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terça-feira, 30 de setembro de 2014

O VOTO E O PROGRAMA


Por Marcelo Barros



No próximo domingo, o povo brasileiro dará o seu voto a um/a dos candidatos/as à presidência da República e para os governos estaduais, assim como para deputados federais e uma parte do Senado. No sistema atual brasileiro, votamos em pessoas, mas, de fato, somos governados por partidos ou por associações de partidos que se unem em coalisões. Em uma democracia, de fato, deveríamos escolher o partido e o/a candidato/a de acordo com o programa que cada partido apresenta. Esse programa deveria ser pensado e proposto, não apenas com a finalidade de ganhar eleitores, mas para um projeto de Brasil, em uma visão a longo prazo. Deveria conter propostas e diretrizes concretas sobre como conduzir a economia do país. Ao votar, as pessoas deveriam escolher que proposta querem para o Brasil: a autonomia social e política para o país ou, ao contrário, uma dependência das potências estrangeiras. Com relação à saúde, o programa de cada partido deveria clarear se o governo daquele partido manterá e até ampliará as politicas distributivas e o acesso democrático aos serviços públicos de saúde ou se, ao contrário, se ocupará com os 20% dos brasileiros mais abastados, deixando a maioria da população abandonada à própria sorte. No campo da educação, o povo tem o direito de saber se o governo pensa em garantir educação para todos, em todas as etapas e se respeitará a diversidade e o direito de expressão das culturas ainda marginalizadas ou oprimidas, como a dos grupos indígenas e das comunidades afrodescendentes. Finalmente, precisamos ter claro se os candidatos e seus partidos continuarão o diálogo e a solidariedade com os países latino-americanos e caribenhos e se apoiarão os organismos de diálogo e de integração continental.  Além disso, como critério para dar o nosso voto,  precisamos ver se o candidato/a e seu partido se propõem a aprofundar relações mais diretas com a população, especialmente com os movimentos sociais organizados da sociedade civil. 

Cada vez mais, no mundo inteiro, assume-se a democracia parlamentar representativa, mas a ela se procura incorporar instrumentos de democracia participativa e popular. É fundamental que o povo se sinta representado pelo Congresso e não substituído.
Atualmente, na guerra pelo voto, há uma tendência de os/as candidatos/as confundirem comunicação com marketing. E o marketing vende candidato/a como se fosse produto de consumo. Os partidos políticos mantêm nomes e adjetivos de fantasia, como se fossem empresas comerciais. Termos como “socialista”, “trabalhista”, “democrático” e outros são palavras esvaziadas de qualquer significado. Nesse contexto, os/as candidatos/as preocupam-se apenas em garantir a melhor imagem e anular a argumentação do/a adversário/a. Além disso, alguns meios de comunicação transformam as eleições em show. Essa pasteurização agrava ainda mais a desilusão de muitos com relação à política. 
Nesses últimos dias antes das eleições, seria importante prestarmos mais atenção aos programas e propostas dos partidos e de seus/suas candidatos/as. O Le Monde Diplomatique Brasil de setembro 2014 publicou um artigo colocando lado a lado os programas de governo de todos os/as candidatos/as à Presidência da República. De fato, são programas de governo e não projetos mais amplos de Brasil. De todo modo, seria importante que fossem mais conhecidos e avaliados. Todos os candidatos propõem mudanças estruturais, embora saibam que para realizar essas reformas, precisarão da maioria de votos favoráveis no Congresso, o que no sistema atual, é muito difícil. O artigo mostra ainda que também é importante saber o que pensam e falam os principais assessores/as e conselheiros de cada candidato/a, como também descobrir que forças econômicas estão financiando cada candidato/a. Eles terão muita influência no modelo de desenvolvimento a ser adotado”. 

Além disso, é importante ver como cada candidato se comporta em relação a problemas fundamentais do país como o modelo de desenvolvimento que destrói a natureza. Nesses dias, pela primeira vez, as nascentes do rio São Francisco secaram. O rio está agonizando. Nenhum/a dos principais candidatos/as à presidência se mostra preocupado/a com isso. Nenhum/a visitou as populações ribeirinhas atingidas por essa tragédia. Nem apresenta proposta alguma para reverter essa calamidade.  

Tudo isso mostra que votar corretamente não é fácil. Para quem tem fé cristã, o voto não pode ser dado apenas por conveniências de parentesco, amizade, ou interesse profissional. Temos de escolher as pessoas que julgamos mais aptas para servir a todo o povo brasileiro. O evangelho propõe um critério: escolher as pessoas mais ligadas à causa da libertação dos mais empobrecidos, nos quais quem crê é chamado a ver o rosto do próprio Jesus. 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A política entre a utopia e a realidade

Por Leonardo Boff


Antes de abordarmos, suscintamente, a questão complexa da política faz-se mister distinguir, como já fizemos em artigo anterior, a política com P maiúsculo que é a busca comum do bem comum. Dela todos os cidadãos participam. Existe ainda a política com p minúsculo que consiste na política partidária, que como a palavra sugere, é parte e não o todo. São os agrupamentos políticos com ideologia e projeto (é o que mais nos falta no Brasil) que buscam o poder de estado para a partir dele e de seus aparelhos governar o município,os estados e a federação.

Importa ainda conscientizar o fato de que a política mais que qualquer outra realidade, participa da ambiguidade inerente à condição humana que nos faz simultaneamente dementes e sapientes, sim-bólicos e dia-bólicos, numa palavra, nos revela intrincadas de contradições. Por isso, por um lado, dizem os Papas a política é a mais alta forma do amor e, por outro, contém deformações lamentáveis como o patrimonialismo e a corrupção. Rubem Alves deixou escrito: “a política comomissão é atividade das mais nobres; como profissão é a mais vil”. Dai viver a política em permanente crise. A nossa é de baixa intensidade, pois o povo não se sente representados pelos parlamentares, muitos deles vivendo de negociatas e de aproveitamento dos bens públicos. Mas ela pode sempre melhorar e transformar-se, segundo o ideario dos mestres Norberto Bobbio e Boaventura de Souza Santos, num valor universal a ser vivido em todas as instâncias, da família, dos sindicatos até no centro do poder do estado. O ideal é que cheguemos a uma democracia sem fim, um projeto sempre inacabado porque sempre perfectível.

Não secundamos um pragmatismo preguiçoso, sem sonhos e destituído de vontade de aperfeiçoamento. Infelizmente, esta é a tendência dominante, particularmente, no quadro da pós-modernidade para a qual qualquer coisa vale (anything goes) ou só vale o que está na moda. E está contaminando os jovens que se sentem desiudidos com a política.

Entretanto, uma pessoa ou uma sociedade que já não sonha e que não se orienta por utopias, escolheu o caminhou de sua decadência e de seu desaparecimento. Sem utopia não se alimenta a esperança. Sem esperança não há mais razões para viver e o desfecho fatal é a auto-diluição. A utopia desempenha função insubstituível, pois ela relativiza as realizações históricas concretas e mantém o processo sempre etaberto a novas incorporações. Numa palavra, a utopia nos fazer andar. Jamais alcançaremos as estrelas. Mas que seriam nossas noites sem elas? São elas que espantam os fantasmas da escuridão e nos enchem de reverência face à majestade de um céu estrelado. Porque temos estrelas, não tememos a escuridão.

Precisamos, portanto, de uma utopia para a política, para que desempenhe a função pela qual existe: organizar a sociedade, montar um Estado, distribuir os poderes e realizar a busca comum do bem comum para todos, sem privilégios e discriminações. Isso vale tanto para a Política em P maiúsculo quanto a políitica em p minúsculo. Ambas precisam incorporar a ética do bem comum, da responsabilidade coletiva, da transparência e da retidão em todos os negócios onde estão envolvidos os poderes públicos sempre contra a corrupção.

Quando confrontamos a política realmente existente e a utopia da política notamos imensas contradições. Há um constrangimento poderoso que pesa sobre a política: o fato de a política hoje estar submetida à economia e ao mercado que se regem por uma feroz competição deixando totalmente à margem a cooperação e os valores da cooperação, fundamentais para uma convivência civilizada. Isso faz com que os valores não materiais, ligados à justiça social, à gratuidade, ao cuidado, à solidariedade, ao trato humano com as pessoas, à liberdade de expressão ocupam um lugar irrelevante quando não são feitos também mercadorias, colocadas na banca do mercado e exploradas por conhecidos populistas ou por todo um mercado de literatura de auto-ajuda que mais ilude que ilumina.

Ora, destes valores altamente positivos vive fundamenalmente a política que se entende como prática da ética social. Não é suficiente a denúncia das diferentes corrupções, deixando-as impunes.Importa  apresentar formas alternativas e legais de realizar os projetos políticos. Facilmente caímos no moralismo como se somente com a moral se resolvem todos os problemas

A Igreja Católica ajuda a criar uma ética pessoal, de retidão e integridade. Há políticos que incorporam esta ética (ética na política). Mas ela não elaborou suficientemente uma ética social e política que trabalha as instituições, os braços longos do poder que devem ser transparentes e um serviço público (ética da política). É nesse campo que ocorrem as perversões da política.

Especialmente grave é o financiamento privado das eleições que se traduz por troca de favores e implica alta corrupção.

No Brasil com tradição patrimonialista, quer dizer, o político facilmente considera seu o bem público e se apropia dele sem maiores escrúpulos. É roubo do pão que falta na mesa do pobre, é livro que o estudante não tem, é remédio inacessível ao enfermo necessitado.

A desejada reforma política que deve ser feita sem tardança reintroduziria a ética na política pois para Aristóteles, o fundador do discurso político,  política e ética eram ainda sinônimos.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

PEDRO DESCALÇO E SEM MEDO




 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 
           

Um amigo me envia o link de um filme que passou recentemente na televisão espanhola: “Descalzo en la tierra roja”. Narra a vida de um catalão que hoje tem 84 anos, mas trazia a pujança dos 40 ao chegar ao Brasil, em 1968. Seu nome é Pedro Casaldáliga e frequentou muito as páginas dos jornais nos anos 1970 e 1980, sempre em defesa dos pobres e no epicentro dos conflitos de terra que feriam e marcavam a prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, à qual serviu como padre, bispo, continuando a ali residir e servir até hoje.

O filme é longo, dividido em duas partes e retrata bastante fielmente o processo de conversão por que passou o sacerdote claretiano ao aportar nesta Terra de Santa Cruz e enfrentar a miséria e a injustiça cara a cara. As cenas iniciais nos mostram o Pe. Casaldáliga vivendo seus primeiros tempos em São Félix, convocado a receber nos braços um bebê morto de malária.  E atrás deste vinha uma verdadeira procissão de mães dolorosas carregando igualmente seus filhos dizimados pela doença.  Pedro chora.  E aí começa sua nova vida.

A narrativa vai desdobrando à frente do espectador as atitudes e o crescimento deste homem forte e cheio de fé e de coragem que, aos poucos, vê que a situação estabelecida à sua volta é fruto de uma radical injustiça e, portanto, não pode ser vontade de Deus.  E assim, o europeu frágil de estatura e compleição, se revela gigantesco no desejo e na entrega à causa dos pobres.

Pedro é poeta.  Em uma cena do filme encontra-se em um barco, indo para Goiânia buscar remédios que possam conter o surto de malária que assola São Félix, e escreve em um caderno.  O barqueiro lhe pergunta o que escreve e ele responde: um poema ao rio.  Sua sensibilidade é capaz de extasiar-se com a beleza do Araguaia “que pulsa sob seus pés como uma artéria viva”, com a mata verdejante e expressar seu louvor em versos ao Criador de toda essa maravilha. E seus versos andam “cheios de Deus como pulmões cheios do ar vivo”.

Pedro é profeta.  Sua língua de fogo não hesita em proclamar os direitos dos pobres como direitos de Deus.  E ao tomar progressiva consciência da dura servidão à qual os latifundiários reduzem os posseiros que desejam apenas uma terra para cultivar e sobreviver, não poupa denúncias e críticas que lhe valem perseguições e ameaças as mais diversas e violentas. Mas admite que “não sabe se seria capaz desses caminhos se não estivesse Deus como uma aurora rompendo sua névoa e seu cansaço”.

Pedro é místico. Trata-se de alguém que experimenta a comunhão íntima e ardente com o Mistério de Deus, que é o Sentido de sua vida.   Em suas andanças pelo Mato Grosso, pelo Brasil, pela América Latina, sobretudo na explosiva região da América Central, contempla Deus presente no rosto dos pobres.  E, no entanto, humildemente, confessa que não sabe se poderia conviver com os pobres “se não tropeçasse com Deus em seus farrapos; se não estivesse Deus como uma brasa queimando seu egoísmo lentamente”.

Pedro é teólogo.  Embora sempre tenha sido missionário e não docente ou pesquisador da ciência sacra, seus escritos, seus poemas, mas sobretudo sua vida e sua prática são uma teologia consistente e em constante movimento. Ele a pensa e a faz ao lado dos pobres, cada dia partilhando sua “noite escura”, que só a esperança ilumina.  Por isso, proclama que apenas vivendo a noite escura dos pobres se pode viver o Dia de Deus, “pois as estrelas só se veem de noite”. Sua teologia afirma que que tudo é relativo, menos Deus e a fome.  E ele escolhe a noite porque a sabe grávida de madrugada.  E escolhe a privação porque a adivinha caminho para a plenitude.

Pedro é uma testemunha.  Sua vida atesta a verdade maior do mistério da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, a Testemunha Fiel por excelência. Em sua fragilidade carrega e comunica a vocação e a missão do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.  E procura fazer verdade a construção de seu Reino, projeto do Deus da vida para todos.

Pedro é humano.  É alguém que se extasia com a beleza do rio, admira respeitosamente o encanto da mulher e se enternece com a inocência da criança.  E se indigna com a injustiça que ceifa vidas por onde passa.  E se rebela contra a dominação dos poderosos sobre os fracos.  E se insurge com a opressão que pesa sobre as vítimas, assumindo seu lugar solidariamente e deixando clara sua recusa em fazer aliança com quem as esmaga diariamente.

O filme mostra a trajetória deste homem de Deus, que vai aprendendo e afirmando que o contrário da fé não é o ateísmo, mas o medo. Sua trajetória está toda ela marcada por essa valentia que enfrenta o medo e o supera, forte apenas da graça de Deus. O permanente diálogo de Pedro com Deus aparece nos momentos de oração solitária e de profunda comunhão, quando “descalça sua alma” diante do Senhor.  Mas também e igualmente diante dos pobres que vivem ao seu lado, aos quais entrega seu corpo e sua vida sem temor.

Pedro escolheu como lema de sua ação pastoral como missionário, como sacerdote e como bispo as seguintes palavras: Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar. Descalço e sem medo, pisando sem defesas a terra vermelha deste imenso Brasil, sua frágil figura é anúncio luminoso de até onde pode chegar a estatura de um homem quando se deixa inspirar e configurar pelo Espírito de Deus.

 Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  


Copyright 2014 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

ESTADO LAICO E ESTADO CONFESSIONAL

 Por Frei Betto


      Perguntei a Fidel Castro, em 1980, quando o conheci em Manágua, por que o Estado cubano era confessional. Ele levou um susto. “Como confessional? Somos ateus!”

      Reagi: “Professar ou negar a existência de Deus é confessionalidade, Comandante. A modernidade exige partidos e Estados laicos.” Ele afinal concordou.

      Pouco depois, o Estatuto do Partido Comunista de Cuba e a Constituição do país foram modificados para imprimir caráter laico às duas instituições.

      Laico ou leigo é aquele que não atua condicionado por orientação religiosa. Estado confessional é o que adota oficialmente uma determinada crença, como o Estado do Vaticano e a Costa Rica, católicos; o Estado de Israel, adepto do judaísmo; e vários outros do mundo árabe, que professam o islamismo. Também os países comunistas, com seus Estados oficialmente ateus, eram confessionais.

      A modernidade introduziu o Estado laico, que não abraça uma religião específica e representa todos os cidadãos, sejam eles desta ou daquela profissão de fé - crentes, ateus ou agnósticos.

      Há hoje, contudo, segmentos religiosos interessados em impor suas convicções doutrinárias a todo o conjunto da sociedade. E só há dois modos de fazê-lo: converter todos os cidadãos a uma crença religiosa (o que é impossível) ou pela via do poder político. Criam-se bancadas religiosas nos parlamentos para, uma vez empossados deputados e senadores, aprovarem leis que obriguem todos os cidadãos a agirem segundo determinados preceitos religiosos.

      Exemplos de medidas consideradas válidas para quem segue determinado preceito religioso, mas abusivas quando impostas ao conjunto da sociedade são: não ingerir bebidas alcoólicas; autorizar terapeutas a tentar reverter a homossexualidade; proibir nas escolas o ensino do evolucionismo (os símios são os nossos antepassados) e propagar o criacionismo (Deus criou o mundo tal como descrito na Bíblia: descendemos todos de um casal -  Adão e Eva).

      Em uma sociedade democrática o direito à manifestação religiosa e instituições laicas devem conviver em harmonia, sem que um queira se intrometer no outro.

      Confessionalizar o Estado é atiçar as chamas do preconceito, da discriminação e do fundamentalismo. A liberdade religiosa deve ser assegurada, todo preconceito combatido, toda discriminação punida e todo fundamentalismo desmoralizado.

      Nem Deus pretendeu impor a todos os seus filhos e filhas a fé na existência dele

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros.
    http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
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terça-feira, 23 de setembro de 2014

“O NOSSO NORTE É O SUL”




Por Marcelo Barros

O 21 de setembro marca, no hemisfério norte, o começo do outono e no Sul, o início da primavera. No século XVI,  ao chegarem a Argentina e Paraguai, missionários europeus escreveram suas impressões: “Aqui é tudo contrário. As estrelas do céu são diferentes e as estações também. Faz frio no verão e calor no inverno”. Eles pensaram assim porque olhavam o sul a partir do norte. Durante cinco séculos, essa foi a visão dominante e ainda é o modo de ver das elites de nossos países. A ciência, a cultura, a arte e a própria estética sempre foram definidas pelos interesses das potências do Norte que nos colonizaram e nos impuseram sua forma de ver o mundo e a vida. Até no modo de vestir, o estilo europeu tornou-se mundial. Agora, mais de cinco séculos depois, latino-americanos de todos os países do continente querem se libertar dessa herança colonial e valorizar nosso modo de ser e de viver. A Telesur é a rede de televisão latino-americana que, a partir de Caracas, transmite para os países da América do Sul. Esse meio de comunicação é um forte instrumento na integração de todo o continente como uma pátria única. Para definir sua linha de programação, ela lançou como lema: “O nosso norte é o Sul”. É preciso aprofundar as muitas implicações e consequências que isso pode ter.

Entre nós, esse início da primavera encontra a natureza confusa diante das agressões humanas. As estações parecem menos definidas e o renascimento da vegetação encontra obstáculo no ar carregado de venenos agrícolas. Mesmo assim, em todo o continente, os movimentos sociais lutam em defesa da mãe Terra, da Água e da integridade da natureza. E a natureza responde com uma incrível capacidade de se renovar.

No plano social e político, muitos países do continente estão vivendo um processo novo que rompe com  os dogmas do Capitalismo individualista, baseado na concorrência e na competição impiedosa de uns contra os outros. Ao mesmo tempo, a Venezuela, Bolívia, Equador e outros países do continente não querem o sistema totalitário dos regimes comunistas que vigoraram na Europa oriental e na China de Mao Tsé Tung. Apoiam-se na experiência secular das comunidades indígenas e assumem como meta do Estado proporcionar o que os índios andinos chamam de Bem Viver para todos os cidadãos e cidadãs.  Em cada país, esse novo processo social e político tem nomes diversos, mas todos têm como meta: 1- libertar-se dos impérios que nos dominavam, 2- integrar-se com os outros países do continente para formarmos uma única pátria grande, embora mantendo a autonomia social e política de cada país e cada povo. 3 – Finalmente, por meios democráticos, caminhar para uma economia mais justa e solidária. Ora, esses objetivos, reformulados de modo atual, são praticamente os mesmos que, há mais de 200 anos, Simon Bolívar, o libertador, tinha proposto para toda a América do Sul. Somente agora, a primavera está chegando.

Nesse momento em que o povo brasileiro está se preparando para, mais uma vez, votar em seus representantes, tanto no governo federal, como nos diversos Estados, é muito importante escolher a pessoa que se comprometa a aprofundar esse caminho de integração latino-americana que, em uma década, mudou a fisionomia social do continente. A FAO e outros organismos da ONU declararam oficialmente que, no mundo, a América Latina foi o único continente, no qual o número de pobres não aumentou. E os países bolivarianos (Bolívia, Equador e Venezuela) foram os que mais conseguiram superar as desigualdades sociais. Esse espírito de renovação que se expressa no novo processo latino-americano quer também contagiar as Igrejas e religiões. Para a Igreja Católica, há mais de 50 anos, o papa João XXIII pedia que Deus desse à Igreja uma nova primavera. E essa veio com o Concílio Vaticano II. Atualmente, com o papa Francisco, esse assunto tem voltado. No entanto, são as comunidades locais e cada cristão que são responsáveis por fazer essa primavera eclesial desabrochar e florescer.


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.  


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