnica, a um Maior que pode levar-nos”a pastagens verdejantes e à fontes tranqulas”, ao Deus-Bom-Pastor. Essa entrega  supera a desesperança.

Alarguemos um pouco o horiconte: grande dramaticidade pesa sobre o futuro da vida e da biosfera. Milhares de espécies estão desparecendo por causa da  cobiça e da incúria humana. O aquecimento crescente do Planeta unido à escassez de água potável pode nos confrontar com uma crise dramática de alimentação. Milhões poderão  se deslocar em busca da sobrevivência ameaçando o já frágil equilíbrio político e social das nações.

Aqui cabe invocar de novo o Pastor do universo, Aquele que tem poder sobre o curso dos tempos e dos climas para que crie situações oportunas e suscite o sentido da solidariedade e da responsabilidade nos povos e nos chefes de Estado.

Hoje o que destrói nossa alegria de viver é o medo.  É consequência de um tipo de sociedade que se construiu nos últimos séculos assentada sobre a competição e não sobre a cooperação,  sobre a vontade acumulação de bens materiais, o consumismo e sobre o uso da violência como forma de resolver os problemas pessoais e  sociais.

O que invalida o medo e suas sequelas é o cuidado de uns para com os outros, especialmente agora, para não sermos contaminado pelo viírus nem contaminar  os outros. O cuidado é fundamental para entendermos a vida e as relações entre todos os seres. Sem cuidado a vida não nasce nem se reproduz. Cuidar de alguém é mais que administrar seus interesses, é envolver-se afetivamente com ele, importar-se pelo seu bem-estar, é sentir-se corresponsável pelo seu destino. Por isso, tudo o que amamos também cuidamos e tudo o que cuidamos também amamos.

O cuidado é  também o antecipador prévio dos comportamentos para que seus efeitos sejam bons e fortaleçam a convivência.  

Uma sociedade que se rege pelo cuidado, pela Casa Comum, a Terra, cuidado com os ecosistemas que garantem as condições da biosfera e de nossa vida, cuidado com a segurança alimentar de cada um dos seres humanos, cuidado com água doce, o bem mais ecasso da natureza, cuidado com a saúde das pessoas, especialmente das mais desprovidas, cuidado, com  relações sociais mais participativas, equitativas, justas e pacíficas, cuidado com o ambiente espiritual da cultura para que todos possam viver com sentido, vivenciar e acolher, sem maiores dramas, as limitações, o envelhecimento e a travessia da morte, essa sociedade de cuidado gozará de paz e concórdia, necessárias para a convivialidade humana.

É confortador, no meio de nossas tribulações atuais, ameaçados pelo Covid-19, ouvir Aquele que nos sussurra:”Não temas,  eu estou contigo”(Salmo 23) e através de Isaías nos assegura:”não olhes apreensivo, pois eu sou teu Deus, eu te fortaleço sim, eu te ajudo, sim, eu te sustento na palma de minha mão”(Is 41,10).

Desta forma, nossa vida pessoal ganha certa leveza e conserva, mesmo no meio de riscos e ameaças, serena jovialidade ao sentirmos que jamais estamos sós. Deus caminha em nosso próprio caminhar como o  Bom Pastor que cuida para que “nada nos falte”.

Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu: O Senhor é meu pastor: consolo divino para o desamparo humano, Vozes 2013.

 

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

FIDEL, UM INESQUECÍVEL AMIGO

 Frei Betto


 

       Em 13 de agosto Fidel completaria 95 anos. Não saberia dizer quantas conversas privadas tivemos desde que o conheci, em 1980. Após o nosso primeiro encontro, em Manágua, fiz inúmeras viagens a Cuba, e acredito que, a partir de 1985, em quase todas elas surgiu a oportunidade de encontrá-lo. 

       Mas nunca tive acesso direto a ele. Enganavam-se aqueles que me ligavam e pediam que eu fosse portador de uma carta ou de um apelo a Fidel. Não era alguém que eu pudesse chamar por telefone, embora ele tenha me ligado algumas vezes. Uma delas foi em 2010, pouco antes da eleição presidencial que daria vitória a Dilma Rousseff. Eu me encontrava em São Paulo, no Esch Café, em companhia – por coincidência – do embaixador de Cuba no Brasil e do cônsul em São Paulo. Fidel queria saber das chances de Dilma, candidata do PT e sucessora de Lula, ser eleita presidente da República. Os dois diplomatas, surpresos, devem ter imaginado que tais chamadas a mim fossem frequentes...

       Desconfio que, como eu, ele detestava falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho - uma, em seu gabinete, para cumprimentar o amigo Carlos Rafael Rodríguez, que fazia aniversário, e outra, certa noite em Havana, na casa do embaixador do Brasil, Ítalo Zappa, para cancelar um compromisso - foi tão sucinto que parecia o avesso daquele homem que, de uma tribuna, era capaz de entreter a multidão por horas seguidas. 

       Em 19 de fevereiro de 2016, eu estava em Havana, no meu último dia na cidade naquela ocasião, já de malas prontas para embarcar à tarde de volta ao Brasil. Fui pela manhã à Casa das Américas – a mais importante instituição cultural da América Latina -, assistir ao filme “Batismo de sangue”, baseado em meu livro homônimo. Havia marcado almoço com Homero Acosta e, em seguida, tomaria o rumo do aeroporto. 

       Para minha surpresa, Homero chegou bem antes do previsto e me retirou do salão no qual o filme era exibido. Dalia Soto del Valle, esposa de Fidel, ligara para ele dizendo que o Comandante tinha interesse em falar comigo pelo telefone. Por razões de segurança, a chamada não poderia ser por celular. Tínhamos que retornar ao hotel e, de lá, ligar do telefone fixo do apartamento em que me hospedara. 

       Ocorre que eu já tinha fechado a conta no Meliá Habana. Ainda assim, Homero insistiu em retornarmos ao hotel. Por sorte, o apartamento permanecia vazio. Homero fez a ligação e me passou o aparelho. Dalia me disse que, lamentavelmente, “el Jefe” não pudera me encontrar naqueles dias, mas antes que eu partisse queria ao menos me saudar por telefone. Fidel, sempre atencioso comigo, indagou se eu tinha mesmo que retornar ao Brasil naquela tarde, se não poderia ficar mais uns dias. Expliquei-lhe as dificuldades.

       ─ Mas, pelo menos, pode vir aqui para tomar um café? – convidou-me. 

       Respondi positivamente. Ao entrar no carro de Homero, nem ele nem Roberto, o motorista, sabiam onde ficava a casa de Fidel. Um segredo guardado a mil chaves por razões de segurança. No entanto, eu estivera lá várias vezes e conhecia bem o trajeto. De modo que se criou uma situação inusitada: um frade brasileiro indicando a um alto funcionário do Palácio da Revolução e a seu motorista o caminho da residência do Comandante. Aliás, foi a primeira vez que Homero esteve pessoalmente com ele, o que se repetiu em minhas visitas posteriores a Cuba, inclusive no dia em que ele completara 90 anos.

       O que primeiro chamava a atenção quando se deparava com Fidel era a sua imponência. Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia autoridade e decisão. Quando ingressava em um recinto era como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Os que estavam em volta se calavam atentos a seus gestos e palavras. Os primeiros instantes costumavam ser constrangedores, pois ficavam todos esperando que ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que a sua presença era uma a mais na sala e que lhe dariam o mesmo tratamento amigável, sem cerimônias e reverências. Como na canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples homem do campo, sem a fama que o revestia. 

       Diz a lenda que, altas madrugadas, costumava dirigir seu jipe pelas ruas de Havana, incógnito. Sei que tinha o hábito de aparecer inesperadamente na casa dos amigos, desde que visse uma luz acesa, e embora alegasse que permaneceria apenas cinco minutos, não era surpresa se ficasse até que os primeiros raios de luz prenunciassem a aurora.

       Outro detalhe que surpreendia em Fidel era o timbre de voz. O tom em falsete contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores apuravam os ouvidos como quem recolhe segredos e revelações inéditas. E, quando falava, não gostava de ser interrompido. Magnânimo, passava da conjuntura internacional à receita de espaguete, da safra de açúcar às recordações de juventude. 

       Porém, não se deve julgá-lo um monopolizador da palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de conversar como ele. Por isso, não concedia audiências. Repugnavam-lhe os encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas ressoam como verdades definitivas. Fidel não sabia receber uma pessoa por 10 ou 20 minutos. Quando encontrava um amigo, ficava ao menos uma hora. Com frequência, a noite toda, até se dar conta de que era hora de ir para casa, tomar um banho de piscina, comer algo e dormir.

       Na conversa pessoal, o líder cubano procurava extrair o máximo de seu interlocutor. Quando se entusiasmava com um tema, queria conhecer todos os seus aspectos. Indagava a respeito de tudo: o clima de uma cidade, o corte de uma roupa, o tipo de couro de uma pasta ou sobre aviões militares de um país. Se o parceiro não dominava os detalhes do tema suscitado, o melhor era mudar de assunto.

       Ainda que iniciasse o diálogo confortavelmente sentado, logo tinha-se a impressão de que qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Eletrizado pela excitação de suas próprias ideias, Fidel se levantava, andava de um lado a outro, parava no meio da sala, os pés juntos, o tronco arqueado para trás, a cabeça tombada sobre a nuca e o dedo em riste; bebericava uma dose cowboy de uísque, provava um canapé, curvava-se sobre o interlocutor, tocava-lhe o ombro com as pontas dos dedos indicador e médio; sussurrava-lhe ao ouvido, apontava incisivo o indicador direito, gesticulava veemente, erguia o rosto emoldurado pela barba e abria a boca, exibindo os dentes curtos e pálidos, como se o impacto de uma ideia lhe exigisse reabastecer os pulmões; fitava o interlocutor com seus olhos miúdos e brilhantes, como quem quer absorver cada informação transmitida.

       Era preciso muita agilidade para acompanhar seu raciocínio. Sua prodigiosa memória era enriquecida por uma invejável capacidade de fazer complicadas operações matemáticas mentais, como se acionasse um computador no cérebro. Gostava que lhe contassem casos e histórias, descrevessem processos produtivos, traçassem o perfil de políticos estrangeiros. Mas não admitia que invadissem sua privacidade, guardada a sete chaves. A menos que o interesse estivesse relacionado à sua única paixão: a Revolução Cubana.

       Sempre cercado por atentos seguranças, Fidel sabia que não era alvo apenas das atenções de admiradores. Durante doze anos, entre 1960 e 1972, mafiosos como Johnny Roselli e Sam Giancana, interessados em recuperar os cassinos expropriados pela Revolução, tentaram assassiná-lo em colaboração com a CIA. 

       Apesar de tudo, sobreviveu. E faleceu aos 90 anos, serenamente, na cama, cercado de seus familiares. 

 

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

“VIDA EM PRIMEIRO LUGAR”: GRITO DOS EXCLUÍDOS EM TEMPOS DE PANDEMIAS

  Francisco de Aquino Júnior




Desde 1995 Igrejas e organizações populares realizam no dia 7 de setembro o grito dos excluídos. É um dia simbólico no país que mobiliza sentimentos patrióticos: pertença a um povo, unidade, amor à pátria, símbolos comuns. Sentimentos que constituem e dão identidade a um povo e são a base de um projeto de nação. Mas o que deveria ser ocasião de celebração da fraternidade e compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna (verdadeiro patriotismo), tornou-se ocasião de ostentação e exaltação do poder militar a serviço das elites do país (desfile militar, palanque das elites).

Frente a esse patriotismo elitista-miliar (Brasil das elites), o Grito dos Excluídos ecoa como expressão e convocação de verdadeiro patriotismo (Brasil de todos): 

·       reúne igrejas, organizações populares, estudantes etc. em torno da justiça social que é o fundamento de um projeto ético-religioso de sociedade; 

·       denuncia as injustiças sociais, as violações e negações dos direitos humanos e a criminalização das lutas e organizações populares; 

·       celebra as lutas e conquistas sociais de comunidades e organizações populares;

·       reivindica direitos de grupos e comunidades locais e políticas públicas que garantam direitos da classe trabalhadora e dos setores marginalizados da sociedade.

Como no ano passado, o Grito dos Excluídos acontece de novo no meio da pandemia da Covid-19. Se uma pandemia é sempre uma tragédia, quando ela está associada à pandemia das injustiças e desigualdades sociais suas consequências são muito mais trágicas para as populações pobres. No caso do Brasil, a situação é ainda mais agravada pela pandemia política de um desgoverno que banaliza a morte de milhares de pessoas e atenta contra a saúde pública, estimulando e provocando desrespeito às medidas de proteção sanitária: Quase 600 mil pessoas já morreram sem ter sequer um velório e um sepultamento digno. Muitas vidas poderiam ter sido poupadas se tivéssemos um governo e uma política de saúde que respeitassem o povo, a ciência, o dinheiro público e as autoridades sanitárias. O desemprego cresceu assustadoramente. De agosto de 2020 a fevereiro de 2021 o número de pessoas vivendo na extrema pobreza passou de 9,5 para mais de 27 milhões. E a CPI da Covid tem revelado indícios graves de corrupção na compra de vacinas, envolvendo governo e empresas privadas.

Como cristãos e como sociedade organizada não podemos ficar indiferentes a essa situação nem cruzar nossos braços. Temos que reagir e gritar por “vacina no braço e comida no prato”, por auxílio emergencial, por trabalho e moradia, pela suspensão de reintegração de terra, contra a corrupção na compra de vacinas… O grito fundamental é sempre o mesmo: Vida em primeiro lugar! E isso se traduz e se concretiza sempre na luta por participação popular, saúde, comida, moradia, trabalho e renda

A pandemia da Covid-19 exige de nós muito cuidado e responsabilidade com a saúde do nosso povo. Alguns grupos/coletivos acham que não é prudente promover eventos que provoquem grandes aglomerações. Outros insistem que o contexto atual exige mobilização de rua com todos os cuidados necessários. Mantendo sempre o cuidado com a saúde pública, importa usar nossa criatividade e fazer ecoar nossos gritos.  

Muita coisa pode ser feita na preparação e realização do grito: Círculos bíblicos; debates online; encontros de formação, live cultural; programas de rádio; momentos orantes e celebrativos; pequenos vídeos com gritos locais e nacionais a serem postados nas redes sociais; faixas e outdoors; atividade de rua na comunidade ou bairro com cruzes, velas, bandeiras, cartazes (caminhada, alvorada); passeatas, protestos etc.

Importa fazer ecoar nossos gritos. Importa despertar e congregar sentimentos de fraternidade e solidariedade. Importa mobilizar e articular forças sociais e políticas para a reconstrução do país segundo a justiça social que se concretiza na afirmação e garantia dos direitos dos pobres e marginalizados – sinal, critério e medida de realização do reinado de Deus em nosso meio que é um reinado de fraternidade, justiça e paz.

Vida em primeiro lugar!

Na luta por participação popular, saúde, comida, moradia,
trabalho e renda já!

Francisco Junior Aquino é Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

terça-feira, 24 de agosto de 2021

MUDANÇAS CLIMÁTICAS E ALTERNATIVAS

Marcelo Barros


 

Na segunda-feira, 09 de agosto, a ONU publicou o relatório do grupo de peritos formado por 234 cientistas internacionais sobre a realidade da crise ecológica na Terra. De fato, a destruição das condições de vida no planeta avança de forma assustadora. O aquecimento global que já era previsto e esperado alcançou níveis que os cientistas calculavam que não viriam antes de dez anos. Essa realidade já provoca inundações maiores do que as de sempre. Em algumas regiões se traduzirá em secas e outras tragédias ambientais, com intensidade e frequência, como nunca tinham ocorrido. Esse desequilíbrio climático e geológico trará consequências trágicas para as populações, principalmente as mais pobres e vulneráveis.

Pela primeira vez, os cientistas asseguram que tal situação é provocada, em sua maior parte, pela ação humana e pelo modelo de desenvolvimento predatório que ainda prevalece em todos os continentes do mundo. Alguns cientistas a estudar as eras geológicas, chamam a atual de antropoceno para designar a era na qual a sociedade humana se tornou responsável pela destruição da Terra e pela ameaça que isso significa para toda a vida no planeta. Desde alguns anos, especialistas da ONU começaram a falar em um dia da sobrecarga da Terra. Esta data marca o momento no qual o nosso consumo anual de serviços e recursos naturais ultrapassa o que a Terra pode regenerar naquele mesmo ano. Essa data que em anos anteriores se colocava em setembro e depois em agosto, neste ano de 2021, conforme os estudiosos, já se deu no dia 29 de julho. Infelizmente, a imprensa que publica datas que comemoram as mais diversas categorias profissionais e valoriza muitas atividades humanas, não divulga suficientemente o que esta data significa e assim não toma consciência da responsabilidade social nessa sobrecarga da Terra. A coisa certa para todos nós é que tudo isso terá imensa e imediata repercussão no Brasil (Cf. O Estado de São Paulo, 3ª feira, 10 de agosto de 2021).

Os governos dos países ricos estão dispostos a tomar alguma medida que possa aliviar ou ao menos adiar um pouco a crise. No entanto, há um limite: essas medidas não podem e não devem afetar o sistema capitalista do qual eles dependem. Ora, cada vez mais, analistas e cientistas percebem que todo esforço para deter as mudanças climáticas que ameaçam o planeta será inútil, se a humanidade não for capaz de superar a economia capitalista que é essencialmente depredadora em função da acumulação de riquezas para uma ínfima minoria de bilionários que dominam o mundo.

Na encíclica Laudato Si, o papa Francisco confirma: a ecologia ambiental depende da ecologia social. Leonardo Boff já tinha insistido que é necessário ouvir o grito da Terra articulado com o grito dos pobres.

Cada vez mais é comum afirmar que, se entendemos o universo como o conjunto de redes de relação entre todos os seres vivos, é preciso que nós, humanos nos integremos nisso que a Carta da Terra chama de “comunidade da vida”. Temos de assumir a sustentabilidade da Terra e da Vida como a prioridade que deve reger toda a organização social, econômica e cultural da humanidade e da nossa relação com a natureza. Precisamos reencontrar formas de proteger a integridade e a vitalidade da Terra. A saúde da Terra é a nossa saúde e salvação. Podemos aprender isso com as culturas dos povos indígenas e todas as populações originárias.

Na América Latina, as comunidades indígenas e os grupos de base sabem que a salvação terá de vir de baixo e das bases. Por isso, organizações indígenas e de lavradores se mobilizam em sucessivos encontros para salvar a mãe Terra. Tomam decisões justas e acertadas para lutar contra a lógica desumana e antiecológica do agronegócio, assim como contra a difusão das sementes transgênicas e agrotóxicos. Em várias regiões do país, povos originários, grupos de base e pastorais sociais denunciam os males causados pelas mineradoras que oprimem violentamente as comunidades locais e destroem os rios, a floresta e toda a natureza. 

Para quem vive uma busca espiritual, o cuidado amoroso com a Mãe Terra, com a água e com todo ser vivo fazem parte do testemunho urgente e fundamental: há uma inteligência amorosa presente e atuante no universo, pela qual, apesar de todas as agressões e crimes cometidos contra o Planeta, ainda podemos salvá-lo.

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019Email: irmarcelobarros@uol.com.br