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quarta-feira, 22 de julho de 2020

COVID 19 - QUINQUAGÉSIMA PRIMEIRA REFLEXÃO - RAZÃO E SENSIBILIDADE EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


 por Frei Aloísio Fragoso

    Na situação que estamos atravessando, imprevisível e tenebrosa, vez por outra somos surpreendidos por um fato que nos obriga a calar a voz da razão em favor dos impulsos do coração.

     Alguém necessita de conforto pessoal e chama-nos com urgência. Trata-se de uma pessoa amiga com quem partilhamos os mesmos campos e as mesmas bandeiras na luta existencial. Que aconteceu? Um parente muito próximo foi contaminado pelo coronavirus e internado na UTI.

     Tudo para. Nada mais importa. O que se apresenta à vista é somente o medo, a dúvida, a ansiedade, a dor. O coração acelera. A razão se cala. Suas explanações são inúteis porque estamos nivelados pela ignorância de diagnósticos, prognósticos e soluções.

     Só temos uma coisa a oferecer: o coração.

     Que lições podemos aprender deste confronto entre racionalidade e sensibilidade?

     Incorreria em grave mal-entendido quem pensasse: infelizmente somos obrigados a interromper a luta, a fim de socorrer  um companheiro  ferido. Como se isso fosse uma espécie de pausa compulsória, algo lamentável porque não estava previsto na estratégia da luta. Pensar assim seria como desacreditar uma mãe de família que se desliga dos cuidados domésticos, relaxa a vigilância sobre os outros  filhos, adia os consertos da casa porque tem de permanecer dia e noite à cabeceira de um dos filhos acometido de grave enfermidade.

     Na verdade, a vida humana é o ponto central de qualquer especulação filosófica, de qualquer revolução social, de qualquer doutrinação religiosa, de quaisquer ideias libertárias.

     Essa mãe está enfrentando a mais necessária das batalhas, a que garante a primazia da vida.

     Não é por acaso que Che Guevara escreve: "hay que endurecer-se, pero sin perder la ternura jamás". Este "sin perder la ternura" não é uma concessão, é uma condição. Por trás desta legenda há um entendimento sobre a verdadeira revolução: enquanto a razão produz o combatente, é o coração que o conduz às batalhas. Os argumentos da razão tem o poder de convencer, mas não o de persuadir, quem persuade é o coração. Dom Helder costumava dizer aos que o acusavam de assistencialismo: "quando um general detém a marcha da tropa para socorrer os combatentes feridos, ele atrasa e pode até comprometer os planos da batalha; no entanto, nenhum resultado será vitorioso se ele não parar para socorrer os feridos."

     Um dos grandes filósofos da História, o francês Blaise Pascal, ocupou-se longo tempo com este assunto. É dele um pensamento que imortalizou-se: "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Ele aplicava este princípio à procura da Verdade. O conhecimento proporcionado pelos sentimentos é mais seguro do que o obtido pela razão. É que a razão explica enquanto o coração compreende. Separada de emoções, intuições, sentimentos, a razão se torna árida, estéril.

     Isso vale também no campo da Fé. Segundo o Evangelho de Lucas, a mãe de Jesus, incapaz de entender racionalmente os acontecimentos envolvendo seu Filho, "guardava todas estas coisas no seu coração". Na pessoa de Jesus, coração e razão coexistiam em perfeita harmonia. Contudo, no trato com os pecadores, prevaleciam os sentimentos da compaixão acima das razões da lei ("eu quero misericórdia e não holocaustos" Mt.9,13). Numa certa ocasião, a um simples toque em sua túnica, por parte de uma mulher doente, ele se comove e pergunta em alta voz: quem me tocou?  Quem me tocou? E só se aquieta quando ela se apresenta e Ele diz: "vá em paz, tua fé te curou".

     Pascal foi um grande pensador, dos mais profundos. Seria uma agressão a sua pessoa e ao seu legado confundir suas idéias sobre a primazia do coração com  sentimentalismos piegas e alienantes, tão comuns na prática religiosa hoje em dia.

    Coroemos o vigor da filosofia com a leveza da poesia. Reunamos Pascal e a poetiza  portuguesa Florbela Spanca: "Minha alma de sonhar-te anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver. Não és sequer a razão do meu viver, porque tu és já toda a minha vida". Estes versos deixam claro que, quando se juntam razão e coração numa única paixão, o que daí resulta é, admiravelmente, a Vida.

     Por fim, voltemos ao caso real citado no início desta REFLEXÃO. A pessoa amiga carente do nosso conforto vive a grande angústia de não poder aproximar-se do parente enfermo. Imaginemos o efeito incomparável que não teria sobre o doente a aproximação de quem pudesse sussurrar-lhe ternamente: estou aqui, te amo. Oxalá os profissionais da saúde encontrem maneiras de levar aos enfermos solitários, incomunicáveis, estes sinais de ternura, com todo seu poder curativo, da parte dos que os amam.

     Enquanto isso, todo tempo que gastarmos em atenções cordiais e cuidados práticos com seus parentes nunca será simplesmente uma pausa forçada em meio à luta ou um estorvo em meio aos compromissos, mas sim a comprovação de que ainda somos humanos, filhos e filhas de um mesmo Pai, criados à sua semelhança.  Amém.


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