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sábado, 30 de maio de 2015

OSCAR ROMERO : O BEM-AVENTURADO

por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



            O povo salvadorenho está em festa e saiu às ruas no sábado, 23 de maio, para celebrar a beatificação de Monsenhor Oscar Romero, arcebispo de San Salvador – capital do país – assassinado no dia 25 de março de 1980, enquanto celebrava a Eucaristia. Após mais de trinta anos, Oscar Romero é declarado beato, o que na Igreja Católica é o passo anterior à canonização, que declara alguém santo.

            Por que proclamar beato ao manso, bondoso e ao mesmo tempo aguerrido profeta Oscar Romero?  O que significa a Igreja considerá-lo beato?
         A palavra “beato” quer dizer “feliz”, ditoso, bem-aventurado.  Beato é feliz em latim, assim como makarios é feliz em grego.  A última é a palavra usada no Novo Testamento, em Mateus 5 e em Lucas 6, para falar daqueles que são felizes segundo a lógica de Jesus de Nazaré.  Lendo integradamente Mateus e Lucas, beatos - felizes – são os pobres, os famintos que passam fome, mas também têm fome de Deus e confiam nele.  São aqueles que tratam com amor e carinho os outros; os que têm olhos limpos e puros para ver a verdade e dizê-la.  E também os que têm fome de justiça e lutam contra a injustiça e a mentira.  E por isso sofrem perseguição.

            Ao proclamar beato Monsenhor Romero, a Igreja o declara feliz, bem-aventurado, segundo a lógica do Evangelho de Jesus.  Como encontramos essa felicidade, essa bem-aventurança na vida desse arcebispo algo tímido, que, de repente, se fez consciente da injustiça que padecia seu povo e transformou-se no mais intrépido e corajoso profeta de que já se ouviu falar na América Latina?

            Ao anunciar que Oscar Romero seria beatificado, o Vaticano o declarou “mártir por ódio à fé”. No entanto, é importante deixar bem claro que a Romero não o mataram por recitar bem ou mal um credo, ou por enunciar correta ou incorretamente verdades dogmáticas.  Quem o matou não foram bandidos ou marginais da sociedade salvadorenha.  E sim pessoas que se consideravam e eram vistas como  muito católicas.

       Aí vemos a diferença entre fé e religião.  Monsenhor Romero foi acusado de comunista, traidor da pátria e outras tantas ofensas por defender os pobres e contestar os que os perseguiam e matavam.  Seus assassinos eram católicos de missa dominical e ritos praticados, mas não lhes interessava a defesa que o arcebispo fazia dos pobres.  Queriam continuar a gozar em paz de seus privilégios.  Talvez os assassinos de Romero fossem muito religiosos, mas é de se perguntar se realmente tinham fé.  Romero, por outro lado, acusado de, como religioso, meter-se em política, sem dúvida, tinha fé.  E por ódio a essa fé foi morto.

Odeia-se a quem tem fé e põe em prática a justiça que brota da fé e é sua consequência.  Praticar essa justiça é mostrar um grande amor aos que sofrem o peso mortal da injustiça.  Esse é o amor maior, segundo o Novo Testamento, em palavras de São João Evangelista. Amor maior de quem é assassinado por defender os pobres que não têm quem os defenda. 

            Os que conheceram de perto Oscar Romero são unânimes em afirmar que ali estava um homem de paz: que não queria violência nem morte, mas ao contrário, que a paz florescesse e brotasse como fruto maduro.  Mas também um homem que sabia que a paz é fruto da justiça e, portanto, há que combater a injustice, a fim de que a paz possa florir e frutificar.

            Era igualmente um homem de Deus.  É bem conhecida a frase de Ignacio Ellacuría, padre jesuíta igualmente assassinado nove anos depois de Romero, na mesma cidade de San Salvador, reitor da Universidade Católica e amigo próximo do arcebispo: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”.

            O padre Jon Sobrino, que igualmente trabalhou muito próximo ao arcebispo mártir, nos transcreve essa oração que monsenhor Romero escreveu em seu último retiro antes de ser assassinado.

            “Assim concretizo minha consagração ao coração de Jesus, que foi sempre fonte de inspiração e alegria cristã em minha vida.  Assim também ponho sob sua providência amorosa toda a minha vida e aceito com fé nele minha morte por mais difícil que seja.  Nem quero dar-lhe uma intenção como gostaria pela paz de meu país, e pelo florescimento de nossa Igreja, porque o coração de Cristo saberá dar o destino que queira.  Me basta para estar feliz e confiante saber com segurança que nele estão minha vida e minha morte; que apesar de meus pecados, nele pus minha confiança e não serei confundido, e outros prosseguirão com mais sabedoria e santidade os trabalhos da Igreja e da Pátria.“

            Bastava-lhe para estar feliz, bem-aventurado, “beato”, sua fé e sua confiança em Deus.  Que o beato Oscar Romero nos ensine essa felicidade tão diferente da que o mundo de hoje propõe, a fim de que possamos investir nossa vida naquilo que é realmente importante.  Amém.

A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco. 

 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>  


quinta-feira, 28 de maio de 2015

FRANCISCO E A QUESTÃO PALESTINA

por Frei Betto


       O Vaticano acaba de reconhecer o Estado Palestino. Soma-se, assim, aos 137 países que já fizeram o mesmo. EUA e Israel insistem em se posicionar contra.

       No último dia 16, o papa Francisco recebeu, em Roma, Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina. Qualificou-o de “anjo da paz”. O gesto carrega o significado simbólico de explicitar o apoio da Igreja Católica à causa palestina.

       O objetivo do encontro foi debater o combate ao terrorismo. Em países como Síria, Iraque e Líbia, cristãos têm sido martirizados pelo Exército Islâmico. Abbas, como líder muçulmano, se opõe ao grupo terrorista que, como o Taliban, é fruto da política equivocada dos EUA no Afeganistão e no Iraque.

       As negociações para o Vaticano reconhecer o Estado Palestino tiveram início em 1994, quando a Santa Sé, sob o pontificado de João Paulo II, estabeleceu relações com a OLP (Organização para a Libertação da Palestina).

       Hoje, Francisco defende o direito de coexistirem os Estados da Palestina e de Israel, o que não é aceito por este último. Israel sabe que, como Estado soberano e independente, os palestinos terão direito de constituir forças armadas regulares e manter arsenal bélico.

       Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, teme ainda que o Estado Palestino apele à Corte Internacional de Haia quanto à invasão de seu território por colonos sionistas.

        Em junho de 2014, Francisco recebeu, no Vaticano, o presidente de Israel, Shimon Peres, e o presidente Abbas. Juntos, oraram pela paz no Oriente Médio com preces judaicas, cristãs e muçulmanas.

       Na ocasião, o papa afirmou que “para fazer a paz é preciso coragem, muito mais do que para fazer a guerra. É preciso coragem para dizer sim ao encontro, e não aos enfrentamentos; sim ao diálogo, e não à violência; sim às negociações, e não às hostilidades.”

       No último domingo, na presença de Abbas, Francisco canonizou as religiosas palestinas Maria Danil Ghattas e Maria Baouardy, do século XIX. A primeira fundou a Congregação das Irmãs do Rosário de Jerusalém e a segunda era monja carmelita.

       Francisco desenvolve uma política exterior ousada, visando a estabelecer relações diplomáticas da Igreja Católica com todos os governos. Ao contrário de João Paulo II, não confunde capitalismo com democracia. E, na contramão de Bento XVI, não atribui natureza violenta ao islamismo.

       Sua mais complexa missão diplomática é reatar os vínculos com a China comunista, onde persistem duas Igrejas católicas, a Patriótica, admitida pelo Estado e não reconhecida por Roma, e a clandestina, em regime de catacumbas, que se mantém fiel ao papa.

       Essa a razão pela qual o Francisco evitou, recentemente, encontrar-se com o Dalai Lama. Não quer passar ao governo chinês a impressão de que existe um pacto antirreligioso contra a nação comunista. Além disso, as motivações do Dalai Lama e de Francisco não coincidem. O primeiro quer resgatar a independência do Tibete, hoje anexado à China. O segundo busca apenas liberdade religiosa.

       A União Europeia se deu conta, nos últimos tempos, de que no conflito Israel-Estado Palestino reside o foco da escalada de violência no Oriente Médio (Iraque, Síria, Líbia, Iêmen e Arábia Saudita).

       Espera-se que, em breve, a União Europeia defenda, no Conselho de Segurança da ONU, a proposta abraçada por Francisco para a paz no Oriente Médio: a coexistência de dois Estados, o palestino e o israelense.

       Isso, entretanto, seria apenas um importante passo rumo a um atribulado caminho regido por duas lógicas conflitantes: a de Israel, teocrática, de que Javé reservou aquelas terras como propriedade privada dos judeus, e a laica, dos palestinos islâmicos e cristãos, de que muito antes de Moisés aquelas já eram as terras de seus antepassados e de suas raízes.  

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e espiritualidade” (Vozes), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
      

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terça-feira, 26 de maio de 2015

SANTIDADE POLÍTICA

Por Marcelo Barros


Depois de longas discussões e atropelos, o Vaticano retomou o processo de canonização de Dom Oscar Romero. Nesse último sábado, 23 de maio, na praça principal de El Salvador, a Igreja Católica o proclamou beato, etapa anterior ao reconhecimento oficial de que ele viveu uma santidade que é exemplo para todos. Do mesmo modo, no domingo 03 de maio, com permissão de Roma, a arquidiocese de Olinda e Recife abriu o processo de canonização de Dom Helder Camara.

 Conforme a fé cristã, todas as pessoas batizadas são santificadas pela graça divina. Toda pessoa humana é imagem e chamada a ser semelhante a Deus. Então, vivos e falecidos, somos todos santos e santas, não por virtudes que possamos ter, mas pela ação do Espírito Divino em nós. Isso deve ficar claro: o papa ou a Igreja não tornam ninguém santo. Deus é que santifica todos os seus filhos e filhas, espalhados pelo mundo, pelos quais Jesus deu a vida (Jo 11, 52). Seja na Igreja Católica, seja nas Igrejas Ortodoxas, canonizar uma pessoa significa apenas declarar que, além de ter sido santificado/a por Deus, aquela pessoa é exemplo de santidade para todo mundo.

Embora todos/as os batizados/as sejam santificados, desde o início, o povo cristão sempre teve o costume de venerar especialmente algumas figuras especiais de irmãos e irmãs falecidos, cujo testemunho de vida pudesse animar o povo no caminho da fé. Assim, foram reconhecidos como exemplos de santidade os apóstolos e mártires. Eram reconhecidos como exemplos de santidade por terem dado a sua vida para que, no mundo, se realize o projeto divino. Nos primeiros séculos, os santos eram canonizados por aclamação popular. (Canonizar significa colocar o nome da pessoa no cânon, isso é, na lista dos santos reconhecidos pela Igreja como exemplos de santidade). A partir da Idade Média, surgiu o processo de canonização.

O objetivo da canonização é estimular todo o povo de Deus a percorrer o mesmo caminho de santidade. O processo de canonização analisa a vida e a obra do santo/a em questão. Até agora, se pede o reconhecimento de ao menos três milagres, operados por Deus, através da sua intercessão. Hoje, a noção de milagres deve ser revista porque a ciência atual tem uma visão bem mais ampla de cura. Em muitas religiões e tradições espirituais, existem curadores/as e pessoas que fazem milagres. Com todo respeito por essas tradições, nem sempre essas figuras de milagreiros são exemplos de ética e de vida justa. 

Também a própria Igreja mudou a forma de compreender a santidade. No decorrer da história, foram canonizados santos guerreiros, conquistadores e até cardeais que, como São Roberto Belarmino, em sua vida, dirigiram tribunais de inquisição e presidiram sessões de tortura contra cristãos considerados hereges. Sem negar que tais pessoas possam ser santos, no sentido de estar em Deus e com Deus, de fato, atualmente, só fundamentalistas e grupos terroristas considerariam tais pessoas como exemplos de santidade. Também devemos reconhecer: em outras épocas,  o modelo dominante de santidade era de ascetas que mortificavam o corpo. Quase não comiam e pareciam viver fora do mundo real. Por isso, alguns critérios do processo de canonização precisam ser revistos e modificados à luz do Evangelho.

Ao reconhecer figuras como Oscar Romero e Helder Camara como santos, o magistério da Igreja parece propor outro modelo de santidade, baseado principalmente na capacidade de viver a solidariedade humana e defender a vida e a justiça em todas as suas dimensões. Cada vez mais, o mundo precisa desse tipo de santidade social e política a serviço do reinado divino no mundo. Em si, Oscar Romero e Helder Camara nem precisariam de canonização. Ambos já são aclamados como exemplos por todo o povo. No entanto, se a hierarquia da Igreja Católica quer reconhecê-los como santos exemplares, Deus queira que seja para que todos nós nos comprometamos a seguir o exemplo e a profecia que eles nos deixaram.

No ano 2000, a Igreja Anglicana colocou no pórtico da Catedral de Westminster, em Londres, figuras de cristãos que os anglicanos consideram santos, mesmo sendo de outras Igrejas. Assim, antes do Vaticano reconhecer o bispo católico Oscar Romero como santo, o papa Bento XVI visitou Londres em 2010. Ao entrar no pórtico da Catedral anglicana, passou pela estátua de Dom Romero, já reconhecido como santo pelos anglicanos.


O que atualmente, no céu, Dom Romero e Dom Helder mais gostariam de ver na terra é toda a Igreja universal seguir as propostas de renovação eclesial feitas pelo papa Francisco, na linha que eles dois, em seu tempo, já ensaiavam. Certamente, os obstáculos existem, mas, como diz a carta aos hebreus: “Cercados por tais testemunhas, (Romero e Helder Camara) libertemo-nos dos obstáculos e corramos na direção do Cristo” (Hb 12, 1).  

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O DIREITO CONTRA A DIREITA

Por Leonardo Boff



Prolongando reflexões anteriores, vejo que para tentarmos sair da atual crise (se possível) duas pressuposições devem ser consideradas seriamente. Caso contrário há o risco de perdermos tudo o que tivermos projetado: o colapso da ordem capitalista e os limites intransponíveis da Terra. Naturalmente trata-se de hipóteses, mas creio que fundadas.

Primeria pressuposição: o sistema do capital entrou em colapso que significa o seu fim num duplo sentido: fim no sentido de que alcançou seu propósito fundamental: aumentar a acumulação privada até o seu limite extremo. Como constatou Thomas Piketty em seu O capital no século XXI:“os poucos que estão no topo tendem a apropriar-se de uma grande parcela da riqueza nacional”. Hoje essa tendência não é só nacional mas global.

Os dados variam de ano para ano, mas no fundo se resumem nisso: um grupo cada vez menor detém e controla grande parte da riqueza mundial. Hoje são, segundo dados do respeitado Instituto Suiço de Pesquisa Tecnológica(ETH), 737 atores que controlam cerca de 80% dos fluxos financeiros mundiais. Dentro de pouco serão muito menos.

Mas esse fim significa também fim como colapso e desfecho final. A agonia pode se prolongar, pois ele usa de mil estrategemas para se perpetuar, mas a crise é inevitavelmente terminal. O capitalismo alcançou o teto e não consegue ir além; pior ainda, não tem mais nada a nos oferecer, a não ser mais do mesmo que é aquilo que produz a crise: sua ilimitada voracidade.

Ocorre que encostou nos limites físicos da Terra; a exaustão dos bens naturais é de tal ordem que não tem mais condições de se autoreproduzir pois precisa deles. Ao forçar a sua lógica interna, pode tornar-se biocida, ecocida e, no limite, geocida. Como não pode mais se autoreproduzir, volta-se sobre si mesmo, acumulando com mais e mais fúria, via especulação financeira: dinheiro fazendo dinheiro. O lema continua ser o mesmo, o perverso”greed is good”(a cobiça é boa). Danem-se a humanidade, a natureza e o futuro das próximas gerações.

Se no Brasil quisermos sair da crise à base desta lógica, estamos escolhendo o caminho do abismo. Dentro de pouco, todos experimentaremos na carne o sentido da metáfora de Sören Kirkegaard: o palhaço convocou os espectadores a ajudar a apagar o fogo nas cortinas de trás do teatro; todos riam e aplaudiam pois pensavam que era parte do espetáculo. Ninguém atendeu o palhaço até que o fogo queimou o teatro inteiro e todos os que estavam dentro e ainda os arredores.

A segunda pressuposição, quase sempre ausente nos analistas econômicos convencionais, é o estado gravemente doentio do planeta Terra. A aceleração produtivista está destruindo, célere, as bases físico-químicas que sustentam a vida, além de gerar uma espantosa erosão da biodiversidade (cerca de cem mil espécies, segundo E. Wilson, desparecem por ano) e o irrefreável aquecimento global, cujos gases de efeito estufa atingiram atualmente os níveis mais elevados desde 800 mil anos. Com a subida de 2 graus Celsius de aquecimento, poderemos ainda gestionar a biosfera. Contudo, se a partir de agora nada fizermos, como asseverou já em 2002 a sociedade científica norteamericana, ainda neste século, podemos conhecer o “aquecimento abrupto”. Este poderá chegar de 4-6 graus Celsius. Sob esta temperatura, adverte a comunidade científica, as formas de vida conhecidas não irão subsisitir e grande parte da humanidade será atingida gravemente com milhões de vítimas.

Como sair desse impasse? Talvez ninguém tenha condições de oferecer uma alternativa realmente viável, pois ela possui uma dimensão que vai além do Brasil, pois é global. A nós, intelectuais, cabe refletir, alertar e urgir medidas concretas. É o nosso imperativo ético.

Minha bola fosca de cristal me sugere três caminhos:

O primeiro, face à gravidade da crise, criar um consenso mínimo, supra-partidário, envolvendo parlamentares progressitas, sindicatos, empresas, a inteligentzia nacional, ONGs, as igrejas e povo na rua, ao redor de um projeto mínimo de Brasil fundado em alguns princípios e valores assumidos por todos (seguramente se exigirá uma reforma política, tributária e pesado investimento na agroecologia). Estimo que a liderança de Lula seria ainda suficientemente forte para encabeçar esta proposta. O Governo de Itamar Franco, pós-crise Collor, poderia servir de referência inspiradora.

O segundo, seria constituir uma frente ampla e vigorosa de partidos progressistas, sindicatos e outros grupos e intelectuais progressistas para fazer frente ao forte avanço da direita com suas políticas neo-liberais, asssociadas ao projeto-mundo, liderado pelos países centrais. A direita não tem uma preocupação social consistente, pois ela está interessada no crescimento via PIB que favorece as classes proprietárias e os bancos, deixando os pobres lá onde sempre estiveram, na periferia.

Novamente, estimo que a figura mais adequada para costurar esta frente progressista seria Lula. Mas sua condução deveria ser pluralista e não personalista. A convergência na diversidade, não anularia as singularidades dos partidos e dos grupos que possuem sua identidade e sua história. Mas face a um risco geral, devem relativizar o particular em função do universal.

O terceiro caminho seria o PT fazer uma rigorosa auto-crítica, (até hoje nunca fez) se recompor internamente, reforçar o nexo do poder com os movimentos sociais, politizar o mais rapidamente possível as bases e apresentar-se com uma agenda nova que completaria a primeira cujos items básicos seriam a infra-estrutura em saúde, educação, transporte, a urbanização das favelas, a reforma política, a tributária e a agrária, entre outros itens.

Mas vejo que o desgaste do PT a partir de um punhado de traidores e ladrões que envergonharam mais de um milhão de filiados e desmoralizaram o país face a si mesmo e ao mundo, torna frágil, talvez até inócuo este caminho.

Por algumas destas saídas se poderá superar a perplexidade, o sentimento de impotência e construir alguma esperança de que ainda temos jeito. Seja como for, o que conta mesmo na superação de qualquer crise é esse tripé, verdadeira Trindade da economia sã que vai além do PIB pequeno ou grande: o emprego, o salário e a promoção social das bases. Isso garantirá a sobrevivência da maioria e criará uma ordem suportável.

Seja como for, à direita política que excogita saídas fora da democracia, devemos opôr o direito. Não podemos aceitar a quebra do rito democrático pois a história mostrou que ela não possui um compromisso sério com a democracia; para salvar seus intereses não teme a quebra das regras.
Quanto a nós não nos é permitido desistir de buscar o melhor para o nosso país, para além das diferenças e desavenças que possam existir. O bem comum deve prevalecer sobre qualquer outro bem particular.

Leonardo Boff é filósofo, ecólogo e escritor



sexta-feira, 22 de maio de 2015

FELIZ ANIVERSÁRIO!


  Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
                       



Não se trata aqui do meu aniversário, acontecido há poucos dias.  Mas de outro muito mais importante.  Quem faz um jovem aniversário de 50 anos é a revista Concilium.

O Concílio Vaticano II, iniciado em 1962 e encerrado em 1965, representou um marco não apenas para a Teologia, mas para toda a vida da Igreja.  Desde o discurso inaugural do Papa João XXIII, na abertura do evento, ficou claro para a sociedade como um todo e para a Igreja em particular que aquele era um concílio diferente dos outros tantos já acontecidos na história.  Pois não se preocupava tanto a Igreja em julgar o passado, mas, sim, em abrir o future, a fim de que o diálogo entre Igreja e mundo moderno e secularizado pudesse, finalmente, acontecer.

Reformas importantes foram levadas a cabo na liturgia, no modelo de compreensão do que seja a Igreja, na forma de entender e realizar a pastoral, no relacionamento com outras igrejas e religiões.  Na Teologia, o eixo central e ponto de partida passou a ser antropocêntrico, e não mais teocêntrico como antes sucedia.  A Igreja Católica desejava olhar para o ser humano, suas angústias e dificuldades, mas também suas alegrias e esperanças, para elaborar seu discurso de inteligência da fé.

A revista Concilium, fundada no mesmo ano em que terminou o Vaticano II (1965), pretendeu desde o seu lançamento oferecer ao povo de Deus uma reflexão teológica em profunda e fina sintonia com as propostas conciliares, a fim de formar e motivar as novas gerações a se voltarem para a sociedade e a história, e a partir daí viverem sua fé e agirem em coerência com a mesma.
Publicada há 50 anos, cinco vezes ao ano, Concilium é uma revista de teologia que deseja atingir o mundo inteiro.  Seus editores e participantes constituem uma equipe de alto nível em termos do mundo acadêmico. E não se compõe este comitê editorial apenas de nomes já consagrados na teologia católica, mas igualmente de novas vozes vindas de várias partes do mundo e que, com sua nova visão, enriquecem a revista.

O objetivo da Concilium é, pois, promover debate e discussão teológica no espírito do Vaticano II, a partir do qual nasceu e se consolidou. Trata-se de uma revista católica no sentido mais amplo do termo: enraizada firmemente na herança católica, aberta a outras tradições cristãs e a outras tradições religiosas existentes no mundo.  Cada número de Concilium é centrado em um tema de crucial importância e abrangente alcance para o nosso tempo.
As contribuições dos artigos e ensaios da revista vêm da Ásia, África, América do Sul e do Norte e da Europa. Publicada em seis idiomas - inglês, alemão, italiano, português, espanhol e croata -, a revista reflete verdadeiramente as múltiplas facetas de nossa sociedade plural e de uma Igreja desejosa de dialogar com esta pluralidade.

É no sentido de celebrar este jubileu tão importante – 50 anos de existência de uma teologia em sintonia com os tempos e as culturas de hoje – que a PUC-Rio, através de seu Departamento de Teologia e da Cátedra Carlo Maria Martini, do Centro de Teologia e Ciências Humanas, organiza a partir do próximo dia 26 de maio o V Simpósio de Teologia com o tema Caminhos de Libertação: Alegrias e Esperanças para o Futuro.
Este Simpósio dá continuidade à já tradicional iniciativa do Departamento de Teologia da PUC-Rio de realizar periodicamente encontros internacionais para promoção do saber teológico e de sua relação com outras áreas do conhecimento.
       Assim, o Simpósio soma-se às comemorações que ocorrerão em várias partes do mundo pelo 50º aniversário da revista Concilium, concomitante com o 50º aniversário do Concílio Vaticano II.  O Conselho Editorial da revista fará sua reunião anual após o Simpósio e o público brasileiro poderá ouvir, dialogar e conviver com teólogos de tão variadas procedências e de reconhecida competência em suas áreas de reflexão.

A finalidade principal deste Simpósio é aprofundar a teologia conciliar, mas não apenas olhando para o passado – pujante e glorioso – dos pais fundadores da revista, como Rahner, Metz, Schillebeckx, Congar, Kung e outros.  Deseja-se, antes, olhar para o futuro a partir do presente, no qual o povo cristão partilha As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem(Gaudium et Spes 1).
Assim como o Concílio e a Revista, que quis e quer encarnar seu espírito, o Simpósio pretende celebrar e seguir hoje as pegadas daqueles e daquelas que configuraram essa visão de mundo, de humanidade e de Deus.  É uma rara oportunidade ouvir diferentes vozes, de diversas latitudes e refletir sobre os grandes desafios que hoje se apresentam à fé e à teologia.  Por isso, cada conferencista, cada painelista, cada debatedor apresentará, a partir da sua disciplina, suas esperanças para o futuro da teologia em um mundo tão diverso e cambiante.

     Esperamos que seja uma bela celebração!  Feliz Aniversário, Concilium!  E continue corajosamente mostrando ao mundo o que o Cristianismo tem a contribuir para os grandes problemas e inquietações da humanidade!

A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
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quinta-feira, 21 de maio de 2015

QUAL UTOPIA? O QUE FAZER?

     
 por Frei Betto


      Essas duas interrogações movimentam os grupos de oração que assessoro. Diante da depressão cívica que assola o Brasil, há que recorrer à lâmpada de Diógenes e buscar luz no fim do túnel.

      Utopia significa quimera, o que não se pode alcançar. Eduardo Galeano a comparou ao horizonte: quanto mais se caminha rumo a ele, mais ele se afasta. No entanto, ele norteia os nossos passos. O termo foi cunhado por Thomas Morus, santo católico, no livro de mesmo título publicado na Inglaterra, em 1516.

      “Que fazer?” é o titulo do livro de Lênin, editado em 1902 para motivar os comunistas russos à revolução vitoriosa em 1917.

      As duas indagações nos interpelam hoje. Responder à primeira não é difícil: queremos outros mundos possíveis, onde não haja injustiça e no qual sejam partilhados os frutos da Terra e do trabalho humano. Só à poderosa minoria que desfruta da desigualdade social não interessa o colapso do capitalismo neoliberal.

      Os cristãos, em decorrência de sua fé, têm a obrigação moral de não se conformar com esse mundo. Devemos centrar a esperança no Reino de Deus que, para Jesus, não era apenas uma instância pós-morte, mas um projeto a se realizar no futuro histórico.

      Por isso, Jesus foi condenado como prisioneiro político. Pregou, sob o reino de César, outro reino...

      Porém, “que fazer?” É mais fácil listar o que “não fazer”: compactuar com a opressão e a corrupção; aceitar discriminações; sobrepor a competitividade à solidariedade; ferir a ética e contrariar os direitos humanos etc.

      Quanto ao fazer, cabe a cada um, dentro de seu contexto e segundo suas possibilidades, dar respostas efetivas. Considero tarefa imediata organizar a esperança. Reforçar movimentos sociais que defendem os direitos dos mais pobres, animar jovens a abraçar a utopia, fomentar educação popular na formação de novos protagonistas sociais.

      É preciso resistir à tentação de descartar o partido político como mediador entre sociedade civil e Estado. Para equacionar problemas de convivência social, o ser humano ainda não inventou outro recurso melhor do que a política. Quem tem nojo da política é governado por quem não tem. E tudo que os políticos safados esperam é que tenhamos bastante nojo da política.

      Para mediar a relação sociedade civil e Estado também não se criou outra instância melhor fora dos partidos. São eles que sistematizam nossos anseios de cidadania em programas e projetos a serem administrados e realizados pelo Estado.

      Se um partido desce ladeira abaixo após perder a identidade que o diferenciava, para melhor, dos demais partidos, não haverá quem acione a luta interna para que o partido retorne a seus princípios originários?

      Os novos partidos serão capazes de evitar os erros cometidos pelos que trocaram o projeto de Brasil pela ambição de poder?

      Repito: é hora de deixar o pessimismo para dias melhores. O mistério pascal ensina que a vida sempre prevalece sobre a morte, ainda que as aparências indiquem o contrário.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
    


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terça-feira, 19 de maio de 2015

UNIDADE NAS DIFERENÇAS

Por Marcelo Barros


Em meio a um mundo, cada vez mais diversificado, a unidade entre pessoas e a paz no mundo representam desafios sempre mais exigentes. O Conselho Mundial de Igrejas que reúne 345 confissões cristãs promove a cada ano uma Semana de Oração e Diálogo pela Unidade das Igrejas. No Brasil, essa semana acontece nesses dias, de 17 a 24 de maio, semana anterior à festa de Pentecostes, na qual os cristãos celebram a presença amorosa do Espírito de Deus em toda a criação e no mais íntimo de toda pessoa humana. No Brasil, a Semana de Oração pela Unidade tem seus subsídios preparados e coordenados pelo CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), com apoio da CNBB e de outros organismos católicos e evangélicos. Ao escrever sua carta sobre a alegria do evangelho, o papa Francisco insistiu que, como, há mais de 50 anos, o Concílio Vaticano II afirmou: “a divisão entre os cristãos é um contratestemunho que não colabora para a paz do mundo e se constitui como um obstáculo ao cumprimento da missão evangélica” (Cf. EG n. 244-246). Por isso, cristãos das mais diversas Igrejas, membros de outras religiões e mesmo pessoas de boa vontade, não ligadas a nenhuma tradição religiosa, estão convidadas/os a entrar em uma espécie de mutirão de diálogo e de busca da comunhão que supera a divisão, mas respeita a diversidade.

Cada vez mais, o Brasil se caracteriza por uma grande pluralidade de culturas e religiões. Há milhares de anos, por todo o nosso território, povos diversos viviam suas tradições próprias e tinham seu modo de adorar o Espírito presente na natureza. Há 500 anos, com a conquista, os portugueses trouxeram o Cristianismo e impuseram a todos a Igreja Católica. Com o decorrer dos tempos, esse quadro foi transformado. Tornou-se mais rico e diversificado. Atualmente, o Cristianismo  tem quatro grandes tipos de Igrejas: as Ortodoxas, a Católica, as Evangélicas e as Pentecostais. Entre as evangélicas, temos Igrejas Luteranas, Episcopais anglicanas, a Igreja Metodista, as presbiterianas, batistas e outras. Do Pentecostalismo clássico, temos as Assembleias de Deus, a Igreja do Evangelho Quadrangular, a Congregação Cristã do Brasil e outras. Neopentecostais ou de um Pentecostalismo autônomo são a Igreja Universal do Reino de Deus, a Casa da Bênção, Renascer e outras.

Em meio a essa grande diversidade, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) é uma pequena fraternidade de Igrejas. Estas se reúnem para apoiar-se umas às outras na missão e no serviço à humanidade, assim como para estimular o respeito e o diálogo dos cristãos com as outras tradições religiosas presentes e atuantes no território nacional.

No decorrer da história, muitas vezes, em nome de Jesus, os missionários católicos e evangélicos perseguiram e condenaram as outras religiões. Aqui no Brasil, até hoje, infelizmente, há cristãos que discriminam e atacam as tradições religiosas indígenas e afrodescendentes. Esse modo de agir, além de ilegal e vergonhoso, dá um péssimo testemunho de Jesus que sempre valorizou a fé de pessoas de outras culturas e religiões, como a mulher samaritana, a sírio fenícia e o oficial romano, cujo filho, ele curou.

Nessa semana de oração pela unidade, o tema geral é tirado da conversa de Jesus com a mulher samaritana: “Dá-me um pouco da tua água” (Cf. João 4). À beira do poço, Jesus lhe havia pedido: “Dá-me de beber”. Ao saber que Jesus poderia lhe dar uma água viva que jorra para sempre, a mulher lhe pede: “Dá-me um pouco dessa água”. O evangelho mostra que a água representa tudo aquilo que cada um de nós pode compartilhar com o outro. No entanto, significa principalmente o dom do Espírito que Deus quer dar a todas as pessoas nas mais diversas culturas. Por sua ressurreição, Jesus nos comunica esse presente divino (Jo 7, 37). Com Jesus, queremos aprender o que Deus quer nos dizer através das outras expressões de fé. Respeitar as outras religiões e com elas entrar em diálogo é uma forma de testemunhar que Deus é amor e que o seu Espírito se manifesta de mil maneiras no mundo. Ele não assinou contrato de exclusividade com nenhuma religião, ou tradição espiritual. No próximo domingo, festa de Pentecostes, no mundo inteiro, as Igrejas de tradição latina iniciarão a celebração da Ceia do Senhor com uma palavra do livro da Sabedoria: “O Espírito do Senhor, o universo todo encheu. Tudo abarca em seu saber, tudo enlaça em seu amor, aleluia” (Sb 1, 7).  

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países






sexta-feira, 15 de maio de 2015

HUMILDADE: UMA VIRTUDE COM MÁ REPUTAÇÃO

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.



      A humildade é uma virtude incontestável, que anda meio esquecida, mas se faz sempre mais necessária.  O cristianismo fez dela uma das mais importantes virtudes, condição mesma para viver sua proposta. Pois para reconhecer a majestade e a infinitude de Deus e reconhecer-se criatura finita, pobre e limitada, é preciso ser humilde, ou seja, ter noção exata da própria  envergadura e dos próprios condicionamentos.

      Realmente, o que vem a humildade, com seu conteúdo de verdade e modéstia, de simplicidade e verdade, fazer num mundo que canoniza o poder, que vive de aparências, supervaloriza o ter em detrimento do ser e constrói a cada minuto ídolos e fetiches que o possam guindar sempre mais alto nas escalas social e profissional, à frente, nunca atrás, ainda que seja usando os outros para conseguir seu intento?

      Uma pessoa humilde é malvista em nossa sociedade.  Dela diz-se que não tem ambição nem garra, é fraca de personalidade, que não sabe se impor.  Mais: é tida como boba, idiota, que não sabe aproveitar as oportunidades e chances que a vida lhe dá e se deixa ultrapassar pelos outros. Não se apega às conquistas conseguidas, não se agarra ao prestígio e ao poder dela emanados, mas deles se afasta, deixando o caminho livre para os adversários e concorrentes.


      Apesar de o Cristianismo raramente ter sido considerado uma religião humilde, quase sempre associado à arrogância religiosa e ao triunfalismo, e com uma confiança absoluta na verdade superior de seus próprios ensinamentos, a virtude da humildade desempenhou papel central na tradição cristã desde suas origens.

    Santo Antão a ela se refere como “a primeira de todas as virtudes” e, para Santo Agostinho, consiste na “soma total do remédio que nos cura”. Dentro da tradição monástica do Ocidente, o caminho de subida para Deus foi desenvolvido em termos de doze degraus de humildade.  E sua importância é tema central na reflexão e nos escritos da maioria dos místicos cristãos, desde Gregório o Grande até o anônimo autor inglês da “Nuvem do não saber” do século XIV; passando pela grande mística carmelita Teresa de Ávila e por João da Cruz até os diálogos espirituais entre Francisco de Sales e Joana de Chantal.

      Mesmo em tempos em que a importância da humildade possa ter parecido ser virtualmente eclipsada pelo triunfalismo e o poder eclesiástico, continuou a encontrar seu lugar central e inequívoco na obra de grandes teólogos como Tomás de Aquino e fundadores e espirituais do porte de Inácio de Loyola, que propõe em seus Exercícios Espirituais levar o retirante ao terceiro grau de humildade, desejando antes a pobreza e a loucura por Cristo do que o prestígio que o mundo dá.

      E embora a noção de humildade tenha sido olhada como profundamente oposta à ênfase moderna na autonomia humana e na excelência individual, ainda figura com proeminência nos escritos de autores espirituais mais contemporâneos como Simone Weil, Emmanuel Mounier e Jean-Louis Chrétien.  Este último chega a afirmar: “É bonito que a mais profunda das virtudes tenha uma reputação tão negativa. “

  A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  

 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
     


quinta-feira, 14 de maio de 2015

TRÊS PAPAS EM CUBA

por Frei Betto


      O Vaticano acaba de anunciar que, a caminho dos EUA, no final de setembro, o papa Francisco visitará Cuba. O único país socialista da história do Ocidente divide com o Brasil o privilégio de merecer a visita dos três últimos pontífices.
      Assessorei o governo cubano no decorrer das viagens de João Paulo II (janeiro de 1998) e Bento XVI (março de 2012), e testemunhei o entusiasmo com que foram acolhidos pela população.
      Quando Bento XVI anunciou que iria à ilha, os bispos da América Latina se queixaram, pois ele havia visitado, no Continente, apenas o Brasil, e não reservara agenda para outros países majoritariamente católicos, como México, Colômbia e Argentina. A queixa obrigou Bento XVI a fazer escala no México, onde recebeu os bispos do Conselho Episcopal Latino-Americano.
      Em Cuba, apenas 5% da população de quase 12 milhões de habitantes se declaram católicos.
      A Casa Branca (George W. Bush) pressionou João Paulo II, de todas as formas, para que ele não fosse a Cuba. Se fosse, condenasse o regime revolucionário. Wojtyla foi, permaneceu ali cinco dias, mais do que o tempo habitual dedicado a outros países, estreitou seus laços de amizade com Fidel, e ainda elogiou os avanços sociais da Revolução, como a saúde e a educação.
      Bento XVI esteve em Cuba por apenas três dias, e também nada expressou que contrariasse as autoridades do país.
      Na visita de João Paulo II, Fidel quebrou o protocolo e, todas as noites, esteve na nunciatura, onde o pontífice se hospedou. Mantiveram longas conversas regadas a sucos tropicais.


      Raúl, em 2012, teve a sorte de um forte temporal impedir que a aeronave de Bento XVI decolasse na hora prevista, o que possibilitou longa conversa entre os dois.
      Tanto Fidel quanto Raúl foram alunos internos de colégios jesuítas por longos anos, e consideram muito positivo esse período de suas vidas. Aliás, para entender suas personalidades há que conhecer como os jesuítas forjavam o caráter de seus alunos na primeira metade do século XX.
      Após a visita de João Paulo II, o teólogo italiano Giulio Girardi, em almoço com Fidel, comentou considerar exorbitante o papa presentear a Virgem da Caridade, a Aparecida de Cuba, com uma coroa de ouro. Fidel reagiu bravo: “A Virgem da Caridade não é apenas padroeira dos católicos. É padroeira de Cuba.”
      O papa Francisco fez a ponte (daí pontífice) para Cuba e EUA se reaproximarem, como admitiram Raúl e Obama nos discursos de retomada da boa vizinhança, a 17 de dezembro de 2014.
      Em 1959, a vitória da Revolução contou com a reação contrária da Igreja Católica, marcada pelo franquismo espanhol. Embora nenhum sacerdote tenha sido perseguido e nenhum templo fechado, o diálogo entre Estado e Igreja na ilha se resumia à amizade de Fidel com os núncios papais. A relação com o Vaticano jamais se rompeu.
      Em 1981, por solicitação de Fidel, e anuência dos bispos cubanos, iniciei no país o trabalho de reaproximação entre Igreja Católica e Estado. A publicação do livro “Fidel e a Religião”, em 1985, reduziu significativamente o preconceito comunista à religião e o temor dos católicos frente à Revolução.
      Fidel retomou o diálogo com os bispos. Suprimiu-se o caráter ateu do Estado e do Partido Comunista de Cuba, hoje oficialmente laicos. Agora, são excelentes as relações do governo cubano com a Igreja Católica, para tristeza dos anticastristas de Miami, que insistem em demonizar a Revolução.
      Ao desembarcar em Havana, o papa Francisco não encontrará uma nação católica. E muito menos ateia. Será acolhido calorosamente por um povo imbuído de religiosidade sincrética, na qual se mesclam, como na Bahia, espiritualidade animista de origem africana e tradições cristãs. Um povo que, como nenhum outro do Continente americano, reparte entre si e com outros povos o pão da vida.  

Frei Betto é escritor, autor de “Oito vias para ser feliz” (Planeta), entre outros livros.
     
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
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terça-feira, 12 de maio de 2015

MEIOS DE COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA

Por Marcelo Barros


Na semana passada, a ONU comemorou o “dia internacional pela liberdade dos meios de comunicação” e no próximo domingo, 17, celebra o “dia das telecomunicações”. Atualmente, o telefone celular e a internet nos ligam, em tempo real, ao mundo inteiro. No entanto, são ainda os noticiários da televisão e do rádio que mais formam a opinião pública.

De um lado, os proprietários das redes de rádio, televisão e jornal veem qualquer tentativa de regulação desses meios como censura e ataque à liberdade de imprensa. Do outro lado, cada dia fica mais claro que as grandes agências de comunicação servem aos interesses das elites econômicas, até porque em quase todos os países, poucas famílias possuem os meios de comunicação e sempre têm grandes interesses comerciais. As grandes agências de notícias norte-americanas são propriedades das mesmas empresas que possuem  as companhias de petróleo e indústrias de armamento.  

No Brasil e em outros países do continente, as televisões privilegiam programas que investem em preconceitos sociais, ridicularizam direitos humanos e fazem propaganda subliminar a favor da pena de morte. Sob a direção do presidente da Câmara Federal, pregam a diminuição da idade penal, como se colocar adolescentes em prisões resolvesse o problema da violência nas cidades. Além disso, criminalizam os movimentos populares e atacam de todos os modos qualquer governo que, na América Latina, pretenda transformar a sociedade. As pessoas que têm sua opinião formada através desses meios de comunicação chegam a pensar que, no Brasil, só existem corrupção política e violência e essa situação é culpa do governo federal. De fato, esse tem cometido erros e tem sua parcela de culpa, mas de um modo e por fatores contrários  a aqueles que os meios de comunicação apontam.

 Há exatamente um mês, nos dias 11 e 12 de abril, em Belo Horizonte, ocorreu o 2o Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação. Ali mais de 700 pessoas ligadas ao trabalho da comunicação e aos movimentos sociais se reuniram e reafirmaram a necessidade urgente do Brasil ter instrumentos de regulação democrática dos meios de comunicação. Em sua carta de conclusão, os/as participantes desse encontro pedem ao governo de abrir oficialmente esse debate na sociedade e concluem: “A defesa da democracia é uma das principais bandeiras de luta da sociedade brasileira. E a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática só se realiza se houver liberdade de expressão para todos e todas. Isso pressupõe a garantia do direito à comunicação” (Cf. Brasil de Fato, 16/04/2015, p. 08).

De fato, a sociedade brasileira nunca deveria aceitar que pais de família, apenas acusados de corrupção, mas não condenados por nenhum tribunal, tenham sua fotografia em capas de revista e cartazes com seu nome estampado e embaixo a legenda: “Dez anos de corrupção”. E isso é feito sem que nenhuma defesa real possa ser apresentada. É um linchamento público no estilo do velho oeste norte-americano, sem respeitar as famílias envolvidas, filhos de menor idade, apenas para saciar o ódio de classe da velha elite que não se conforma em ter sido derrotada nas últimas eleições presidenciais.  

Para os cristãos, o termo evangelho significa boa notícia no sentido do anúncio de que Deus tem um programa para o mundo. Todos nós somos chamados a testemunhar e colaborar com essa novidade. Por isso, atualmente, muitas vezes, são os/as jornalistas verdadeiramente éticos/as e profissionais de comunicação que assumem a função de verdadeiros evangelizadores, não de doutrinas religiosas e sim do projeto divino de justiça e paz para o mundo. Através desses profissionais, os meios de comunicação podem cumprir sua função de fazer desse mundo um planeta de paz e de convivência amorosa entre todos os seres humanos e em comunhão com a Terra e toda a natureza.   

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países