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sábado, 3 de abril de 2021

FOME E SEMANA SANTA EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(02/04/2021)

 

     Para desconcerto geral, há um virus pior do que o COVID, infectando o corpo e a alma desta nossa "pátria amada Brasil". Suas causas são bem conhecidas, seus efeitos, bem visíveis para quem tem olhos pra ver e mente pra pensar. A fome.

     Nestes dias, nós cristãos estamos revivendo a Semana Santa. Somos convidados a contemplar a Cruz do Calvário. Considerando que "completo em minha carne o que faltou à sua Paixão" cf. Col. 1,24 ss, acrescentaremos às 7 Palavras de Jesus na Cruz, mais uma: "tenho fome". Sim. A fome Dele hoje está na fome de todos os famintos, desamparados e humilhados.

     Reflitamos a partir de um fato real. Há poucos dias, recebi um s.o.s. de moradores de Bola na Rede:"padre, arranje umas cestas básicas, pois já começamos a vender os objetos da nossa casa, para comprar comida". No primeiro momento, uma pessoa amiga e sensível fez doação de grande quantidade de um alimento saudável e nutritivo: macaxeira. No dia seguinte, a coordenadora da distribuição, irmã de Fé e Luta, me mandou uma mensagem, via wapp: "frei, nunca vi o povo tão feliz por causa de macaxeira". Confesso que senti uma alegria triste. Alegria, por razões óbvias, tristeza, por razões subjacentes.

     Quando um povo vive tamanha felicidade por 3 kg. de macaxeira (o que coube a cada família) é sintoma de que alguma coisa vai mal. Me senti desafiado a decifrar enigmas: o que é a fome? A que leva a dor da fome?

    Lembrei um pensamento do poeta latino Virgílio, aprendido no Seminário: "malesuada fames", a fome é má conselheira. Não! Ela é péssima conselheira. E eu que pensava diferente, curvo-me a esta verdade: ela, a fome não produz sentimento de justa revolta, gerador

 de mudanças sociais, ao contrário, produz passividade e subserviência. Se hoje alguns gritam de felicidade por conta de 3 kg. de macaxeira, amanhã, por motivos semelhantes, farão fila pra beijar a mão do opressor. Não tenho mais dúvida, a fome é arma do diabo. E como o diabo não precisa andar armado, ele a entrega aos opressores deste mundo. O Sistema Econômico Neoliberal  a utiliza com o fim de submeter os pobres ao mais vil e absoluto controle: o que obriga a escolher entre viver ou morrer.

      Daí me irmanei com outros personagens históricos de outros tempos e lugares deste mundo desigual. Mahatma Gandhy, um dos homens mais santos que este mundo já conheceu, profundamente religioso. Um dia ele foi interpelado por Rabindranath Tagore, maior poeta da Índia, prêmio Nobel de literatura. Este questionou sua pregação obsessiva e monocórdia contra a fome de seus compatriotas. Convidou-o a olhar também para o pássaro que canta, ao romper da aurora, sem perguntar por alimento. Gandhy respondeu, admitindo, democraticamente, que outros se ocupassem em cuidar de pássaros debilitados, ou de cantar a poesia da vida, mas "não se pode esperar que a salvação de um povo venha da arte, quando milhões estão a precisar  apenas de uma coisa: comida. Se, em minha volta o povo definha de fome, só me é permitida uma ocupação: alimentá-los". E acrescentou um dado da sua fé: "a um povo que sofre de fome e desemprego, Deus só pode aparecer de uma forma: como trabalho e garantia de comida".

      Não sendo cristão, Gandhy nos chama atenção para um Deus ecumênico. Ainda que sejam diversos os caminhos da Fé, para todos vale o mesmo princípio: "se alguém disser que ama a Deus, a quem não vê e não ama o irmão, a quem vê, é mentiroso" Cf.1 Jo.4, 20-21.

    Nestes dias da Semana Santa, ao acompanhar os passos da Via Sacra, não choremos por Ele ("não chorem por mim, mas por vocês e seus filhos" Jo. 28,48.) Ele está na glória do Pai. Celebremos sua Paixão e Ressurreição e, logo a seguir, voltemos para os caminhos onde Ele se encontra desfigurado em qualquer pessoa torturada pela maldita fome. Jesus não disse "teu irmão teve fome...." mas sim "eu tive fome e me deste de comer" Mt.25,35. Amém.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

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