O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

domingo, 19 de setembro de 2021

AMOR AO PRÓXIMO E AMOR A DEUS, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS (3)

 

 Frei Aloísio



(14/09/2021)

 

     Estamos retomando a homilia do Pe. Antônio Vieira, pronunciada no ano de 1643, na capela do hospital real, em Lisboa. Tendo como tema a cura para a enfermidade do amor, Vieira indica o tempo e a ausência como os dois primeiros remédios. Antes de ir adiante, ele polemiza uma passagem do Evangelho: "vendo a tristeza de seus apóstolos, disse-lhes Jesus: vocês estão tristes porque eu vou partir, porém é melhor que eu me vá, pois, de

onde estiver, lhes enviarei o Espírito Santo..."

 

     "Como pode a ausência do amante trazer maior amor para os amigos amados? Eu vou partir, porém isso é melhor pra vocês, para que venha um amor maior.  Pode alguém contentar-se com tal despedida? E Vieira conclui:  pois assim é o amor de Deus, tão grande na presença quanto imenso na distância".

 

      A seguir ele indica o terceiro remédio para curar o amor enfermo. "Costuma-se dizer que os remédios mais amargos são os mais eficazes. A ingratidão é o mais amargo e por isso o mais eficaz na experiência do amor. Quando o tempo dimunui o amor e a experiência o esfria, nós nos queixamos, mas nem sempre com razão. Porém quando a ingratidão fere o amor, a razão fica toda do nosso lado, ela nos aprova e nos ordena: cura-te deste amor. O tempo é coisa da natureza, a ausência pode ser forçada pelas circunstâncias, porém a ingratidão é sempre um delito. O tempo tira a novidade do amor, a ausência tira-lhe a comunicação, mas a ingratidão rouba-lhe o motivo. O amigo, por ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado; se o deixamos de amar, não é culpa sua, é injustiça nossa; porém se for ingrato, não é mais merecedor do amor".

 

     Tudo isso são condicionamentos do amor humano. Quando se trata do amor de Deus, é bem diferente: a maior ingratidão, o nosso pecado, gerou a maior prova de amor: "Deus amou tanto o mundo que não poupou seu Filho Unigênito". Pelo poder da fé somos capazes de imitar o amor de Deus e encontrar outras formas de continuar procurando o bem do outro, apesar  do demérito da ingratidão.

 

     Vivesse nos tempos atuais, em confronto com o coronavirus, talvez o grande orador português tivesse que reavaliar suas afirmações relativas à supremacia do amor de Deus, único capaz de ser "tão grande na presença quanto imenso na distância". Desde que ele tomasse conhecimento do desabafo de uma mãe idosa, divulgado nas redes sociais: "faz muito tempo que estou no confinamento e o amor que meus filhos me manifestam é deixar-me sozinha".

 

    Daí brotam outras interpelações inspiradas em fatos reais. De um momento para outro a prática do amor se torna algo estranho, exigindo atitudes inéditas. Os gestos mais reconfortantes, beijos, abraços, apertos de mão, comida partilhada, se tornam fonte de perigo e angústia. Onde cuidar significava proximidade física, agora o meio de nos proteger é nos afastar.

 

A crise desencadeada pela pandemia nos obrigou a avaliar a importância da esfera pública em nossas vidas privadas. E alguns levantaram questões mais graves, envolvendo o ambiente doméstico: será que nossas casas são concebidas como um espaço permanente de viver ou como um lugar para o qual retornamos? Eis aí perguntas questionadoras que exigem voltarmos ao assunto na próxima Reflexão.

 

-Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário