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quinta-feira, 29 de março de 2018

LEITURA LITERAL DA BÍBLIA


por Frei Betto

       Para os cristãos, a Bíblia é Palavra de Deus. Todo texto, porém, é lido a partir de um contexto no qual o leitor extrai o pretexto, o efeito da leitura em sua vida.

       O lugar social no qual se situa o leitor influi em seu lugar epistêmico. Por isso, o mesmo texto bíblico é interpretado de modo diferente se lido na academia ou em uma Comunidade Eclesial de Base.

       Na tentativa de evitar hermenêuticas equivocadas, cabe à autoridade religiosa indicar a interpretação correta. Isso, entretanto, não é solução. A autoridade não é isenta de múltiplas influências. Durante séculos a Igreja Católica aceitou a versão criacionista, segundo a qual procedemos todos de Adão e Eva. Darwin e o evolucionismo comprovado pela ciência demonstraram que somos todos descendentes de macacos.

       Ler a Bíblia fora do contexto pode induzir o fiel desavisado a odiar seu pai e sua mãe para aderir a Jesus (Lucas 14, 26). Um cristão tinha por hábito sortear, toda manhã, um versículo dos evangelhos como motivação espiritual. Ao abrir o texto em “Amai o próximo como a si mesmo”, adotou, naquele dia, postura mais atenciosa com a faxineira, o ascensorista e a copeira do escritório.

       Dia seguinte caiu-lhe o versículo 5 do capítulo 27 de Mateus, sobre a culpa de Judas: “E ele foi e se enforcou”. Ciente de que a vida é o dom maior de Deus, permitiu-se uma segunda chance. Deparou-se com o último versículo da parábola do Bom Samaritano: “Vá e faça o mesmo.”

       Ora, como Deus não quer o mal, ele se deu uma última oportunidade. Veio-lhe este versículo da paixão de Jesus em João: “O que tem a fazer, faça depressa” (13, 27)...

       A leitura literal da Bíblia ou a pescaria de versículos que tira o texto de seu contexto, é hoje utilizada para fundamentalistas bradarem que a Bíblia condena a homossexualidade. Ora, em toda ela há apenas três versículos que podem ser interpretados nessa linha (Gênesis 19, 1-28; Levítico 18, 22; Romanos 1, 26-27).

       Ainda que houvesse mais versículos, há que levar em conta que a Bíblia foi escrita dentro de uma cultura patriarcal, machista, e nem tudo que ela diz pode ser tomado ao pé da letra. Caso contrário, os fiéis não poderiam, hoje, comer carnes de porco, coelho, lebre e mariscos, proibidas em Levítico 11. Nem produtos embutidos (Atos 15, 19-29).

       O apóstolo Paulo proíbe que homens preguem com a cabeça coberta (1 Coríntios 11, 4). Quantos bispos não o fazem ostentando a mitra? Paulo assinala que estar casado e ser bom marido é requisito para ser eleito bispo (1 Timóteo 3,2). E ainda recomenda que nos submetamos a toda autoridade, ainda que ditatorial (Romanos 13, 1-2).

       “A letra mata, o Espírito vivifica” (2 Coríntios 3,6), proclama o mesmo Paulo. E o próprio Jesus ousou nos posicionar em uma nova óptica quanto aos textos do Antigo Testamento: “Ouviram o que foi dito; eu porém afirmo...” (Mateus 5).

       A fidelidade à Palavra de Deus não se coaduna com a intolerância, o preconceito e a discriminação. E Deus só se faz presente onde há amor (1 João 4,16).

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus – fé e espiritualidade no mundo atual” (Paralela), entre outros livros.
Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com)

terça-feira, 27 de março de 2018

ENGRAVIDAR O MUNDO NA ESPERANÇA DA PÁSCOA



por Marcelo Barros

O planeta Terra está doente. A humanidade padece uma crise profunda que tem diversas faces. Apresenta um desequilíbrio social e uma organização política iníqua. Sustenta uma economia que, cada vez mais, concentra renda. Oito pessoas possuem uma riqueza equivalente a mais de três bilhões de seres humanos. E ainda destrói a natureza de forma implacável. Em países como o Brasil, a violência toma formas realmente assustadoras. Esse é o contexto no qual, nesse domingo, as Igrejas cristãs antigas começam a Semana Santa e, a partir da próxima 5ª feira, celebrarão a festa anual da Páscoa de Jesus. Alguém pode se perguntar o que uma coisa tem a ver com a outra. 

Muitos cristãos tradicionais – católicos, ortodoxos e evangélicos, tanto fieis, como pastores/as, não se preocupam em ligar a fé com a realidade social e politica. Para essas pessoas, a fé diz respeito apenas à intimidade de cada consciência e ao âmbito interno dos templos nos quais o mistério é celebrado. Eles e elas repetirão os mesmos ritos, ouvirão as mesmas leituras e cantarão os mesmos cânticos, como se nada tivessem a ver com o mundo real em que vivemos. 

Cristãos mais exigentes se perguntam se tem sentido celebrar a ressurreição de Jesus em meio a um mundo que vive mergulhado nas cruzes nossas de cada dia. Não há respostas fáceis, nem prontas. No entanto, podemos pensar que, ao contrário, é justamente pelo fato de que o mundo está aprisionado às forças da morte que mais precisamos celebrar a Páscoa. A celebração pascal pode alimentar a esperança da libertação integral e de uma vida nova com a mensagem transformadora da ressurreição de Jesus. Se Jesus ressuscitou realmente e nós podemos ser testemunhas do Ressuscitado, esse mundo tem remédio, Podemos acreditar que a salvação divina está em ação na humanidade e na natureza. A ressurreição de Jesus é energia curadora que renova a vida, o amor solidário e dá razão a todas as nossas melhores esperanças. No entanto, é bom sempre insistir e repetir:  isso não ocorrerá magicamente e nem independentemente de nossa ação. 

Quando na quinta-feira santa, os cristãos estiverem lembrando a ceia de Jesus, precisam se dar conta de que cada vez que celebram a eucaristia, deveriam se comprometer em levar uma vida movida pela partilha real e radical de tudo o que temos e o que somos. Na sexta-feira santa, celebramos a cruz de Jesus como Páscoa de vida. Isso significa escutar o apelo de Deus para nos solidarizarmos a todos os que, no mundo atual, continuam pregados à cruz e morrem vítimas das violências, das injustiças sociais. Que o martírio deles e delas seja cada vez mais fecundo e possa resultar em libertação e vida para todos/as. Finalmente, na noite do sábado santo, ou na madrugada do domingo, celebraremos a vigília-mãe de todas as celebrações cristãs. Proclamaremos que, como Luz que ressurge no meio da escuridão da noite, Jesus ressuscitou. Então, a humanidade inteira, cristãos e não cristãos, somos chamados a ressuscitar com ele para iniciar uma vida nova e, assim, trabalharmos nas comunidades e movimentos sociais para transformar o mundo e renovar o universo com a força do amor divino. Que essa celebração pascal nos dê a graça de nos tornarmos novas criaturas que semearão nesse mundo doente as sementes de um novo mundo de amor e justiça. 

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.
   

segunda-feira, 26 de março de 2018

MARIELLE FRANCO: QUANDO AS BALAS CHEGAM ATRASADAS




                          por  Maria Clara Lucchetti Bingemer


            Há uma semana, uma mulher negra, nascida e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro, defensora dos Direitos Humanos e dos direitos dos oprimidos e excluídos, revoluciona o país. Na letargia da crise brasileira de múltiplas dimensões, a execução da vereadora Marielle Franco, morta a tiros, leva milhões às ruas e desperta consciências, vozes e debates que pareciam sepultados pelo desalento e a alienação.

            Na noite de 14 de março, metade do país não dormiu.  Os tiros desfechados contra a vereadora que saía de uma reunião do coletivo Jovens Pretas entraram pelas janelas e aparelhos de TV, celulares e mídias de todos como dardos que rasgam o sossego da escuridão e do silêncio. 

            A outra metade acordou sobressaltada com a notícia que, a essa altura, já mobilizava milhões.  O sorriso largo de Marielle, seus olhos profundos e intensos, sua voz grave e lúcida, enfim a explosão de vida que era ela inteira, estavam presentes e estampados por toda parte.  Atos públicos, manifestações, entrevistas, debates.  O assassinato de Marielle e o de seu motorista Anderson Gomes eram e continuam sendo senão o único ao menos o principal assunto de conversa em nosso cotidiano.

            Em uma cidade que todo santo dia conhece estatísticas macabras de vários assaltos e mortes violentas, por que o dessa mulher mobilizou de tal maneira a opinião pública? Talvez aí esteja a chave da compreensão do alcance de sua morte, indissociável de sua vida. Marielle não morreu de assalto.  Nem de bala perdida.  As balas planejaram e acharam muito bem o caminho de sua cabeça tão perigosa porque inteligente, criativa e destemida.

            Marielle é mais que Marielle. Ela é muitas, ela é várias, ela é todas.  Todas nós mulheres que nela vemos uma ilustre representante e porta voz de nossos problemas e discriminações seculares.  Todos os afrodescendentes  em um país que foi o último a “abolir” uma escravidão que segue, ocupa o palanque e a Câmara, e defende com orgulho sua negritude.  Todos os discriminados por raça, posição social, escolhas de vida que não encontram brecha para construir seu futuro roubado e sequestrado pelos poderes autoritários de qualquer espécie.

            Marielle é a jovem mãe solteira, negra e pobre, cria da Maré que educou sozinha a filha Luyara; disputou um lugar na universidade graças ao vestibular comunitário; terminou a graduação em Ciências Sociais na melhor universidade privada do país – a PUC-Rio; fez mestrado em Administração em uma Universidade Federal passando à frente de vários concorrentes. 

            É a líder comunitária que entrou na política e teve uma carreira ascendente. Candidata pela primeira vez, teve 46 mil votos, sendo a quinta mais votada para a Câmara Municipal. É aquela que não se acomodou com as conquistas que realizou apenas para subir na vida e ganhar mais dinheiro.  Sua vocação era pública, sua vida pertencia a seu povo e a ele foi dada até o fim.

            Com o país inteiro mobilizado, chorando sua morte e assumindo suas bandeiras, começou sua segunda tentativa de assassinato: a difamação.  Inventaram sobre ela, sua vida privada, seu passado, inverdades destrutivas no intento de denegrir sua figura e obscurecer a grandeza de sua vida e sua morte.  Os que a legitimavam e defendiam passaram a ser insultados também com discursos cheios de ódio e amargura.  Desde padres que celebravam missas até jornalistas e políticos. 

            Tudo isso só faz ressaltar ainda mais a estatura dessa mulher extraordinária.  Sua trajetória e coerência admiráveis continuam surpreendendo positivamente todos que dela vão tomando conhecimento progressivamente. Cada difamação desmentida a faz crescer e se destacar.  Os esforços de seus detratores vão sendo minimizados e aparecendo em toda a sua mesquinharia e desonestidade.

            Aquelas balas, cara Marielle, que miraram e atingiram o centro de sua vida para destruí-la chegaram atrasadas.  Suas palavras e seu testemunho já tinham sido plantados em todos esses milhões de brasileiros que hoje vão às ruas chorar sua perda e animar-se reciprocamente para continuar sua luta.

            Como sua família - de formação católica, - bem disse em alguma entrevista, não é hora de abrigar sentimentos de ódio e vingança.  Mas é hora, sim, e muito, de lutar contra a segunda morte que querem lhe dar.  E levantar alto suas bandeiras que inspiram a todos para transformar a realidade sórdida que vivemos hoje em nosso país.


Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão (Edusc)

Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 23 de março de 2018

COMO O PAPA FRANCISCO TERMINA A IGREJA SÅO OCIDENTAL E COMEÇA A IGREJA UNIVERSAL




por Leonardo Boff

Passaram-se já cinco anos do papado de Francisco, bispo de Roma e Papa da Igreja universal. Muitos fizeram balanços minuciosos e brilhantes sobre essa nova primavera que irrompeu na Igreja. De minha parte enfatizo apenas alguns pontos que interessam à nossa realidade.

O primeiro deles é a revolução feita na figura do papado, vivida em pessoa por ele mesmo. Não é mais o Papa imperial com todos os símbolos, herdados dos imperadores romanos. Ele se apresenta como simples pessoa como quem vem do povo. Sua primeira palavra de saudação foi dizer aos fiéis”buona sera”: boa noite. Em seguida, anunciou-se como bispo de Roma, chamado a dirigir no amor a Igreja que está no mundo inteiro . Antes de ele mesmo dar a benção oficial, pediu que o povo o abençoasse. E foi morar não num palácio – o que teria feito chorar Francisco de Assis – mas numa casa de hóspedes. E come junto com eles.

O segundo ponto importante é anunciar o evangelho como alegria, como superabundância de sentido de viver e menos como doutrinas dos catecismos. Não se trata de levar Cristo ao mundo secularizado. Mas descobrir sua presença nele pela sede de espiritualidade que se nota em todas as partes.

O terceiro ponto é colocar no centro de sua atividade três pólos: o encontro com o Cristo vivo, o amor apaixonado pelos pobres e o cuidado da Mãe Terra. O centro é Cristo e não o Papa. O encontro vivo com Cristo tem o primado sobre a doutrina.

Em vez da lei anuncia incansavelmente a misericórdia e a revolução da ternura, como o disse, falando aos bispos brasileiros em sua viagem ao nosso país.

O amor aos pobres foi expresso na sua primeria intervenção oficial:”como gostaria que a Igreja fosse a Igreja dos pobres”. Foi ao encontro do refugiados que chegavam à ilha de Lampeduza no sul da Itália. Ai disse palavras duras contra certo tipo de civilização moderna que perdeu o sentido da solidariedade e não sabe mais chorar sobre o sofrimento de seus semelhantes.

Suscitou o alarme ecológico com sua encíclica Laudato Si:sobre o cuidado da Casa Comum (2015), dirigida a toda a humanidade. Mostra clara consciência dos riscos que o sistema-vida e o sistema-Terra correm. Por isso expande o discurso ecológico para além do ambientalismo. Diz enfaticamente que devemos fazer uma revolução ecológica global(n.5). A ecologia é integral e não apenas verde, pois involucra a sociedade, a política, a cultura, a educação, a vida cotidiana e a espiritualidade. Une o grito dos pobres com o grito da Terra(n. 49). Convida-nos a sentir como nossa a dor da natureza, pois todos somos interligados e envolvidos numa teia de relações. Convoca-nos a “alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo….uma mística que nos anima, nos impele, motiva e encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária”(n. 216).

O quarto ponto significativo foi apresentar a Igreja não um castelo fechado e cercado de inimigos, mas um hospital de campanha que a todos acolhe sem reparar sua extração de classe, de cor ou de religião. É uma Igreja em permanente saida para os outros especialmente para as periferias existenciais que grassam no mundo inteiro. Ela deve servir de alento, infundir esperança e mostrar um Cristo que veio para nos ensinar a viver como irmãos e irmãs, no amor, na igualdade, na justiça, abertos ao Pai que tem características de Mãe de misericórdia e de bondade.

Por fim, mostra clara consciência de que o evangelho se opõe às potências desse mundo que acumulam absurdamente, deixando na miséria grande parte da humanidade. Vivemos sob um sistema que coloca o dinheiro no centro e que é assassino dos pobres e um depredador dos bens e serviço da natureza. Contra esses tem as mais duras palavras.

Dialoga com todas as tradições religiosas e espirituais. No lava-pés da Quinta-Feira Santa estava uma menina muçulmana. Quer as Igrejas, co m suas diferenças, unidas no serviço ao mundo especialmente aos mais desamparados. É o verdadeiro ecumenismo de missão.

Com esse Papa que “vem do fim do mundo” se encerra uma Igreja só ocidental e começa uma Igreja universal, adequada à fase planetária da humanidade, chamada a encarnar-se nas várias culturas e construir ai um novo rosto a partir da riqueza inesgotável do evangelho.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escreveu Francisco de Assis-Francisco de Roma, a irrupção da primavera, Mar de Ideias, Rio 2013.

quinta-feira, 22 de março de 2018

TELEFONEMA DO PAPA A FAMÍLIA DE MARIELLE NÃO TEVE INFLUÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL


 
Frei Betto

        Na missa de sétimo dia por Marielle Franco, dia 20, celebrada na igreja Nossa Senhora do Parto, no centro do Rio, Dona Marinete da Silva, mãe da vereadora assassinada, revelou que a família recebeu telefonema do papa Francisco manifestando solidariedade e afeto. Marielle participou da Pastoral de Juventude e sua mãe, devota de Nossa Senhora Aparecida, foi ministra da Eucaristia na Maré.
        A Igreja Católica no Brasil não teve nenhuma influência no gesto de compaixão do papa Francisco. Luyara, filha de Marielle, escreveu ao pontífice dois dias após o assassinato da mãe, e fez a carta chegar às mãos dele por meio do professor argentino Gustavo Vera, amigo de Francisco e presidente da Fundación Alameda, dedicada ao combate do tráfico de pessoas. Participou da articulação Lucas Schaerer, do Partido do Bem Comum, assessor de comunicação da fundação.
        A atitude de Francisco se contrapõe ao silêncio da direção da CNBB e a ausência de autoridades católicas em manifestações e cultos em homenagem à vereadora. A única nota de protesto ao assassinato e à violência veio do Regional Leste 1 da CNBB e, assim mesmo, assinada pela “assessoria de imprensa”.
        Alguns católicos manifestaram nas redes digitais indignação pela nota do Regional, enfatizando que Marielle defendia o direito ao aborto, à união homoafetiva e era mãe solteira. Em 2015, o papa Francisco foi enfático: “Não existe mãe solteira, pois mãe não é estado civil.”
        A tímida reação de autoridades católicas do Brasil frente ao brutal assassinato de Marielle e Anderson contrasta com a história da CNBB durante a ditadura militar, quando reagiu publicamente em defesa dos direitos de comunistas e ateus perseguidos, exilados, presos ou assassinados. Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo, tomou a si a defesa de Vladimir Herzog, judeu e comunista, a ponto de celebrar missa em memória dele na catedral da Sé. Interpelado por que o fazia, respondeu: “Jesus também era judeu.”
        Jesus jamais discriminou pessoas que divergiam dele ou viviam em contraposição aos valores que ele propagava. Acolheu o centurião romano, defendeu a mulher adúltera, louvou o gesto afetuoso da prostituta que lhe perfumou os pés, aceitou jantar na casa do opressor Zaqueu.
        E ensinou que toda pessoa, não importa o que faz ou como pensa, é templo vivo do Espírito de Deus.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.

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quarta-feira, 21 de março de 2018

JESUS TEVE MEDO DE MORRER?

Por Eduardo Hoornaert

Dentro de pouco, a liturgia cristã celebra a paixão e morte de Jesus.  Uma morte horrenda. Difícil imaginar uma morte mais cruel. Ora, num determinado momento de sua ação junto ao povo, ele deve ter visualizado a perspectiva desse horror, pois não desconhecia que as autoridades judaicas, já resolvidas a eliminá-lo, não hesitariam a apelar às autoridades romanas, que por certo aplicariam a crucifixão, destino comum de dissidentes e opositores ao sistema.

Diante disso é normal que se faça a pergunta: ‘Jesus teve medo de morrer?’. Essa pergunta pode soar estranha e inusitada, para alguns até incômoda ou mesmo repreensível, pois estamos tão acostumados a elevar a figura de Jesus acima da comum condição humana, que mal o imaginamos tendo medo ou sentindo insegurança. Há toda uma cristologia que parte da ideia que Jesus teria assumido a tarefa sobre-humana de enfrentar livremente uma morte violenta para ‘remir’ ou ‘salvar’ a humanidade, ou seja, livrá-la do pecado. Mas vamos ao caso: será mesmo que estava nos planos de Jesus, desde o início, enfrentar uma morte violenta para salvar a humanidade?  Eis a pergunta que leva à reflexão histórica que aqui proponho.

1. Consideremos em primeiro lugar as prováveis reações dos discípulos a constatar o fracasso da vida de Jesus, um fracasso em que eles estavam envolvidos. Não precisa se aprofundar muito nos primeiros textos para neles sentir o clima de aversão, misturado a vergonha (na última hora todos os discípulos fugiram), repulsa, medo e indecisão (a cena dos discípulos de Emaús). Não era por menos. Na época, entre os judeus, ninguém olhava para um crucificado, que não só era um condenado, mas também um rejeitado pela sociedade. Morria só, no mais completo abandono. Não se enterrava um crucificado. O corpo ficava dependurado na cruz, às vezes durante dias, até que aves de rapina ou cachorros devoravam as carnes, enquanto ossos e crânio eram finalmente jogados num monte de sujeira chamado ‘golgotha’ (em aramaico: ‘caveira’). Não há palavras que conseguem expressar tanto horror.  

No meio da mais profunda aflição, os discípulos procuravam alívio na Bíblia, conforme tinham aprendido nas sinagogas. E encontraram um texto do profeta Isaias:

Desfigurado, irreconhecível,
Não tendo mais nada de humano.
Desprezado, rejeitado pelos homens.
Um homem atormentado, sofredor,
Uma face velada para nós,
Menosprezado, sem valor para nós.

Isaías 52, 13 – 53, 12 evoca a figura misteriosa de um ‘sofredor de Ihwh’, um servo de Deus que vai até as últimas consequências e oferece sua vida. Essa citação de Isaías já deve ter circulado nas comunidades por volta dos anos 70 (ou seja, aproximadamente 40 anos após a morte de Jesus), pois já aparece no Evangelho de Marcos. Ela causou alívio entre os discípulos. As palavras de Isaías mostraram que a morte de Jesus não ocorreu em vão, mas estava nos planos de Deus. Jesus ‘Cordeiro de Deus’, sofredor inocente, morre pelos culpados, doentios, atormentados, criminosos, errantes e rebeldes:

Ora, ele carrega nossas doenças,
Ele leva nossos tormentos.
Ihwh o faz endossar nosso crime comum.
Ele devolve a justiça às multidões
as justifica (retira as ofensas)
pois endossa os crimes da multidão,
É considerado rebelde
Enquanto toma sobre si
Os erros da multidão
E intervém pelos rebeldes (Isaías, ibidem).

Eis os versos que voltam cada ano nas leituras das celebrações da Semana Santa. Será mesmo que eles representam o pensamento do próprio Jesus?

2. Vejamos isso de mais perto. Nos evangelhos só aparecem dois tópicos em que Jesus parece interpretar sua paixão e morte na linha da profecia de Isaías.  Em Mateus 8, 16-17 (a cena se passa em Cafarnaúm) se lê: de noite, demoníacos lhe foram apresentados em grande número. Com uma só palavra, ele expulsou os sopros maléficos. Ele cuidou de todos que sofriam. Assim se realizou a palavra do Profeta Isaías: ‘ele tomou sobre si nossas enfermidades e se encarregou de nossos males’. Em Lucas 22, 37 encontramos uma reflexão parecida: pois a seguinte passagem das Escrituras deve se realizar em mim: ‘ele é contado entre os criminosos’. É verdade, o que se diz de mim (no Profeta Isaías) vai se realizar agora. Conforme se lê neste texto, o próprio Jesus teria declarado que as palavras do profeta se realizariam com ele. Mas quando situamos esses dois textos no contexto global das posturas assumidas por Jesus, tais quais aparecem nos evangelhos, fica difícil se imaginar que Jesus tenha dito as palavras que Lucas lhe atribui e que Mateus comenta a seu respeito. Será mesmo que as palavras de Isaías expressam o modo em que Jesus teria encarado sua morte, ou se trata de uma atribuição posterior? Hoje há consenso, entre exegetas, no sentido de qualificar os referidos textos como ‘redacionais’, ou seja, como interpretações a posteriori (Schröter, J. & Christine Jacobi, Chr., Jesus Handbuch, Mohr Siebeck, Tübingen, 2017, 425-431).

2. Como então explicar a recorrência, nos primeiros escritos cristãos, de temas como ‘Jesus ‘sofredor’ e ‘Jesus salvador’?  Aqui temos de nos lembrar que esses escritos foram redigidos em sociedades baseadas no escravismo. Em meio aos horrores causados pelo escravismo, que todos conhecemos, apareciam casos excepcionais de desprendimento, no sentido de pessoas importantes na sociedade se identificar com seus escravos, principalmente os mais pobres, por puro interesse humanitário. Uma identificação ‘salvadora’. Trata-se da chamada ‘redenção (salvação) de cativos’ por meio do rebaixamento voluntário de cidadãos livres. É claro que os raríssimos casos de ‘redenção de cativos’ emocionavam as pessoas e eram considerados amor humano no sentido mais alto do termo.

Já nos anos 50, o apóstolo Paulo, certamente inspirado por Jesus, declara que está disposto a se rebaixar até a condição de escravo em amor ‘por todos’:

Sim, livre diante de todos
Eu me fiz escravo de todos (1Cor 9, 19).

Encontramos os mesmos acentos de amor supremo pelos rejeitados na Primeira Carta de Pedro, assim como nas Cartas de Clemente Romano e de Inácio de Antioquia. Nessas Cartas se escreve que o líder humilde é um líder ‘escravizado’. Ele passa a viver em meio aos escravos, está disposto a ‘perder a vida’ para ‘salvar’ a vida de outras pessoas. É um ‘salvador’.

A partir da segunda parte do século II, o tema de ‘Jesus salvador’ ganha corpo e se desenvolve rapidamente, embora nunca fosse dogmaticamente definido. A questão é saber se o próprio Jesus entendeu sua morte desse modo. Se consultamos os evangelhos a esse respeito, topamos com dois textos que parecem confirmar esse pensamento. Em Marcos 10, 45 se lê: Quem quiser ser o primeiro entre vocês, que seja o escravo de todos. Pois o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, dar sua vida e pagar por todos (Mc 10, 45). O que chama a atenção é que, aqui de novo, nas últimas palavras (‘dar sua vida e pagar por todos’), aparece uma citação de Isaías 53, 10. Um segundo texto, que se pode aduzir, tem igualmente a marca de Isaías: então ele tomou um cálice, deu graças e o passou para eles. Todos beberam dele. Ele disse: ‘e esse vinho é meu sangue, o sangue da aliança, derramado por todos’ (Mc 14, 24). As palavras ‘derramado por todos’ são uma citação de Isaías 53, 11. Elas, mais uma vez, sugerem que se trate aqui de uma reflexão feita após a morte de Jesus. Fica difícil pensar que Jesus as tenha pronunciado, pois os próprios evangelhos indicam que Jesus tenha entendido sua morte de modo diferente. Não como a realização de profecias acerca de um ‘servo sofredor’ ou um ‘salvador da humanidade’.

3. Como, então, ele teria reagido quando soube que estava ‘marcado para morrer’? Os evangelhos deixam claro que ele entendeu que, assim como os profetas foram discriminados, rejeitados, ameaçados de morte e por vezes até assassinados, ele teria o mesmo destino. Jesus resolveu seguir o destino dos profetas. No Segundo Livro das Crônicas se lê: sem se cansar, o Deus de seus pais lhes enviou seus mensageiros. Mas eles se riram desses profetas, desprezaram e até ridicularizaram suas palavras (2 Cr 36, 15-16). E Jeremias: é sua própria espada que acaba com seus profetas, como um leão que devora tudo (Jr 2, 30). E ainda Neemias: eles se rebelaram e se revoltaram contra você (Ihwh), jogaram nas costas suas instruções e mataram seus profetas (Ne 9, 26). Jesus é interiormente habitado por uma paixão profética, como Elias: fico agitado por uma paixão violenta por Ihwh, Deus Tseva’ot, pois os israelitas abandonaram a aliança (1Rs 19, 10). De outro lado ele sabe o que o espera quando decide, contra o conselho de Pedro, ir a Jerusalém para a Festa da Páscoa: ‘Jerusalém, Jerusalém, que mata os profetas e apedrejas os que lhe são enviados’ (Lc 13, 34). Na parábola dos vinhateiros, Jesus faz uma alusão à sua própria morte. Os que alugam a vinha, ao ver o filho do patrão chegar, dizem entre si: ‘vamos matá-lo. A nós a herança’. Eles o dominam (o filho do proprietário da vinha), o matam e jogam seu corpo fora da vinha’ (Mc 12, 7-8).
Sim, Jesus tem medo de morrer. Mas não abandona a missão profética, como fica claro num dos textos mais emocionantes de todos os evangelhos, que descreve a cena no Jardim das Oliveiras: ele caiu por terra. Rezou para que, se for possível, a hora passasse longe dele. ‘Aba, Pai, você pode tudo: afaste de mim esse cálice. Mas não, não o que eu quero, mas o que você quer, você’ (Mc 14, 35-36). Impressionante como, ao mesmo tempo em que Jesus confessa ter medo de morrer, ele chama Deus de pai (Aba em aramaico). Um sinal de confiança sem limites.

4. Chamar Deus de pai muda tudo. O realmente novo, em Jesus, consiste em ver em Deus um pai e reagir como um filho pequeno, com confiança total. Nada da imagem ancestral de um pretenso Senhor todo-poderoso, exigente, implacável e justiceiro, que condena ao inferno os que não o respeitam. Muitos teólogos insistem nisso: a relação de Jesus com Deus pai misericordioso constitui o cerne da mensagem evangélica. O biblista alemão Joaquim Jeremias mostrou que, para o stablishment judeu da época, esse tratamento filial em relação a Deus era sacrilégio, abominável falta de respeito pela majestade divina, como se evidenciou no processo contra Jesus, levado a cabo pelo Sinédrio, sob a autoridade do Sumo Sacerdote Caifás. Estar diante de Deus como uma criança, com confiança absoluta no ‘Pai que está nos céus’, isso não passa, aos olhos dos sacerdotes.

Quando se interpreta Jesus como um profeta de Deus pai, qualquer hipótese de que Jesus teria se comportado como redentor da humanidade se esvai. Pois essa hipótese pressupõe um Deus justiceiro, exatamente uma imagem de Deus que Jesus desconhece. Não consigo entender como a narrativa de Jesus Salvador tenha alcançado um sucesso tão duradouro ao longo da história do cristianismo, já que repousa sobre a fé num Deus justiceiro e implacável, que ameaça condenar eternamente os pecadores. Esse não é o Deus de Jesus, nem de Orígenes, nem dos melhores teólogos. Mas é de se entender que os discípulos não tenham captado de vez a dimensão verdadeira da fé de Jesus em Deus pai, como se pode compreender que, até hoje, ainda se fale em ‘Senhor Deus’, ‘Deus todo-poderoso’, ‘Deus Juiz dos vivos e dos mortos’. É que ainda persiste, no imaginário cristão, a narrativa antiquíssima, ancestral, de um Deus Senhor soberano, implacável, justiceiro, ciumento, mandão e onipotente, até cruel e vingativo, que em última análise deriva das religiões do Oriente Médio, que influenciaram poderosamente a redação da Bíblia. Até hoje, o cristianismo ‘patina’ entre o antigo Deus das religiões do Oriente Médio e o Deus pai de Jesus.

5. ‘No momento em que Jesus morre na cruz, ele ressuscita’, escreve o Padre Roger Lenaers em seu livro ‘Jesus, um homem diferente de nós?’ (Paulus, São Paulo, 2018). Não, a humanidade não se engana em preservar, honrar e praticar, já ao longo de dois mil anos, a memória desse homem. É que ele é mesmo diferente de nós. Não há memória, pelo menos na cultura ocidental, de um homem que tenha tomado posicionamentos tão inovadores e ao mesmo tempo tão acertados acerca de nossa vida neste planeta. Posicionamentos que os cristãos não param de investigar, embora nem sempre consigam viver em conformidade com eles. O modo em que Jesus morreu e o motivo pelo qual ele foi julgado culpado de morte, são coisas tão escandalosamente aberrantes que não é possível pensar que Deus tenha concordado com eles. Deus ressuscitou Jesus na hora da morte. Jesus vive.


 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

terça-feira, 20 de março de 2018

A CRUZ DE JESUS E OS RISCOS DO MARTÍRIO

Por Marcelo Barros

No Brasil, em uma semana, tivemos o martírio de três pessoas ligadas aos movimentos sociais. Na noite da 4a feira, 14, no centro do Rio de Janeiro, foram assassinados a vereadora Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes. Três dias antes, no Pará, mataram o militante social Pedro Sérgio Almeida, representante da Associação dos Caboclos e Quilombolas da Amazônia. Ele cobrava da prefeitura de Macarema a falta de licença ambiental da empresa Hydro que joga detritos nos rios do Pará. 

Vivemos em tempos de martírio. As pessoas que defendem o projeto da Justiça e da Vida para todos correm riscos e podem ser mortas. Quem é cristão não pode deixar de ligar essas mortes violentas ao martírio de Jesus que, nesses dias, nas suas liturgias, as Igrejas revivem. 

Não deixa de ser estranho: as Igrejas celebram o memorial da paixão de Jesus. No entanto, quem parece estar realmente vivendo a paixão e seguindo os passos de Jesus no seu testemunho de dar a vida pelos outros, ao menos atualmente, parece não ser tanto religiosos/as ou pessoas que dizem fazer isso por causa da fé. Na América Latina, dos anos 60 até os anos 90, milhares de pessoas deram a vida por causa da justiça, em meio às lutas sociais. Dessas, muitas se proclamavam cristãs. No dia 24 de março, celebramos a memória do martírio do bispo Oscar Romero, assassinado em El Salvador, no momento em que celebrava a ceia de Jesus. Nos anos mais recentes, esse tipo de martírio continuou ocorrendo e acontece até hoje. Diariamente, há pessoas que morrem como vítimas da injustiças estruturais que dominam o mundo e esse continente. São mártires. No entanto, parece que, atualmente, o martírio está acontecendo mais fora dos ambientes eclesiais. Isso não diminui em nada o mérito e a santidade desses irmãos e irmãs que, mesmo sem terem vinculação com a fé religiosa, dão a vida pelas causas da justiça e da libertação. Conforme o evangelho, Jesus afirmava que pertence a Deus não quem confessa o seu nome e sim quem realiza a sua vontade que é de justiça e vida para todos.

Lamentável é que as Igrejas celebram e pregam a doação da vida, mas parecem ainda distantes dessa consagração que tantas pessoas sem falar em Deus, vivem no dia a dia da vida, nas periferias urbanas, na luta das mulheres negras, na causa dos povos indígenas e na defesa das águas e dos rios.  Do mesmo modo, é estranho que os irmãos e irmãs que, por causa de sua fé, nas últimas décadas, deram a vida pelo povo e pela justiça, muitas vezes, não contaram com o apoio e compreensão dos próprios pastores da Igreja. Mesmo Dom Oscar Romero não era bem compreendido por outros bispos e pelo Vaticano. Isso nos faz perguntar por que a Igreja que celebra a paixão de Jesus tem tanta dificuldade em reconhecer e mais ainda em viver o martírio real que o povo sofre a cada dia, martírio que, na época de Jesus, se concretizou na cruz na qual o nosso mestre e Senhor deu a sua vida. Será que esse distanciamento da vida real das lutas do povo por parte de muitos eclesiásticos se dá porque continuam compreendendo a cruz e a morte de Jesus como um sacrifício religioso oferecido a Deus para salvar as pessoas dos seus pecados? Geralmente, todos aceitam que a Páscoa do primeiro testamento foi de conteúdo claramente social e político (a libertação dos hebreus do Egito). No entanto, interpretam a Páscoa de Jesus no plano meramente espiritualista. Cristo é visto como o servo sofredor de Deus que, como dizia o profeta Isaías, tomou sobre si as nossas faltas e morreu por nossos pecados. É o Cordeiro de Deus, cordeiro da nova Páscoa que, por sua morte, nos liberta espiritualmente.

Até hoje, na maioria das Igrejas, padres e pastores ligam o motor automático e, a cada ano, repetem o mesmo discurso. No entanto, atualmente, essa forma de interpretar a fé corre o risco de apresentar Deus como uma divindade cruel que, para se reconciliar com o mundo, precisa da morte do seu próprio Filho. Além disso, essa teologia separa a morte de Jesus das outras mortes violentas, ocorridas pela justiça e pela libertação. Se a morte de Jesus foi o sacrifício do Filho de Deus para salvar a humanidade de seus pecados nada tem a ver com as cruzes nossas de cada dia. Atualmente, é preciso superar esse modo de compreender a fé e a Páscoa. Apesar dos evangelhos lhe emprestarem palavras que podem ser compreendidas no sentido sacrificial, parece que nem o próprio Jesus, inserido na cultura e religião hebraicas, podia pensar assim.  A cruz era o suplício que os romanos reservavam para os escravos rebeldes e prisioneiros políticos que lutavam contra a ordem do Império. Com essa acusação, referendada pelas autoridades religiosas, ligadas ao poder político que dominava aquela região, Jesus foi condenado a morrer na cruz. 

A morte de Marielle, Anderson  e Pedro, assim como a de Oscar Romero e de tantos outros/as nos desafiam a compreender e celebrar a memória da morte de Jesus como martírio e não como sacrifício. Aí sim, a fé na ressurreição de Jesus nos faz ver além da morte. A caminhada da Igreja de base e sua inserção nas lutas de libertação nos ensinam que o martírio não é apenas uma forma de morrer, mas, principalmente, uma forma de viver. Somos testemunhas de que esse mundo tem remédio e apesar de todas as forças do mal, seguiremos nessa caminhada. No 6º Encontro Intereclesial de CEBs, em Trindade (1986), as comunidades afirmaram: “Nós queremos nossos mártires vivos e não mortos”. Cremos na ressurreição. Por isso, através da continuidade da luta, podemos, hoje,  dizer: Viva Marielle, Anderson, Pedro e todas as testemunhas do mesmo projeto pascal de Jesus. 


Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.


segunda-feira, 19 de março de 2018

CINCO ANOS DE FRANCISCO

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Já lá se vão cinco anos que a fumaça branca subiu nos céus de Roma e anunciou a eleição de um novo papa. Pouco depois foi anunciado seu nome à multidão que ali esperava: Jorge Mario Bergoglio, cardeal de Buenos Aires, que escolheria para seu pontificado o nome de Francisco. 

            Ao dirigir-se aos fiéis que o saudavam efusivamente, chamava a atenção a simplicidade de suas vestes brancas, apenas com um crucifixo de metal ao peito.  Nada de casulas bordadas ou ornamentos luxuosos.  Apenas a simpatia de um “boa noite” e o pedido enternecedor de que o povo o abençoasse.

            Ao longo desses cinco anos, o Papa que veio “do fim do mundo” não fez mais que confirmar esta primeira impressão que deixou para uma Praça de São Pedro lotada e emocionada. A simplicidade tem sido sua marca, a comunicação franca, direta e alegre seu modo habitual de proceder. Nada de solenidades excessivas e distanciamentos hierárquicos.  Mas uma maneira autêntica e simpática de estar perto das pessoas. 

            Para muitos católicos, a impressão foi, desde o início, que o Concílio Vaticano II estava de volta: presente nas palavras, nos gestos e nas atitudes do novo pontífice.  Respirava-se novamente os ares de diálogo e abertura que caracterizaram a revolução iniciada pelo bom e santo João XXIII. Os pobres e a justiça brilharam outra vez como prioridades da Igreja.  A esses pobres de muitos rostos – sem teto, refugiados, deficientes, abandonados – o Papa tem voltado de modo privilegiado sua atenção e cuidado pastoral. 

            Para os não católicos, os de outras religiões ou não crentes, o papado atual tem trazido positivas novidades.  Certamente jamais haviam visto um papa tão próximo, tão familiar. E seguramente não esperavam ver um chefe de estado com tamanha habilidade diplomática e tanta liderança.  Para muitos que se encontram fora da Igreja, Francisco é, sem dúvida, um líder.  Para estes e para todos, trata-se  da única liderança mundial positiva no atual momento da história. 

            Entre as vítimas da injustiça no mundo atual há uma que se destaca no pontificado de Francisco: os migrantes.  Diante da massa de homens e mulheres que atravessam continentes em busca de uma vida melhor para si e suas famílias e que terminam muitas vezes mortos afogados no Mar Mediterrâneo, há todo um serviço organizado de acolhida e atendimento, que ocupa a linha de frente da ação do Vaticano regido por Francisco. 

            Sendo chefe de uma Igreja que muitas vezes dá a impressão de estar fechada e distante dos problemas profundos e íntimos da humanidade, o Papa tem traçado uma linha mestra composta de uma só palavra: misericórdia.  Assim o documento Amoris Laetitia, que trata da família e do amor é perpassado do começo ao fim por esse olhar que não é de juízo e punição, mas de acolhida, compreensão, escuta e compaixão. 

            Para os que acompanham seu itinerário cotidiano, feito de surpresas e novidades contínuas que enlouquecem a assessoria de imprensa, Francisco tem mudado radicalmente a imagem do papado como instituição.  E os jornalistas e fotógrafos correm sem cessar atrás desse Papa que sai do Vaticano e anda pelas ruas, que senta para comer um sanduíche ao lado do guarda suíço, que instala duchas e máquinas de lavar roupa para os mendigos de Roma.  E que além disso carrega a própria maleta, vai a uma ótica para trocar os óculos e usa banheiros públicos quando deles sente necessidade. 

            Para os pequenos e desvalidos de toda sorte, Francisco, o Papa das surpresas é todo ternura e carinho.  Beija as crianças, desce do papamóvel para segurar a mão e abençoar uma guarda que levou um tombo do cavalo, acaricia os doentes.  E diz às jovens mães com bebês de peito que choram durante a missa que amamentem seus filhos, pois se choram é porque têm fome. 

            Após cinco anos desse pontificado surpresa, evidentemente Francisco é amado e admirado por muitos, mas também não tão benquisto e combatido por alguns.  Há quem se sinta incomodado por sua maneira de ser e de pensar.  Sua ousadia semeia o temor entre aqueles que temem perder a segurança da vida que levam e não desejam sair da zona de conforto.  

            Ele, no entanto, avança firme, sem voltar atrás nas decisões tomadas que lhe parecem corretas.  Segue adiante com seu sorriso e olhar radiante.  Sendo um chefe religioso, o Papa tem se mostrado como alguém profundamente humano. 

           Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de  Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.
 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 16 de março de 2018

MARIELLE E ANDERSON VIVEM

A imagem pode conter: 2 pessoas, pessoas em pé e atividades ao ar livre

por Leornado Boff e Mårcia Miranda


Dois sentimentos nos tomam neste momento: de indignação e de respeito.

Indignação pela execução traiçoeira feita à lider política da comunidade da Maré, Marielle Franco, mulher, negra, pobre que sempre lutou pela dignidade e direitos desses abandonados e invisíveis. Não é à toa que aqueles que tiram a vida de tantos, tiraram também a vida da incansável defensora da vida Mirelle Franco e de seu motorista Anderson. Eles esquecem que agora ele viraram semente de tantas e tantas outras Marielles e Anderson que brotarão no seio do povo que já não aceita a humilhação e o desprezo.

Respeito diante dessa pessoa vitimada, intencionalmente, com 4 tiros na cabeça porque suas denúncias corajosas atingiam muitos que vivem do crime. Sua voz era potente demais para ser suportada. Por isso devia ser calada. Mas todos os que os acompanhamos não nos calaremos: persistiremos em denunciar a violência praticada pelo crime organizado e por um governo de exceção que escolheu o pior caminho: enfrentar com mais violência a violência instalada. Isso só produzirá uma espiral de violência.

Marielle se transformou para todos nós num arquétipo da mulher que sempre soube unir justiça social com política, sorriso irradiante e determinação na luta, ternura com vigor. É o legado imorredouro que ela nos deixa.

Marielle e Anderson vivem. Por isso todo o nosso respeito, solidariedade aos familiares e conforto à militância do PSOL e a todas as pessoas que lutam pela mesma causa.

quinta-feira, 15 de março de 2018

PRIVATIZAÇÃO DA POLÍTICA


por Frei Betto

       O ser humano ainda não encontrou forma melhor de se organizar em sociedade fora da atividade política. Como observou Aristóteles, ela é inerente à nossa condição de seres sociais.

       Política diz respeito à coletividade, ao bem comum. Historicamente tem sido apropriada para servir a interesses pessoais e corporativos. É o caso da política dos EUA, dominada pelos donos do dinheiro. Em muitos países foi apropriada por oligarquias, ditadores, partidos, bancos, quadrilhas de corruptos, restando ao povo o papel de figurantes que recebem apenas migalhas caídas da mesa farta dos poderosos.

       Estamos em ano de eleições. Hora de debater os rumos da nação, o aprimoramento da democracia, as reformas estruturais. Temo que o discurso eleitoral resvale do público ao privado. Em vez de discutir as graves anomalias brasileiras, como desigualdade social, falta de saneamento, transporte público, saúde e educação de qualidade, as campanhas darão prioridade aos temas caros ao moralismo vigente: “ideologia” de gênero, orientação sexual, censura etc.

       A despolitização da política é uma artimanha para impedir a população de ter consciência de classe e assumir seu protagonismo histórico. Graças aos sofisticados recursos de merchandising, já não se discutem programas de governo, e sim a imagem messiânica de um avatar que, como Trump, nunca foi político, abomina os partidos, posa de experiente administrador da iniciativa privada e, portanto, em condições de se apresentar como salvador da pátria...

       Érico Veríssimo escreveu, no clássico romance Incidente em Antares, que aquilo sobre o qual ninguém fala ou escreve não existe. Esse encobrimento da realidade se agrava na era da virtualidade, na qual se rompe o limite entre o real e o virtual, a ponto de a versão do fato predominar sobre o fato. Uma mentira exaustivamente repetida acaba sendo tida como verdade.

       O eleitor terá que fazer muito esforço para discernir candidatos e propostas, consciente de que nem tudo que reluz é ouro. Diante do quadro eleitoral, terá como ponto de partida a resposta a esta pergunta: votarei para melhorar a vida do povo brasileiro ou em função de meus interesses pessoais? A resposta define o perfil ético do eleitor.

       Aqueles que votarão tendo em vista seus negócios e ambições haverão de eleger os de sempre: corruptos, nepotistas e candidatos da bancada do B (bola, bala, boi, banco e Bíblia). Já os que votarão para aprimorar nossa democracia devem estar atentos ao programa dos partidos e candidatos, à vida pregressa dos que esperam seu voto, aos vínculos que efetivamente os aproximam dos movimentos sociais progressistas.

      A política brasileira foi privatizada e o atual governo fez retroceder direitos sociais conquistados nos últimos 70 anos. A cereja do bolo dessa privatização do público seria a reforma da Previdência, uma antirreforma, que teria por objetivo engordar os fundos de pensão e os planos de previdência privada, desobrigando o Estado de cuidar dos aposentados.

       Votemos com a cabeça, não com o fígado.


Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.
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terça-feira, 13 de março de 2018

RESISTIR É CRIAR. RESISITIR É TRANSFORMAR




por Marcelo Barros

Esse é o tema que reúne milhares de pessoas de todo o mundo, vindos a Salvador, BA, para, a partir dessa 3a feira, 13 de março, participar de mais um Fórum Social Mundial. Nesse momento, o mundo vive um retrocesso social e político, como há décadas, não se percebia. Por mais estranho que pareça, por todos os continentes, se espalha um aumento do racismo e das discriminações sociais. Uma onda de violência atinge a sociedade como um todo, mas principalmente as pessoas e grupos que são socialmente mais frágeis, como migrantes e refugiados. Na América Latina e,  especialmente no Brasil, vivemos tempos sombrios com graves retrocessos em nossas frágeis democracias. No Brasil, os três poderes - judiciário, legislativo e executivo convivem com sucessivas e graves manifestações de corrupção, abusos de poder e privilégios, mantidos com o dinheiro público, cada vez menos aplicado para garantir o acesso de todos na mesa da dignidade cidadã. Por todo o país, espalha-se um clima extremado de ódio e intolerância que impede o diálogo e a busca de soluções que possam ser concretizadas no campo sociopolítico e econômico. Nesse contexto, a realização desse Fórum Social Mundial pode representar um grito profético da sociedade civil que aponta novos horizontes de participação cidadã e de rumos novos para a humanidade. 

O processo dos fóruns sociais começou em 2001. Naquele momento, os poderosos do mundo se encontravam nos Fóruns Econômicos Mundiais e declaravam o dogma do mercado como única solução para a sociedade internacional. Um secretário de Estado dos Estados Unidos chegou a declarar: "A guerra contra a pobreza acabou. Os pobres perderam". Para mostrar que isso não era verdade,  representantes de várias organizações sociais se uniram e iniciaram os fóruns sociais mundiais. Desde o começo, a proposta sempre foi constituir um processo descentralizado para favorecer a construção de convergências e fortalecer a possibilidade de resistências. O tema era "Um outro mundo é possível". Os primeiros fóruns respiravam um clima de otimismo e chegaram a reunir mais de cem mil pessoas de todos os continentes. Era um verdadeiro encontro da humanidade decidida a trabalhar por uma transformação da sociedade. Nos anos mais recentes, o processo sofreu um desgaste natural vindo de causas externas e do cansaço de um processo que parecia enfraquecido. Há até quem diga que o Fórum Social Mundial está esvaziado. No entanto, como não há nada em seu lugar e de todo modo, ele cumpre a função de reunir milhares de pessoas para um debate cidadão, ele mantém sua validade e importância. 

Em 2016, para o Fórum Mundial em Montreal, se dizia: "Um outro mundo é necessário. Juntos, podemos torná-lo possível!". A realização desse novo fórum em Salvador revela uma força de resistência dos movimentos alternativos à sociedade dominante e pode representar uma esperança nova para uma humanidade. 

Muitas pessoas esquecem que, no mundo antigo, o termo Igreja não indicava nenhuma religião e sim uma assembleia de cidadãos. Chamavam-se de Igrejas os conselhos de cidadãos das cidades do mundo grego. Correspondiam ao que, hoje, em nossas cidades, seria a Câmara de Vereadores. O apóstolo Paulo tomou esse termo social e político para designar as pequenas comunidades de discípulos/as de Jesus. Assim, as Igrejas nasceram com vocação de serem fóruns de cidadãos do reino de Deus. Receberam o nome de Igrejas para testemunhar que Deus tem um projeto novo para o mundo. Em sua época e sem ainda ver as Igrejas que surgiram a partir do seu movimento, Jesus de Nazaré deu a vida por esse projeto de Deus no mundo. 

Nesse fórum social de Salvador, participarão muitas pessoas ligadas a diversas religiões e a diferentes Igrejas cristãs. É bom ver que religiosos se unem ao caminho da parte mais sadia da humanidade para testemunhar que esse mundo tem remédio e é sempre possível ao amor vencer a indiferença e o egoísmo, assassinos das melhores esperanças. 

Para quem é cristão e segue a fé bíblica, a esperança não vem tanto da análise da realidade que pode ser pessimista, mas da convicção de que o Espírito sempre está presente e atuante na história. Nesses dias, vivemos a preparação para a Páscoa que recorda a libertação dos oprimidos e a ressurreição de Jesus, primícias de um mundo novo, no qual, como diz o evangelho: "Todo o universo verá a salvação" (Lc 3, 6).  

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

segunda-feira, 12 de março de 2018

UM SEXTO SENTIDO MAIOR QUE A RAZÃO

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Já dizia a compositora e cantora – mais que isso, pensadora Rita Lee – que mulher é bicho esquisito porque tem um sexto sentido maior que a razão. Não, não se trata da velha historinha machista de que o homem é a razão e a mulher, a sensibilidade; o homem é o espírito, a mulher é o corpo.  E por aí vai. Séculos de enganos e embustes com essas sandices.
No entanto, há que reconhecer que – graças a Deus! – a mulher é diferente do homem.  E aí me parece perfeita a canção de Rita Lee. Mulher sente de outro modo e isso faz com que pense de outro modo.  Tem um sexto sentido maior que a razão. E este dom que a faz ser o que é permite que traga para o meio do mundo contribuições preciosas que sem ela não existiriam.
Há mulheres que pensam.  E muito! E bem! Com rigor, com profundidade, refletindo sobre coisas sérias, ou fazendo pesquisas de ponta que vão salvar vidas.  Mas enquanto o homem tem necessidade de estar mergulhado cem por cento nas coisas sérias que faz e pensa, a mulher consegue o milagre de fazer e pensar tudo isso e também amamentar uma criança, cozinhar, enfeitar ambientes com flores. Plural, múltipla, a atenção da mulher se dirige a mais de uma coisa ao mesmo tempo, sem que isso prejudique a qualidade com que assimila e trata uma e outra.
Para uma mulher, viver momentos de absoluta transcendência e elevada contemplação jamais foi incompatível com estar com os pés bem fincados no cotidiano, beijando os filhos, arrumando a casa e cuidando de quem precisa.  É Adélia Prado, a grande poeta, quem diz: “aos domingos bato o osso no prato chamando o cachorro. E atiro os restos”. A mesma Adélia, católica praticante, que nesse mesmo domingo certamente foi à missa e escreveu: «a missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum». E que, contemplando Jesus Crucificado na festa do Corpo de Deus, exclama em transe poético: “Eu te adoro, ó Salvador meu, que apaixonadamente me revelas a inocência da carne”.
A transcendência arrancada de sua inacessibilidade é trazida para o chão da vida e para o cotidiano mais simples e despojado.  A mulher, bicho esquisito, com seu sexto sentido maior que a razão, consegue fazer isso. Passa das coisas mais transcendentais às mais concretas sem se sentir por isso dividida, fragmentada ou diminuída. A sublime capacidade de integrar diferentes níveis da existência realizando harmoniosa síntese, este é o dom maior da mulher em meio à vida.
Que nos confirme Santa Teresa de Ávila, a grande, a mística que viveu graças inenarráveis generosamente prodigalizadas a ela pelo Deus a quem amou e que a amou infinitamente.  Ela encontrava o esposo sempre amado nos êxtases aos quais era amorosamente conduzida, mas não menos entre as panelas, cuidando das irmãs doentes, ou viajando em lombo de burro pela Espanha afora. Essa intimidade com o divino através e por meio do humano é própria não só das santas, mas de todas as mulheres em diferentes situações de vida.
Senão como entender os sentimentos e as atitudes de tantas mulheres que enfrentaram na sua fragilidade os poderes mais autoritários e cruéis da história da humanidade apenas para salvar vidas vulneráveis e ameaçadas?  A história do nazismo está cheia de exemplos. Como entender que quando todos já deram por perdida a vida do jovem envolvido com o tráfico, a mãe continue a enfrentar os traficantes ao risco da própria vida para requisitar o corpo do filho, a fim de enterrá-lo dignamente?  Essas mulheres, como todas as outras, não acreditam na morte, têm uma aliança profunda com a vida e sua fonte inexaurível. E seu sexto sentido lhes diz que a vida acaba triunfando...desde que alguém faça sua parte, inclusive elas.
A Escritura está cheia de exemplos de mulheres que mudaram o rumo da história do povo de Deus.  Desde as parteiras egípcias que mentiram descaradamente ao faraó, desobedecendo sua ordem de matar os bebês das mulheres hebreias e salvando assim todo um povo;  passando por Sara, mulher de Abraão, que depois de haver rido incrédula acreditou na promessa de Deus de engravidar na velhice e foi mãe de Isaac; chegando em Maria de Nazaré, que viveu uma gravidez sem pai, enfrentando a sociedade patriarcal de seu tempo; chegando às mulheres, que ao terceiro dia foram ao túmulo para ungir o corpo do crucificado, se depararam  com a boa nova da ressurreição e a espalharam pelo mundo afora.
Sexo frágil não foge à luta, dirá ainda Rita Lee.  O Dia Internacional da Mulher celebra aquela que permite ao mundo continuar em movimento, pois traz em seu corpo o segredo da vida. Aquela que, em comunhão com os ciclos da mãe terra, inscreve uma e outra vez no livro da vida novas letras, caracteres, narrativas e histórias.  Aquela que suspira de gozo, geme de dor, chora de tristeza ou de alegria e mantém sempre as antenas ligadas no canal do sexto sentido, para que o perfume possa ser derramado por toda parte; para que o vinho que alegra a festa não falte; para que o Infinito possa caber no finito; para que o Espírito possa fecundar a argila; para que o Criador caiba todinho em seu ventre.
A elas, a nós, um muito feliz Dia Internacional da Mulher.  Em tempos de denúncias de abusos, assédios, servidões e explorações as mais diversas; quando o Brasil é quase campeão da violência contra a mulher, é bom sentir que temos um sexto sentido maior que a razão; que nossa fragilidade é nossa força; e que o drama da Gata Borralheira terá final feliz não por causa do príncipe e do sapatinho de cristal, mas devido à capacidade de amar que caracteriza a verdadeira nobreza, perceptível no fogão ou nos salões.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
É autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.