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terça-feira, 29 de abril de 2014

Juventude e espiritualidade libertadora



Por Marcelo Barros



Nesses próximos dias, de 1 a 4 de maio, em Fortaleza, CE, quatrocentos jovens de todo o Brasil se reúnem para refletir sobre como viver a espiritualidade como força libertadora para a própria pessoa e para o mundo. De fato, a Campanha da Fraternidade desse ano tem como lema a palavra do apóstolo Paulo: “Foi para que sejamos livres que Cristo nos libertou”(Gl 5, 1). 

Até hoje, muitos movimentos e grupos religiosos interpretam a libertação espiritual meramente como um impulso interior e moral no sentido de libertação das paixões e liberdade com relação às coisas materiais. Essa visão reduz a espiritualidade a um tipo de espiritualismo que se opõe ao materialismo e se interessa apenas pelo indivíduo. Muitos afirmam: ao se conseguir transformar o coração humano, se começa a transformar o mundo. De fato, todos sabemos: o mundo nunca será transformado se não se convertem as pessoas em sua dimensão interior, mas, ao mesmo tempo, temos consciência de que não basta mudar os corações para que o mundo seja transformado. As estruturas sociais têm um peso além da vontade dos indivíduos. São Paulo dizia: “Se eu não pratico o bem que eu quero e acabo fazendo o mal que não quero, então, o mal é maior do que eu. Habita em mim, mas me ultrapassa” (cf. Rm 7). É preciso sempre e, ao mesmo tempo, trabalhar nos dois níveis: a dimensão pessoal e também a social e política.  

De fato, a Bíblia não pode ser compreendida como uma revelação divina dirigida apenas a pessoas em sua interioridade. Há 50 anos, um dos documentos mais importantes do Concílio Vaticano II, assinado por todos os bispos católicos do mundo, afirmava: “Deus não quis salvar as pessoas apenas individualmente, mas as reuniu como um povo” (Cf. Lumen Gentium, 2). 

Não se pode compreender como mera alegoria simbólica o que a Bíblia conta sobre o Êxodo dos hebreus da escravidão do Egito para a terra prometida e todas as profecias bíblicas nas quais Deus pede justiça e uma organização igualitária para o mundo. O espiritualismo esquece que Jesus assumiu como missão o anúncio do reino de Deus como projeto de um mundo novo de justiça e paz. E por essa verdade do reino, ele deu a vida.  

O termo espiritualidade não se encontra na Bíblia e em nenhum dos textos sagrados das grandes religiões antigas. No entanto, no século IV, Gregório de Nissa, pastor da Igreja Oriental, o usou e o definiu como “deixar que toda a nossa vida seja conduzida pelo Espírito de Deus”. Hoje, buscamos a espiritualidade quando dedicamos nossa vida à realização do projeto divino sobre nós e sobre o mundo e, ao mesmo tempo, conseguimos fazer isso buscando viver a intimidade com Deus na escuta de sua Palavra, na oração e na comunhão fraterna . O importante é viver o projeto divino de justiça e construção de um mundo novo. Ao mesmo tempo, quem busca uma espiritualidade profunda quer viver isso na relação intima com Deus. Para os cristãos, isso se dá no seguimento de Jesus e na relação de discípulos/as com o mestre. 

As diversas formas de Cristianismo popular sempre ligaram a fé com a busca da saúde e das necessidades concretas da vida. O povo mais empobrecido sempre espera um milagre divino para o dia a dia da vida. A busca pela saúde e promoção humana é sempre um direito de todos e é do agrado de Deus. Mas, quando esse caminho é percorrido de forma meramente individual e sem compromisso social, pode ser alienado e alienante.  Um salmo bíblico afirma: “Os céus são de Deus, mas a terra, ele a entregou aos seres humanos” (Sl 115). 

Há mais de 40 anos, a Teologia da Libertação procura acompanhar e apoiar as comunidades cristãs populares nesse caminho de unir fé e vida, espiritualidade e compromisso social. 

Dom Helder Câmara, o grande profeta, afirmava e Zé Vicente expressa em uma de suas belas canções da caminhada: “Sonho que se sonha só pode ser mera” ilusão. Por isso, vamos sonhar companheiros/as, sonhar em mutirão”.  
 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

“A beleza salvará o mundo”: Dostoiewski nos ensina como



por Leonardo Boff


Dos gregos aprendemos e isso atravessou  os séculos, que todo ser, por diferente que seja, possui três características transcendentais (estão sempre presentes pouco importa a situação, o lugar e o tempo): ele é o unum, o verum e o bonum, quer dizer ele goza de uma unidade interna que o mantem na existência, ele é verdadeiro, porque se mostra assim como de fato é e é bom porque desempenha bem o seu lugar junto aos demais ajudando-os a existirem e coexistirem.

Coube aos mestres franciscanos medievais, como Alexandre de Hales e especialmente São Boaventura que, prolongando uma tradição vinda de Dionísio Aeropagita e de Santo Agostinho, acrescentarem ao ser mais uma característica transcendental: o pulchrum vale dizer, o belo. Baseados, seguramente na experiência pessoal de São Francisco que era um poeta e um esteta de excepcional qualidade, que “no belo das criaturas via o Belíssimo,” enriqueceram nossa compreensão do ser com a dimensão da beleza. Todos os seres, mesmo aqueles que nos parecem hediondos, se os olharmos com afeição, nos detalhes e no todo, apresentam, cada um a seu modo, uma beleza singular na maneira como neles tudo vem articulado com um equilíbrio e harmonia surpreendentes.

Um dos grandes apreciadores da beleza foi Fiodor Dostoiewski. A beleza era tão central em sua vida, conta-nos Anselm Grün, monge beneditino e grande espiritualista, em seu último livro “Beleza: uma nova espiritualidade da alegria de viver ”(Vier Türme Verlag 2014) que o grande romancista russo deslocava-se pelo menos uma vez ao ano até Dresde, na Alemanha, só para contemplar na capela a formosa Madona Sixtina de Rafael. Permanecia longo tempo em contemplação diante daquela esplêndida figura. Tal fato é surpreendente, pois seus romances penetraram nas zonas mais obscuras e até perversas da alma humana. Mas o que o movia, na verdade, era a busca da beleza pois nos legou a famosa frase:”A beleza salvará o mundo”dita no livro O Idiota.

No romance Os irmãos Karamazov aprofunda a questão. Um ateu Ipolit pergunta ao príncipe Mynski como “a beleza salvaria o mundo”? O príncipe nada diz mas vai junto a um jovem de 18 anos que agonizava. Aí fica cheio de compaixão e amor até ele morrer. Com isso nos quis dizer: beleza é o que nos leva ao amor co-dividido com a dor; o mundo será salvo hoje e sempre enquanto houver essa atitude.

Para Dostoiewski a contemplação da Madona de Rafael era a sua terapia pessoal, pois sem ela desesperaria dos homens e de si mesmo, diante de tantos problemas que vivia. Em seus escritos descreveu pessoas más e destrutivas e outras que mergulhavam nos abismos do desespero. Mas seu olhar, que rimava amor com dor compartida, conseguia ver beleza na alma dos mais perversos personagens. Para ele, o contrário do belo não era o feio mas o espírito utilitarista e o uso dos outros, roubando-lhe assim a dignidade.
“Seguramente não podemos viver sem pão, mas também é impossível existir sem beleza ”repetia. Beleza é mais que estética; possui uma dimensão ética e religiosa. Ele via em Jesus um semeador de beleza. “Ele foi um exemplo de beleza e a implantou na alma das pessoas para que através da beleza todos se fizessem irmãos entre si”. Ele não se refere ao amor ao próximo; a contrário: é a beleza que suscita o amor e nos faz ver no outro um próximo a amar.

A nossa cultura dominada pelo marketing vê a beleza como uma construção do corpo e não da totalidade da pessoa. Então surgem métodos e mais métodos de plásticas e botoxs para tornarem as pessoas mais “belas”. Por ser construída, é uma beleza sem alma. E se repararmos bem, nesta estética fabricada, emergem pessoas com uma beleza fria e com uma aura de artificialidade, incapaz de irradiar. Daí irrompe a vaidade, não o amor, pois a beleza tem a ver com amor e a comunicação. Dostoiewski observa, nos Irmãos Karamazov, que um rosto é belo quando você percebe que nele litigam Deus e o Diabo entorno do bem e do mal. Quando percebe que o bem venceu, irrompe a beleza expressiva, suave, natural e irradiante. Qual beleza é maior? A do rosto frio de uma top-model ou a do rosto enrugado e cheio de irradiação da Irmã Dulce de Salvador, Bahia, ou a da Madre Tereza de Calcutá? A beleza, característica transcendental, se revela como irradiação do ser. Nas duas Irmãs, a irradiação é manifesta, na top-model existe mas é esmaecida.

O Papa Francisco conferiu especial importância na transmissão da fé cristã à via pulchritudinis (a via da beleza). Não basta que a mensagem seja boa e justa. Ela tem que ser bela, pois só assim chega ao coração das pessoas e suscita o amor que atrai ( Exortação A alegria do Evangelho, n 167). A Igreja não visa o proselitismo mas a atração que vem do amor e da beleza da mensagem que causa fascínio e produz esplendor.

A beleza é um valor em si mesmo. É gratuita e sem interesse. É como a flor que floresce por florescer pouco importa se a olham ou não, como diz o místico Angelus Silesius. Quem não se deixa fascinar por uma flor que sorri gratuitamente ao universo? Assim devemos viver a beleza no meio de um mundo de interesses, trocas e mercadorias. Então ela realiza sua origem sânscrita Bet-El-Za que quer dizer:”o lugar onde Deus brilha”. Brilha por tudo e nos faz também brilhar pelo belo que se irradia de nós.

Leonardo Boff escreveu A força da ternura, Editora Mar de Ideias, Rio 2011.
É filósofo e teólogo, escritor, assessor do projeto Cultivando Agua Boa da Itaipu Binacional  e um dos co-redatores da Carta da Terra

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sexta-feira, 25 de abril de 2014

GABO, MERCEDES E O REALISMO MÁGICO



Por Maria Clara Bingemer 


            Depois de 87 anos de vida, de tantas obras de puro gênio, de uma imaginação fértil e poderosa que criava fascinantes mundos imaginários, de um realismo mágico que, tal como o nome diz, introduzia magia na realidade sofrida, oprimida e cinzenta dos povos latino-americanos, morreu Gabo.  Gabriel Garcia Márquez, o Gabo da Patria Grande, fechou os olhos e voltou a abri-los em outra dimensão.

            Nascido em Aracataca, Colômbia, filho de um farmacêutico que após seu nascimento mudou-se para Barranquilla, Gabo foi praticamente criado pelos avós maternos, Doña Tranquilina Iguarán e o coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía.  Destes, sobretudo do avô veterano da Guerra dos Mil Dias, herdou  o talento de contar histórias que, quando menino, inteligente e sensível, o encantavam. Ambos exerceram forte influência sobre a criativa imaginação do futuro autor do romance “Cem anos de solidão”, que revolucionaria a literatura latino americana.

            Em 1958, Gabo casou-se com Mercedes Barcha, uma morena de olhos misteriosos e atitude discreta, que seria seu amor, sua cúmplice, sua eterna companheira e a condição de possibilidade de sua carreira de escritor. Em 1965, Gabo queria poder assegurar tranquilidade durante seis meses para escrever um romance que o obcecava há mais de quinze anos.  Era a história de uma casa onde transcorreria a história de todas as gerações da família do coronel Blenda.  Empenhou o carro e deu o dinheiro a Mercedes, garantindo-lhe que seriam seis meses e nada mais.

            O dinheiro acabou e Gabo não havia encerrado o romance.  Mercedes nada lhe disse.  Continuou provendo a casa de comida e a mesa do escritor de papel e material para escrever. Valeu a pena.  O produto final dos malabarismos amorosos de Mercedes foi nada menos que “Cem anos de solidão”, obra maior do escritor colombiano, publicada em primeira edição em 1967 em Buenos Aires, Argentina, pela editorial Euramericana.

            “Cem anos” mudou a vida de Gabo e a de Mercedes.  Depois dessa obra, veio a fama, nacional e internacional, o prêmio Nobel de Literatura, as múltiplas traduções em várias línguas.  O romance de Garcia Márquez passou a ser considerado uma referência na literatura hispânica, próximo de Dom Quixote de la Mancha e outros.

            O realismo mágico que Gabo inaugurou e que depois de “Cem anos” aparece igualmente em outras obras encarna a alma da Pátria Grande que é a América Latina.  Ali estão presentes a pobreza, a opressão, a dureza da vida, a dor de viver, mas também a fantasia, a criatividade, a capacidade de celebrar e fazer festa, o poder de inventar mundos e personagens que povoam o cotidiano que se faz brilhante e fascinante, e sai de sua mediocridade cinza e sufocante.

            Assim é que a personagem de Úrsula, inspirada em sua avó Tranquilina – Mina, como ele carinhosamente a chamava – enche e povoa as paginas de “Cem anos de solidão” de augúrios, crenças, espíritos e profecias.  Dona Mina transitava com tanta naturalidade entre a realidade, a imaginação e a fantasia, contando ao neto histórias fantásticas como se fossem as mais concretas verdades, que o marcou para sempre.  A vida difícil dos avós, que lutavam para sobreviver, mas sabiam encantar os ouvidos infantis com contos extraordinários e para quem o extraordinário se revelava ordinário, ressuscitando-o da obscuridade em que corria o perigo de cair, foi uma influência decisiva para Gabo.

            A imaginação encantada de Gabo, no entanto, não o impedia de enxergar  o lado sombrio da realidade.  E por suas posições políticas conheceu não poucas dificuldades, sendo acusado de subversão.  Por isso, foi incompreendido e perseguido em seu país, tendo inclusive que exilar-se no México, onde morou até morrer.  Por muito tempo lhe foi negado o visto para entrar nos Estados Unidos, até que o presidente Bill Clinton – seu leitor e admirador  anulou a proibição.

            Em toda essa vida longa, aventureira, cheia de penas e glórias, Mercedes esteve a seu lado, trazendo a concretude para a vida deste homem imaginativo genial e provendo para que nada lhe faltasse, a fim de que pudesse criar.  Mas Gabo tinha também outro cúmplice que lhe foi e continua sendo fiel para além de sua morte: o povo latino-americano. Reconhecendo-se retratado e representado em suas obras, este povo o amou, o aplaudiu e leu suas obras com encanto e entusiasmo.  Encontrou nele inspiração e fôlego para seu duro cotidiano.

            Chama a atenção uma emocionante foto que aparece no portal G1 quando faz a cobertura dos funerais de Gabo.  Um homem do povo, de mãos calosas e gastas pelo trabalho diário, pele curtida pelo sol, visivelmente emocionado, carrega em um dos braços uma criança.  Na outra mão, bem visível à lente do fotógrafo, um exemplar gasto, usado, lido e relido de “Cem anos de solidão”, da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires, 1967. 

            O povo lia, lê e lerá  Gabo.  E emocionado acompanhou sua viúva, seus filhos e netos ao longo do funeral no qual suas cinzas foram solenemente carregadas por Mercedes. Aquele que povoou sua imaginação de encanto agora continua presente em sua memória e saudade.  Gabo viveu sua vida e narrou-a de mil maneiras. Seus leitores continuarão esse realista e mágico relato.

  Maria Clara Bingemer é  professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.
  Copyright 2014 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

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quinta-feira, 24 de abril de 2014

SANTOS CANÔNICOS E ANÔNIMOS

por Frei Betto

    
 Domingo, 27 de abril, o papa Francisco proclamará como santos, dignos de ocupar lugar nos altares, os papas João XXIII e João Paulo II.

     Quem conhece os bastidores da Igreja Católica sabe que se trata de uma no cravo e outra na ferradura. João XXIII, à revelia da Cúria Romana, convocou o Concílio Vaticano II (1962-1965). Pôs o pé no acelerador da renovação. João Paulo II enfiou o pé no freio. Tinham concepções diferentes quanto ao papel da Igreja. As atas do Concílio comprovam que o então bispo Wojtyla, futuro João Paulo II, votou com os conservadores, derrotados pelas decisões conciliares.

     Foi na Idade Média, a partir do século XI, que se iniciou o costume de canonizar cristãos falecidos sob a aura de santidade. Criou-se toda uma burocracia vaticana em função disso. Até lobbies em Roma. Basta pesquisar o processo que canonizou Escrivá, o polêmico fundador da Opus Dei.

     Processos de canonização são dispendiosos. Obedecem a uma série de critérios, como a comprovação de que o candidato operou, lá da glória celestial, ao menos um milagre. Em geral curas que escapam à explicação da ciência.

     Nos últimos tempos essa exigência tem sido relegada. Não consta que João XXIII tenha feito, até agora, algum milagre. Se o fez, foi quando vivo: o Vaticano II. João Paulo II teria curado uma religiosa que, na verdade, nutria devoção por outro santo, segundo confessou uma colega dela... E o padre Anchieta, canonizado dia 3 de abril, também foi dispensado do milagre comprobatório.

     Os santos foram, de fato, pessoas acima de todo mal? Ora, como diz o papa Francisco, somos todos pecadores, e precisamos de muita oração. Como canta Chico Buarque, “Procurando bem / Todo mundo tem pereba / Marca de bexiga ou vacina / E tem piriri, tem lombriga, tem ameba / Só a bailarina que não tem” (Ciranda da Bailarina). Entretanto, há fiéis, como Francisco de Assis e tantos anônimos, que se destacaram por uma existência coerente com o que Jesus pregou e testemunhou.

     A canonização de Anchieta é oportuna? Há quem duvide, pois ele favoreceu o colonialismo lusitano no Brasil, ao contrário de meu confrade, Bartolomeu de las Casas que, na América hispânica, se opôs à empresa colonialista espanhola. Em carta ao governador-geral Mem de Sá, definiu os indígenas como "lobos vorazes, furiosos cães e cruéis leões que nutriam o ávido ventre com carnes humanas."

     À exceção de Judas, todos os apóstolos de Jesus são considerados santos. Nem por isso os evangelhos encobrem seus defeitos: Pedro negou Jesus três vezes; Tomé duvidou; Tiago e João não se opuseram que a mãe, Salomé, pressionasse Jesus para privilegiá-los no Reino...

     É a devoção popular que faz os santos, ainda que Roma não os reconheça. É o caso, no Brasil, do Padre Cícero; do índio Sepé Tiaraju, que dá nome ao município gaúcho de São Sepé; Nhá Chica (já beatificada); e a menina Odetinha.

     Na Igreja primitiva só os mártires, aqueles que derramaram seu sangue em nome da fé cristã, eram tidos como santos, como é o caso, no Brasil, de frei Tito de Alencar Lima, morto há 40 anos em decorrência das torturas sofridas sob a ditadura. Sua tumba é das mais visitadas no cemitério de Fortaleza.
     O papa Paulo VI chegou a cassar um dos santos mais populares da Igreja: Jorge. A reação da coroa britânica e da Geórgia obrigou-o a voltar atrás.

     “Até o papa tem pecados”, disse Francisco na audiência de 29/05/2013. Santo não é, portanto, quem é perfeito, e sim aquele que, em meio às contradições, erros e defeitos, faz de sua capacidade de amar um serviço libertador a quem sofre ou vive excluído e oprimido. Isso vale também para quem tem uma fé distinta da professada pelos cristãos ou é ateu, conforme diz Jesus no Evangelho de Mateus (25, 36-41).

     Há muito mais santos anônimos neste mundão de Deus do que supõe a nossa vã teologia.

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros.
  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Copyright 2014 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los, propomos assinar todos os artigos do escritor. Contato – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A terrível escalada da ‘semana santa’



Por Eduardo Hoornaert


Escrevo estas notas na véspera de sexta-feira santa. O que piedosamente chamamos ‘semana santa’ é, quando lemos os evangelhos, na realidade uma terrível escalada de acontecimentos que envolvem Jesus, a partir da ‘entrada triunfal’ em Jerusalém. O evangelho de Marcos conta a história num ritmo nervoso, a partir do capítulo 11. Anota o que acontece dia após dia. Já antes, Jesus não é uma figura desconhecida nos ambientes governamentais. Não faltam acusações que chegam aos ouvidos das autoridades: ele não segue a lei de Moisés, não considera os ‘filhos de Abraão’ pois diz que se pode fazer um ‘povo eleito’ com ‘pedras’, discute sobre temas que são da alçada das autoridades e tem a incrível ousadia de insinuar que os sumos sacerdotes têm de devolver as terras que usurparam. Eis o caso: diante da pergunta insidiosa sobre pagamento de impostos (Mc 12, 13-14), Jesus responde primeiramente que é preciso ‘devolver (o verbo é esse) a César o que é de César’ (ou seja, devolver o denário a César: não contém sua imagem?). Mas depois ele ataca, embora de forma velada, a suprema autoridade religiosa da Palestina: ‘devolvam a Deus o que é de Deus’. Ora, o que é de Deus? O livro Levítico responde: ‘a terra é de Deus’ (Lv. 25, 33). Acontece que os sumos sacerdotes possuem as melhores terras da Palestina. Eis uma insinuação pesada, e as autoridades compreendem que se trata. Elas se convencem de que estão diante de uma pessoa ‘perigosa’.

Mas o maior medo, em Jerusalém, provém do enorme sucesso de Jesus junto ao povo da Galileia. Esse povo, sempre explorado pelo governo de Jerusalém (por meio dos impostos), bem que pode um dia se voltar, ‘em nome de Jesus’, contra os que detêm o poder. Não é um medo infundado, pois o sucesso de Jesus na Galileia é incontestável. Marcos relata em numerosos trechos do evangelho e com abundância de detalhes que, por onde Jesus passa, aglomerações se formam. Os líderes em Jerusalém já mandaram diversos emissários para a Galileia para ver o que se passava, mas não conseguem reunir argumentos definitivos contra Jesus. Quando este está em Jerusalém por ocasião das festas de Páscoa, e depois que faz sua ‘entrada’ em Jerusalém (que é na realidade uma paródia, pois imita entradas triunfais de tropas romanas), o governo percebe que está diante de uma oportunidade única de prendê-lo.

Assim se inicia uma terrível escalada de acontecimentos, que termina com a morte de Jesus. A partir do capítulo 11, um ritmo acelerado toma conta da prosa de Marcos, que anota tudo. No dia após a ‘entrada triunfal’, Jesus volta ao templo (ele não dorme na cidade, mas se hospeda em Betânia) e, com ímpeto, expulsa os cambistas. Uma ação de grande ousadia que repercute fortemente nos meios governamentais. A partir desse momento, as coisas não param mais. No terceiro dia acontece mais uma discussão tensa com letrados e fariseus (comento sucessivamente Mc 11, 1-11; 11, 15-19 e 11, 27-33) e assim os atritos vão se sucedendo, dia após dia. Jesus sabe que corre perigo iminente. No início das festividades da páscoa, depois de rezar o salmo com seus apóstolos, ele resolve ir se esconder com eles no Monte das oliveiras (Mc 14, 26). O evangelho de Lucas conta até que alguns dos apóstolos vão armados. Mas não adianta: as forças de segurança, guiados por Judas, descobrem o esconderijo. Jesus é preso como um ‘bandido’ (como afirmam os três evangelhos sinóticos: Mc 14, 48; Mt 26, 65 e Lc 22, 52). O julgamento é sumário e Jesus acaba morrendo em cima de uma cruz, entre ‘bandidos’ (Mc 15, 27; Mt 27, 38; Lc 23, 33).


Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

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