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segunda-feira, 26 de março de 2018

MARIELLE FRANCO: QUANDO AS BALAS CHEGAM ATRASADAS




                          por  Maria Clara Lucchetti Bingemer


            Há uma semana, uma mulher negra, nascida e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro, defensora dos Direitos Humanos e dos direitos dos oprimidos e excluídos, revoluciona o país. Na letargia da crise brasileira de múltiplas dimensões, a execução da vereadora Marielle Franco, morta a tiros, leva milhões às ruas e desperta consciências, vozes e debates que pareciam sepultados pelo desalento e a alienação.

            Na noite de 14 de março, metade do país não dormiu.  Os tiros desfechados contra a vereadora que saía de uma reunião do coletivo Jovens Pretas entraram pelas janelas e aparelhos de TV, celulares e mídias de todos como dardos que rasgam o sossego da escuridão e do silêncio. 

            A outra metade acordou sobressaltada com a notícia que, a essa altura, já mobilizava milhões.  O sorriso largo de Marielle, seus olhos profundos e intensos, sua voz grave e lúcida, enfim a explosão de vida que era ela inteira, estavam presentes e estampados por toda parte.  Atos públicos, manifestações, entrevistas, debates.  O assassinato de Marielle e o de seu motorista Anderson Gomes eram e continuam sendo senão o único ao menos o principal assunto de conversa em nosso cotidiano.

            Em uma cidade que todo santo dia conhece estatísticas macabras de vários assaltos e mortes violentas, por que o dessa mulher mobilizou de tal maneira a opinião pública? Talvez aí esteja a chave da compreensão do alcance de sua morte, indissociável de sua vida. Marielle não morreu de assalto.  Nem de bala perdida.  As balas planejaram e acharam muito bem o caminho de sua cabeça tão perigosa porque inteligente, criativa e destemida.

            Marielle é mais que Marielle. Ela é muitas, ela é várias, ela é todas.  Todas nós mulheres que nela vemos uma ilustre representante e porta voz de nossos problemas e discriminações seculares.  Todos os afrodescendentes  em um país que foi o último a “abolir” uma escravidão que segue, ocupa o palanque e a Câmara, e defende com orgulho sua negritude.  Todos os discriminados por raça, posição social, escolhas de vida que não encontram brecha para construir seu futuro roubado e sequestrado pelos poderes autoritários de qualquer espécie.

            Marielle é a jovem mãe solteira, negra e pobre, cria da Maré que educou sozinha a filha Luyara; disputou um lugar na universidade graças ao vestibular comunitário; terminou a graduação em Ciências Sociais na melhor universidade privada do país – a PUC-Rio; fez mestrado em Administração em uma Universidade Federal passando à frente de vários concorrentes. 

            É a líder comunitária que entrou na política e teve uma carreira ascendente. Candidata pela primeira vez, teve 46 mil votos, sendo a quinta mais votada para a Câmara Municipal. É aquela que não se acomodou com as conquistas que realizou apenas para subir na vida e ganhar mais dinheiro.  Sua vocação era pública, sua vida pertencia a seu povo e a ele foi dada até o fim.

            Com o país inteiro mobilizado, chorando sua morte e assumindo suas bandeiras, começou sua segunda tentativa de assassinato: a difamação.  Inventaram sobre ela, sua vida privada, seu passado, inverdades destrutivas no intento de denegrir sua figura e obscurecer a grandeza de sua vida e sua morte.  Os que a legitimavam e defendiam passaram a ser insultados também com discursos cheios de ódio e amargura.  Desde padres que celebravam missas até jornalistas e políticos. 

            Tudo isso só faz ressaltar ainda mais a estatura dessa mulher extraordinária.  Sua trajetória e coerência admiráveis continuam surpreendendo positivamente todos que dela vão tomando conhecimento progressivamente. Cada difamação desmentida a faz crescer e se destacar.  Os esforços de seus detratores vão sendo minimizados e aparecendo em toda a sua mesquinharia e desonestidade.

            Aquelas balas, cara Marielle, que miraram e atingiram o centro de sua vida para destruí-la chegaram atrasadas.  Suas palavras e seu testemunho já tinham sido plantados em todos esses milhões de brasileiros que hoje vão às ruas chorar sua perda e animar-se reciprocamente para continuar sua luta.

            Como sua família - de formação católica, - bem disse em alguma entrevista, não é hora de abrigar sentimentos de ódio e vingança.  Mas é hora, sim, e muito, de lutar contra a segunda morte que querem lhe dar.  E levantar alto suas bandeiras que inspiram a todos para transformar a realidade sórdida que vivemos hoje em nosso país.


Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão (Edusc)

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