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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

ANANTHA-HE!, A FORÇA DE UMA MEMÓRIA

Por Marcelo Barros



O mundo acaba de saber que está mais desigual do que nunca. Nos Estados Unidos, o novo presidente não descarta a possibilidade de usar armas nucleares para impor sua vontade a todos os quadrantes da terra. Na América Latina, a política imperialista promove governos golpistas e que não têm qualquer escrúpulo em tornar os pobres mais pobres do que já são. Nesse contexto, é importante lembrar que, nesses dias, vindas de todas as regiões da Índia, multidões  vão em peregrinação a Delhi. Ali, visitam uma laje de mármore, posta no lugar onde, no dia 30 de janeiro de 1948, foi assassinado o Mahatma Gandhi. As pessoas levam flores. Cada pessoa deposita uma flor no monumento. As pessoas adultas chamam: "Mahatma Gandhi!". As crianças respondem: "Anantha-he!", isto é, "para sempre”. Isso significa que a herança de Gandhi é eterna.

Apesar de que o Brasil é distante e é muito diferente da realidade da Índia, nós também podemos assumir a mensagem de Gandhi para o nosso país e dizer com o mundo inteiro que, hoje, trabalha pela paz: "Mahatma Gandhi, anantha-he!". De um ano para cá, no Brasil, as posições sociais e políticas se têm acirrado. Mesmo entre os que trilham os mesmos propósitos, não tem sido fácil dialogar. Por isso, precisamos retomar a memória e os exemplos do Mahatma Gandhi, isso é, a "Grande Alma". Isso pode nos ajudar a viver a cidadania política sem cairmos em extremos da intolerância e da negação do outro.

A realidade que Gandhi viveu na Índia foi muito dura e difícil. Ali ele atuou pela libertação do seu povo. E venceu pela sua capacidade de dialogar com todos, sem nunca abrir mão dos seus objetivos. Ele gostava de afirmar: "Não tenho mensagens. Minha mensagem é simplesmente a minha vida". Ele intitulou a sua auto-biografia: "A história das minhas experiências com a verdade". Sua luta pacífica através da Satyagraha, o caminho da verdade y ahimsa, a não violência, além de conduzir a Índia para a independência política, inspirou líderes como o bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela na África do Sul, o pastor Martin-Luther King em sua luta contra o racismo nos EUA, Dom Helder Câmara no Brasil em sua insurreição evangélica e tantos outros homens e mulheres em sua consagração à justiça e à paz.

As duas contribuições maiores de Gandhi para esse novo momento da humanidade são a insistência na coerência entre a ação sócio-política da pessoa que quer mudar o mundo e o modo como ele vive seus valores e sua vida pessoal. Gandhi dizia: “A minha vida é um todo indivisível. Todos os meus atos convergem uns aos outros e todos nascem do insaciável amor que tenho para com toda humanidade”. Esse amor é que o levava à ação não violenta que sempre contestava a opressão, mas conseguia ver a pessoa humana em sua sacralidade, mesmo se essa pessoa era um adversário ou inimigo político. Essa era a verdade na qual Gandhi acreditava e que ele defendia.

Nesse mundo cada vez mais intolerante e violento, se torna mais urgente ainda recordar a herança de Gandhi e atualizá-la para nós e para toda a humanidade. Hoje, o colonialismo contra o qual Gandhi se insurgiu tem outros rostos e outros nomes, como neoliberalismo, desemprego estrutural e a dívida externa e interna dos países. Contra esse modo desumano de organizar o mundo, grande parcela da juventude mundial e pessoas adultas de todos os continentes têm se insurgido.

Em sua luta pacífica pela verdade, Gandhi sabia que essa verdade se chama Deus. "Tudo o que eu faço é na busca de Deus. Anseio por ver a Deus, face a face. O Deus que eu conheço se chama Verdade". Não se trata de um termo apenas filosófico, nem de uma verdade nocional. É a realidade da vida baseada na solidariedade e na justiça. Essa é a base ética das tradições espirituais. Todas elas têm como objetivo que a fé se expresse em um novo modo de ser, de viver e de conviver. A Bíblia chama isso de reinado de Deus no mundo. Significa a realização do projeto divino de uma sociedade justa, pacífica e unida em uma só irmandade. Conforme o evangelho, Jesus disse: “Procurem acima de tudo o reino de Deus e sua justiça e tudo o mais lhes será dado como acréscimo” (Mt 6, 33).

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

BRINQUEDO PROIBIDO

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



            Nesta cidade tão violenta em que vivemos, microclima de um mundo igualmente enlouquecido e violento, achamos que já vimos tudo.  A morte comanda o espetáculo macabro que todo dia acrescenta números e identidades às estatísticas já apavorantes que perigosamente estamos nos acostumando a assistir e ler diariamente na mídia.

           O mal consegue surpreender-nos a cada momento e das formas mais insuspeitadas.  Não chamaria de criatividade a capacidade de inventar e reinventar novas modalidades para pegar de surpresa os corações cruelmente feridos que pensam que nada mais resta para descobrir.  Criatividade é apanágio do bem, que flui do Criador.  Só se cria quando se colabora com Deus que do nada fez o mundo e tudo que nele existe.  Só se cria quando se faz crescer a criação que saiu das Mãos divinas no início dos tempos e já era pensada e desejada amorosamente desde antes deste início.

            A capacidade do mal de nos causar espanto sob novo ângulo e nova maneira faz parte de seu dinamismo, insidioso e mortal.  Inventa novas e retorcidas maneiras de arrastar os corações humanos ao desespero, à baixeza dos conluios e da desorientação, ao mergulhar na perdição, acreditando que é inevitável e irremissível.

            O mundo dos brinquedos parecia preservado da violência malsã que persegue os habitantes do Rio.  Pois o que há de mais inocente do que um brinquedo?  Feito para desenvolver a capacidade lúdica das crianças, pode divertir também os adultos, para que ativem a memória dos tempos em que, inocentes e acreditando na vida, criavam artesanalmente novos mundos e coisas a partir de sua imaginação, corridas, palavras e gestos. 

            E de repente uma menina de dois anos e meio, Sofia, foi alcançada pela irracionalidade do mal, enquanto brincava no parquinho de uma lanchonete, no Rio.  O pai, um policial, relata que fazia um lanche com a esposa, os avós da menina, enquanto Sofia brincava.  Identificou um tiro no som macabro do cotidiano de sua vida profissional e levantou-se para ver o que acontecia.

            O instinto materno precipitou as mulheres presentes em direção ao parquinho, para resgatar e proteger seus filhos.  A esposa do policial gritava por Sofia, mas a menina não aparecia.  Saíram todas as crianças menos ela.  No parquinho o pai a encontrou, crucificada no brinquedo feito para dar alegria, divertimento e estimular a criatividade.  Tornou-se, porém,  instrumento de suplício onde a infância de Sofia foi brutalmente ceifada.

            Levada pelos pais ao hospital, a menina não resistiu. Sua alegria e beleza, sua vida que mal começara, chegou ao fim pela bala perdida que se infiltrou no parquinho onde os brinquedos pretendiam ser lugar seguro e colorido para as crianças brincarem.

            Os pais da menina saíram do lugar onde moravam e partiram para recomeçar a vida longe do cenário do pesadelo que lhes roubou a filha e a alegria de viver.  Esperamos sinceramente que possam reencontrar o caminho da esperança e trazer ao mundo outros filhos que encham suas vidas de encanto como Sofia fez.  E que a recordação dela se faça doce com o passar do tempo sobre o amargor da experiência.

            No ar, porém, pulsa uma questão séria e inquietante.  Aos poucos, a violência vai colocando interditos em nossa vida nesta cidade que chamamos de maravilhosa.  Proibe-nos de caminhar por determinados locais, de estacionar em certos horários em algumas ruas.  Infiltra-nos medo de andar nas ruas, confinando-nos sempre mais aos shoppings como único lugar mais ou menos seguro para estar.  Obriga-nos a blindar carros, a levantar muros, a construir grades.

            Vamos consentir que essa paralisante espiral também paralise com suas garras o mundo da infância, dos brinquedos, dos espaços lúdicos?  Passaremos a temer também os carrosséis, piscinas de bolinhas, balanços e outros brinquedos que fazem a festa de nossas crianças?

            Se assim for, estaremos dando ganho de causa a esse mal que insiste em surpreender-nos e nos quer seus prisioneiros.  Certamente o caminho não é por aí, não passa pelo medo.  Que a morte trágica de Sofia não transforme nossas vidas em um brinquedo temido porque proibido.  Mas que ela nos liberte para lutar com as armas da inteligência e da honestidade, por uma cidade onde as balas não se percam para alojar-se em corpos de crianças inocentes que brincam felizes fruindo sua infância.

            Receitas prontas não temos e soluções não são evidentes.  Mas contamos, certamente, com a cumplicidade d´Aquele que do nada fez o mundo e a cada minuto nos cria e recria com a inesgotável criatividade de seu amor.
  
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ.  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão"(Edusc)
 Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

TRUMP: UMA NOVA ETAPA DA HISTÓRIA?


Por Leonardo Boff


          Já há anos se notava, um pouco em todas as partes do mundo, a ascensão de um pensamento conservador e de movimentos que se definiam como de direita. Com isso se sinalizava um tipo de sociedade na qual a ordem prevalecia sobre a liberdade, os valores tradicionais se impunham aos modernos, e a supremacia da autoridade se sobrepunha à liberdade democrática.

         Esse fenômeno se deriva de muitos fatores mas principalmente pela erosão das referências de valor que conferiam coesão a uma sociedade e forneciam um sentido coletivo de convivência. O predomínio da cultura do capital com seu propósito ligado ao individualismo, à acumulação ilimitada de bens materiais e principalmente à competição deixando praticamente parco espaço para a cooperação, contaminou praticamente toda a humanidade, gerando confusão ético-espiritual e perda de sentimento de pertença a uma única humanidade, habitando uma Casa Comum. Emergiu a sociedade líquida, na linguagem de Bauman, na qual nada é sólido, acrescido com o espírito pós-moderno do every thing goes do vale tudo, na medida em que conta é o que realiza um objetivo buscado por cada um, consoante suas preferências.

         Estamos, pois, diante de uma profunda crise de civilização. Diluiram-se as estrelas-guias e surgiu seu oposto dialético: a busca de segurança, de ordem, de autoridade, de normas claras e de caminhos bem definidos. Na base do conservadorismo e da direita em política, em ética e em religião se encontra este tipo de percepção das coisas. Ela está a um passo do fascismo como se verificou na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini.

         Na Europa, na América Latina e nos Estados Unidos estas tendências foram ganhando força social e política. No Brasil foi este espírito conservador e direitista que projetou o golpe de classe jurídico-parlamentar que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff. O que se seguiu foi a implantação de políticas claramente de direita, anti-povo, negadoras de direitos sociais e retrogradas em termos culturais.

         Mas essa tendência conservadora alcançou sua dimensão mais expressiva na potência central do sistema-mundo: os Estados Unidos, confirmada pela eleição de Donald Trump à presidência daquele país. Aqui o conservadorismo e a política de direita se mostram sem metáforas e de forma deslavada e até rude como ocorreu na quebra de relação por parte de Tump com o presidente do México que foi grosseiramente humilhado.

         Trump, em seus primeiros atos, começou a desmontar as conquistas sociais alcançadas por Obama. Populismo, nacionalismo, patriotismo, conservadorismo, isolacionismo são suas características mais claras.

         Seu discurso inaugural é aterrador:”de hoje em diante uma nova visão governará a nossa terra. A partir deste momento só os Estados Unidos serão o primeiro”. O “primeiro” (first) aqui deve ser entendido como “só (only) os Estados Unidos vão contar”. Radicaliza sua visão ao término de seu discurso com evidente arrogância:”Juntos faremos que os Estados Unidos voltem a ser fortes. Faremos que os Estados Unidos voltem a ser prósperos. Faremos que os Estados Unidos voltem a ser orgulhosos. Faremos que os Estados Unidos voltem a ser seguros de novo. E juntos faremos que os Estados Unidos sejam grande de novo”.

         Subjacente a estas palavras funciona a ideologia do “destino manifesto”, da excepcionalidade dos Estados Unidos, sempre presente nos presidentes anteriores inclusive em Obama. Quer dizer, os Estados Unidos presumem possuir uma missão única e divina no mundo, a de levar seus valores de direitos, da propriedade privada e da democracia liberal para o resto da humanidade.

         Para ele o mundo praticamente não existe. E se existe é visto de forma negativa. Quebrou os laços de solidariedade para com os aliados tradicionais como a União Européia e retirou-se da cena internacional deixando cada país livre para eventuais aventuras contra seus contendores históricos e abrindo espaço para o expancionismo de potências regionais eventualmente incluindo guerras letais.
         Da personalidade de Trump se pode esperar tudo. Habituado a negócios tenebrosos como são, de modo geral, os empreendimentos imobiliários novaiorquinos, sem qualquer experiência política, pode deslanchar crises para a sociedade norte-americana e  altamente ameaçadoras para o resto da humanidade, como por exemplo, uma eventual guerra contra China ou a Coreia do Norte, onde não se exclui a utilização de armas nucleares.
         Sua personalidade denota características psicológicas desviantes; é narcisista, com um ego super-inflacionado, maior que seu própro país.
         A frase que nos assusta é esta:”de hoje em diante uma nova visão governará a terra”. Não sei se está pensando apenas nos Estados Unidos ou no planeta Terra. Provavelmente as duas coisas para ele se identificam. Se for verdade, teremos que rezar para que o pior não aconteça para o futuro da civilização.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu, Convivência, respeito e tolerância, Vozes 2006.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

CRESCE A DESIGUALDADE MUNDIAL

Por Frei Betto



      Todos os anos, em janeiro, os mais ricos do mundo se reúnem em Davos, na Suíça. É o Fórum Econômico Mundial. Em contraposição a ele foi criado o Fórum Social Mundial.

      Em 2013, o Fórum de Davos alertou que o aumento acelerado da desigualdade econômica entre os povos ameaçava a estabilidade social. Em 2014, o Banco Mundial vestiu a camisa das instituições que se propõem a erradicar a pobreza e promover uma prosperidade compartilhada. (Mas duvido que tenha assumido a pele...).

     Como alertou Obama em discurso na ONU, em setembro de 2016, "um mundo no qual 1% da humanidade controla uma riqueza equivalente à dos demais 99% nunca será estável."

     Agora em 2017, a ONG britânica Oxfam, que todo ano apresenta em Davos o mapa da desigualdade mundial, expõe dados preocupantes: 1) Desde 2015, apenas 1% da população global concentra em mãos mais riqueza que os 99% restantes. 2) Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas transferirão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – soma mais alta que o PIB da Índia, que tem 1,2 bilhão de habitantes. 3) A renda dos 10% mais pobres aumentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a do 1% mais ricos aumentou cerca de US$ 11.800, ou seja, 182 vezes mais. 4) Nos EUA, pesquisa recente do economista Thomas Pickety revela que, nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300%.

O dado mais chocante, entretanto, é a constatação de que, atualmente, apenas oito homens detêm a mesma riqueza que a metade da população do mundo (3,6 bilhões de pessoas). São eles: Bill Gates, Amancio Ortega, Warren Buffett, Carlos Slim, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Ellison e Michael Bloomberg.

      Os ingredientes para a desintegração de nossas sociedades estão dados. O crescimento da desigualdade social é o caldo de cultura para o aumento da criminalidade, do terrorismo e da insegurança global. Como assinala a Oxfam, há cada vez mais pessoas vivendo com medo do que com esperança.

      A conjuntura atual não é promissora: Trump leva a sua xenofobia para a presidência dos EUA; o Reino Unido rompe com a União Europeia; as forças de direita ampliam seus espaços políticos nos países ricos; o preconceito e a discriminação adquirem ares de “politicamente correto”.

      Por mais que isso nos espante, a lógica do cidadão comum é simples: por que votar em candidatos progressistas se nada fazem para reduzir a aceleração da desigualdade? Por que elegê-los se os nossos salários estão deteriorados, o desemprego se amplia e os serviços sociais não funcionam adequadamente para a maioria?

      Embora as políticas sociais tenham retirado milhões de pessoas da miséria e da pobreza nas últimas décadas, ainda hoje uma em cada nove pessoas vai dormir com fome. E a fome, que não tem ideologia, facilmente reduz um homem a um animal feroz.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros.

   
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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO DA PAZ

Por Marcelo Barros



Nesses dias, em todo o mundo, ocorrem diversas iniciativas de encontros e diálogos internacionais que visam a paz no mundo ou em determinada região. A partir do dia 18, estiveram reunidos em Roma rebeldes da Frente Democrática Nacional das Filipinas com representantes do governo para pôr fim a anos e anos de guerra civil que já matou mais de 40 mil pessoas. A partir da 2a feira, (23), em Astana, na Síria, grupos rebeldes e representantes do governo tentam um acordo que acabe com a guerra civil que destrói o país. Na Colômbia, depois que grupos radicais conseguiram que a maioria do povo desaprovasse os termos do acordo de paz entre governo e guerrilha, um novo acordo foi assinado e parece que, finalmente, o país verá a paz.

A maior dificuldade para todos é como construir a paz sem o mínimo de justiça e em um mundo no qual a desigualdade social e as injustiças estruturais se agravam a cada dia. Nesses dias, como sempre ocorre, cada ano em janeiro, está reunido em Davos na Suiça, o Fórum Econômico Mundial que reúne dessa vez mais de três mil pessoas da elite do mundo. Uma das primeiras declarações do Fórum foi o reconhecimento de que as desigualdades sociais aumentaram em todos os continentes. Conforme a declaração dos coordenadores do fórum, em uma humanidade que conta com mais de sete bilhões de pessoas, apenas oito pessoas (multimilionárias) possuem uma riqueza equivalente a 3, 6 bilhões de seres humanos. O que esse fórum dos mais ricos não deixa claro é que isso é resultado direto de uma organização econômica que tem a finalidade de tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.

Tudo isso ocorre no momento em que, nos Estados Unidos, o novo presidente assume o governo com a promessa de começar a sua gestão cancelando a reforma do sistema de saúde que previa beneficiar os mais pobres e reforçando as fronteiras do país contra os migrantes.

Recentemente, circulou na internet um comentário jornalístico no qual alguém afirmava que o povo brasileiro tinha sido o primeiro que tinha ido às ruas para pedir sua própria ruína. E isso lhe foi imediatamente concedido com o governo que está aí. Alguém poderia continuar que o povo dos Estados Unidos seguiu o mesmo exemplo e aí está o resultado. No entanto, mais do que simplesmente afirmar isso, se trata de perguntar porque, no atual sistema do mundo, a maioria das pessoas vota como a barata que se refugia debaixo do chinelo que vai esmagá-la. Sem dúvida, a propaganda e a guerra insistente e contínua dos grandes meios de comunicação têm um papel importante, embora não único. A decepção com as alternativas ditas de esquerda também cumpre, infelizmente, o seu papel de desagregação e de um inconformismo que parece explodir no "já que é assim, quanto pior, melhor".   

Para quem tem fé na vida e busca uma espiritualidade humana, seja em alguma religião, seja fora de qualquer tradição religiosa, é imperativo o compromisso com a solidariedade que nos confirma na esperança de novas formas de organizar o mundo e na missão que temos com relação a isso.

Se na sociedade mundial, acontecem tantos colóquios de paz, é importante que também nos nossos grupos de base, tenhamos a coragem de nos desafiar. Precisamos exigir de nós mesmos capacidade de diálogo e de superação não violenta dos conflitos. E darmos ao mundo um testemunho de que começamos a ensaiar relações mais horizontais e comunitárias. Embora, nesse momento, o mundo esteja mais desigual e injusto e que a sociedade dominante pareça achar isso normal e até positivo (para ela), é verdade também que os movimentos sociais e os grupos de base se rearticulam e se organizam para enfrentar esses novos desafios. Nesse ano, teremos vários fóruns regionais e temáticos e neles todos, um refrão será comum a todos: "Um novo mundo é necessário. Juntos, podemos torná-lo possível".

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.  


segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

O PRIMEIRO GESTO DE COMUNHÃO


 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 



Dentre todas as experiências que a maternidade me deu, certamente a que mais me proporcionou prazer foi a amamentação.  Recordo-me com delícia a luta que foi amamentar minha primeira filha, que nasceu na França. Na terra de Descartes, esse dom materno não é muito apreciado.  Enfermeiras e médico queriam convencer-me a desistir, já que eu não teria muito leite devido à cesariana que fora forçada a fazer.

Insisti e lutei feito uma leoa.  E apesar do abcesso, da dor, da dificuldade, amamentei três meses minha filha.  Aqueles momentos com ela, sentindo seu coraçãozinho bater, seu esforço de sugar e depois seu suspiro de satisfação e sono bem-aventurado me fizeram mãe de fato. Com os outros dois filhos insisti e persisti.  A cada vez uma luta – sobretudo com o segundo, grande e esganado – mas um sentimento como se ali eu estivesse marcando meus filhos com um selo.  Era minha marca que ficava na corporeidade deles para o resto de suas vidas.

Até hoje acho belíssimo quando vejo uma mulher dando de mamar a uma criança.  Seja em privado, seja em público. É certamente um ato de profunda comunhão, de infinito amor. E parece que nisso – como em muitas outras coisas – o Papa Francisco e eu concordamos.  Durante um batizado coletivo de 33 bebês na Capela Sistina, o Pontífice avisou às mães presentes que não ficassem constrangidas caso precisassem alimentar seus filhos. Ouvindo o choro de muitos deles intuiu  ser isso sinal de fome e estimulou-as a não hesitar em amamentá-los, mesmo no recinto da igreja.

Toca o Papa aí em algo muito humano, delicado, profundo.  Com a cultura do consumo que atinge igualmente a venda de mamadeiras, os seios femininos foram sendo vistos como destinados exclusivamente à função sexual e erótica. A amamentação, então, foi se tornando cada vez mais privada e escondida dos olhos da sociedade.

No Brasil e no mundo, a amamentação em espaços públicos já foi centro de controvérsias e discussões.  Em contrapartida, há organizações e pessoas que reivindicam o respeito ao direito de a mãe dar o seio em público. A discussão atingiu as redes sociais e foram citados vários exemplos concretos, como a de uma mãe que, em um hotel de luxo em Londres, foi forçada a cobrir-se com um grande guardanapo de tecido.


É para o bem comum da humanidade que urge desfazer o equívoco de que os seios são meramente objetos eróticos e que, como tal, devem ser usados e/ou ocultados em nome da moral e dos bons costumes. É necessário devolver aos seios femininos o principal atributo que lhes cabe: amamentar, alimentar outros seres humanos e com eles desenvolver a mais profunda e bela relação de amor que talvez terão em toda a sua vida.  O Papa Francisco, conhecido por apoiar tudo que dignifica o ser humano exatamente em sua humanidade, tem sido um destemido ativista e defensor desta causa.

O Pontífice faz declarações públicas em favor da amamentação desde o início de seu pontificado.  Já em 2013, em entrevista ao jornal italiano La Stampa, afirmou que as mães não deveriam envergonhar-se de amamentar seus filhos.  Associou o tema ao desperdício de comida que existe no mundo, que por sua vez, empurra para a frente a roda do consumo, potencializando a indústria de mamadeiras, bicos e etc. Quando recentemente, na Capela Sistina, estimulou as mães a aleitar os filhos, acrescentou: “Eles são as pessoas mais importantes aqui.”

Com essa orientação, saiu do texto de sua homilia, dirigindo-se diretamente às mães presentes.  Ao mesmo tempo, recordou as mães pobres do mundo,“muitas das quais, infelizmente, não conseguem alimentar suas crianças”.

Ao valorizar algo tão importante, o Papa está, na verdade, ratificando uma analogia teológica. Alimentar outros com seu próprio corpo é o gesto que Deus mesmo, em Jesus Cristo, escolheu para fazer-se presente intimamente àqueles e àquelas que nele creem.  Pois não professamos os católicos ser a Eucaristia a carne e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, feito comida e bebida para nós?

Toda mulher tem constitutiva e visivelmente em seu corpo esta graça infinita de poder repetir a cada filho, a cada gestação, a cada vida que gera e dá à luz o gesto eucarístico e salvífico realizado pelo Salvador.  Amamentem, pois, afortunadas mães que podem fazê-lo.  Abram seus seios túrgidos para que neles os frutos de seus ventres possam ser alimentados e nutridos.  Não apenas de leite, mas de amor, intimidade, comunhão.  Primeiro gesto de comunhão, a amamentação é algo que sela a relação mãe e filho com a marca não apenas da saúde, da divisão equânime dos bens, mas igualmente da salvação e da santidade.
  
 Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A   teóloga é autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco).
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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O DEUS BRASILEIRO É MOLOC QUE DEVORA SEUS FILHOS


Por Leonardo Boff



         Diz-se que Deus é brasileiro, não o Deus da ternura dos humildes mas o Moloc dos amonitas que devora seus filhos. Somos um dos países mais desiguais, injustos e violentos do mundo. Teologicamente vivemos numa situação de pecado social e estrutural em contradição com o projeto de Deus. Basta considerar o que ocorreu nos presídios de Manaus, Rondônia e Roraima. É pura barbárie: a fúria decapita, fura os olhos e arranca o coração.
Não há uma violência no Brasil. Estamos assentados sobre estruturas histórico-sociais violentas, vindas do genocídio indígena, do colonialismo humilhante e do escravagismo desumano. Não há como superar estas estruturas sem antes superar esta tradição nefasta.
Como fazê-lo? Esse é um desafio que demanda uma transformação colossal de nossas relações sociais. Será ainda possível ou estamos condenados a sermos um país pária? Vejo ser possível à condição de seguirmos estes dois caminhos, entre outros, elaborados a partir de baixo: a gestação de um povo a partir dos movimentos sociais e a instauração de uma democracia social de base popular.
A gestação de um povo: os que nos colonizaram não vinham para criar uma nação, para fundar uma empresa comercial a fim de enricar rapidamente, tornar-se fidalgos (filhos de algo), regressar a Portugal e desfrutar da riqueza acumulada. Submeteram primeiro os índios e depois introduziram os negros africanos como mão-de-obra escrava. Criou-se aqui uma massa humana dominada pelas elites, humilhada e desprezada até os dias atuais.
Abstraindo das revoltas anteriores, a partir dos anos 30 do século passado houve uma virada histórica. Surgiram os sindicatos e os mais variados movimentos sociais. Em seu seio foram surgindo atores sociais conscientes, críticos, com vontade de modificar a realidade social e de gestar as sementes de uma sociedade mais participativa e democrática.
A articulação dessas associações gerou o movimento popular brasileiro. Ele está fazendo da massa um povo organizado que não existia antes como povo mas que agora está nascendo. Ele obriga a sociedade política e escutá-lo, a negociar, e destarte a diminuir os níveis de violência estrutural.
         A criação de uma democracia social, de base popular: possuímos uma democracia representativa de baixíssima intensidade, cheia de vícios políticos, corrupta com representantes eleitos, em geral, pelas grandes empresas cujos interesses representam.
Mas em contrapartida, como fruto da organização popular já se produziram partidos populares ou segmentos de partidos progressistas e até liberais-burgueses ou tradicionalmente de esquerda que postulam reformas profundas na sociedade e visam a conquistar o poder de Estado, seja municipal, estadual ou federal.
Essa democracia participativa se baseia, fundamentalmente, nestes quatro pés, com os de uma mesa.
·         participação a mais ampla possível de todos, de baixo para cima, de tal sorte que cada um possa se entender como cidadão ativo;
·         igualdade, que resulta dos graus de participação; ela confere ao cidadão mais chances de viver melhor. Em face das desigualdades subsistentes, deve vigorar a solidariedade social;
·         respeito às diferenças de toda ordem; por isso, uma sociedade democrática deve ser pluralista, multiétnica, pluri-religiosa e com vários tipos de propriedade;
·         valorização da subjetividade humana – o ser humano não é apenas um ator social, é uma pessoa, com sua visão de mundo e que cultiva valores de cooperação e solidariedade que humanizam as instituições e as estruturas sociais.

Esta mesa, entretanto, está assentada sobre uma base, sem a qual ela não se sustenta: uma nova relação para com a natureza e para com a Terra, nossa Casa Comum como enfatiza a encíclica ecológica do Papa Francisco. Em outras palavras, esta democracia deverá incorporar o momento ecológico, fundado num outro paradigma. O vigente, centrado no poder e da dominação em função da acumulação ilimitada, encontrou uma fronteira insuperável: os limites da Terra e de seus bens e serviços não renováveis. Uma Terra limitada não suporta um projeto ilimitado de crescimento. Por forçar estes limites, assistimos ao aquecimento global e aos eventos extremos vividos neste ano de 2017 com neves em toda a Europa que não ocorriam há cem anos.
Esta consciência dos limites que cresce mais e mais, nos obriga a pensar num novo paradigma de produção, de consumo e de repartição dos recursos escassos entre os humanos e também com a comunidade de vida ( a flora e a fauna que também são criadas pela Terra e que precisam de seus nutrientes). Aqui entram os valores do cuidado, da corresponsabilidade e da solidariedade de todos com todos, sem os quais o projeto jamais prosperará.
A partir destas premissas podemos pensar na superação de nossas estruturas sociais violentas. O resto é tapeação de mudança para que nada mude.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

UTOPIA, 500 ANOS

Por Frei Betto


          Em dezembro de 1516, a gráfica belga de Dirk Martens, em Louvaina, publicou “Utopia”, romance do inglês Thomas Morus (1478-1535). O título deriva do grego “utopos”, que significa “lugar nenhum” ou, no senso comum, “lugar de sonhos, além da realidade”.
       
       Trata-se de uma ilha paradisíaca, que abriga a sociedade republicana ideal. Ali não se trabalha mais de seis horas por dia; não corre dinheiro; não existe propriedade privada nem cobiça; e seus habitantes socializam entre si os frutos da atividade agrícola.

       Morus era pessoa de destaque na corte inglesa. Foi parlamentar, ocupou a nobre função de Lorde Chanceler e mereceu a confiança do rei Henrique VIII. O monarca apaixonou-se, em 1533, por Ana Bolena e decidiu se separar de sua esposa, Catarina de Aragão, e recasar no religioso com a nova mulher.

       Isso contrariava todos os preceitos da Igreja Católica, que não admite o divórcio e, muito menos, o recasamento religioso. Diante da oposição do papa, Henrique VIII rompeu com Roma e fundou a sua própria Igreja, a Anglicana.

       Thomas Morus, católico praticante, se opôs à decisão do monarca. Denunciou-o como herege. O rei mandou prendê-lo. Levado a julgamento, foi condenado à morte por decapitação. Em 1935, a Igreja Católica o proclamou santo. É considerado o padroeiro dos políticos.

       O cinema retratou-o em “Um homem para a eternidade”, dirigido por Fred Zinnemann. O filme conquistou, em 1966, seis Oscar.

       “Utopia” é uma crítica ao ambiente político da Inglaterra no século XVI, no qual predominavam a ambição de poder, a corrupção e a incompetência. Na ilha de Utopia, reina a justiça e a boa administração. Todos os seus habitantes são felizes naquela terra ecologicamente sustentável.

       Na expressão de Michelet, “cada época sonha o seu futuro”. A Antiguidade concebeu a Arcádia, e Platão, a República ideal. A obra de Morus inspirou “As viagens de Gulliver”, de Swift, e “Robinson Crusoé”, de Defoe. Mais tarde, inspiraria também as distopias, como “Admirável mundo novo”, de Huxley; “1984”, de Orwell; e “Farenheit 451”, de Bradbury.

       Marx considerou Morus um protocomunista do século XVI por abolir, em sua ilha imaginária, a propriedade privada.

       Nos países capitalistas, o poder é  antiutópico ou distópico por natureza. E tantos governos progressistas que,  outrora, elevavam sua voz contra a exploração do capital e desfraldavam bandeiras progressistas, de leões bravios tornaram-se dóceis  cordeiros  do rebanho neoliberal.

       O poder, devido às  premências do presente, faz com que se perca a visão de futuro. E como  o  poderoso tende a perpetuar-se no cargo (vide as velhas raposas da política brasileira), procura reduzir o processo histórico a seu momento pessoal.  Julga-se início e fim, sem consciência de que não passa de mediador (meio) de  um mandato popular.

       Daí o fato de se transformar numa figura ridícula, sem honra biográfica, mera caricatura de  suas ambições desmedidas. Em sua pobre topia, muitos políticos já não enxergam a utopia.

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.


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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

OS MUITOS CAMINHOS DE DEUS

Por Marcelo Barros


 Uma das características do mundo atual é a convivência entre diversas culturas. Por isso, também um dos maiores desafios é a convivência e colaboração entre diferentes religiões. Antigamente, os poderosos de cada região impunham a sua religião a todos os habitantes do território que dominavam. Hoje, graças a Deus, o mundo inteiro é uma grande sinfonia de diferentes culturas e religiões. Há muitos fieis muçulmanos na Índia, muitos crentes do Hinduísmo nos países árabes, cristãos na China e seguidores do Taoísmo no Brasil. Infelizmente, o fanatismo religioso e o fundamentalismo ainda provocam intolerância e preconceito entre religiões diferentes.    

No Rio de Janeiro, em janeiro do ano 2000, duas vezes, Mãe Gilda, sacerdotisa do Candomblé, viu o seu templo ser invadido por pessoas de uma Igreja neopentecostal. Elas invadiram o lugar e destruíram os assentamentos dos Orixás. Poucos dias depois, Mãe Gilda viu estampada no jornal “A Folha Universal”, uma foto sua com a legenda: “Macumbeiros ameaçam a vida e o bolso dos clientes”. Ao ver aquilo, aquela senhora idosa teve um infarto e faleceu. Para que não se repitam mais fatos como esse, em 2007, uma portaria do presidente Lula determinou que, a cada ano, em todo o Brasil, o 21 de janeiro seja celebrado como o “Dia Nacional contra a Intolerância Religiosa”.

Para vencer a intolerância cultural e religiosa, não basta uma lei ou decreto. É preciso que as pessoas se convençam de que não existe fé na intolerância e no desamor. Ou nos transformamos interiormente ou nossa religião é meramente externa e vazia. A fé é um processo permanente de abertura interior para descobrir no outro ser humano e na natureza a presença divina. Foi isso que Jesus ensinou no evangelho e que, cinco séculos antes, Buda havia pregado em seus sermões. É isso que ensinam todas as grandes religiões da humanidade.

 Algumas pessoas que se consideram religiosas ainda confundem a verdade com uma forma cultural de expressá-la. Por isso, absolutizam dogmas e se fecham em um autoritarismo fundamentalista e superficial. Daí, facilmente, se justificam conflitos e até guerras em nome de Deus. Em 1965, em um dos seus mais belos documentos, (a declaração Nostra Aetate), o Concílio Vaticano II proclamava o valor das outras religiões e incentivava os católicos do mundo inteiro ao respeito ao diferente e ao diálogo. Também, em 1961, o Conselho Mundial de Igrejas, que reúne mais de 340 confissões cristãs, pediu às Igrejas-membros uma atitude de respeito e diálogo com todas as culturas e colaboração com outras tradições religiosas.

Atualmente, a diversidade religiosa no mundo é, não somente um fato atual que, queiramos ou não, se impõe à humanidade. Ela se constitui como graça divina e uma bênção para as tradições religiosas que, assim, podem se complementar e mutuamente se enriquecer. Para que esse diálogo seja verdadeiro e profundo, cada grupo religioso tem de reconhecer o elemento de verdade que existe no outro.

Em 1994, no Vaticano, a Congregação da Doutrina da Fé e a Comissão Pontifícia para o Diálogo Inter-religioso publicaram um documento em comum chamado "Diálogo e Anúncio". Esse documento ensina que os cristãos valorizam todas as outras religiões porque creem que todas contêm verdades reveladas por Deus. Assim, nós nos tornamos melhores cristãos à medida que nos abrimos ao que Deus nos revela, não somente na Bíblia e em nossa tradição, mas também ao que ele quer nos dizer através das outras religiões. Isso em nada diminui o valor próprio da nossa fé. Ao contrário, a enriquece. Abrir-nos a outras religiões não significa aderir a elas. Somos chamados a, como cristãos, sermos testemunhas do amor universal de Jesus que "veio a todo ser humano que vive nesse mundo". No evangelho, na hora de se despedir dos discípulos, Jesus afirmou: "Na casa do meu Pai, há muitas moradas". Ele não disse que, no céu, há muitas casas preparadas para nós, quando morrermos. O sentido profundo da palavra de Jesus é que "a casa do Pai" é esse mundo mesmo e as muitas moradas de Deus são as diversas formas de caminhar para o seu reino. Ele peregrina conosco. As religiões são tendas armadas no caminho para nos ajudar a avançar em sua direção.    


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.