O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

COVID 19 - QUINQUAGÉSIMA TERCEIRA REFLEXÃO - FREI ALOÍSIO FRAGOSO *HUMOR* EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


por Frei Aloísio Fragoso

Neste mês próximo de agosto nossa "pátria amada Brasil" atingirá a cifra de 100.000 mortos, vítimas do coranavirus. Com este número terá ultrapassado todas as etapas demarcadas pelo Chefe da nação, desde a "gripezinha", passando por outras etapas, a da "infiltração do comunismo chinês", a de "o Brasil não pode parar", a do "e daí?", a da "cloroquina", etc.

Considerando a falta de vontade política para enfrentar racionalmente uma questão de tamanha gravidade. Considerando que a nossa paciência humana não é igual à paciência divina, que espera o tempo da colheita para separar o joio do trigo, resolvemos esconjurar aqueles(as) que, ocupando altos cargos políticos, não quiseram ou não ousaram tomar medidas efetivas de combate à pandemia. Para tanto, usamos uma arma de efeito moral, *o humor*. E contamos com a genialidade de um dos maiores humoristas brasileiros, em todos os tempos, Millôr Fernandes.

Imagino-o pulando fora da sepultura e assistindo aos acontecimentos atuais da nossa "pátria amada Brasil". O que diria ele com seu humor elegante e mordaz?

(Evidentemente não queremos bombardear toda a classe política, mas somente uma grande parte dela que pegou carona no carro do poder com a intenção de se locupletar. Com isso homenageamos, por exclusão, os que se conservam honestos e coerentes). Aqui vão algumas pérolas humorísticos do genial Millôr:

Sobre políticos corruptos: "o Brasil é o único país onde os ratos conseguem botar a culpa no queijo." "Os caras se locupletam, roubam, matam, esfolam, brilham na luz de todas as ribaltas, gozam o diurno e o noturno, falsificam a opinião e a nota fiscal, e é na minha porta que a polícia vem bater!". "É fácil identificá-los: estão sempre propondo grandes soluções morais". "Criam um Deus à sua imagem e semelhança e falam dele com tal convicção que muita gente se convence de que Deus não existe". O Congresso, numa resolução realista, decidiu tirar da bandeira o lema positivista "Ordem e Progresso" e substituí-lo pelo mote pragmático "Negócio é Negócio." "E assim, por conhecer profundamente a causa pública e a natureza humana, estão sempre prontos a usufruir diariamente o gozo de pequenas provações e sofrer na própria pele insuportáveis privilégios." "Devemos confiar neles até certo ponto, que é o ponto de interrogação".

Sobre grandes empresários que financiam maus políticos: "Ali eles estão reunidos, naquela mesa farta, todos bem vestidos, falando uma linguagem delicada e civilizada. E cada um sabe que o outro quer arrancar-lhe o fígado, e sorri; e enquanto sorri, o primeiro quer apunhalar pelas costas o segundo, que sorri; e enquanto sorri, derrama tranquilamente veneno no vinho do terceiro, que sorri; e enquanto sorri, morde e come um pedaço da orelha do quarto , que gargalha e enquanto gargalha, derrama ácido nos olhos do quinto, que está ao seu lado: são apenas homens de negócios".

Sobre a grande mídia, conchavada com o poder dominante: "Canal 2, canal 9, canal 13, canal 4, o escambau. Shakespeare estava pensando nisso quando disse: "não há o que escolher num saco de batatas podres"

Pensamento aplicável ao Chefe da nação: "grande erro da natureza é a incompetência não doer".

Terminadas estas reflexões (intermináveis), sinto o desejo de parafrasear Millôr e revelar algumas das minhas sensações: sinto que só estarei no caminho certo se seguir na contramão. Acho que é preciso achar que estou maluco, para ter certeza de que ainda estou lúcido. E, cheio de nostalgia ao lembrar um certo tempo passado, gostaria de chamar um táxi e ordenar: "me leve à Rua Primeiro de Janeiro de 2003".

Finalmente, lembrado de que o humor é dom de Deus, em favor da alegria da vida, a despeito da pandemia, transcrevo uma antiga oração de S. Tomas Moro (1478-1525): "Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também qualquer coisa para digerir. Dai-me a saúde do corpo com o bom humor necessário para conservá-la. Dai-me, Senhor, uma alma santa que saiba aproveitar o que é bom e puro, e não se assuste à vista do pecado, mas encontre o caminho de colocar as coisas de novo em ordem. Dai-me uma alma que não conheça o tédio, as murmurações, os suspiros e lamentos. Dai-me, enfim, o sentido do humor, a graça de entender os gracejos, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros. Assim seja."

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.


quinta-feira, 30 de julho de 2020

IDADE ADULTA, FÉ INFANTIL


 

por Frei Betto

    Jesus nada tinha dessa figura angélica alimentada por eflúvios piedosos. Era “sinal de contradição”. Colocou-se ao lado dos injustiçados. Denunciou os ricos e as autoridades de seu tempo. Incomodou os opressores. Não admitiu que corresse dinheiro no Templo, casa de Deus transformada em “covil de ladrões”.

 

       Um dos fatores de evasão de católicos da Igreja ou indiferença à pratica religiosa é o fato de muitos fiéis adultos não possuírem outra formação na fé senão a que receberam na infância via família e catequese. Assim, quando as pernas crescem a calça curta já não serve...

       Conheço muitos cristãos que não leem a Bíblia por uma razão óbvia: nada entendem do texto. E não sabem onde buscar ajuda. A Igreja Católica dispõe de poucos leigos, religiosas e padres capacitados para administrar cursos bíblicos. Uma das mais promissoras iniciativas é o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) com seus cursos e publicações, mas infelizmente pouco valorizado pela hierarquia da Igreja Católica.

       A maioria dos padres conhece apenas noções de lições de seminário, em geral utilizadas para reforçar tradicionais conteúdos devocionais. Muitos não suportam questionamento dos fiéis e, por isso, não se atrevem a ministrar cursos. Preferem o monólogo do sermão de missa, pois ali não convém à assembleia fazer perguntas e muito menos contestações.

       Hoje em dia, os estudos bíblicos estão de tal modo avançados que muitos fiéis talvez se sentissem abalados em sua fé se enfocassem os relatos evangélicos à luz das pesquisas mais recentes e destituídos de invólucros míticos. A avalanche devocional recobriu de tal modo os personagens bíblicos, como o próprio Jesus, que fica difícil encará-los como humanos.

       Muitos cristãos ainda creem em um Deus cruel que, ofendido por nossos pecados, exigiu que a sua ira divina fosse aplacada por um sacrifício igualmente divino: a morte de seu filho na cruz!

       Mas qual pai se compraz de ver seu único filho crucificado?

       Como Jesus perdeu a vida todos sabemos: assassinado. Por quê? Não era ele uma pessoa tão boa, espiritualizada, que “passou a vida fazendo o bem”, como diz o evangelista João? Quem haveria de querer matá-lo?

       Ora, Jesus nada tinha dessa figura angélica alimentada por eflúvios piedosos. Era “sinal de contradição”. Colocou-se ao lado dos injustiçados. Denunciou os ricos e as autoridades de seu tempo. Incomodou os opressores. Não admitiu que corresse dinheiro no Templo, casa de Deus transformada em “covil de ladrões”.

       Por isso, foi assassinado por dois poderes políticos: o romano e o sinédrio judaico. Pilatos e Caifás. Morreu como prisioneiro político.   

Nada disso interessa a quem deturpa o Evangelho e sonega seu conteúdo para alimentar uma religiosidade de consolação, e não de compromisso; de evasão, e não de engajamento; de fuga do “vale de lágrimas”, e não de inserção amorosa e libertadora no mundo.

       A fé necessita de alimento sólido. Não se nutre adultos com papinhas de bebê. Daí o fato de muitos católicos migrarem para Igrejas nas quais a compreensão teológica da Palavra de Deus é trocada por interpretações míticas que reforçam a apatia diante das mazelas sociais. Já que não se tem acesso aos serviços de saúde, ao menos se espera confiante o milagre da cura e se deposita a fé e a poupança no pregador que promete prosperidade em curto prazo. Caso ela não venha, pode ter certeza de que você ainda não cortou definitivamente seus vínculos com o diabo...

       Menos religião e mais espiritualidade...

 

Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Companhia das Letras), entre outros livros.


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quarta-feira, 29 de julho de 2020

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: UMA HISTÓRIA SEM FIM


  Prof. Dr. Martinho Condini

[Este artigo é uma adaptação do texto que foi publicado no capítulo 35 do livro ‘50 Olhares sobre os 50 anos da Pedagogia do Oprimido’ [livro eletrônico] Paulo Roberto Padilha...[Et Al.], organizadores, 1ª Ed. São Paulo, Instituto Paulo Freire.2019] 

         A mais importante obra de Paulo Freire foi escrita no século passado, 50 anos atrás: Pedagogia do Oprimido. Era 1968, período marcado por levantes, revoluções e guerras pelo mundo. No Brasil, a morte do estudante Edson Luiz de Lima Souto e a Passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro e a decretação do Ato Institucional nº5 (AI-5), foram alguns dos acontecimentos que fizeram a história daquele agitado e conturbado ano.

         É nesse contexto histórico que Paulo Freire escreveu Pedagogia do Oprimido, . E você pode indagar: onde estava Freire nesse ano de 1968? Muitos podem pensar em Recife – sua terra natal e pela qual nutria um intenso sentimento de apreço e carinho. Engana-se.

         Nesse período, Freire estava em Santiago do Chile. Isso porque o golpe militar de 1964 no Brasil  prendeu e posteriormente expulsou Freire do Brasil, que ficou no exílio por dezesseis anos. Essa medida truculenta do governo militar se deu pelo fato de Freire estar realizando um processo de alfabetização de adultos inovador no país desde o final dos anos 50.

 Freire iniciou esse processo de alfabetização de adultos em Angicos, no Rio Grande do Norte, onde a alfabetização se deu a partir da realidade de vida dos camponeses, afim de que os mesmos não só aprendessem a ler e escrever, mas também se conscientizassem sobre a sua realidade histórica, e assim, compreendessem seu lugar no mundo para poder transformá-lo. Esse processo possibilitou a criação do Projeto Nacional de Alfabetização (PNA) que tinha o objetivo de alfabetizar milhares de camponeses. Essa preocupação de Freire com a alfabetização dos excluídos da nossa sociedade incomodava e gerava um grande descontentamento por parte das classes dominantes e governo militar.

Essa experiência com a alfabetização de adultos possibilitou Freire, a escrever no exílio, a obra Pedagogia do Oprimido. Obra essa, que inseriu o oprimido na centralidade da questão social e educacional brasileira.  Freire mostrou nesse livro que o oprimido consegue pensar por si mesmo, que tem um lugar de fala e um entendimento sobre sua realidade histórica. E que é fundamental o oprimido ter a liberdade de construir sua palavra e expressar sua leitura de mundo para que ele possa transformar a sua realidade.

Hoje, 50 anos depois, Pedagogia do Oprimido continua a ser um dos livros mais lidos nas universidades e nos cursos das humanidades em todo o mundo.

Considero que a Pedagogia do Oprimido seja uma “história sem fim” porque, como dizia Freire, somos seres inacabados e, por essa mesma razão, continuamos em busca de uma sociedade mais humana e fraterna. Uma sociedade onde as práticas humanistas da solidariedade, da alteridade e da equidade estejam acima da lógica sem lógica dos interesses econômicos neoliberais. Interesses estes que nos afrontam cotidianamente com suas alegações “meritocratas”, a fim de justificar práticas exploradoras e injustas que permeiam o mundo globalizado do século XXI.

Estou convencido de que Pedagogia do Oprimido continuará sendo uma importante e significativa obra, não só para educadores e educandos, mas para todos os que acreditam nas práticas humanistas como principal instrumento de inclusão dos oprimidos na sociedade.  

   O texto: Prof. Martinho Condini. Mestre em Ciências da Religião e doutor em Educacao ambos pela PUCSP. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara. Publicou pela Paulus Editora ' Dom Helder Camara um modelo de Esperança, ' Helder Camara um Nordesino Cidadão do Mundo', ' Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o dvd ' Educar para a Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire'.


terça-feira, 28 de julho de 2020

A VOLTA DA PROFECIA NA VOZ DOS CUIDADORES DO POVO DE DEUS


Por Marcelo Barros

 

Nestes dias, agências de notícias e a internet reproduzem a carta coletiva assinada por mais de 152 bispos brasileiros sobre a catástrofe do desgoverno ao qual o Brasil está submetido nos dias atuais. Ao mesmo tempo um grupo de mais de 200 padres e diáconos assinam uma declaração apoiando o documento dos bispos. E se prepara também uma manifestação de organismos do laicato católico no mesmo sentido.

Para cidadãos/ãs não ligados à Igreja, esta carta veio revelar que a sociedade civil brasileira pode contar ao menos com grande parte dos ministros e de grupos católicos na tarefa urgente de tirar o Brasil do abismo em que se encontra, que conforme a carta dos bispos, é responsabilidade direta do Presidente da República e da elite que o apoia. A carta dos bispos e as declarações de apoio de grande parte do clero e do laicato católico do Brasil revela: Não dá mais para avaliar o equilíbrio de forças no Brasil a partir do resultado das eleições de 2018, quando a maioria das pessoas que se dizem cristãs votou pela extrema-direita e a maioria dos que se dizem ateus votou pela democracia.

Para muitos cristãos, tanto da Igreja Católica, como de outras Igrejas, a palavra dos pastores veio trazer alento e confirmação no caminho de uma fé profética que exige posicionamento claro em um momento no qual calar significa ser conivente com um genocida internacionalmente reconhecido como responsável pela situação desastrosa do nosso país, tanto frente à pandemia do Covid 19, quanto às suas consequências sociais e econômicas. Sem falar no acirramento de um clima de violência e intolerâncias que diariamente ele fomenta na sociedade.

Ao ler este documento atual, quem viveu a inserção da Igreja Católica na vida e na realidade do Brasil do começo dos anos 70 e 80 não pode deixar de compará-lo com alguns documentos históricos que, naquela época, bispos da Igreja Católica no Brasil ainda conseguiam publicar.

É difícil imaginar como poucos anos depois da proclamação do AI 5 e sob os tempos mais duros da ditadura militar brasileira, em maio de 1973, 18 bispos e superiores religiosos do regional Nordeste II da CNBB publicaram o documento “Ouvi os Clamores do Meu Povo” em 1973. No mesmo ano, alguns bispos e missionários da Amazônia publicaram o documento de urgência: “Y-Juca Pirama – o Índio: aquele que deve morrer”. E poucos meses depois, seis bispos do Centro-oeste publicaram o texto “Marginalização de um Povo, o Grito das Igrejas” em 1974.

É claro que estes documentos tinham um tom profético de liberdade, que dificilmente textos mais oficiais e votados pelo conjunto do episcopado conseguem. No entanto, em 1980, ainda tivemos um documento oficial, aprovado em assembleia geral e publicado pela CNBB: Igreja e problemas da Terra. Neste texto, os bispos analisavam e denunciavam claramente os resultados do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro.

Qualquer pessoa que analisar todos os documentos emanados do episcopado brasileiro na história, sejam documentos do conjunto do episcopado, sejam de grupos de bispos, vai concordar que estes textos refletem o máximo da profecia social e política que nossos bispos alcançaram. Nunca houve algo igual ou mais contundente antes ou depois. Foram os documentos mais ousados e importantes, emanados da hierarquia católica no Brasil. Michael Lowy chega a declarar: “na verdade, esses documentos foram as declarações mais radicais jamais publicadas por um grupo de bispos em qualquer parte do mundo...” (Lowy, 2000, p. 145).

Provavelmente, a força dos documentos dos bispos do Nordeste e do Centro-oeste está no fato de que ambos os documentos têm uma linguagem simples e acessível à maioria das pessoas. Ambos se apoiam em dados sociais e econômicos públicos e conhecidos. Além disso, denunciam com clareza e dando o nome ao sistema capitalista. O documento dos bispos do Centro-oeste afirma diretamente: “O sistema capitalista é a fonte de todos os males que assolam a vida do povo”.

Agora, a atual carta é assinada por um número de bispos bem mais expressivo do que os 18 do Nordeste e os seis do Centro-oeste que assinaram os documentos de 1973.  Só podemos desejar que estas denúncias claras contra o desgoverno que nos assola possam continuar por posicionamento claro destes bispos sobre os setores da nossa própria Igreja que apoiam esta iniquidade ou simplesmente ao se omitirem nesta hora a legitimam. Os bispos dizem claramente que “evangelizar é tornar o reino de Deus presente no mundo” e que, portanto, tem uma repercussão direta social e política.

É normal e até positivo na Igreja a diversidade de posicionamentos e de sensibilidades, mas não dá para exercer uma missão evangelizadora se uns defendem os oprimidos e outros defendem os opressores e assassinos. 

Outro ponto é que se torna urgente que os nossos pastores possam também levantar sua voz profética para deixar claro que por trás do feitor que tortura os escravos está o senhor que nem mora no engenho, mas é quem financia e sustenta este sistema. Sem alertar a sociedade para o Império norte-americano, responsável pela desestabilização social e política de nossos países, nós sairemos de títere em títere sem termos voz e vez próprias. A América Latina, que na década passada, através de organismos de solidariedade como CELAC e UNASUL (sem falar no Mercosul) caminhava para uma integração continental se encontra de novo fragmentada e dividida.

Só podemos agradecer de coração aos nossos pastores sua palavra profética e esperar que eles nos ajudem a viver a vocação da catolicidade como caminho humano e social e não apenas como instituição eclesiástica.

 

Referências bibliográficas:

1 - LÖWY, MICHEL – A Guerra dos Deuses. Religião e política na América latina. Petrópolis: Vozes/CLACSO/LPP, 2000.

2     - MORAIS, J, F, REGIS – Os Bispos e a Política no Brasil. São Paulo: Editora Cortez/Editora Autores Associados, 1982.

3     - PESSOA, JADIR DE MORAIS – A Revanche Camponesa. Goiânia: Editora Universidade Federal de Goiás, 1999.

 

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com


COVID 19 - QUINQUAGÉSIMA SEGUNDA REFLEXÃO - LUTAS E CONQUISTAS EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


por FREI ALOÍSIO FRAGOSO

     Esta madrugada tive um sonho que me pareceu obra de ficção baseada em fatos reais.  Sonhei que uma rainha de nome Pandemia Covídia II mandava um exército de pigmeus atacar todos os recantos do planeta terra, onde habitassem humanas criaturas. Foi uma enorme devastação.
     Após precisamente um ano de ocupação, os que chegaram sem nada explicar, retiraram-se sem  fazer comemorações, deixando  2 milhões de vítimas fatais.
      Durante suas investidas num país chamado Brasil, aconteceu de tudo; além de sinceras lágrimas de dor, houve protestos ("fora!"), palavras de ordem ("o Brasil não pode parar!"), gestos de bravura ("e daí?"), rasgos de heroísmo ("acabou, porra!") e intermináveis discussões das altas cúpulas do poder, dividido em dois grupos (os "cloroquinas" e os "tubainas").
     Em meio às vítimas, no bolso de um sábio de fama mundial, foi encontrado um documento assinado com as letras J. S.  Reputo suas idéias como de interesse geral, por isso divulgo-as em um breve resumo:
     Viver em harmonia é o direito primordial de todo ser humano. Outorgado gratuitamente pelo Criador, não demorou muito tempo para tornar-se uma conquista resultante de lutas, sacrifícios e martírios.
     Nos primórdios havia um lugar chamado Paraíso, onde habitavam os primeiros espécimes do "homo sapiens". Aconteceu, um belo dia, uma serpente venenosa aproximou-se de um de seus habitantes e perguntou-lhe: "boa tarde, Eva, como vão as coisas por aqui?" - "Vão ótimas, graças a Javé, estamos muito felizes". - "Então por que Javé proibiu vocês de comer o fruto daquela árvore, no centro do Paraíso?" - "Não sei, Ele é soberano, sabe o que faz". - "Pois eu sei, Eva, vou dizer-lhe e quero que você passe este recado para seu marido Adão. Javé  age assim porque sabe, se comerem o fruto proibido, vocês serão iguais a Ele".
     Foi o que bastou. Adão e Eva quiseram possuir mais do que possuíam, ser mais do que eram. Comeram do fruto proibido, para tornarem-se iguais a Deus: o único capaz de lidar com poderes ilimitados.
     Daí teve início a sequela de todos os males no planeta terra. (Foi pretexto para um sábio filósofo, Jacques Rousseau (1712-1778) escrever: "O primeiro homem que cercou um terreno e atreveu-se a dizer "isto me pertence só a mim" foi o verdadeiro fundador da sociedade. Quantos crimes, guerras, assassinatos, quantos horrores e misérias não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e entulhando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: não dêem atenção a este impostor. Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos pertencem a todos e que a terra não é de ninguém" ("Discurso Sobre a Origem da Desigualdade").
     Séculos depois daquele diálogo fatal, surgiu um grande líder político na terra dos faraós, chamado Moisés. Para ser fiel ao sangue que lhe corria nas veias, fugiu do palácio, onde fora educado regiamente, e foi misturar-se aos seus conterrâneos, só voltando ao palácio para reivindicar a libertação do seu povo. Ao longo da caminhada pelo deserto, na direção da Terra Prometida, compreendeu que era preciso elaborar um código de leis, em vista da segurança da multidão em movimento. A legislação mosaica foi uma das primeiras da História. Outras foram descobertas: "O Código de Amurabi" na Babilônia(1750 A.C.). "O Código de Manu" (1500 A.C.) na Índia. "A Lei das 12 Tábuas"  em Roma (450 A.C.). "A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" na Revolução Francesa (1789). "A Declaração Universal dos Direitos Humanos" (1948), elaborada pela ONU.
     Nenhuma destas legislações nasceu de uma concessão dos deuses, do favor de algum rei, da mente de algum filósofo, ou da decisão de alguma Assembleia Política. Todas resultaram de uma necessidade coletiva, em um contexto de lutas reivindicatórias contra a tirania, e só tiveram êxito graças à intervenção e participação das massas populares. 
     As duas últimas e mais famosas converteram suas legendas em uma tela palpitante de todos os pensamentos jurídicos em favor da melhoria política, moral, cultural, religiosa e material da comunidade humana.
     Comparemos alguns de seus artigos ("TODOS SÃO IGUAIS PERANTE A LEI", "TODOS NASCEM IGUAIS E LIVRES EM DIGNIDADE E DIREITOS") com a realidade em vigor, e perguntemos:  qual deve ser a nossa atitude? Podemos rir, aplaudir, chorar, no entanto, se encostarmos o ouvido no peito de uma pessoa de bom senso, ouviremos a única resposta racional: LUTAR!
     Neste ponto, volto ao sonho inicial. A rainha Pandemia Covídia II sussurrou-me gravemente: "diga ao seu povo que o tamanho do meu poder é proporcional   ao vazio da ignorância que conduziu ao comando supremo da nação uma pandemia muito mais mortífera do que o coronavirus. Diga-lhe ainda que estejam atentos à próxima oportunidade de corrigir o seu erro, do contrário, meu exército de pigmeus voltará a atacar, em formas de fome, desemprego, violência....De repente acordei assustado. Achei oportuno abrir ao acaso a minha Bíblia e me deparei com a seguinte passagem: "aparecerão sinais pavorosos no céu e na terra, as forças do mundo serão abaladas (....) Quando estas coisas começarem a acontecer, não tenham medo, levantem sua cabeça, é a  sua libertação que se aproxima" Cf. Lc. 21, 5-37.   Amém.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

FÉ COMO EXPERIÊNCIA DE AMOR


                                                por Frei Betto


A fé nos revela que o divino se derrama apaixonadamente sobre cada um de nós. Se Ele deixasse de amar, deixaria de ser Deus.


             Por que orar? Para dilatar o coração e ser capaz de amar assim como Jesus amava. O contrário do medo não é a coragem, é a fé, esta planta que, para vicejar, exige água (a oração) e Sol (o Transcendente). Sem regar, a planta morre calcinada.


      Essa apreensão amorosa do Transcendente faz desaparecer a ideia de um Ser castigador e repressor. O temor abre espaço ao amor. Deus passa a ser apreendido, como dizia o papa João Paulo I, "mais como Mãe do que como Pai".


      Os místicos de todas as religiões e correntes espirituais ensinam que a oração é como a relação entre duas pessoas que se amam: do flerte, repleto de indagações e fascínio, nasce a proximidade. O namoro é feito de preces, pedidos e louvores. O noivado favorece a intimidade de quem se abre inteiro à presença do outro. Vira os amados pelo avesso. As palavras já não são necessárias. O silêncio plenifica. Enfim, as núpcias, essa simbiose que levou o apóstolo Paulo a exclamar: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim". Eis a paixão inelutável, a gravidez do espírito, o vazio de si repleto de Totalidade.


      A fé nos revela que o divino se derrama apaixonadamente sobre cada um de nós. Se Ele deixasse de amar, deixaria de ser Deus. A pessoa é que, na sua liberdade, se abre mais ou menos à sua presença amorosa.


      A sadia experiência da fé nada tem de fuga do mundo ou o narcisismo espiritualista de quem faz da religião mero antídoto para angústias individuais. Nela articulam-se contemplação e serviço ao próximo, oração e vida, alegria e justiça.

 Jesus, paradigma na experiência da fé, convida a todos que o encontram a fazer de Deus o seu caso de amor. E avisa: os novos tempos não surgem na virada dos séculos ou dos milênios, mas no coração que se converte, muda de rumo, e descobre que o próximo e o mundo são moradas divinas.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

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quarta-feira, 22 de julho de 2020

COVID 19 - QUINQUAGÉSIMA PRIMEIRA REFLEXÃO - RAZÃO E SENSIBILIDADE EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


 por Frei Aloísio Fragoso

    Na situação que estamos atravessando, imprevisível e tenebrosa, vez por outra somos surpreendidos por um fato que nos obriga a calar a voz da razão em favor dos impulsos do coração.

     Alguém necessita de conforto pessoal e chama-nos com urgência. Trata-se de uma pessoa amiga com quem partilhamos os mesmos campos e as mesmas bandeiras na luta existencial. Que aconteceu? Um parente muito próximo foi contaminado pelo coronavirus e internado na UTI.

     Tudo para. Nada mais importa. O que se apresenta à vista é somente o medo, a dúvida, a ansiedade, a dor. O coração acelera. A razão se cala. Suas explanações são inúteis porque estamos nivelados pela ignorância de diagnósticos, prognósticos e soluções.

     Só temos uma coisa a oferecer: o coração.

     Que lições podemos aprender deste confronto entre racionalidade e sensibilidade?

     Incorreria em grave mal-entendido quem pensasse: infelizmente somos obrigados a interromper a luta, a fim de socorrer  um companheiro  ferido. Como se isso fosse uma espécie de pausa compulsória, algo lamentável porque não estava previsto na estratégia da luta. Pensar assim seria como desacreditar uma mãe de família que se desliga dos cuidados domésticos, relaxa a vigilância sobre os outros  filhos, adia os consertos da casa porque tem de permanecer dia e noite à cabeceira de um dos filhos acometido de grave enfermidade.

     Na verdade, a vida humana é o ponto central de qualquer especulação filosófica, de qualquer revolução social, de qualquer doutrinação religiosa, de quaisquer ideias libertárias.

     Essa mãe está enfrentando a mais necessária das batalhas, a que garante a primazia da vida.

     Não é por acaso que Che Guevara escreve: "hay que endurecer-se, pero sin perder la ternura jamás". Este "sin perder la ternura" não é uma concessão, é uma condição. Por trás desta legenda há um entendimento sobre a verdadeira revolução: enquanto a razão produz o combatente, é o coração que o conduz às batalhas. Os argumentos da razão tem o poder de convencer, mas não o de persuadir, quem persuade é o coração. Dom Helder costumava dizer aos que o acusavam de assistencialismo: "quando um general detém a marcha da tropa para socorrer os combatentes feridos, ele atrasa e pode até comprometer os planos da batalha; no entanto, nenhum resultado será vitorioso se ele não parar para socorrer os feridos."

     Um dos grandes filósofos da História, o francês Blaise Pascal, ocupou-se longo tempo com este assunto. É dele um pensamento que imortalizou-se: "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Ele aplicava este princípio à procura da Verdade. O conhecimento proporcionado pelos sentimentos é mais seguro do que o obtido pela razão. É que a razão explica enquanto o coração compreende. Separada de emoções, intuições, sentimentos, a razão se torna árida, estéril.

     Isso vale também no campo da Fé. Segundo o Evangelho de Lucas, a mãe de Jesus, incapaz de entender racionalmente os acontecimentos envolvendo seu Filho, "guardava todas estas coisas no seu coração". Na pessoa de Jesus, coração e razão coexistiam em perfeita harmonia. Contudo, no trato com os pecadores, prevaleciam os sentimentos da compaixão acima das razões da lei ("eu quero misericórdia e não holocaustos" Mt.9,13). Numa certa ocasião, a um simples toque em sua túnica, por parte de uma mulher doente, ele se comove e pergunta em alta voz: quem me tocou?  Quem me tocou? E só se aquieta quando ela se apresenta e Ele diz: "vá em paz, tua fé te curou".

     Pascal foi um grande pensador, dos mais profundos. Seria uma agressão a sua pessoa e ao seu legado confundir suas idéias sobre a primazia do coração com  sentimentalismos piegas e alienantes, tão comuns na prática religiosa hoje em dia.

    Coroemos o vigor da filosofia com a leveza da poesia. Reunamos Pascal e a poetiza  portuguesa Florbela Spanca: "Minha alma de sonhar-te anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver. Não és sequer a razão do meu viver, porque tu és já toda a minha vida". Estes versos deixam claro que, quando se juntam razão e coração numa única paixão, o que daí resulta é, admiravelmente, a Vida.

     Por fim, voltemos ao caso real citado no início desta REFLEXÃO. A pessoa amiga carente do nosso conforto vive a grande angústia de não poder aproximar-se do parente enfermo. Imaginemos o efeito incomparável que não teria sobre o doente a aproximação de quem pudesse sussurrar-lhe ternamente: estou aqui, te amo. Oxalá os profissionais da saúde encontrem maneiras de levar aos enfermos solitários, incomunicáveis, estes sinais de ternura, com todo seu poder curativo, da parte dos que os amam.

     Enquanto isso, todo tempo que gastarmos em atenções cordiais e cuidados práticos com seus parentes nunca será simplesmente uma pausa forçada em meio à luta ou um estorvo em meio aos compromissos, mas sim a comprovação de que ainda somos humanos, filhos e filhas de um mesmo Pai, criados à sua semelhança.  Amém.


terça-feira, 21 de julho de 2020

BOLÍVAR, PRESENTE!


 

Por Marcelo Barros

 

Nesses dias, um vídeo pago pelo governo norte-americano e espalhado pela internet apresenta Simon Bolívar como bandido e assassino. Isso nos obriga a retomar a memória do grande libertador e profeta da unidade latino-americana. Nesta semana, o 24 de julho nos lembra o dia do seu nascimento em Caracas no ano de 1783.

 No mesmo país, sede do império, onde, atualmente, o governo promove e executa guerra de notícias falsas, no final do século XIX, José Marti, um dos maiores intelectuais e pensadores da América Latina e Caribe, escrevia: “No princípio do século (XIX), desde as entranhas até os cumes mais altos, ao se estremecer, a América se fez homem e foi Simon Bolívar. (...) A América toda fervia. Vivia fervendo, há séculos. Jorrava sangue por todas as frestas, até que as montanhas se abalam e do meio das serras sai alguém que é um monte mais alto que sobre os demais brilha eterno. Por entre todos os líderes americanos, resplandece Bolívar. Ninguém o vê quieto. Ele nunca o foi. Sua luta foi andar até vencer. Nós os cubanos, o veremos sempre organizando com Sucre, a expedição que não chegou a realizar: para libertar Cuba! (...) Quem tem pátria, a honre. Quem ainda não a tem, a conquiste. Estas são as únicas homenagens dignas de Bolívar”.  “O que ardorosamente o motivava era a nossa libertação. Sua linguagem foi a da nossa natureza. Sua pátria era o nosso continente...

Quando se fala em Bolívar, a pessoa já se vê frente ao monte ao que, mais do que a neve, serve um encapotado ginete de coroa... De Bolívar se pode falar tendo a montanha como tribuna. Entre relâmpagos e raios, ele trazia nas mãos o destino de povos livres e, aos pés, a tirania agrilhoada. (...) Era um homem extraordinário. Viveu como entre chamas e o era. O que amou e o que ele diz é como tição de fogo” ((Obras Completas, vol. 8, Nuestra América, Editorial de Ciências Sociales, La Habana, 1975, pp. 251 – 253 e pp. 242- 243).

 Simon Bolívar nasceu de uma família nobre e rica da Venezuela. Perdeu os pais muito cedo e teve como tutor Simon Rodriguez, filósofo que defendia a importância da educação para a libertação da sociedade e propunha abrir as escolas às crianças negras e indígenas. Desde jovem, Bolívar envolveu-se em movimentos rebeldes contra o governo espanhol. Em 1799, aos 15 anos de idade, foi enviado pelos tios à Espanha. Passou três anos na Europa, onde, aos 17 anos, casou com Maria Tereza Rodriguez y Alaiza, filha de uma das famílias aristocráticas da Espanha. Com ela, voltou a Caracas. Poucos anos depois, Maria Tereza morreu de febre amarela. Bolívar prometeu nunca mais casar. Quis dedicar  toda a sua vida à libertação da América do Sul. Dizia: “Ainda que a guerra seja o resumo de todos os males, a tirania é o resumo de todas as guerras”.  Juro diante do Deus de meus pais, que não permitirei que meu braço descanse, nem minha alma sossegue, até romper com os grilhões que nos oprimem”.  Com a bandeira Liberdade ou Morte, fez 2.400 homens marcharem através das selvas do rio Orinoco, durante a temporada de chuvas e depois subir os Andes, em suas trilhas geladas. Queria libertar todo o continente, não apenas dos espanhóis, mas de todo tipo de opressão. A marcha de cinco mil quilômetros através dos Andes, a quatro mil metros de altitude, é considerada um dos maiores feitos militares da história. Tinha o sonho de unificar a América Latina. De fato, conseguiu libertar seis países. Com os generais San Martin, Sucre e O´Higgins, liderou as lutas de libertação do Equador, do Chile, da Bolívia e até da Argentina.

Bolívar venceu exércitos inimigos e enfrentou todas as dificuldades da natureza e da vida. No entanto, sucumbiu à ambição pessoal e à estreiteza de visão dos seus próprios companheiros de luta, que foram tomando o poder nos diversos países conquistados.  Ao contrário de muitos que nascem pobres e morrem ricos, Bolívar nasceu rico em berço de ouro. Morreu pobre e abandonado, não porque desperdiçou suas riquezas, mas porque as abandonou para permanecer fiel aos seus ideais.

Quase 200 anos depois de sua morte, o continente continua dividido e dominado pelo império econômico das multinacionais, do poderio militar norte-americano e de uma elite escravocrata que não muda. Há pouco mais de 20 anos, na Venezuela, Hugo Chávez retomava e atualizava o espírito do Bolivarianismo propondo aprofundar suas três propostas fundamentais: 1 - Integrar todo o continente em uma só pátria grande, respeitando a autonomia e liberdade de cada país, mas criando uma solidariedade continental. 2 – Libertar o continente de todo tipo de imperialismo e dominação internos e externos. 3 – Caminhar para uma justiça sócio-econômica que possibilite um novo tipo de Socialismo democrático e a partir das culturas originais latino-americanas.

Com este programa, em poucos anos, Chávez conseguiu eliminar a fome e o analfabetismo na Venezuela. Em 2008, a ONU declarou que, em toda a América Latina, a Venezuela era o país que mais tinha conseguido diminuir as desigualdades sociais. Nos últimos dez anos, a guerra midiática e de bloqueio econômico promovida pelo império norte-americano criou um clima de instabilidade social e econômica. Assassinou pessoas e demoliu muitas das conquistas do Bolivarianismo. No entanto, não conseguiu destruir os ideais revolucionários do povo e a esperança de todas as pessoas que lutam pacificamente por um novo mundo possível.

Profetas e poetas nos asseguram: é quando a noite se torna mais escura que a madrugada chega mais luminosa. Nenhuma política genocida da extrema direita nos tirará a esperança e a força de lutar. Viva Bolívar!

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com

segunda-feira, 20 de julho de 2020

9ª Circular da quarentena – 20 de julho 2020 A amizade, terapia para as pandemias da vida


por Marcelo Barros

Queridos irmãos e irmãs, 

Em várias mensagens de zap, descobri que hoje é o dia da Amizade. Estas datas são meio artificiais e algumas puramente comerciais ou propagandísticas. No entanto, para quem valoriza a amizade como caminho espiritual e projeto de comunhão profunda, é ótimo ter um dia especial para dar graças e celebrar a importância que a amizade pode ter na construção de uma vida. De fato, as pessoas celebram aniversário de nascimento, a cada ano comemoram a data do casamento, os padres valorizam a data de sua ordenação, mas não conheço ninguém que faça festa por aniversário de amizade. E penso que minha vida teria tido outro rumo se não fossem algumas amizades que Deus me deu e me dá a graça de viver até agora. 

Rubem Alves dizia que Roberto Carlos, ao cantar: “eu quero ter um milhão de amigos”, dava a impressão de não saber o que é um amigo. Amizade é algo especial e raro e ninguém pode ter um milhão e se tivesse não seria amizade. Quando eu era jovem, nos ambientes religiosos se falava mal e com suspeita do que chamavam de “amizades especiais”, como se toda amizade não fosse especial. 

Parece que, comumente, as pessoas não distinguem muito um/a amigo/a de um colega ou companheiro, parceiro, camarada. É claro que, às vezes, para mim ou para vocês, uma ou outra pessoa preenche algumas destas diversas funções ou até todas. No entanto, é sempre bom diferenciar. 

Na Idade Média, o místico cisterciense Elredo de Rielvaux escreveu belas páginas sobre a espiritualidade da amizade. Deixou claro que a construção de uma amizade pode ser caminho maravilhoso para o aprofundamento da intimidade com Deus. Ele dizia: “Irmão, somos de todo mundo e devemos ser. Amigo, não. Amigo, a gente escolhe”.  

Esta diferença é fundamental. Colega  a gente se torna por acaso, parceiro ou sócio é coisa de comércio ou de trabalho. Camarada ou companheiro é quem está conosco na caminhada social e política. Amigo a gente escolhe. Elege e aí cada amigo ou amiga se torna único/a. Já nos anos 50, a raposa dizia ao Pequeno Príncipe: “Eu não como trigo e o trigo para mim seria indiferente. Mas, se eu e você nos tornarmos amigos, eu vou passar a gostar do trigo porque as espigas têm a cor dourada dos seus cabelos e aí o trigo vai me lembrar você e ao ver o trigo, eu já serei feliz”.

E concluía uma teologia laical e secularizada da amizade com a famosa afirmação: “A gente se torna eternamente responsável por alguém que a gente cativa”. Nunca encontrei outra definição melhor para a amizade.

Quando estudei a espiritualidade dos monges beneditinos medievais, descobri que em algumas Igrejas locais, nos séculos X e XI, se faziam ritos de juramentos de amizade, assim como se expressava a aliança de vida no ritual do casamento. Ao pensar nisso, me lembro de Jesus no momento forte da santa ceia e na véspera de sua partida dizendo ao grupo de seus discípulos e discípulas: “Eu não chamo vocês de servos e servas. Chamo-os/as de amigos/as, porque revelei a vocês as coisas mais íntimas que recebi do meu Pai...” (Jo 15, 15). 

Realmente, é o que posso testemunhar. No decorrer de minha vida, recebi como presente divino amigos e amigas que considero a maior riqueza que a vida me deu. Alguns são amigos/as há mais de 40 e 50 anos. Outros são bem mais recentes e me ajudam viver o diálogo com a juventude.  Como Jesus contou na parábola dos trabalhadores da vinha, o Senhor quis pagar aos trabalhadores da última hora o mesmo que receberam aqueles que trabalharam o dia inteiro. Amizade não se mede por tempo. Não tem medida. 

Sinto que quando a amizade se vive como projeto de vida e espiritualidade a subversão ao sistema dominante é radical e profunda por uma força misteriosa que só quem sabe a delícia de ser amigo pode compreender. 

Neste dia da amizade, saúdo com gratidão a cada amigo/a e lhe dedico um poema atribuído ao grande Fernando Pessoa que o teria escrito, há quase cem anos:  

Poema do amigo aprendiz
   
Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amigo, (se for assim sempre mais)
Intimidade sem véus que separem 
E se estar juntos sem tomar espaço. 
mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias…
Deus abençoe a cada um/ uma de vocês. 
Com carinho, o irmão Marcelo

SILÊNCIO PELA DOR

 por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Há situações na vida em que a dor é tão grande que as palavras serão sempre inúteis para consolá-la ou exorcizá-la.  Apenas o silêncio denso e presente pode ser uma atitude compassiva e misericordiosa. Calar-se diante da dor dos outros, da dor de todos e também nossa é a única atitude possível. 

            Esta é a situação que hoje vive o Brasil, assolado e machucado mortalmente pela pandemia do coronavírus que açoita a torto e a direito, entrando pelos corpos de todas as idades e categorias de pessoas e levando embora vidas que são amadas, queridas e vão deixar um vazio e uma falta imensos no coração de tantos. 

            Diante de tantos mortos, de tanta tragédia o que se pode fazer?  Quantas vezes não fizemos essa pergunta a nós mesmos, enquanto diante de nossos olhos desfilavam os caixões, os prantos, os gritos de dor, os enterros em vala comum enfileirados às dezenas, às centenas. O que fazer? Como ajudar? Como consolar todos estes e estas que choram os mortos dos quais nem puderam despedir-se, que se foram sem um último carinho, uma última presença, um último adeus? 

            Há mães que choram a perda dos filhos inexplicavelmente perdidos e se foram antes delas, vitimados por um vírus que todos dizem que ataca sobretudo os mais velhos.  Mas há filhos órfãos de todas as idades, que choram impotentes a perda de seus maiores, de seus ancestrais: pais, mães, avôs e avós.  Não conseguiram protegê-los, tiveram que vê-los desaparecer pela porta da UTI de onde nunca mais saíram.  Ou então correram desesperados atrás de um respirador e um leito de terapia intensiva que nunca veio e tiveram que vê-los sufocar nas cadeiras ou no chão das emergências. 

            O que se pode fazer por essas pessoas que têm o coração em carne viva?  Como podemos ajudar a amenizar a dor de todos que hoje vivem num país transformado em um gigantesco cemitério? Como chamar a atenção para essa dor anônima e profunda que afoga o Brasil em lágrimas e indignação muda? Como fazer algo que ressoe e pressione sem violência aqueles que desejamos retirar de sua ausência irresponsável, a fim de que assumam seu lugar no combate a essa pandemia?

            A resposta, ou pelo menos um começo dela, talvez possa ser encontrado no livro do profeta Jeremias que, em pleno exílio, proclama o sofrimento do povo.  E o simboliza com a dor de uma mãe que não quer ser consolada. Ouve-se uma voz em Ramá, pranto e amargo choro; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque os seus filhos já não existem".

            Raquel – mãe em Israel, mãe dos filhos de Jacó e mãe do povo -  recusa o consolo das palavras.  Reivindica o direito do gemido e do pranto solitário.  Somente ela conhece a dor que a prostra.  O melhor a dar-lhe é o silêncio. Silêncio orante, presente, solidário. Inspirado por essa dor sem consolo, o profeta põe diante de seus ouvintes a dor de Raquel, digna e solitária. Como a de tantas e tantos que não puderam enterrar seus mortos na pandemia que vivemos. 

            Inspirados por essa dor e por essa necessidade imperiosa de um silêncio que conscientize, denuncie e regenere, a Comunidade da Trindade, em Salvador, Bahia, lançou a campanha Silêncio pela dor.  Convida a todos, brasileiros ou estrangeiros, a aderir e expor nas redes sociais sua solidariedade a essa dor coletiva e gigante com uma palavra, um gesto, uma imagem, uma frase. 

            Subir hoje a hashtag #Silênciopelador é o nosso modo de chorar e con-doer-nos com a dor da pátria mãe que vê seus filhos irem embora sem nada poder fazer para salvá-los.  E que assiste igualmente outros filhos seus obstaculizando os caminhos que a ciência oferece para que haja menos mortes, menos luto e menos dor em nosso território. 

            Nosso silêncio pela dor deve preparar o futuro que Deus guardou para o Brasil que hoje geme sob o luto.  A dor não será a última palavra. O profeta Jeremias garante: “Assim diz o Senhor: "Contenha o seu choro e as suas lágrimas, pois o seu sofrimento será recompensado", declara o Senhor.

            Calemo-nos, então, pela dor.  E convidemos outros, tantos quantos pudermos, a fazer o mesmo.  Nosso silêncio será mais eloquente do que mil palavras que até agora se mostraram inúteis. Que nosso silêncio ecoe por todo lado, trazendo de volta a solidariedade, a união e a compaixão.  #Silênciopelador

 A   teóloga é  professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco), entre outros livros.

 

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