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domingo, 26 de setembro de 2021

AMOR E ECOLOGIA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(21/09/2021)

 

     Hoje em dia faz boa figura quem passeia com seu cãozinho de estimação, em público, e lhe faz afagos, os mesmos que faria a uma pessoa querida. A ideia de fraternidade planetária ultrapassa a fronteira do exclusivamente humano, deixa de ser utopia de poucos, universaliza-se.

     Também faz sentido por em questão os fundamentos desta nova visão ecológica. Ela se funda no puro pragmatismo, no mero instinto de sobrevivência,  ou num sentimento místico, numa eco-espiritualidade?  Frei Leonardo Boff afirma "chegamos a um ponto da história em que percebemos a possibilidade de auto-destruição." Que diferença faz uma ou outra destas concepções?

     No ano de 1987 o Papa João Paulo II proclamou S. Francisco de Assis Patrono da Ecologia. Ele o fez atendendo a um apelo de ecologistas de todas as partes da terra. S. Francisco é visto como um arquétipo da humanidade, alguém no qual homens e mulheres se projetam e refazem sua crença na possibilidade da perfeição humana.

     É indispensável, no entanto, uma visão crítica sobre o Francisco ecológico, a fim de superar uma tendência reducionista, que se limita ao formato romântico-holístico e exclui sua natureza revolucionária. É o que se evidencia no singelo poema de Vinicius de Morais: "lá vai S. Francisco pelo caminho, de pé descalço, tão pobrezinho, bebendo água no ribeirinho, cantando à noite pros passarinhos. Lá vai S. Francisco, de pé no chão, levando nada no seu surrão, dizendo ao fogo "bom dia, amigo", dizendo ao vento "saúde, irmão....".

 

      Historicamente, S. Francisco rebelou-se contra a estrutura social do seu tempo (séc.XIII) em que todo acesso à festa da vida tinha um preço e era o preço do Mercado. Ele se pôs a esboçar uma nova mundivisão onde a felicidade tinha que ser universal e gratuita. E decidiu começar, ele mesmo jovem, rico e pródigo, começar do nada, nada cobiçar e nada possuir. Todas as coisas são dons gratuitos de Deus. Seu olhar sobre o mundo é de absoluta gratuidade.

     A consequência prática foi o que tinha que ser: ruptura com o pai, rico comerciante e, consequentemente, com a sociedade que este representava. Só lhe restou trocar de lugar social, mudando seu endereço do meio dos mais ricos para o meio dos paupérrimos.

    O resto da sua vida foi a saga de um louco: "O Senhor me chamou pra ser um novo louco no mundo", escreve em seu testamento. O que  resultou dessa loucura?  Sigismundo Freud responde ao reconhecer nele o ser humano que mais longe levou a expressão do amor, capaz de criar laços entre os seres mais estranhos.

     Hoje muitos tentam reencontrar a natureza com intenções variadas, seja com finalidade terapêutica ou um sentimento holístico ou uma condição tardia de sobrevivência. S. Francisco procura as criaturas respeitando desde o início, sua identidade original. Não as procura com o intuito de possui-las, de usá-las, mas sim de irmanar-se com elas. Para ele uma flor é sempre uma flor e não um objeto de decoração de nossa sala. Um cachorro é um cachorro e não um guarda fiel da nossa casa. Ao contrário da maioria, que só consegue amar as coisas, prendendo-as a si, só consegue apreciá-las adquirindo-as e, logo que as possui, confinando-as.

 

     A cupidez da posse impede a contemplação da beleza, impede o desfrute do prazer que os seres vivos só partilham com quem não os faz sentir-se ameaçados. É desta maneira que S. Francisco resgata o dom natural, que perdemos há milhões de anos, de comunicar-nos harmoniosamente com as demais criaturas.

     A pandemia do coronavirus obrigou os entendidos e os que querem entender, a avançar mais em suas pesquisas e descobertas. Cedamos a palavra a um epidemiologista de renome internacional, o africano Bernard Bentt: "A crescente aproximação entre animais selvagens e humanos, a invasão de seus habitats naturais, as mudanças climáticas, o tipo de desenvolvimento econômico e de urbanização facilitam a disseminação de patologias entre seres humanos e animais. Quando degradamos seus ambientes selvagens ou estabelecemos nossos assentamentos em suas áreas, tornamo-nos parte do eco-sistema e do ciclo selvático de transmissão viral que ocorre entre animais das florestas".

     Em suma, a natureza sabe cuidar de si mesma. O nosso papel é conservá-la e proteger sua biodiversidade. S. Francisco nos ajudaria a reaver cristãmente a antiga crença mitológica no amor cósmico; segundo esta, nada do que possui vida sobrevive sem o impulso de uma energia amorosa. E assim todas as criaturas seriam vistas como uma universal teofania.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

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