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sexta-feira, 30 de abril de 2021

O DOLOROSO PARTO DA MÃE TERRA: UMA BIOCIVILIZAÇÃO

 

    Leonardo Boff


 

A Cúpula das Mudanças Climáticas convocado pelo presidente Joe Biden, exprime um grito de alarme. Se não detivermos o aquecimento até o limite de 1,5 graus, conheceremos perigoso extermínio da biodiversidade e milhões de migrantes climáticos que, não podendo se adaptar às mudanças e por perderem seus meios de subsistência, sentem-se constrangidos a abandonar suas pátrias queridas e romper  os limites de outros países, causando graves problemas sociopolíticos.

 O CO2 permanece na atmosfera por cerca de 120 anos. Tarde acordamos por sua toxidade sobre os sistemas vivos e sobre o nosso futuro. Nos últimos anos ocorreu algo amedrontador: o degelo rápido do permafrost aquela parte congelada que vai do Canadá e atravessa toda a Sibéria. Acresce ainda o degelo célere das calotas polares e da Groelândia. Este fenômeno agrava o aquecimento global porque o metano é 25 vezes mais nocivos que o CO2. Cada cabeça de bovino, por ruminação e flatulência, emite  por dia entre 80-100 kg de metano lançado na atmosfera. Imagine-se o que significa tal quantidade com todos os rebanhos do mundo. Só no Brasil o número de bovinos  é maior do que a nossa população.

Por mais que fizermos, devido à acumulação de gazes de efeito estufa na atmosfera, não teremos como evitar efeitos extremos. Eles virão: tufões, estiagens prolongadas, verões extremamente quentes e nevascas excessivas, erosão da biodiversidade e perda da fertilidade dos solos e  outros.  O que podemos e devemos é prepararmo-nos para a sua irrupção e destarte minorar os efeitos desastrosos.

Ninguém na Cúpula do Clima teve coragem de apontar as causas primordiais de nosso aquecimento global: o nosso modo de produção capitalista em cujo DNA está o crescimento ilimitado que demanda a extração ilimitada de recursos naturais a ponto de debilitar fortemente a sustentabilidade do planeta. Uma Terra finita não tolera um projeto infinito. Aqui está a causa, entre outras menores, do aquecimento global. Todos sabem que aqui reside a questão originante. Por que ninguém a denuncia? Porque ela é diretamente anti-sistêmica, porque fere o coração do paradigma moderno tecno-científico do desenvolvimento/crescimento ilimitado, com o qual os Estados e as empresas estão comprometidos. Seriam obrigados a mudar o que seria contra sua lógica. Mas não o fazem pois o lucro prevalece sobre a vida. Somente o presidente argentino Alberto Fernández teve a coragem de denunciar:”A poluição é o caminho para o suicídio”. Sua afirmação se afina com a declaração há poucos anos da Academia Norte-americana de Ciências que fez uma declaração mais ou menos nestes termos: Se não cuidarmos, o aquecimento pode dar ‘um salto abrupto’ (expressão empregada) até atingir, em pouco tempo, cerca de 4 graus Celsius; com esse calor, afirma-se, dificilmente as espécies de adaptarão e milhões desaparecerão, inclusive milhões e milhões  de serem humanos.

Praticamente todos lamentam que os “decisions makers” políticos e empresariais mostram grave insuficiência consciente dos riscos que pesam sobre nossa Casa Comum. Não é descartado que algo ocorra semelhante ao que ocorreu com o Covid-19. Não obstante a advertência dos especialistas em vírus de que estaríamos na iminência da intrusão de um grave vírus, muito poucos se preparam para essa eventualidade. Por isso é imprevisível um salto para um novo nível de consciência coletiva que nos permita inaugurarmos uma nova normalidade diferente da anterior perversa para a humanidade e para a natureza. Questionamos: tiramos as lições enviadas pelo contra-ataque da Mãe Terra à humanidade através do Covid-19? A considerar o descuido generalizado parece que permanecemos na ilusão da volta à antiga e iníqua normalidade.

O discurso de nosso Presidente na Cúpula na Casa Branca foi de mera conveniência. Deu clara demonstração ser um lídimo representante da pós-verdade, pois realizou o dito da ancestral sabedoria chinesa: de um político não repare a boca que fala mas as mãos que operam. A boca contradisse totalmente o que as mãos fazem. A boca proferiu promessas, praticamente irrealizável e as mãos, através de seu ministro antiambiental, pratica sistemática devastação das florestas e a desmontagem dos organismos de preservação dos ecossistemas.

Como o “Inominável” é aliado do Covid-19 assim o ministro do Meio Ambiente é aliado dos madeireiros que ilegal e criminosamente comparecem como os principais responsáveis pelos 357,61 km2 de floresta abatida, a pior dos últimos anos. As mãos negam o que a boca diz.

Apesar de todos os pesares, cremos e esperamos que a humanidade vai aprender com o sofrimento e oxalá com amor: ou mudaremos ou nas palavras de Sigmunt Bauman, proferidas uma semana antes de morrer, vamos engrossar o cortejo dos que rumam na direção de sua própria sepultura.

A história humana e natural nunca é linear; conhece rupturas e da saltos para cima. Ela nos está convidando a nos reinventar. Não bastam meras melhorias e colocar esparadrapos sobre as chagas do corpo ferido da Mãe Terra. Somos forçados a um novo começo. Ele, consoante a Carta da Terra e a encíclica do Papa Francisco, cujos destinatários é toda a humanidade,”sobre o cuidado da Casa Comum”(Laudato Si  e a Fratelli tutti):”estamos no mesmo barco: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”(n.35;54;137). A Terra passou por 15 grandes dizimações mas a vida sempre sempre sobreviveu. Não será agora que irá se autodestruir. Entrevemos um aprendizado difícil de toda a humanidade, porque não temos outra alternativa senão essa: ou  viver ou perecer. O próprio Freud, embora cético,, ansiava o triunfo da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. A vida é chamada a mais vida e até à vida eterna.

Nessa esperança esperante acabo de publicar um livro,mais otimista que pessimista, mas de um realismo viável, que visa a garantir um horizonte promissor: O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social. É uma utopia? sim, mas necessária, para podermos caminhar. Releva lembrar que o utópico pertence ao real, feito não apenas de dados sempre  feitos, mas também por potencialidades ocultas que esperam irromper e ser feitas para permitir um nova pegada no chão da história. Não vale pisar em pegadas feitas por outros. Temos que criar as nossas próprias pegadas. Música nova, ouvidos novos. Crises novas, respostas novas. Ainda temos futuro, fortalecidos por Aquele que se anunciou “ser o apaixonado amante da vida”(Sabedoria 11,26). Ele nos ajudará a fazer uma travessia dolorosa mas verdadeira e feliz. Assim cremos e assim esperamos.

Leonardo Boff,ecoteólgo e filósofo e escreveu: O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes 2021.

 

quinta-feira, 29 de abril de 2021

BENDITAS FOMES


 



Frei Betto


 

       Benditos os que têm fome de si e mergulham fundo no âmago do ser, arrancam dissabores do paladar medíocre, farto de migalhas caídas da mesa de Narciso. E os insaciados no apetite de beber do próprio poço e devorar gorduras impregnadas nas reentrâncias da alma. 

  

       Benditas as mulheres famintas de amor, feitas de fios de renda, a tecer a vida na magia de pequenos gestos cotidianos: a cozinha limpa, o feijão catado, a cama arrumada e o vaso da janela regado de ternura. Elas conduzem a lua como um farol que, mês a mês, atrai seus corpos para  rubros mares prenhes de vida. 

  

       Bendita a fome itinerante de homens ávidos de saber, curiosos quanto aos mistérios desse breve existir, e cujas mãos transmutam árvore em mesa, trigo em pão e leite em manteiga. Generosos, não precisam exibir espadas para provar que são guerreiros. Espalhada à sua volta, a sombra do aconchego aninha a família em segurança. 

  

       Benditos os que reverenciam o sol, a flor, a água e a terra, e trazem um coração ao ritmo das estações, confeiteiros de primaveras espirituais. Esses sabem encher suas taças de chuva e assar o pão no calor de amizades.

  

       Benditos todos que se irmanam ao canto telúrico de Francisco e dançam ao ritmo alucinado dos girassóis de Van Gogh, impregnados da sabedoria búdica que não se algema à nostalgia do passado, nem se precipita na ansiedade do futuro. Eles saboreiam o presente como inestimável presente.

  

       Benditas as manhãs reinaugurando a vida após o sono; a idade esculpindo rugas carregadas de histórias; e a todos que, saciados de anos, não temem o convite irrecusável das bodas de sangue que, afinal, haverão de saciar a nossa fome de beleza.

  

       Benditos os bem-aventurados na ânsia de ver repartido o pão da vida, sem encher a bolsa de sementes de podridão. Esses se sentam à mesa com espírito solidário e têm direito à embriaguez do vinho que, transubstanciado, encharca o coração de alvíssaras.

  

       Benditas as mãos que traduzem sentimentos e semeiam carícias, aplacando a fome de afeto. E os olhos repletos de luzes e as palavras floridas de beijos. E esse voraz apetite de silêncio, leve como o voo de um pássaro.

  

       Benditos a gula de Deus, os vulcões ativados nas entranhas, o arco-íris da pluralidade de ideias, a confraria das boas ações, os livros que nos leem, os poemas ecoados no centro da alma, a rua deserta ao alvorecer, o bonde invisível, a vida sem medos.

  

       Benditas a ira contra os pincéis que rasgam telas; a luxúria dos balés musicados por virtudes; a preguiça dos sinos de igrejas; a avareza de quem se guarda dos vícios; e a lenta maneira de fazer crescer plantas, cumplicidades e gente. 

  

       Benditas as fomes de transcendência, de prefigurações do eterno, de jovialidade do espírito, do bolo fatiado pelo cuidado materno, de vertigens místicas, de astros acelerados pela rotação de tantos sonhos redivivos.

  

       Benditos os machados cientes de que seus cabos são feitos de árvore e as gaiolas abertas à liberdade; as agulhas que tecem o avesso da dessolidariedade e as facas de pontas arredondadas; a música de emoções indeléveis e os espelhos que refletem as mais saborosas oferendas da existência.

  

       Benditas as fomes insaciáveis: de saber e de sabor; de despudor no amor; de Deus sob todos os nomes inomináveis. Fome de ócio sem culpa, de alegria interminável, de saúde e de prazer. Fome de paz. Saciada plenamente por justiça - a mais bendita das fomes, capaz de erradicar a fome maldita. 

 

Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco) entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

 

Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 28 de abril de 2021

SOBRE A LEITURA DA BÍBLIA: UMA MEDITAÇÃO

  


Kinno Cerqueira [1]

 

Tenho a impressão de que a Bíblia é o livro menos lido no mundo. Alguém que esteja em posse de certos dados estatísticos dirá, com toda razão, que incorro num contrassenso. Afinal, a afirmação de que a Bíblia é o livro mais vendido, distribuído e lido no mundo tornou-se proverbial em nosso tempo. E os colportores incumbidos de salvar o mundo orgulham-se do sucesso de seu trabalho...

Que significado os estatísticos e colportores dão ao verbo ler? O mais simplório (im)possível, é claro. Absolutamente seguros de sua insuperável precisão conceitual, nomeiam de leitura a reprodução mecânica da combinação dos sons silábicos que compõem as palavras do texto bíblico. Vamos rir ou chorar? Vocês decidem.

Há duas circunstâncias que frequentemente levam uma pessoa a entrar em contanto com a Bíblia. A primeira é quando um evangelista/catequista lhe oferta uma Bíblia durante um processo de investidas proselitistas. A segunda se dá quando alguém, rompendo com o cristianismo de tradição católica, adere a uma igreja protestante, onde recebe uma Bíblia ou é aconselhado a comprar uma.

Nos dois casos, a Bíblia já aparece lida e interpretada. No primeiro, a pessoa recebe a Bíblia como signo da verdade absoluta à qual é interpelada a submeter-se. No segundo, como Palavra de Deus que lhe é dada como sinal de sua supremacia frente a quaisquer expressões religiosas que ocorram fora do limiar de sua nova igreja. 

Não raras vezes, apresenta-se um “plano de leitura” para que, no decurso de um ano, as pupilas crentes conheçam a verdade absoluta, nas filigranas, da primeira à última página, sílaba a sílaba. O critério para aferir a precisão da leitura é o grau de concordância entre esta e a nefasta obtusidade do pastor da igreja. E assim a leitura acontece, com aquela liberdade que é tão própria de marionetes sob mãos de marionetistas.  

A minha proposta é que, a partir de hoje, não se diga mais que a Bíblia é o livro mais lido no mundo. Não se exasperem comigo, senhores estatísticos, colportores, evangelistas e pastores, pois eis que lhes proponho uma alternativa mais honesta: a Bíblia é o livro mais silabado do mundo.

Ler é um ato hermenêutico, ou seja, um processo interpretativo, e a liberdade lhe é condição de genuína realização. Hipotecar a liberdade hermenêutica em função de uma leitura “correta” é o mesmo que vendar os olhos para não errar o caminho. Hipotecada a liberdade e vendados os olhos, resta fiar-se em decisões alheias.

A leitura ocorre quando o leitor se assume como sujeito, isto é, quando o leitor se emancipa em relação ao discurso do outro, libertando-se da condição de subalterno, abjeto, dejeto. A leitura crente, que não passa de uma insossa silabação, é um processo de afirmação da subalternidade, de adesão à obtusidade, de embrutecimento do espírito, de suspensão do pensamento próprio, de sacrifício das retinas no altar da obediência.

Até quando se levará adiante tamanha brutalidade psíquica? Até quando se torturarão as subjetividades sob o signo da Bíblia? Até quando quisermos. Até quando dissermos que basta. Até quando retirarmos nossas cabeças de debaixo das solas que nos esmagam. Até quando a rebeldia nos for mais doce que a obediência. Até quando nossos olhos amarem mais a policromia do mundo que o preto e branco da religião. Até quando ler for um salto de liberdade nos abismos do espanto poético, da beleza que redime, da vida que se reticencia... Até quando a ninguém for dada a última palavra.

 

[1] Pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) para a área de estudos bíblicos.

 

terça-feira, 27 de abril de 2021

A CLASSE TRABALHADORA EM TEMPOS DE PANDEMIA

 


Marcelo Barros

A tragédia da pandemia escancara para  todo mundo ver que a divisão de classes é cada vez mais forte. Não é por acaso que, no Brasil, a partir de março de 2020, o desemprego atingiu 14 milhões de brasileiros/as e 19 milhões se situam abaixo da linha da pobreza. No entanto, na mesma época, o lucro da elite mais rica do país triplicou.

Na Europa, no início dos anos 80, analistas sociais escreviam que se a taxa de desemprego chegasse a 8%, a sociedade não aceitaria e haveria uma convulsão social grave. Hoje há países como a Grécia, a Espanha e mesmo a Itália, onde a parcela de desocupados  chega a quase 30% e não acontece nada. Na sociedade atual, quem perde o emprego sabe que não se trata de uma situação passageira. Quase certamente, não conseguirá outro emprego em algumas semanas ou meses.  O desemprego é estrutural. As empresas são consideradas sadias e lucrativas quanto menos empregados contratarem. E o mais grave de tudo isso é que essa situação é vista por muitos como normal ou ao menos como inevitável. A maioria dos meios de comunicação apregoa o neoliberalismo como um dogma e a exclusão social da imensa maioria das pessoas como um sacrifício inevitável e positivo do progresso. O objetivo é o lucro das empresas a qualquer custo e o progresso material. Os patrões se protegem da pandemia, mas as empregadas domésticas e todas as pessoas que trabalham têm de assumir os riscos de viajar em coletivos superlotados e garantir o comércio e o lucro dos patrões.

Atualmente, diante da crise estrutural do desemprego, às vezes, os próprios coletivos de trabalhadores se sentem obrigados a propor redução das horas de trabalho para evitar demissões em massa. O Capitalismo continua em seu afã de manter os organismos do Estado a seu serviço, de considerar a natureza como mercadoria a ser explorada e encontrar sempre formas novas de explorar o trabalho dos outros.

Nestes dias em que a educação e muitas atividades são obrigatoriamente reduzidas ao trabalho virtual, as empresas de educação exploram o trabalho dos/as professores/as até a última gota de sangue e nem sempre pagando horas extras. Quem assessora grupos sabe que as pessoas simplesmente pedem lives e videoconferências, muitas vezes, sem se darem conta de que isso é um trabalho que exige mais de quem o faz do que os encontros presenciais. Nestes tempos de pandemia, o trabalho virtual começa a tomar, em alguns casos, a configuração quase de trabalho escravo não remunerado, mais exigente e pesado do que as formas clássicas de emprego.

 

É verdade que em um mundo de trabalho virtual e no qual todas as profissões sofrem a ameaça de ceder espaço para a revolução digital, o 1º de maio tem de ser celebrado de modo diferente do que era nas décadas de grandes passeatas e concentrações. É mais importante do que nunca mostrar que não existe a alternativa entre salvar a vida das pessoas ou salvar o comércio. Além do fato de que, a longo prazo, isso é falso, ao assumir abertamente a cara desumana do sistema que põe o lucro acima da vida, a sociedade dominante se revela mais assassina do que o próprio vírus da pandemia.

Infelizmente, a ideologia neoliberal penetrou até nos ambientes das Igrejas e religiões. Na encíclica sobre a fraternidade universal, o papa Francisco propõe que se passe do mundo dos sócios ao mundo de irmãos e irmãs (FT 101). Neste contexto, o 1º de maio não pode ser apenas o dia do trabalho, como se fosse uma data para acentuar o valor do trabalho. É a pessoa dos/das trabalhadores/as que deve merecer atenção e cuidado e não só como pessoas individuais e sim como categorias e coletivos.

Como os profetas e profetizas da justiça e da paz são sempre minorias, mas nunca deixam de atuar, o 1º de maio continua sendo uma data simbólica que nos convoca para cuidarmos da vida, da segurança e da saúde das pessoas. Quem é cristão recorda que o evangelho chama Jesus de carpinteiro ou artesão, termo usado na época para qualquer trabalhador braçal. Assim, os homens e mulheres que hoje assumem a missão de participar da caminhada coletiva do mundo do trabalho sabem que ao lutar pacificamente para transformar esse mundo estão sendo testemunhas de que o reinado divino está vindo e Deus está presente na luta do povo pela justiça e pela paz.  

 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br 

 

 

domingo, 25 de abril de 2021

PACIÊNCIA (2), EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO 


(23/04/2021)

 

     Voltamos a falar sobre paciência, uma virtude sem teologia, sem religião, sem popularidade, tão útil e trivial, na convivência das pessoas, que talvez já tenha perdido o status de virtude. Ela não brilha como as virtudes cardeais, contudo nenhuma outra sobrevive sem os seus serviços (imagine amor sem paciência; esperança sem paciência, não dá.) Ela está para as demais virtudes assim como o ato de respirar, para os outros órgãos do corpo humano.

 

     Apesar de tamanha importância, não se conhece nenhum poema em seu louvor, nenhuma canção (há uma exceção, confirmando a regra: do compositor Lenin, "Paciência", mas vejam o que ele diz logo no começo: "enquanto todo mundo espera a cura do mal, e a loucura finge que tudo isso é normal, finjo ter paciência"); nenhum monumento público, nem a simples homenagem de uma salva de palmas, só mesmo imprecações - "haja paciência!" "Não me torre a paciência!" "Estou perdendo a paciência!"

 

        Só há um momento em que ela reina soberana e bate todos os records, é na hora de confessar os pecados, aí nenhum penitente escapa. Até mesmo para este meu escrito alcançar sua finalidade, preciso da paciência dos leitores.

 

     Avaliemos, pois, esta virtude para além de discursos teóricos ou lições de moral. Ela é tão prática, tão indispensável, que tudo se resume na famosa máxima shakespeareana: ser ou não ser paciente, ter ou não ter paciência. Quando dissemos que ela não tem religião ou teologia foi no sentido de que ela paira acima de qualquer posição religiosa e foge ao controle de qualquer Igreja. Ela não garante o céu aos cristãos, nem o nirvana aos budistas, nem as delícias do Paraíso aos muçulmanos. O que ela promete ao fiel devoto promete igualmente ao ateu assumido, a saber, sabedoria para confrontar-se com os acontecimentos e as pessoas, pelas estradas da vida.

 

     Por todas estas razões, ela é, por excelência, um atributo divino. O que seria de nós se Deus não fosse infinitamente paciente? Se coubesse aqui esta analogia, eu diria que esta é a virtude de que Ele mais se utiliza, na sua misericórdia. Quando afirmamos que Deus é Amor, podemos acrescentar que a sua forma de nos amar é sobretudo exercendo a paciência conectada com o perdão.

 

     Por trás desta conduta esconde-se uma idéia de compaixão, que é monopólio divino, a idéia de  nenhuma bondade ser definitiva e nenhuma maldade ser para sempre. No entanto, não faltam indícios de imitação, na sabedoria dos povos. Missionários franciscanos conheceram uma tribo indígena cujo idioma não possui a palavra

não. Em lugar dela, para dar uma resposta negativa, diz-se outra palavra que significa "ainda não". Que bela expressão de paciência!

 

     A esta altura, já é tempo de perguntar: não existe nenhum critério para demarcar até onde tem de ir a paciência? -  Existe um limite, sim, que não afeta a sua essência, mas a sua forma de atuar. Um pai não atenta contra a paciência quando usa de plena firmeza diante de uma insistência do filho ou encerra o diálogo com um categórico "não!" O critério é sempre o mesmo: o BEM MAIOR em vista.

 

     Diante das omissões e irresponsabilidades do Chefe da nação e de seus assessores mais próximos, especificamente no que diz respeito ao enfrentamento desta pandemia, nós, milhões de brasileiros e brasileiras que atingiram um nível de pressão arterial próximo a um AVC coletivo, não faltaremos com a paciência, se usarmos todos os meios possíveis, dentro do bom senso constitucional, para afastá-los dali, onde nunca deviam ter chegado.

 

     Na Última Ceia, Jesus  conheceu a situação-limite da sua paciência com os planos  do Iscariotes. E  só continuou a Celebração depois que ele se retirou da sala. Mas não perdeu a paciência, apenas disse-lhe: "o que tens a fazer, faze-o logo" Jo.13,27.  Amém.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

sábado, 24 de abril de 2021

NESTA PANDEMIA, ONDE ESTÁ DEUS?

 


Pe Fabio Potiguar dos Santos


 

Nesta noite escura que atravessa o mundo e, principalmente o Brasil, diante de tanta dor e sofrimento do povo por causa de uma crise sanitária, política, econômica e social agravada por um gestor incompetente e irresponsável, sem consciência e sensibilidade; ante da morte não de números, mas de pessoas com suas famílias enlutadas, ricas e pobres, sem fazer os ritos de despedidas mais completamente; perante a angústia, a ansiedade, a depressão, o pânico e outros transtornos psíquicos causados neste cenário onde há dias que mais morre gente do que nasce no Brasil e, nos sentindo “o próximo da fila” que possa vir a ter o covid-19 ou morrer em decorrência dele: diante, ante e perante podemos nos perguntar por onde anda Deus.

 

É meu o grito do salmista. “Ó Senhor, por que ficais assim tão longe, e, no tempo da aflição vos escondeis?” ( Sl 10,1). “Até quando, ó Senhor, me esquecereis? Até quando  escondereis de mim a vossa face?” (Sl 13,2). Talvez possa até dizer, é nosso esse brado do semita.

 

Grito muito mais ainda com Castro Alves em Navios Negreiros e Vozes da África diante do sofrimento do povo negro escravizado pelos cristãos nas Américas de um ponta a outra. Protestantes e católicos que também dizimaram muitos e tantos povos indígenas. Crime contra a Humanidade. Vergonha para consciência cristã. João Paulo II várias vezes pediu perdão por isso, e também o amado papa Francisco. E Deus, por onde andava Deus naqueles tempos e nos tempos de hoje quando parece não ver as novas formas de escravidão, exploração do povo, o abuso de menores ou os maus-tratos de idosos, o sofrimento psíquico e psiquiátrico que atinge do mais rico aos mais humildes, a opressão dos pobres e a devastação e da natureza?

 

Com a pandemia essa escandalosa exploração e destruição não só se tornaram mais evidentes, como se acentuaram de forma assustadora e criminosa. Diante de tudo isso me junto a este poeta abolicionista: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes. Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, Senhor Deus?.” 

 

Epicuro, na antiguidade, já questionava: “Ou bem Deus deseja suprimir o mal, mas não pode, ou Ele pode mas não quer. Se Deus o quer mas não pode, Ele é impotente, o que é contrário à sua natureza. Se Ele pode mas não quer, Ele é malvado, o que é contrário à sua natureza. Se Ele o não o quer nem o pode, Ele é ao mesmo tempo impotente e malvado, o que significaria dizer que Ele não é Deus. Mas se Ele pode e quer, o que só convém a Ele, de onde vem então o mal e por que Ele não lhe suprime? ”

 

O papa Bento XVI na Audiência Geral no dia 27 de setembro de 2006, se referindo a São Tomé dizia: “Ao mesmo tempo, a sua pergunta confere também a nós o direito, por assim dizer, de pedir explicações a Jesus. Com frequência nós não o compreendemos. Temos a coragem para dizer: não te compreendo, Senhor, ouve-me, ajuda-me a compreender. Desta forma, com esta franqueza que é o verdadeiro modo de rezar, de falar com Jesus, exprimimos a insuficiência da nossa capacidade de compreender, ao mesmo tempo colocamo-nos na atitude confiante de quem espera luz e força de quem é capaz de as doar”. O livro Introdução ao Cristianismo é um dos mais importantes do teólogo Ratzinger. Assim ele escreveu: “Tanto o crente quanto o incrédulo, cada um à sua maneira compartilham a dúvida e a fé, sempre entendidos que não procuram fugir de si mesmos e da verdade de sua existência. Ninguém pode escapar completamente da dúvida, mas nem mesmo da fé. Para um, a fé se faz presente contra a dúvida, para o outro na dúvida e na forma da dúvida”

 

Conhecemos e, costumamos repetir ao longo de nossas vidas, principalmente naqueles mais difíceis juntos com o pai do menino epilético: “Senhor eu creio, mas aumentai a minha fé” (Mc 9,24). Essa tradução está errada, erradíssima. A tradução mais próxima do original seria: “Eu creio! Ajuda minha incredulidade! ”

 

No grego está escrito: “ Πιστεύω - pisteuó (eu creio) + βοήθει – boétei (ajuda) + μου (minha) + τῇ -te (a) + ἀπιστίᾳ - apistia (não-fé). Creio, ajuda minha incredulidade”. A minha fé e a minha não-fé caminham juntas.  Ajuda, Senhor, minhas trevas luminosas, tão clara e tão escura.

 

A nossa fé não uma fé é estúpida, imbecil, ignorante. A verdade absoluta não é absolutista. A nossa fé interroga e faz perguntas com os salmistas ou com apóstolo Tomé.

 

O grande e bom Carlo Maria Martini, teólogo, biblista, pastor e cardeal por muitos anos de Milão, um bispo realmente progressista, na inauguração da Cátedra dos Não-Crentes”, em 1987 dizia: “Eu acredito que cada um de nós tem dentro de si um incrédulo e um crente, que falam um com  o outro, que se questionam, que continuamente enviam perguntas pungentes e perturbadoras um ao outro. O não-crente que está em mim perturba o crente que está em mim e vice-versa. A apropriação deste diálogo interior é importante, pois permite a cada um crescer na autoconsciência”.

 

Onde está Deus? Amado irmão e irmã, companheira e companheiro, o Cristianismo tem a honestidade de não ter uma explicação. Estamos diante do mistério de Deus, do mistério da mulher e do homem e do mistério dos cosmos. E o mistério não podemos agarrá-lo, escapa-nos das mãos.

 

Porém, o Cristianismo tem algo maior do que toda e qualquer explicação. Não se assuste! Deus é o primeiro escandalizado com o escândalo do mal, aquele que mais sofre. Deus sofre com a gente e muito mais do que a gente com o mal que devasta o mundo: a fome, as guerras, as catástrofes, as doenças, o sofrimento e morte de inocentes, o mal moral causado pela maldade humana. Ele não é um espectador desinteressado e distante, desligado assistindo indiferente o drama, a tragédia e a comédia da existência humana e da criação.  Ele sofre por nós, conosco e em nós. Mais, Deus sofre em si mesmo.

 

Ele sofre por nós, quando por nós e para nossa salvação assumiu nossa carne de agonia e de prazer, de vida e de morte, ressuscitando depois para dar sentido a nossa totalidade psicossomático e espiritual. Ele sofre conosco chorando nossas lágrimas em solidariedade e consolo.

 

Ele sofre em nós, no mais íntimo, ou no outro, quando bem disse: “ Eu tive fome, sede... Eu estive doente, preso, estrangeiro...” (Mt 25,35). Deus sofre em cada pessoa que sofre suas angústias independente de sua classe social, sofre no sofrimento da exploração econômica, social, política promovido por um uma cartilha  perversa exclusivista e excludente. Deus sofre na Criação explorada e devastada por esse mesmo modelo contra a Deus, contra a Humanidade e contra a Ecologia.

 

Deus sofre e nos convoca a acabar com esse sofrimento ou, ao menos amenizá-lo, através do nosso compromisso e engajamento que neste momento, mais do que nunca tem duas frentes. Uma emergencial, para os doentes e os que passam fome. Outra, estruturante, na construção de uma justiça Ecosocial que promova uma sociedade fraterna, pacífica e feliz. Isto mesmo, feliz.

 

Precisamos voltar a sorrir de novo. Nestes tempos de pandemia e pandemônios suplicamos Àquele que sofre conosco que venha com sua presença ficar bem no meio e dentro de nós.

 

Concluo com uma mística, um momento de espiritualidade.

Ó Deus, renove em nós a esperança, o sonho e a utopia, a teimosia, a poesia. Deus, renove em nós a força, a garra, a coragem e a energia. Deus, renove em nós a alegria, a felicidade, o júbilo, o contentamento, a delícia, o gozo, o prazer, a arte, a música e a dança. Nós precisamos cantar e dançar! Deus, renove em nós a saúde física, psíquica e espiritual restaurando  o corpo, a alma e o espírito de todas e todos, de cada um e cada uma. Deus, renove em nós aquela sua benção que nos guarda, protege e defende de todos os perigos visíveis e invisíveis. Deus, renova em nós a paz, calma, serenidade, tranquilidade, suavidade, mansidão e leveza. O seu nome, ó Deus, é Deus-conosco, o Emanuel, que chora nossas lágrimas e sorrir nossos sorrisos. Fica conosco e em nós!

 

 Padre Fabio Potiguar Santos Capelão das Fronteiras, membro da Comissão de Justiça e Paz e coordenador da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter- religioso da Arquidiocese de Olinda e Recife

 

 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

COMER O MUNDO OU SALVAGUARDAR O MUNDO?


Leonardo Boff


“Comer o mundo” ou “salvaguardar o mundo” representam uma metáfora,frequente na boca de lideranças indígenas, questionando o paradigma de nossa civilização, cuja violência os fez quase desaparecer. Agora  ele foi posto em xeque pelo Covid-19. O vírus caiu como um raio sobre o paradigma do “comer o mundo”, vale dizer, explorar ilimitadamente  tudo que existe na natureza na perspectiva de um crescimento/enriquecimento sem fim. O vírus destruiu os mantras que o sustentam: centralidade do lucro, alcançado pela concorrência o mais feroz possível, acumulado privadamente, à custa da superexploração dos recursos naturais. A obedecer estes mantras, estaríamos seguramente em maus lençóis. O que nos está salvando é  o ocultado e feito invisível no paradigma do “comer o mundo”: a vida, a solidariedade, a interdependência entre todos e o cuidado da natureza e de uns para com os outros. É o paradigma imperioso do “salvaguardar o mundo”.

Este paradigma do “comer o mundo” tem alta ancestralidade. Vem de Atenas do século V aC quando irrompeu o espírito crítico, abandonando os mitos, que permitiu perceber a dinâmica intrínseca do espírito que é a ruptura de todos os limites e a busca do infinito.Tal propósito  foi pensado pelos grandes filósofos, pelos artistas, aparecendo também nas tragédias de Sófocles,Ésquilo e e Eurípides e praticado pelos políticos. Não é mais  “medén ágan”do templo de Delfos: “nada em excesso” mas agora é a expansão espacial ilimitada (criação de colônicas e de um  império) e a expansão temporal abrir-se ao futuro sem fim (perspectiva ilimitada para a frente).

Tal projeto de “comer o mundo” ganhou corpo na própria Grécia pela criação do império de Alexandre,o Grande (356-323) que com a idade de apenas 23 anos fundou um império que se expandia do Adriático até o rio Indo na Índia.

O “comer o mundo”se aprofundou no vasto império romano, se reforçou na idade moderna colonial e industrial e culminou no mundo contemporâneo com a globalização da tecno-ciência ocidental, expandida para todos os rincões do planeta. É o império do ilimitado, traduzida no propósito (ilusório) do capitalismo/neoliberalismo do crescimento sem limites em direção ao futuro. Basta dar como exemplo desta busca do crescimento ilimitado, o fato de que na última geração se queimou mais recursos energéticos do que todas as gerações anteriores da humanidade. Não há lugar que não tenha sido explorado, visando a acumulação de bens.

Mas eis que irrompeu um limite intransponível: a Terra limitada como planeta, pequena, superpovoada, com bens e serviços limitados não suporta um projeto ilimitado.Tudo tem limites. No dia 22 de setembro de 2020 as ciências da Terra e da vida identificaram a Sobrecarga da Terra (The Earth Overhoot). Quer dizer, o limite dos bens e serviços naturais renováveis, básicos para a sustentação da vida. Eles se esgotaram. O consumismo, ao não aceitar limites, leva a fazer violência, arrancando da Mãe Terra aquilo que ela já não pode mais dar. Estamos consumindo o equivalente a uma Terra e meia. As consequências desta extorsão se mostram na reação da Mãe Terra exausta: o aumento do aquecimento global, a erosão da biodiversidade (cerca de cem mil espécies eliminadas por ano e um milhão sob risco), a perda da fertilidade dos solos e a desertificação crescente  entre outros eventos extremos.

A ultrapassagem de algumas das nove fronteiras planetárias (mudanças climáticas, extinção de espécies, acidificação dos oceanos e outras) podem provocar um efeito sistêmico, derrubando todas as nove e assim induzir a um colapso da nossa civilização. A intrusão do Covid-19 pôs de joelhos todas as potências militaristas,tornando inúteis e ridículas as armas de destruição em massa. A gama de vírus preanunciados, caso não mudarmos a nossa relação destruidora da natureza, poderá sacrificar vários milhões de pessoas e afinar a biosfera, essencial para todas as formas de vida.

Presentemente a humanidade está sendo tomada pelo  terror metafísico face aos limites intransponíveis e à possibilidade do fim da espécie. È ilusório o pretendido Great Reset do sistema do capital. A Terra o fará fracassar.

É neste contexto dramático que emerge o outro paradigma do “salvaguardar o mundo”. Ele é suscitado particularmente por lideranças indígenas como Ailton Krenak, Davi Kopenawa Yanomani, Sônia Guajajara, Renata Mchado Tupinambá, Cristine Takuá, Raoni Metuktire entre outros. Para todos eles vigora uma profunda comunhão com a natureza da qual se sentem parte. Não precisam pensar a Terra como a Grande Mãe,Pachamam e Tonantzin porque a sentem assim.  Naturalmente salvaguardam o mundo porque é uma extensão de seu próprio corpo.

A ecologia do profundo e integral como vem exposta na Carta da Terra (2000), nas encíclicas do Papa Francisco Laudato SI: como cuidar da Casa comum (2015) e Fratelli tutti (2020) e no programa Justiça, Paz e Preservação do Criado do Conselho Mundial de Igrejas, entre noutros grupos, assmiram o “salvaguardar o mundo”. O propósito comum é garantir a condições físico-químico-ecológicas que sustentam e perpetuam a vida em  todas as suas formas,especialmente, a humana. Já estamos dentro da sexta extinção em massa e pelo antropoceno a aprofundamos.Se não lermos emocionalmente, com o coração, os dados da ciência sobre as ameaças que pesam sobre nossa sobrevivência, dificilmente nos engajaremos para “salvaguardar o mundo”.

Severamente alertou o Papa Francisco na Fraterlli tutti: ”ou nos salvamos todos juntos ou ninguém se salva”(n.32). É uma advertência quase desesperada se não quisermos “engrossar o cortejo dos que rumam na direção de sua sepultura” (S.Bauman). Damos o salto da fé e cremos no que se diz no Livro da Sabedoiia:”Deus é o apaixonado amante da vida”(11,26). Se assim é, Ele não permitirá que desapareceramos tão miseravelmente da face da Terra. Assim cremos e esperamos.

Leonardo Boff  escreveu: Cuidar da Terra-Proteger a vida: como evitar o fim do mundo, Record 2010; Covid-19, a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: advertências da pandemia,  Vozes 2020.

http://jornaloporta-voz.blogspot.com/2021/04/jose-comblin-1961-vocacao-crista-do.html

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A FÉ HUMANISTA DE CAMUS


 

Frei Betto 


        A vida e a obra de Camus nos deixam a impressão de que ele, malgrado a formação cristã em Argel, era um cético. De fato, as atrocidades da Segunda Grande Guerra derrubaram os ícones do autor de O mito de Sísifo – Deus, o Partido Comunista, as instituições políticas, as ideologias. Passou a considerar mito todas as verdades "ideais" ou "objetivas".

       Howard Mumma conta em seu livro Albert Camus e o teólogo que o autor de O homem revoltado teve, nos últimos anos de vida, inquietações religiosas.

       A uma plateia de cristãos, Camus (1913-1960) declarou em 1946: "Não parto do princípio de que a verdade cristã é ilusória. Simplesmente nunca penetrei nela" (Vie intelectuelle, abril de 1949, p. 336).

        Camus foi à igreja, quando já era artista consagrado, em busca de "algo", lembra Mumma. "Algo que não estou certo nem mesmo que eu seja capaz de definir", teria admitido o escritor. 

       A vida e a obra de Camus nos deixam a impressão de que ele, malgrado a formação cristã em Argel, era um cético. De fato, as atrocidades da Segunda Grande Guerra derrubaram os ícones do autor de O mito de Sísifo – Deus, o Partido Comunista, as instituições políticas, as ideologias. Passou a considerar mito todas as verdades "ideais" ou "objetivas". Teimou em não ir "mais além da razão", tenha o nome que tiver, raça, Estado ou partido. Desencantado, resistiu, entretanto, à cicuta da "náusea" sartreana, embora muitos insistam em situá-lo entre os existencialistas. 

       Camus nunca se declarou discípulo de Sartre. Este chegou a manifestar que nada havia em comum entre o seu pensamento e o do autor de O estrangeiro. Uma de suas poucas frases que faz eco à filosofia existencialista consta de O mito de Sísifo, quando o autor argelino se refere ao "fastio que se apodera do homem diante do absurdo da vida."

       Apegar-se a um valor espiritual era, para Camus, uma fuga do real. Nas águas de Nietzsche, preferia a autenticidade à verdade. Acreditava, contudo, no ser humano. Como escritor, assumiu a condição de testemunha do sofrimento dos inocentes e, inclusive, do silêncio de Deus. Mas imaginar que, em seus últimos anos de vida, Camus chegou a ter saudades da fé que não possuía é algo que só não beira o insólito porque Mumma escreveu que Camus admitiu a possibilidade de encontrar na fé um sentido para a vida. Por isso, manteve diálogos com o teólogo e foi por ele introduzido na leitura da Bíblia, o que o teria conduzido do ateísmo ao agnosticismo. 

       Prêmio Nobel de Literatura de 1957, Camus já havia experimentado o impacto do testemunho evangélico, conforme disse a Mumma, na amizade que o unia a Simone Weil, judia agnóstica, mística sem fé, filósofa que abandonou o conforto da academia para mergulhar de cabeça no mundo dos pobres. Militante da Resistência francesa, trabalhou como operária na Espanha. Solidária aos famintos, permitia-se uma ração diária tão exígua que acabou comprometendo a saúde. Morreu em 1943, aos 34 anos. 

       O epílogo de A peste comprova a fé de Camus no ser humano: "(…) o doutor Rieux resolveu compor este relato que aqui termina para não ser daqueles que se calam, para testemunhar em favor desses pestíferos, para deixar ao menos uma recordação da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas, e para dizer simplesmente o que se aprende nos flagelos, que há nos homens mais coisas a admirar do que a desdenhar".

       Essa exaltação do humano marca a literatura de Camus, ensolarada pela ênfase na felicidade, tributo de sua origem mediterrânea. Não é o destino que o preocupava, mas o presente, a possibilidade de ser feliz agora. Seu time é o de Montaigne, Voltaire e Rabelais, e não o de Pascal, Baudelaire e Rimbaud, que oscilam entre a angústia e o desespero. "No âmago de minha obra há um sol invencível", declarou ele em entrevista a G. d’Aubarède (Nouvelles littéraires, nº 1236, 10/05/1951). "Não há vergonha em ser feliz", exclamou ao entrevistador. "Há vergonha em ser feliz sozinho", completou pela boca de Rambert, em A peste

       Camus está morto e é inútil indagar se, ao ser acidentado, corria na ânsia de encontrar Aquele que procurava. Mas não há dúvida de que ele fez de sua estética uma radical apologia da ética, conforme atesta este trecho de A Peste: "Em resumo, disse Tarrou com simplicidade, o que me interessa é saber como um homem se torna um santo. Mas o senhor não acredita em Deus, respondeu-lhe Rieux. Justamente. O único problema concreto que hoje me preocupa é saber se um homem pode tornar-se santo sem Deus." 

 

Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

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