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quinta-feira, 30 de setembro de 2021

ADEUS ÀS CARTAS

 Frei Betto


 

       Desde que a humanidade criou a escrita, graças aos sumérios três mil anos antes de Cristo, cartas foram trocadas entre reinos e pessoas, gravadas em pedra, cerâmica, papiro, pergaminho ou papel. Até que surgiu, no século passado, a escrita digital, que pode ser impressa. Mas raramente acontece na comunicação interpessoal nas redes digitais.

       Embora a troca de mensagens tenha ganho em velocidade, dispensando envelopes, selos, custo de correios e prazo de entrega, ela notoriamente perde em qualidade. Simplifica-se a grafia, criam-se símbolos e neologismos, aproxima-se a escrita da linguagem onomatopeica. O idioma empobrece, reduzido a signos linguísticos ou imagens que encurtam frases e palavras – é o internetês, sistema de linguagem taquigráfica, fonética e visual. Nele, sacrificam-se a grafia, a pontuação e a gramática. Perdem a língua e a memória da humanidade. A comunicação digital se esvai como os sinais de fumaça dos povos Apaches.

       Temos a conquista perene das cartas de Paulo, a apóstolo, porque foram registradas em material duradouro, o pergaminho, como ele assinala na Segunda Carta a Timóteo: “Quando vieres, traze o manto que deixei em Trôade, em casa de Carpo, bem como os livros, especialmente os pergaminhos” (4,13).

       Graças à carta que Kafka escreveu a seu pai, em 1919 (e que jamais chegou às mãos dele), sabe-se mais a respeito do autor de A metamorfose e do conflito de gerações à época.  O mais famoso poema de T.S. Eliot, A terra devastada, é melhor conhecido pelas leituras das cartas trocadas pelo autor com o poeta e crítico literário Ezra Pound. 

       Haveríamos de conhecer tão belas declarações de amor se tivessem sido transmitidas por Tweet ou WhatsApp? “Bom dia, anjo querido, beijo-te muito. Pensei em ti durante todo o caminho. Acabo de chegar. Sinto-me cansado e instalei-me para te escrever. Acabam de trazer-me chá e água para me lavar, mas no intervalo escrevo-te umas linhas. (…) Na sala de espera da estação, andei de lá para cá a pensar em ti e dizia comigo: mas por que deixei eu a minha Anuska?” (Dostoiévski, Carta a Anna Grigórievna Snítkina, 1867).

       “A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com alegria, e estou certo que saberei desempenhar este agradável encargo. (...) Sábado é o dia da minha ida; faltam poucos dias e está tão longe! Mas que fazer? A resignação é necessária para quem está à porta do paraíso; não afrontemos o destino que é tão bom conosco. (…) Depois… depois querida, queimaremos o Mundo, porque só é verdadeiramente senhor do Mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis. Estamos ambos neste caso; amamo-nos; e eu vivo e morro por ti” (Machado de Assis, Carta a Carolina de Novais, 1869).

       “Não imaginas as saudades de ti que sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza. O outro dia, quando falei contigo a propósito de eu estar doente, pareceu-me (e creio que com razão) que o assunto te aborrecia, que pouco te importavas com isso. Eu compreendo bem que, estando tu de saúde, pouco te rales com o que os outros sofrem, mesmo quando esses «outros» são, por exemplo, eu, a quem tu dizes amar. Compreendo que uma pessoa doente é maçadora, e que é difícil ter carinhos para ela. Mas eu pedia-te apenas que «fingisses» esses carinhos, que «simulasses» algum interesse por mim. Isso, ao menos, não me magoaria tanto como a mistura do teu interesse por mim e da tua indiferença pelo meu bem-estar” (Fernando Pessoa, Carta a Ofélia Queiroz, 1920).

       “Então tu pensas que há muitos casais como nós por esse mundo? Os nossos mimos, a nossa intimidade, as nossas carícias são só nossas; no nosso amor não há cansaços, não há fastios, meu pequenito adorado! Como o meu desequilibrado e inconstante coração d’artista se prendeu a ti! Como um raminho de hera que criou raízes e que se agarra cada vez mais. Vim para os teus braços chicoteada pela vida...” (Florbela Espanca, Correspondência, 1921).

       O que seria da história da literatura brasileira sem as cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade; de Tristão de Athayde         (Alceu Amoroso Lima) à sua filha Maria Thereza, monja beneditina (que tive a honra de editar para o Instituto Moreira Salles); de Guimarães Rosa a João Condé ao explicar o processo de criação e edição de Sagarana?

       O gênero epistolar me introduziu na literatura. Meu primeiro livro publicado reúne cartas que escrevi ao longo de quatro anos de encarceramento sob a ditadura militar: Cartas da prisão (Companhia das Letras). Teria havido resgate e registro dos subterrâneos da história se, à época, já existisse comunicação virtual? 

       Fico a pensar como as futuras gerações haverão de conhecer a troca de mensagens, via redes digitais, entre os que hoje se destacam como escritores e artistas a seus amigos, editores e agentes. 

       A comunicação digital encurta distâncias, o que é ótimo, mas sonega história, o que é lamentável.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Espiritualidade, amor e êxtase” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

AMOR E SOCIEDADE, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(24/09/2021)

 

     Crendo antes que o amor humano é dom divino e transcende tempos, espaços, raças, culturas e classes sociais, me atrevo a levantar uma questão: o modelo de vida imposto pelo atual Sistema dominante favorece ou boicota a prática do amor? Eu mesmo não ousaria dar uma resposta que não fosse dialética: nem um "não" total nem um "sim" absoluto.

 

     De tanto produzir o virus do individualismo, o nosso modelo de sociedade hedonista gera o seu antídoto: a sede de autenticidade. O fracasso da tecnologia em cumprir suas promessas de felicidade provocam o retorno a valores tradicionais, tidos em conta de envelhecidos e inúteis. Por outra parte, a sociedade de consumo oferece o produto pronto para uso imediato; você o adquire, utiliza, deleita-se, joga fora a embalagem e recomeça a inútil maratona à procura do objeto que sacie sua insaciável fome de ser feliz. Não se exige esforço prolongado, não há necessidade de ser inteligente, criativo, original. Basta que se abram os olhos e a bolsa. Num mundo de cidadãos e cidadãs continuamente apressados, uma oferta assim seduz como um presente de deuses.

 

    O que tem isso a ver com o amor? -  Muito! Considere-se que este shopping-center global em que virou o planeta terra exibe milhões de objetos do desejo acessíveis às pessoas que se amam, tornam-se formas de dar materialidade aos seus sentimentos e emoções. Prova disso é a superlotação das lojas nos dias convencionados para se demonstrar amor: dia da criança, dia dos namorados, dia das mães, etc.

 

     Ora, o verdadeiro amor não se contenta com coisas prontas, acabadas. Ele esconde em si um impulso criativo. Ele mesmo quer gerar e criar, e se compraz em aventurar e correr riscos. Nunca se tem certeza sobre o final de suas iniciativas. Os seus parceiros não são pré-moldados, seu bom êxito não tem garantia antecipada, não  lhe adianta publicidade,  somente a eles, os parceiros, cabe construir a unidade que supõe diversidade. Em suma, a mais perfeita tecnologia não casa com a utopia do amor que visa crescer e perpetuar-se.

 

     Todos os amantes do mundo sabem disso teoricamente. Na prática, a frágil natureza humana, fustigada pela máquina de consumo e produção, prefere ter em mãos o que é mais fácil, imediato e prazeiroso. E facilmente se confunde o objeto do desejo com o sujeito do amor. Reduz-se o amor ao simples desejo. Daí a catástrofe das relações provisórias e descartáveis, com prazo de validade determinado pelo tempo em que durar a satisfação.

 

     A pandemia do coronavirus chegou desmontando todos estes esquemas armados pelo Poder Econômico. Suas lojas esvaziaram-se e redescobrimos os lugares onde amar é construir vidas e outros onde amar é salvar vidas: o convívio familiar, os leitos dos hospitais, os espaços de socorrer os amedrontados, de estar atento aos solitários, de solidarizar-se com os parentes das vítimas, de revalorizar os pequenos gestos, as palavras confortantes, as coisas simples, os protestos em prol da saúde pública, a fé engajada.

     Aprendemos que a essência mais íntima do amor está na doação.

 

     Esvaziaram-se também os templos, e compreendemos que Deus não se deixa confinar, que Ele mora no mundo, usa nossos trajes e estar a nos dizer o tempo todo: "o que fizerdes a estes, é a mim que estais fazendo". Reaprendemos, enfim que o amor não termina na experiência que dele fazemos, pois tudo que amamos pode ser tirado de nós, mas o amor não; ele sempre volta, em outras  formas ou em outras pessoas.

 

     Enquanto pressentimos o fim da pandemia, escutemos a advertência de Jesus a Nicodemos, que o foi procurar nas trevas da noite: "em verdade, em verdade te digo: quem não renascer não verá o Reino de Deus" Jo.3,3.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

terça-feira, 28 de setembro de 2021

A Bíblia no banco dos réus

 

Marcelo Barros


 

Neste último domingo de setembro, as comunidades católicas festejam o Dia da Bíblia. No entanto, já há 50 anos, todo setembro é considerado mês da Bíblia. Nele, cada ano, grupos e comunidades aprofundam algum tema, ligado a um livro bíblico. Em 2021, o livro escolhido foi a Carta aos Gálatas e o lema tirado do hino batismal que ocupa o centro da carta: “Pois, todos vós sois UM só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28).

Este lema pode ajudar as comunidades a descobrirem na Bíblia resposta para os conflitos que opõem cristãos entre si quando se defrontam com a realidade social e política do país.  

Desde o começo do Cristianismo, as comunidades eclesiais sempre  tiveram em seu seio pessoas e grupos com diferentes posições sociais e políticas. E as Igrejas cristãs veem a catolicidade como sua vocação, porque devem ser capazes de conviver com as diversidades. 

Pelos anos 50 do primeiro século, na região que atualmente compreende a Turquia, Paulo fundou algumas comunidades cristãs. Nelas, havia crentes de diversas culturas. Alguns membros, de origem judaica, defendiam que para ser cristãos, todos deveriam obedecer às leis do Judaísmo. Outros, vindos das culturas locais e de religiões orientais se sentiam mais livres. Diante do conflito entre os dois grupos,  Paulo não ficou neutro. Tomou posição por uma Igreja aberta e em saída, como propõe o papa Francisco, mas respeitou a diversidade. Primeiramente, a sua carta insiste que “judeus ou gregos, escravos ou livres, homens ou mulheres, todos que somos batizados no Cristo somos iguais e devemos ser unidos (UM só) em Cristo” (Gl 3, 27- 28). A partir da igualdade de todos, Paulo defende a liberdade. Não proíbe cristãos de cultura judaica a obedecerem às normas do Judaísmo, mas esses não têm direito de exigir isso dos outros. A fé em Cristo é força libertadora “Foi para que sejamos livres que Cristo nos libertou” (Gl 5).

Na nossa realidade, a proposta das comunidades aprofundarem a leitura e interpretação da carta aos gálatas pode ajudar a impedir que a Bíblia seja usada como pretexto para o racismo religioso. Podemos interpretar a Bíblia de diversas formas. Cada leitura é sempre parcial e pode ser completada. No entanto, ninguém tem direito de usar a Bíblia e a fé em Jesus como pretexto para perseguir e atacar comunidades de cultos afro-brasileiros ou de outras religiões. A Bíblia não justifica posturas moralistas e discriminatórias contra a igualdade de gêneros e a diversidade sexual. Não é honesto ler ao pé da letra um texto escrito há mais de dois mil anos e em outro contexto cultural e geográfico para justificar posições antropocêntricas que veem o ser humano como superior à natureza. 

Lamentavelmente, parte da hierarquia católica, como também de pastores evangélicos e grupos de diversas Igrejas ainda pregam o evangelho de forma dogmática e arrogante. Ao fazerem isso, continuam o caminho dos colonizadores que usaram a Bíblia para justificar a violência da conquista. Dão razão a quem usa a Bíblia como arma que legitima opressões e dores à humanidade e ao planeta. É preciso purificar a leitura bíblica e o modo como se fala de Deus. É preciso revelá-lo como Amor e Compaixão e não como déspota que impõe a sua vontade e castiga impiedosamente quem não o obedece.

No Brasil, há mais de 40 anos, esse esforço de libertar a Bíblia de uma leitura fundamentalista levou um grupo de cristãos e cristãs a fundarem o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). A inspiração e a iniciativa vieram do querido irmão, frei Carlos Mesters, profeta da leitura libertadora da Bíblia, que neste próximo outubro, completará 90 anos, dos quais a maioria a serviço da Bíblia e das comunidades da caminhada.  

O Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) parte do princípio de que a Bíblia é a escritura da palavra de Deus. É como uma partitura musical que só se torna música à medida que é executada. Assim, a Bíblia só se revela palavra divina à medida que é proclamada e vivida nas comunidades.

O CEBI sempre defendeu que o terreno melhor para se ouvir e praticar a palavra de Deus é a comunhão com os mais pobres. É a partir da vida dos oprimidos que, na leitura comunitária e orante da Bíblia, vamos discernindo a  revelação de um projeto divino de justiça, amor e vida para a humanidade e todo o universo. Se continuamos a amar a Bíblia e acolhemos sempre sua mensagem é porque, como lembrava o papa Paulo VI: “para se encontrar a Deus, é fundamental se encontrar o ser humano”.

 

 

 

 

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

TARCÍSIO PADILHA: A FILOSOFIA COMO EXERCÍCIO ESPIRITUAL

   Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

            Há filósofos que concebem a filosofia como um exercício do pensar, entendendo pensar em conexão direta com a razão e o que dela deriva.  Há outros filósofos que, sem deixar de assim entender seu ofício, encaram-no como exercício espiritual. Veja-se por exemplo, a esse respeito, o grande filósofo francês Pierre Hadot, que concebia a filosofia como exercício espiritual, entendendo por isso um projeto de transformação e mudança da própria maneira de viver. Os exercícios espirituais não se restringem, portanto, a atividades do pensamento, mas referem-se à capacidade de elevação do indivíduo à vida em conexão com o Todo.

Hadot defendeu a filosofia como modo de vida, e assim tentou fazê-la e elaborá-la durante sua vida. Sustentava que a filosofia antiga propôs à humanidade uma arte de viver.  Era crítico da filosofia moderna que, a seu ver, aparecia sobretudo como a construção de um serviço meramente técnico, reservado a peritos e especialistas. 

Tarcísio Padilha é um filósofo que viveu exercitando-se para alargar e dilatar seu pensamento e espaços interiores e comungar com a realidade. No exercício da docência de filosofia, da escrita de reflexões filosóficas e dos cargos de direção e responsabilidade de diversos órgãos, como a Academia Brasileira de Letras, da qual foi presidente. O Centro Dom Vital, que conduziu por vários anos, deixava transparecer essa integração harmoniosa entre pensamento e vida não só na objetividade das conferências, aulas e textos, como no trato com as pessoas. 

Conjugava uma seriedade profunda em tudo que fazia, com uma doçura e flexibilidade encantadoras.  Prestigioso filósofo, transitava em altas esferas e relacionava-se com nomes como Jean Luc Marion, entre outros. Era de uma simplicidade maravilhosa, prodigalizando a todos o mesmo luminoso sorriso que se prolongava da boca aos olhos e a essa descia iluminando o rosto por inteiro.  Essa maneira de ser também o levava a jamais aceitar qualquer tipo de privilégio, como passar na frente na fila do elevador quando alunos e jovens lhe ofereciam.  Esperava como todos, com sorriso e bom humor. 

Nossa amizade começou por contatos acadêmicos, mas também e não menos por sintonia de fé.  Tarcísio era católico e vivia sua fé com transparência e alegria.  Mas também com um imenso respeito pelo sentimento religioso ou não religioso dos outros com quem convivia. Em vários eventos aos quais me convidou para participar como conferencista pude constatar essa liberdade de espírito, que o fazia aberto e receptivo a todas as correntes de pensamento e opções políticas.  

Como presidente da Academia Brasileira de Letras tinha o respeito total dos colegas que o consideravam – como me disse uma acadêmica em conversa pessoal e amistosa – um “cardeal”, querendo por isso significar um líder que tinha o consenso dos colegas acadêmicos. 

Tarcísio nutria grande afeto e admiração pelo Papa João Paulo II, com quem esteve e conversou mais de uma vez.  Um dos últimos eventos por ele organizado foi o lançamento de um livro que intitulou, em homenagem ao papa polonês, “O cura da aldeia global”.  A clara alusão ao “cura de aldeia”, famosa obra do escritor francês Georges Bernanos, não escapa ao leitor que frequenta a obra do último.  Mas é de se notar a feliz analogia que o filósofo elabora para apresentar a figura do admirado e querido Papa.  

Em conversas pessoais, confidenciou-me que admirava muito a sensibilidade e o capacidade de comunicação de Wojtyla e como se dirigia com força a multidões pelo mundo inteiro com uma imensa força espiritual.  Concordo com meu querido amigo quanto à capacidade de comunicador de João Paulo II. Todos recordamos seu encontro, em 1980, com os jovens em Belo Horizonte cantando A Barca.  Convidada por Tarcísio, participei como conferencista do encontro do Papa com as famílias, em 1997, e pude constatar que, apesar dos anos que se passaram, a força comunicadora continuava intacta. 

Esse filósofo, que fazia do pensar um exercício espiritual, nos deixou no último dia 9 de setembro, vitimado pela Covid-19. A filosofia, a docência, a academia brasileira e a comunidade eclesial católica sentem o vazio da saudade e abraçam sua esposa Ruth e toda a sua família. Eu, pessoalmente, sinto também a saudade da presença do grande amigo, verdadeiro irmão que se foi.  Porém, o lastro de sua presença luminosa é companhia permanente e inspiração para seguir fazendo do pensar um exercício espiritual e um modo de viver. Obrigada, Tarcísio. 

 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Teologia e literatura: afinidades e segredos compartilhados, entre outros livros (PUC-Rio e Editora Vozes).

 

Copyright 2021 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br> 

 

domingo, 26 de setembro de 2021

COMENTÁRIO DO EVANGELHO - 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM - Pe OSCAR BEOZZO

 Vamos ouvir o comentário de Pe José Oscar Beozzo para esse 26º Domingo do Tempo Comum?


AMOR E ECOLOGIA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(21/09/2021)

 

     Hoje em dia faz boa figura quem passeia com seu cãozinho de estimação, em público, e lhe faz afagos, os mesmos que faria a uma pessoa querida. A ideia de fraternidade planetária ultrapassa a fronteira do exclusivamente humano, deixa de ser utopia de poucos, universaliza-se.

     Também faz sentido por em questão os fundamentos desta nova visão ecológica. Ela se funda no puro pragmatismo, no mero instinto de sobrevivência,  ou num sentimento místico, numa eco-espiritualidade?  Frei Leonardo Boff afirma "chegamos a um ponto da história em que percebemos a possibilidade de auto-destruição." Que diferença faz uma ou outra destas concepções?

     No ano de 1987 o Papa João Paulo II proclamou S. Francisco de Assis Patrono da Ecologia. Ele o fez atendendo a um apelo de ecologistas de todas as partes da terra. S. Francisco é visto como um arquétipo da humanidade, alguém no qual homens e mulheres se projetam e refazem sua crença na possibilidade da perfeição humana.

     É indispensável, no entanto, uma visão crítica sobre o Francisco ecológico, a fim de superar uma tendência reducionista, que se limita ao formato romântico-holístico e exclui sua natureza revolucionária. É o que se evidencia no singelo poema de Vinicius de Morais: "lá vai S. Francisco pelo caminho, de pé descalço, tão pobrezinho, bebendo água no ribeirinho, cantando à noite pros passarinhos. Lá vai S. Francisco, de pé no chão, levando nada no seu surrão, dizendo ao fogo "bom dia, amigo", dizendo ao vento "saúde, irmão....".

 

      Historicamente, S. Francisco rebelou-se contra a estrutura social do seu tempo (séc.XIII) em que todo acesso à festa da vida tinha um preço e era o preço do Mercado. Ele se pôs a esboçar uma nova mundivisão onde a felicidade tinha que ser universal e gratuita. E decidiu começar, ele mesmo jovem, rico e pródigo, começar do nada, nada cobiçar e nada possuir. Todas as coisas são dons gratuitos de Deus. Seu olhar sobre o mundo é de absoluta gratuidade.

     A consequência prática foi o que tinha que ser: ruptura com o pai, rico comerciante e, consequentemente, com a sociedade que este representava. Só lhe restou trocar de lugar social, mudando seu endereço do meio dos mais ricos para o meio dos paupérrimos.

    O resto da sua vida foi a saga de um louco: "O Senhor me chamou pra ser um novo louco no mundo", escreve em seu testamento. O que  resultou dessa loucura?  Sigismundo Freud responde ao reconhecer nele o ser humano que mais longe levou a expressão do amor, capaz de criar laços entre os seres mais estranhos.

     Hoje muitos tentam reencontrar a natureza com intenções variadas, seja com finalidade terapêutica ou um sentimento holístico ou uma condição tardia de sobrevivência. S. Francisco procura as criaturas respeitando desde o início, sua identidade original. Não as procura com o intuito de possui-las, de usá-las, mas sim de irmanar-se com elas. Para ele uma flor é sempre uma flor e não um objeto de decoração de nossa sala. Um cachorro é um cachorro e não um guarda fiel da nossa casa. Ao contrário da maioria, que só consegue amar as coisas, prendendo-as a si, só consegue apreciá-las adquirindo-as e, logo que as possui, confinando-as.

 

     A cupidez da posse impede a contemplação da beleza, impede o desfrute do prazer que os seres vivos só partilham com quem não os faz sentir-se ameaçados. É desta maneira que S. Francisco resgata o dom natural, que perdemos há milhões de anos, de comunicar-nos harmoniosamente com as demais criaturas.

     A pandemia do coronavirus obrigou os entendidos e os que querem entender, a avançar mais em suas pesquisas e descobertas. Cedamos a palavra a um epidemiologista de renome internacional, o africano Bernard Bentt: "A crescente aproximação entre animais selvagens e humanos, a invasão de seus habitats naturais, as mudanças climáticas, o tipo de desenvolvimento econômico e de urbanização facilitam a disseminação de patologias entre seres humanos e animais. Quando degradamos seus ambientes selvagens ou estabelecemos nossos assentamentos em suas áreas, tornamo-nos parte do eco-sistema e do ciclo selvático de transmissão viral que ocorre entre animais das florestas".

     Em suma, a natureza sabe cuidar de si mesma. O nosso papel é conservá-la e proteger sua biodiversidade. S. Francisco nos ajudaria a reaver cristãmente a antiga crença mitológica no amor cósmico; segundo esta, nada do que possui vida sobrevive sem o impulso de uma energia amorosa. E assim todas as criaturas seriam vistas como uma universal teofania.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

sábado, 25 de setembro de 2021

Aos mestres, gratidão!

 

                                             Prof. Martinho Condini


 

         Durante a nossa trajetória de vida encontramos com muitas pessoas. Esses encontros contribuem para a formação de todas e todos nós. Alguns desses encontros tornam-se marcantes e muito significativos por diferentes motivos. Eles acontecem em várias ocasiões: família, círculo de amizades, igrejas, templos, terreiros de umbanda ou candomblé, sala de aula, bares, festas, viagens.

         Às vezes esses encontros se dão com pessoas que de alguma maneira passam a fazer parte de nossas vidas, outras vezes são encontros com protagonistas da história, personagens de obras literárias ou mesmo com sujeitos do nosso cotidiano como educadores, religiosos, artistas, esportistas, operários, camponeses dentre outros.

         Estou me referindo a esses encontros porque neste mês de setembro comemoramos o centenário de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, que não conheci pessoalmente, mas que muito influenciou a minha formação, como também Dom Helder Camara, que encontrei uma vez. Mas não são desses dois nordestinos a que vou me referir neste escrito.

         Quero referenciar o meu encontro com dois professores e educadores que estão na minha história.

         São dois mestres que fazem parte da minha vida e que influenciaram de maneira muito positiva na formação do professor que sou hoje, apesar de tê-los conhecido após dez anos do início da minha lida na educação. Isso não significa que outros professores não tenham sido importantes também.

         Ambos cada um com sua mineiralidade, não só me orientaram na árdua tarefa da pesquisa academia, mas me mostraram a boniteza, a amorosidade , a rigorosidade , a dialogicidade  o comprometimento, a pareceria e o respeito ao outro durante todo o período em que caminhamos juntos.

         Que saudades das deliciosas conversas que tínhamos sobre Dom Helder Camara e Paulo Freire, às vezes, regadas por um cafezinho expresso e apreçado.

         Quanta ensinagem, aprendizagem, troca de saberes, um diálogo permanente que me possibilitava ser mais.

           Após os encontros e orientações com os dois mestres, eu tinha a certeza que seguiria em frente e chegaria ao final da missão a qual almejava.  

         Os dois mestres, para minha felicidade, continuam em plena atividade acadêmica, vigorosos, serenos, solícitos, sabedores dos seus papéis e importância na formação de tantos mestres e doutores há décadas.

         Hoje, estou plenamente convencido que muito mais importante do que os títulos que ambos me ajudaram a conquistar, foi ter bebido na fonte não só do conhecimento desses dois mestres, mas aprendido com as suas atitudes como professores e educadores.  O que sou hoje como professor e educador devo muito a eles.    

         Enfim, agradeço a vocês me possibilitarem tê-los como mestres na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

         Caros mestres Ênio José da Costa Brito e Alípio Marcio Casali, gratidão sempre.

 

        

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Uma espantosa revelação, vivida por poucos e recusada por muitos (II)

 

Leonardo Boff 


A primeira palavra de Jesus quando apareceu publicamente foi: “O Reino tão ansiado foi aproximado e mudem de mente e de coração” (Cf.Mc 1,14). Reino, contrariamente à expectativa dos judeus, não era o restabelecimento da antiga ordem, a libertação política contra a dominação romana que tanto os envergonhava. Reino de Deus, para Jesus, é outra coisa: consiste numa nova relação de amorosidade  entre as pessoas, incluindo a todos, até os ingratos e maus (Lc 6,35). O que prevalece agora é essa proximidade de Deus (ele se fez o mais próximo dos próximos) feita de amor e de  misericórdia ilimitada.

Nâo há uma condenação eterna, só temporal.

A condenação é invenção das sociedades. Deus não conhece uma condenação eterna, pois sua misericórdia é sem limites.Se houvesse uma condenação eterna, Deus teria perdido. Ele não pode perder nunca nada “daquilo que ele criou com amor, pois, não odeia nenhum ser  que pôs na existência senão não o  teria criado, porque é o apaixonado amante da vida” (cf. Sab 11,24-26). Deixa as 99 ovelhas resguardadas e vai  em busca da tresmalhada até encontrá-la.

Atesta-o o salmo 103, dos mais esperadores textos bíblicos:”Deus não está sempre acusando.Como um pai sente compaixão pelos filhos, assim ele se compadece…porque conhece nossa natureza e se lembra de que somos pó; sua misericórdia é de sempre para sempre”(Sl 103- 6-17).

Esta mensagem inovadora de Jesus – a proximidade incondicional e a misericórdia ilimitada do Deus-Abba  –  foi e é tão inovadora que foi e é vivida por poucos  e é rejeitada pela grande maioria, como ocorreu no  tempo em que ele perambulava pelas pedregosas estradas da Palestina.Não se deve esquecer que  foram os políticos mas principalmente os  religiosos que condenaram e levaram à cruz. Nas palavras do Pe.Júlio Lancellotti  somos desafiados a viver  o “amor à maneira de Deus”(título de seu livro, Planeta, 2021) começando pela população de rua, pelos discriminados por causa da cor de sua pele ou de sua origem os quilombolas, as mulheres lésbicas, os homoafetivos e os LGBTI, os pobres covardemente odiados pela “elite do atraso”,(a maioria apenas culturalmente cristã mas a séculos luz da Tradição de Jesus),ignorantes da amorosidade e da proximidade  do Deus-Abba  para com eles também.

A grande tragédia vivida por Jesus foi o fato de  que essa proximidade de Deus amoroso, não foi acolhida:“veio para o que era seu, e os seus não receberam”(Jo 1,11). Por isso o crucificaram, porque não houve correspondência. Essa recusa se prolonga pelos séculos até aos dias de hoje, talvez com mais ferocidade ainda, pois o ódio e a discriminação campeiam pelo vasto  mundo.

Não importa. Embora se sentisse Filho do Deus-Abba identidcando-se com Ele “não fez caso dessa situação de Filho bem amado; por solidariedade apresentou-se como simples homem na condição de servo, aceitando o mais vergonhoso castigo,  morrer na cruz que significava morrer na maldição divina (cf. Flp 2,6-8).

A grande recusa da proximidade de Deus

Por causa do amor que lhe ardia dentro, Jesus assumiu sobre si, solidariamente, esse tipo de morte amaldiçoada e todas as  dores do mundo; todo tipo de maledicência contra ele, suportou  a traição dos  apóstolos, Judas e Pedro, a sorte  daqueles que já não creem ou se sentem abandonados por Deus e até recebeu séria ameaça de morte que depois se efetivou. Como tantos no mundo, ele também foi tomado de angústia e de pavor, a ponto de “o suor tornou-se grossas gotas de sangue”(Lc 22,41) como no Jardim do Getsêmani. Na cruz quase no limite do desespero do qual muitos são também tomados e ele o quis em comunhão com todos eles, sentir também, gritou:”Meu Deus, por que me abandonaste”(Mc 15,34)? A proximidade de Deus estava  em  Jesus mas recolhida, para que ele pudesse participar do inferno humano da morte de Deus, sofrida por não poucas pessoas. Todos estes, não estarão jamais sozinhos. O credo cristão reza que “ele desceu aos infernos”, significa: sentiu estar absolutamente só, sem que ninguém o pudesse acompanhar. Mas o Deus-Abba estava também lá como ausente. Desde este momento ninguém estará sozinho no inferno da absoluta solidão humana.Jesus esteve e estará com todos eles.

A ressurreição de Jesus que representa uma verdadeira insurreição contra a religião da Lei e a justiça do tempo, comparece como um clarão  que vai mostrar, em total plenitude, esta proximidade de Deus que nunca se ausentou. Ela estava totalmente lá, sofrendo com os que sofrem. Os negadores e os  ateus tem a liberdade de serem o que são, de não acolherem ou sequer saberem desta proximidade de Deus, mas isso não muda nada para  Deus-Abba  que nunca os abandona porque não deixam de serem  seus filhos e filhas, sobre os quais repete:”Vocês são meus filhos e filhas bem amados com vocês me regozijo”.

Mas cabe ponderar: se não puderem enxergar uma estrela no céu límpido, a culpa não é da estrela, mas de seus olhos. Pelo fato do  amor ilimitado e da misericórdia sem fronteiras são também eles abraçados por Deus-Abba embora se neguem de abraçá-lo. Mesmo não vista, a estrela estará brilhando.

O verdadeiro e real cristianismo é viver esta Tradição de Jesus. A maioria das igrejas cristãs, não excluída a romano-católica, se organizam redor do poder sagrado que cria desigualdades, firmada sobre um grosso livro doutrinário chamado de Catecismo,  vinculadas a certa ordem moral, à uma vida piedosa, à recepção dos sacramentos, à   participação nas festas litúrgicas.Tudo isso não é sem importância. Mas difícil e raramente se propõem a viver o amor incondicional e ensaiar amar à moda de Deus e à moda de Jesus, privilegiando aqueles que ele privilegiou, os últimos, os que não são, nem contam. Onde impera o poder, não viceja o amor nem floresce a ternura e a proximidade do Deus-Abba e de sua misericórdia, sempre  presentes.

Não há como negar que, historicamente, grande parte da Igreja romano-católica estava mais perto dos palácios do que da gruta de Belém, mais considerando o madeiro da cruz do que aquele que lá está crucificado por solidariedade com todos, com os perdidos e caídos nas estradas.

A grande inversão: a conversão do pai e não do filho pródigo

Como tudo seria diferente neste mundo se esta inaudita revolução tivesse prosperado em nosso mundo. Não haveria o que estamos assistindo em nosso país e, em geral, em tantas partes, a prevalência do ódio, da discriminação, da violência contra os que não podem se defender e especialmente hoje contra a natureza que nos garante as bases que sustentam a vida e a Mãe Terra.

Por esta razão, Jesus, mesmo ressuscitado, continua se deixando crucificar com todos os crucificados da história sob as mais diversas modalidades.

A parábola do filho pródigo revela como é a Tradição de Jesus. O fato novo e surpreendente não é a conversão do filho que volta arrependido para a casa do pai.  Mas a conversão do pai que,cheio de misericórdia e amor, abraça, beija e organiza uma festa para  filho, esbanjador da herança. O único criticado é o filho bom, seguidor da Lei. Tudo nele era perfeito, Para Jesus, não bastava, porém, ser bom. Faltava-lhe o principal: a misericórdia e o sentimento da proximidade do Deus-Abba até em seu irmão perdido pelo mundo.

O futuro da revolução espantosa de Jesus

Experimentamos tudo na já longa história humana, mas ainda não experimentamos coletivamente amar à moda de Jesus e do Deus-Abba. No entanto, muitos homens e mulheres o entenderam e viveram: estes são os verdadeiros portadores do legado de Jesus, os testemunhos da proximidade de Deus, especialmente àqueles referidos pelo evangelho de São Mateus: ”eu era forasteiro e me hospedaste, estava nu e me vestiste,  estava com fome e me destes  que comer, esta na cadeia e me visitaste”(Mt 25,34-30). Nisso  se revela a Tradição de Jesus que se sentia tão unido ao Deus-Abba a ponto de dizer: “Quem me viu, viu o Pai”(Jo 14,9). E diz a todos estes: ”Todas as vezes que  fizestes a  um destes meus irmãozinhos e irmãzinhas menores, foi a mim que o fizestes (Mt 23,40).

Chegaremos um dia ver acolhida a proximidade de Deus, indistintamente da situação moral, política e ideológica das pessoas (pensemos nos torturadores das ditaduras militares) mesmo que o recusem explicitamente e abusam de  seu nome (como o  nosso chefe de Estado, inimigo da vida)? Ganhará centralidade  esta verdadeira revolução transformadora do mundo?

Francisco de Assis e Francisco de Roma, junto com um exército de pessoas, muitas delas anônimas, ousaram esta aventura, acreditaram e acreditam que por aí passa a libertação dos seres humanos e a salvaguarda da vida e da Mãe Terra  ameaçadas. A gravidade da situação atual nos coloca esta disjuntiva: ”ou nos salvamos todos ou ninguém se salva” como o Papa Francisco  o diz enfaticamente na Fratelli tutti (n.32). A Mãe Terra se encontra em permanente dores de parto até que nasça, naquele dia que só Deus sabe quando, o ser novo, homem e mulher, juntos com a natureza, habitarão  a única Casa Comum. Então como profetizou um filósofo alemão do princípio esperança, que “o verdadeiro Gênesis não se encontra no começo mas no fim”. Só então “Deus viu tudo quanto havia feito e achou que estava muito bom”(Gen 1,31).

Ou faremos esta conversão ao sonho do Nazareno que nos trouxe a novidade da proximidade de Deus(o mais próximo dos próximos) que sempre está em nossa busca, mesmo nas sombras do vale da morte, ou então devemos temer por nosso futuro. Ao invés de sermos os cuidadores do ser, fizemo-nos sua ameaça mortal. Mas aquele que está no meio de nós e jamais retira sua proximidade,  tem o poder de, das ruínas, forjar um novo céu e  uma nova Terra. Então tudo isso terá passado. As lágrimas serão enxugadas e todos serão consolados por Deus-Abba. Começará a verdadeira história de Deus-Abba com seus filhos e filhas bem  amados pela eternidade afora.

Leonardo Boff é teólogo e escreveu Jesus Cristo Libertador (Vozes,1972/2012); Paixão de Cristo-paixão do mundo (Vozes(2012): A nossa ressurreição na morte(Vozes 2010).

 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

RITUAIS PARA A FELICIDADE

 Frei Betto 


 

       É preciso saber enxergar um palmo além do chão, da parede, do teto ou mesmo das convicções que nos norteiam. Tudo depende de nossa cabeça. Somos, como seres humanos, aquilo que está gravado em nossa mente – ideias, noções, fantasias, impressões.

       Se fomos educados na crença de que há pessoas superiores a outras devido à cor da pele ou nos deixamos convencer, pela publicidade, que pilotar um carro a 300 km/h é mais nobre que lutar para combater a fome, então nossos atos serão regidos pelo racismo ou pelo culto aos ídolos do consumismo.

       No Ocidente, avançamos em ciência e tecnologia e retrocedemos em valores humanos e espirituais. Atulhados em grandes cidades, trancafiados em apartamentos ou em casas cercadas de muros e prédios por todos os lados, já não contemplamos a natureza. Perdemos o silêncio do indígena que caminha pela floresta em busca de caça e distingue o canto dos pássaros. Ou do viajante que em seu cavalo ou carroça se deixa inebriar pela variedade de tons das encostas e plantações.

Vemos sem olhar, escutamos sem ouvir, falamos sem medir o peso das palavras. A vida, como mistério, declina em nossa falta de sensibilidade. O pragmatismo nos induz, célere, ao rol dos ansiosos, a antessala dos infartados, à mesa dos obesos que engolem sem mastigar.

       A tradição judaica ensina-nos um conjunto de deveres – as mitzuot – que ajudam a impregnar-nos da presença divina. “Nós nos exercitamos em conservar nosso sentimento de admiração, recitando uma oração antes de tomar o alimento”, escreve A.J. Heshel. “Cada vez que bebemos um copo d’água recordamos o eterno mistério da Criação. (...) Quando desejamos comer pão ou fruta, ou então gozar de agradável fragrância ou de um cálice de vinho, ao saborear pela primeira vez a fruta da estação, ao contemplar o arco-íris ou o oceano, ao observar as árvores em flor, ao nos encontrarmos com uma pessoa douta no conhecimento da Torá ou na cultura leiga, ao receber notícias boas ou más, foi-nos ensinado invocar Seu grande nome e nossa consciência dele” (Dio alla ricerca dell’uomo, Turim, 1969).

       Na liturgia cristã, os gestos são lentos para que se permita aprofundar o espírito: o vinho derramado no cálice, as ondulações suaves do canto gregoriano, os joelhos dobrados em sinal de adoração ao Senhor. Isso vale para o conjunto da vida. Na relação com o alimento usufrui melhor quem faz da refeição, celebração. Sem pressa ou preocupações. O que importa não é o prazer, é a felicidade.

       Sentir os atos mais vulgares como aventura espiritual é um desafio proposto pelas religiões orientais. Um ocidental enche de água o copo sem ouvir o murmúrio do líquido, enquanto a cabeça permanece distante daquele momento. Um oriental instruído na sabedoria milenar sabe ser aqui-e-agora: copo, água, sede, gesto e atenção formam um todo e favorecem a harmonia interior.

       O sábio não corre atrás do tempo nem se deixa arrastar pelo ritmo do relógio. Ele é senhor do tempo. Em suas atividades nunca submerge, pois se comporta “como a cortiça na água”, como sugere São João da Cruz. Ele aprendeu que só o Absoluto e suas expressões – as pessoas e a natureza - valem a pena. Tudo mais é relativo e, como tal, não merece tanta importância.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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