Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
No mar de funestas notícias em que se transformou este mês de agosto, hoje
queremos prestar tributo ao gênio e ao talento. Embora a celebração seja
de alguém que já partiu, seu legado continua banhando de inspiração nossas
vidas e instigando nossas mentes com sua fantástica literatura.
Há 100 anos, em outro dia 26 de agosto, nascia em Ixelles, Bélgica, na
embaixada argentina, Julio Cortázar. Este que seria mais tarde um celebrado
escritor não apenas na Argentina, mas no mundo inteiro, nasceu longe daquele
que seria seu país. Voltou para Buenos Aires apenas aos quatro anos de
idade. Este prematuro enraizamento, que na verdade o desenraizou da
Europa que já começava a amar juntamente com a separação prematura dos pais,
fizeram dele um perpétuo exilado. Assim, quando foi o momento de exilar-se
realmente, pois a ditadura se havia instalado em seu país, o talento literário
de Cortázar foi estabelecer-se em Paris, na qual viveu até sua morte.
Meu primeiro contato com Julio foi em um momento encantado de minha vida.
Adolescente de 17 anos, apaixonada por um argentino que posteriormente veio a
ser meu marido, recebi de presente de suas mãos o romance “Los Premios”, que
devorei maravilhada. Estava selada uma aliança perpétua minha com a obra
deste rio platense/europeu, que me levou a lançar-me com pressa sobre outras
obras suas: a genial “Rayuela” (O jogo da amarelinha), assim como seus contos.
Ah, seus contos...Como não ler e reler “Autopista del sur”, que narra a
fantástica situação de uma estrada na volta de um feriado onde a quantidade de
carros gera um insolúvel engarrafamento, forçando as relações a acontecerem,
harmoniosa ou conflitivamente, e gerar experiências humanas
inesquecíveis. E outros tantos...
Talvez o que mais me tenha chegado ao coração é a história do adolescente
hospitalizado que se apaixona por sua enfermeira. “La señorita Cora” é o
nome desta terna peça literária, onde o contista consumado que é Julio Cortázar
narra a paixão que vai se apoderando de Pablo, o adolescente de 15 anos
internado em um hospital de luxo por sua mãe super possessiva, a fim de tratar
uma apendicite. Cora é a enfermeira que o atende e por quem aos poucos mas
definitivamente ele vai se apaixonando.
E a paixão de Pablo por Cora é definitiva e trágica. A morte se aproxima
de sua tenra idade e ele não terá tempo para amar outra mulher. A timidez
de Pablo e a seriedade profissional de Cora fazem com que esse relacionamento
feito de ternura, enamoramento, desejo e devoção cresça a partir de monólogos
interiores. São essas falas “internas” que constroem a narrativa de
Cortázar, o qual conduz o leitor ao desfecho que assinala apenas a cama vazia e
logo ocupada por outro doente, enquanto o coração de Cora sofre e sangra de
saudades.
Cora sabe interiormente que Pablo está fazendo sua passagem da infância para a
idade adulta e que este parto se dá por causa e através do amor que começa a
sentir por ela. Com extrema delicadeza cuida do corpo doente do rapaz,
enquanto vai encharcando sua alma de uma ternura que fará sua “outra” passagem
mais doce e mais serena. E ao longo do conto conquista o leitor a
profunda sensibilidade do autor, mestre nos sentimentos profundos humanos e
cheio de conhecimento dos meandros psicológicos de que nossa complexa condição
de criatura finita é feita.
Nos últimos anos de sua vida, Cortázar conheceu um amor que foi o maior de
todos. Carol Dunlop, fotógrafa canadense que deixou tudo para trás para seguir
Julio e que com ele viajou em Kombi durante meses na autopista de Paris a
Marseille. A frágil e corajosa Carol, a quem o escritor chamava carinhosamente
“la osita”, a ursinha. Esta aventura amorosa gerou um livro: “Los autonautas de
la cosmopista”, um singular relato de viagem, com textos e fotos do casal, que
Carol não chegou a concluir.
Cheios de planos e sonhos, o casal teve que viver o conto da Señorita Cora em
sentido invertido. Foi ela, então mortalmente atingida não pela
apendicite de Pablo, o menino do conto, mas por uma agressiva leucemia que a
levou em poucos meses. E a ele coube cercá-la de carinho e sentir-se dilacerado
ao vê-la declinar inapelavelmente. É pungente ler o relato de Julio,
descrevendo seus últimos momentos, quando ela escapou entre seus dedos “como um
fiozinho d´água”, forte e corajosa como sempre havia sido mas empreendendo
sozinha a viagem onde ele não podia mais acompanhá-la.
Um ano e três meses depois, Cortázar – do fundo de uma depressão que lhe minou
as forças - partia ao encontro de sua “osita”, havendo antes terminado o
livro que Carol escrevia e não pôde acabar. O homem que desafiou
ditadores e se apaixonou pelo sandinismo como esperança de futuro; que visitou
o mosteiro de Solentiname e conheceu a proximidade da mística do trapista
Ernesto Cardenal; aquele cuja floração criativa não conhecia estancamento e que
passeava seu gênio pela beleza de Paris; fechou os olhos e abriu-os amplamente
na pátria dos encontros que não terminam.
Ali certamente voltou a encontrar sua amada, que partira prematuramente,
precedendo-o nesta passagem. Neste aniversário, no qual celebramos sua
vida e obra, agradecemos ao Julio belo e barbudo que nos ensina hoje, como
ontem, a jogar o jogo da amarelinha que é a vida.
A teóloga é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o
mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora
Rocco.
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