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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

AMOR E SOCIEDADE, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(24/09/2021)

 

     Crendo antes que o amor humano é dom divino e transcende tempos, espaços, raças, culturas e classes sociais, me atrevo a levantar uma questão: o modelo de vida imposto pelo atual Sistema dominante favorece ou boicota a prática do amor? Eu mesmo não ousaria dar uma resposta que não fosse dialética: nem um "não" total nem um "sim" absoluto.

 

     De tanto produzir o virus do individualismo, o nosso modelo de sociedade hedonista gera o seu antídoto: a sede de autenticidade. O fracasso da tecnologia em cumprir suas promessas de felicidade provocam o retorno a valores tradicionais, tidos em conta de envelhecidos e inúteis. Por outra parte, a sociedade de consumo oferece o produto pronto para uso imediato; você o adquire, utiliza, deleita-se, joga fora a embalagem e recomeça a inútil maratona à procura do objeto que sacie sua insaciável fome de ser feliz. Não se exige esforço prolongado, não há necessidade de ser inteligente, criativo, original. Basta que se abram os olhos e a bolsa. Num mundo de cidadãos e cidadãs continuamente apressados, uma oferta assim seduz como um presente de deuses.

 

    O que tem isso a ver com o amor? -  Muito! Considere-se que este shopping-center global em que virou o planeta terra exibe milhões de objetos do desejo acessíveis às pessoas que se amam, tornam-se formas de dar materialidade aos seus sentimentos e emoções. Prova disso é a superlotação das lojas nos dias convencionados para se demonstrar amor: dia da criança, dia dos namorados, dia das mães, etc.

 

     Ora, o verdadeiro amor não se contenta com coisas prontas, acabadas. Ele esconde em si um impulso criativo. Ele mesmo quer gerar e criar, e se compraz em aventurar e correr riscos. Nunca se tem certeza sobre o final de suas iniciativas. Os seus parceiros não são pré-moldados, seu bom êxito não tem garantia antecipada, não  lhe adianta publicidade,  somente a eles, os parceiros, cabe construir a unidade que supõe diversidade. Em suma, a mais perfeita tecnologia não casa com a utopia do amor que visa crescer e perpetuar-se.

 

     Todos os amantes do mundo sabem disso teoricamente. Na prática, a frágil natureza humana, fustigada pela máquina de consumo e produção, prefere ter em mãos o que é mais fácil, imediato e prazeiroso. E facilmente se confunde o objeto do desejo com o sujeito do amor. Reduz-se o amor ao simples desejo. Daí a catástrofe das relações provisórias e descartáveis, com prazo de validade determinado pelo tempo em que durar a satisfação.

 

     A pandemia do coronavirus chegou desmontando todos estes esquemas armados pelo Poder Econômico. Suas lojas esvaziaram-se e redescobrimos os lugares onde amar é construir vidas e outros onde amar é salvar vidas: o convívio familiar, os leitos dos hospitais, os espaços de socorrer os amedrontados, de estar atento aos solitários, de solidarizar-se com os parentes das vítimas, de revalorizar os pequenos gestos, as palavras confortantes, as coisas simples, os protestos em prol da saúde pública, a fé engajada.

     Aprendemos que a essência mais íntima do amor está na doação.

 

     Esvaziaram-se também os templos, e compreendemos que Deus não se deixa confinar, que Ele mora no mundo, usa nossos trajes e estar a nos dizer o tempo todo: "o que fizerdes a estes, é a mim que estais fazendo". Reaprendemos, enfim que o amor não termina na experiência que dele fazemos, pois tudo que amamos pode ser tirado de nós, mas o amor não; ele sempre volta, em outras  formas ou em outras pessoas.

 

     Enquanto pressentimos o fim da pandemia, escutemos a advertência de Jesus a Nicodemos, que o foi procurar nas trevas da noite: "em verdade, em verdade te digo: quem não renascer não verá o Reino de Deus" Jo.3,3.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

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