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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A FOME: DESAFIO ÉTICO E POLÍTICO

LEONARDO BOFF
 
Por causa da retração econômica provocada pela atual crise financeira, o número de famintos, segundo a FAO, saltou de 860 milhões para um bilhão e duzentos milhões. Talfato perverso impõe um desafio ético e político. Como atender as necessidades vitais destes milhões e milhões?

Historicamente este desafio sempre foi grande, pois a necessidade de satisfazer demandas por alimento nunca pôde ser plenamente atendida, seja por razões de clima, de fertilidade dos solos ou  de desorganização social. À exceção da primeira fase do paleolítico quando havia pouca população e superabundância de meios de vida, sempre houve fome na história. A distribuição dos alimentos foi quase sempre desigual.

O flagelo da fome não constitui, propriamente, um problema técnico. Existem técnicas de produção de extraordinária eficácia. A produção de alimentos é superior ao crescimento da população mundial. Mas eles estão pessimamente distribuídos. 20% da humanidade dispõe para seu desfrute 80% dos meios de vida. 80% da humanidade deve se contentar com apenas 20% deles. Aqui reside a injustiça.

O que ocasiona esta situação perversa é a falta de sensibilidade ética dos seres humanos para com seus coiguais. É como se tivéssemos esquecido totalmente nossas origens ancestrais, aquela da cooperação originária que nos permitiu sermos humanos.

Esse déficit em humanidade resulta de um tipo de sociedade que privilegia o indivíduo sobre a sociedade, valoriza mais a apropriação privada  do que a coparticipação solidária, mais a  competição do que a cooperação, dá mais centralidade aos valores ligados ao masculino (no homem e na mulher) como  a racionalidade, o poder, o uso da força do que os valores ligados ao feminino (também no homem e na mulher) como a sensibilidade aos processos da vida, o cuidado e a disposição à cooperação.

Como se depreende, a ética vigente é egoísta e excludente. Não se coloca a serviço da vida de todos e de seu necessário cuidado. Mas está a serviço dos interesses de indivíduos ou de grupos com exclusão de outros.
Uma desumanidade básica se encontra na raiz do flagelo da fome. Se não vigorar uma ética da solidariedade, do cuidado de uns para com os outros não haverá superação nenhuma.


Importa considerar que  o desastre humano da fome é também de ordem política. A política tem a ver com a organização da sociedade, com  o exercício do poder e com o bem comum.  Já há séculos, no Ocidente, e hoje de forma globalizada, o poder político é refém do poder econômico, articulado na forma capitalista de produção. O ganho não é democratizado em benefício de todos, mas privatizado por aqueles que detém o ter, o poder e o saber; só secundariamente beneficia os demais. Portanto, o poder político não serve ao bem comum. Cria desigualdades que representam real injustiça social e hoje mundial. Em consequência disso,  para milhões e milhões de pessoas, sobram apenas migalhas sem poder atender suasnecessidades vitais. Ou simplesmente morrem em consequência das doenças da fome, em maior número, inocentes crianças.

Se não houver uma inversão de valores, se não se instaurar uma economia submetida à política e uma política orientada pela ética e uma ética inspirada numa solidariedade  básica não haverá possibilidade de solução para a fome e subnutrição mundial. Gritos caninos de milhões de famintos sobem continuamente aos céus sem que respostas eficazes lhes venham de algum lugar e  façam calar este clamor.

Por fim, cabe reconhecer que a fome resulta também do desconhecimento da função das mulheres na agricultura. Segundo a avaliação da FAO são elas que produzem grande parte do que é consumido no mundo: de 80% – 98% na África subsaariana, de 50%-80% na Ásia e 30% na Europa central e  do leste. 

Não haverá seguridade alimentar sem as mulheres agricultoras, caso não lhes for conferido  mais poder de decisão sobre os destinos da vida na Terra. Elas representam 60% da humanidade. Por sua natureza de mulheres são as mais ligadas à vida e à sua reprodução.

É absolutamente inaceitável que, a pretexto de serem mulheres, se lhes neguem os títulos depropriedade de terras e o acesso aos créditos e a outros bens culturais. Seus direitos reprodutivos não são reconhecidos e se lhes impede o acesso aos conhecimentos técnicos concernentes à melhoria da produção alimentar.

Sem estas medidas continua válida a crítica de Gandhi: ”a fome é um insulto; ela avilta, desumaniza e destrói o corpo e o espírito…senão a própria alma; é a forma de violência mais assassina que existe”.

Veja do autor o livro: Comer e beber juntos e viver em paz, Vozes 2006.

CRISE E SALVAÇÃO DA E NA IGREJA

MARIA CLARA BINGERMAN

        Figura polêmica na Igreja por suas posições ousadas e provocativas, o teólogo católico suíço Hans Küng não deixa de ser uma das cabeças teológicas inteligentes dos dias de hoje.  A teologia deve a ele algumas obras importantes de seu acervo de pensamento, muito concretamente no que diz respeito ao papel das religiões no mundo de hoje e às propostas para uma ética global. Antes disso, Hans Küng se ocupou com questões candentes de eclesiologia, tendo escrito inclusive um livro questionando a infalibilidade papal.


          Chamado à ordem e advertido inúmeras vezes pelo Vaticano, Küng perdeu a “missio canônica”, ou seja, a permissão eclesiástica para ensinar em qualquer faculdade de teologia católica.  No entanto, continuou a publicar e permaneceu ligado à Universidade de Tübingen, Alemanha, até sua aposentadoria.  Apesar da idade (mais de 80 anos), continua produtivo e dá conferências e entrevistas em várias partes do mundo. 


          É assim que caiu-nos nas mãos e sob os olhos uma entrevista recente, por ele concedida à revista Le Point, de 27 de setembro de 2012.  Ali fala sobre seu último livro intitulado A Igreja tem salvação?, no qual critica severamente a Igreja Católica que teria, segundo ele, traído suas origens. Essas mostram uma comunidade democrática e não monárquica, governada por homens que não desejavam ser senhores mas servidores do povo de Deus. Segundo o teólogo,  a Igreja hoje é centralizadora, absolutista e clerical, em nada parecida à comunidade primeva. 


          Após essa primeira afirmação, Küng critica outros pontos delicados da disciplina católica, como o lugar da mulher na comunidade eclesial, impedida de receber o sacramento da ordem e assumir funções de maior destaque; o celibato dos padres etc. Pela interpretação de Hans Küng, o fato de tais reformas ainda não terem se efetivado na Igreja se deve a uma traição ao Concílio Vaticano II levada a cabo pelos pontificados posteriores a Paulo VI.


          Em 2005, Küng foi recebido pelo atual Papa – seu antigo colega de docência e amigo em Tübingen -  para uma conversa de quatro horas, gesto que ele até hoje agradece. No entanto, se confessa decepcionado porque não se seguiu a essa conversa nenhuma mudança substancial na orientação do pontificado de Bento XVI em questões de fé e moral. 


          O mais belo dessa entrevista, dada por um homem brilhante e amargurado em muitos aspectos, porém, encontra-se em sua confissão de fé situada na parte final da mesma.  Arguido pelo repórter sobre o porquê de permanecer católico, Hans Küng confessa desassombradamente sua fé: “Não sou católico por causa do papa, mas pelo  Evangelho e o povo cristão...A Igreja Católica é minha pátria espiritual, na qual tive uma história às vezes difícil, mas apesar disso muito feliz.  Há milhões de católicos que partilham de minhas convicções. “ 


          Küng toca aí – talvez apesar de si mesmo – no coração do mistério da Igreja.  Santa e pecadora, “casta meretriz” que o Cristo desposa a cada dia.  A comunidade eclesial sempre estará atravessada de ambiguidades e contradições. E estas serão do tamanho e da proporção dos homens e mulheres que a compõem, seus membros e chefes, filhos amados do Pai, que faz nascer seu sol e cair sua chuva sobre todos e todas em toda ocasião.  


          A entrevista de Hans Küng não é carente de esperança e amor pela Igreja.  Se ele não amasse essa Igreja que chama ternamente de sua pátria espiritual, sofreria tanto pelos males que a afligem?  Estaria tão angustiado pelo fato de ver seus efetivos decrescerem, seus templos se esvaziarem e tantas pessoas debandarem de suas fileiras?  


          Ao final, perguntado se Jesus, vindo ao mundo hoje, reconheceria seus ensinamentos diante do atual Papa, Küng responde com alguma acidez, mas deixando entrever uma abertura afetuosa em relação ao atual Pontífice Bento XVI, seu antigo colega e amigo Joseph Ratzinger.  Responde que Jesus não se reconheceria na riqueza das vestes e adereços papais, nem veria nisto algo adequado ao sucessor de seu apóstolo Pedro.  Igualmente não se encontraria refletido no Cristo que o Papa descreve em seus livros.  Porém, termina, “está persuadido que, se ele olhasse no interior do coração de Joseph Ratzinger, encontraria traços de seu ensinamento.” 


          Enquanto o coração humano for fiel a Jesus de Nazaré, reconhecido e proclamado Cristo de Deus, a Igreja terá salvação.  Ainda que entre todos os seres humanos espalhados pelo planeta existisse apenas o coração de Joseph Ratzinger...ou o de Hans Küng...batendo ao ritmo do coração amante de Jesus, Verbo Encarnado e salvador do mundo.

 
Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre  ética,   mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.  

 
Copyright 2012 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

DIREITISTA E ESQUERDISTA




Frei Betto


      Nada mais parecido a um esquerdista fanático, desses que descobrem a nefasta presença do pensamento neoliberal até em mulheres que o repudiam, do que um direitista visceral, que identifica presença comunista inclusive em Chapeuzinho Vermelho.

      Os dois padecem da síndrome de pânico conspiratório. O direitista, aquinhoado por uma conjuntura que lhe é favorável, envaidece-se com a claque endinheirada que o adula como um dono a seu cão farejador. O esquerdista, cercado de adversários por todos os lados, julga que a história resulta de sua vontade.

      O direitista jamais defende os pobres e, se eventualmente o faz, é para que não percebam quão insensível ele é. Mas nem pensar em vê-lo amigo de desempregados, agricultores sem terra ou crianças de rua. Ele olha os deserdados pelo binóculo de seu preconceito, enquanto o esquerdista prefere evitar o contato com o pobre e mergulhar na retórica contida nos livros de análises sociais.

      O esquerdista enche a boca de categorias teóricas e prefere o aconchego de sua biblioteca a misturar-se com esse pobretariado que nunca chegará a ser vanguarda da história.

      O direitista adora desfilar suas ideias nos salões, brindado a vinho da melhor safra e cercado por gente fina que enxerga a sua auréola de gênio. O esquerdista coopta adeptos, pois não suporta viver sem que um punhado de incautos o encarem  como líder.

      O direitista escreve, de preferência,  para atacar aqueles que não reconhecem que ele e a verdade são duas entidades numa só natureza.

      O esquerdista não se preocupa apenas em combater o sistema, também se desgasta em tentar minar políticos e empresários que, a seu ver, são a encarnação do mal.

      O direitista posa de intelectual, empina o nariz ao ornar seus discursos com citações, como a buscar na autoridade alheia a muleta às suas secretas inseguranças. O esquerdista crê na palavra imutável dos mentores do marxismo e não admite outra hermenêutica que não a dele.

       O direitista considera que, apesar da miséria circundante, o sistema tem melhorado. O esquerdista vê no progresso avanço imperialista e não admite que seu vizinho possa sorrir enquanto uma criança chora de fome na África.

      O direitista é de uma subserviência abjeta diante dos áulicos do sistema, políticos poderosos e empresários de vulto, como se em sua cabeça residisse a teoria que sustenta todo o edifício de empreendimentos práticos que asseguram a supremacia do capital sobre a felicidade geral.

      O esquerdista não suporta autoridade, exceto a própria, e quando abre a boca plagia a si mesmo, já que suas minguadas ideias o obrigam a ser repetitivo. O direitista é emotivo, prepotente, envaidecido. O esquerdista é frio, calculista e soberbo.

      O direitista irrita-se aos berros se encontra no armário a gola da camisa mal passada. Dedicado às grandes causas, as pequenas coisas são o seu tendão de Aquiles.

      O direitista detesta falar em direitos humanos, e é condescendente com a tortura. O esquerdista admite que, uma vez no poder, os torturados de hoje serão os torturadores de amanhã.

      O direitista esbraveja por ver tantos esquerdistas sobreviverem a tudo que se fez para exterminá-los: ditaduras militares, fascismo, nazismo, queda do Muro de Berlim, dificuldade de acesso à mídia etc. O esquerdista considera o direitista um candidato ao fuzilamento.

      Direitista e esquerdista – os dois são perfeitos idiotas. O direitista padece da doença senil do capitalismo e o esquerdista, como afirmou Lênin, da doença infantil do comunismo.

      Embora mineiro, não fico em cima do muro. Sou de esquerda, mas não esquerdista. Quero todos com acesso a pão, paz e prazer, sem que os direitistas queiram reservar tais direitos a uma minoria, e sem que os esquerdistas queiram impedir os direitistas de acesso a todos os direitos – inclusive o de expressar suas delirantes fobias.


Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.

http://www.freibetto.org>
Twitter:@freibetto.

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terça-feira, 30 de outubro de 2012

POR UMA HUMANIDADE NOVA E INTEGRADA



MARCELO BARROS

Para os habitantes de Goiânia e mesmo para todos os brasileiros, deve ter um significado importante o fato do aniversário de Goiânia coincidir com o mesmo dia da fundação da ONU. Em 24 de outubro de 1933, Pedro Ludovico lançou a pedra fundamental de Goiânia que logo se tornou metrópole, ponto de encontro e convergência para quem vem dos quatro pontos do Brasil. No 24 de outubro de 1945, o mundo ainda fragilizado pelas feridas da guerra que mal acabara, viu nascer a Organização das Nações Unidas (ONU) para velar pela paz entre os povos e pela justiça entre as nações. De lá para cá, a ONU instituiu diversos organismos internacionais para ajudá-la em sua função e hoje reúne 193 países membros, além de diversos organismos internacionais que têm representação na assembleia geral. Atualmente, todos concordam que a ONU parece desprestigiada e carente de uma profunda reforma, principalmente depois que o governo dos Estados Unidos assumiu abertamente que não obedece a leis internacionais e invade países frágeis, de acordo apenas com seus interesses econômicos e militares.

Desde a década de 80, organizações civis da Europa criaram uma “ONU dos Povos”. Era uma iniciativa que não queria se contrapor ou substituir a Organização das Nações Unidas, mas assessorá-la em sua função internacionalista a serviço da paz e da justiça. No começo desse século, o processo dos diversos fóruns sociais criou efetivamente o que o próprio secretário geral da ONU chamou de “protagonismo da sociedade civil internacional como sujeito político”. Cada vez mais a humanidade toma consciência de que a política, diferentemente da politicagem, é uma atividade nobre e diz respeito ao bem comum. Tornou-se também mais claro que quanto mais nos sentimos filhos e filhas de nossa cidade, região e país, mais podemos ser, ao mesmo tempo, cidadãos e cidadãs do mundo inteiro, sem fronteiras e sem nacionalismos. Essa consciência nova de mundialidade é o que nos faz sofrer e chorar com a dor de todas as vítimas de opressão e de guerras e colaborar para uma organização nova e que integre todas as pessoas da terra em uma só família humana e com a consciência de ser membros da grande comunidade da vida. 

Na Europa, economistas e cientistas sociais lançam manifestos contra os dogmas da ditadura do mercado e do individualismo desumano da sociedade neoliberal e seus pressupostos. No mundo inteiro, cresce o movimento para que a ONU declare ilegal a pobreza. Ela é injusta e provocada por um sistema político e econômico que cria desemprego, desequilíbrio social, por visar apenas o lucro fácil e desordenado. O cientista social português Boaventura de Sousa Santos chega a afirmar que “na América Latina está surgindo uma forma nova de integração continental que é o caminho para um novo socialismo para o século XXI”. Ele se refere ao bolivarianismo que emerge em Venezuela, Equador e Bolívia, além de dar sinais de emergência em vários outros países. 

Igrejas e tradições espirituais têm aprendido que a espiritualidade é se deixar conduzir pelo Espírito e é um caminho de amor solidário. Não pode dividir a dimensão interior de cada pessoa e o aspecto social. Por isso quem busca uma espiritualidade mais profunda é chamado a colaborar com essa integração mundial e de paz. Dom Pedro Casaldáliga afirmava: “Quem diz amor e justiça, diz Deus”. Oxalá que todas as pessoas que dizem Deus estejam sim afirmando justiça e amor.