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domingo, 26 de setembro de 2010

DEMOCRATIZAR A DEMOCRACIA


por MARCELO BARROS

Nestes dias, vários países latino-americanos e até de outros continentes recordam o ideal da libertação e da independência de seus povos. No dia 19, a Nicarágua celebrou o aniversário da vitória da revolução sandinista que libertou o país da ditadura de Somoza (1979). Em Cuba, 26 de julho lembra o dia do assalto dos revolucionários comandados pelo jovem Fidel Castro ao quartel de Moncada (1953). Foi o passo decisivo para a vitória da revolução popular. A cada ano, o povo celebra este aniversário como “o primeiro território livre das Américas”. No dia 28, o Peru recorda o dia de sua independência (1821). Uma marcha indígena reclama uma independência também social e econômica. O Paraguai se prepara para receber, nos próximos dias, o Fórum Social das Américas. Isso só é possível porque, depois de séculos de dominação, o país elegeu um governo mais democrático. Na Venezuela, o povo terá outra eleição democrática. Será a 12ª, ocorrida sob a liderança do presidente Hugo Chávez. As agências internacionais de notícia, apesar de detestarem o governo bolivariano, têm de reconhecer que são eleições honestas, democráticas e justas. No Brasil, onde os principais jornais e meios de comunicação continuam a fazer campanha contra o presidente da República, este obtém aprovação de mais de 80% da população.
Hoje, o mundo se debate em uma crise social, econômica e ecológica. Esta revela o fracasso do sistema social e político internacional, profundamente desumano com os trabalhadores e com a grande massa dos pobres. Enquanto isso, na América Latina, organizações indígenas, movimentos de trabalhadores rurais e populações de periferia urbana têm fortalecido um novo processo social e político. Elegeram governantes populares e votaram em novas Constituições, que garantem direitos de cidadania para todos.
Ainda há um longo caminho a percorrer, mas, é profundamente esperançoso ver a ONU declarar a Venezuela um país livre do analfabetismo. Há apenas dez anos, mais de 50% do povo venezuelano era analfabeto e a pobreza atingia mais de 90% da população. Hoje, a reforma agrária e as novas leis trabalhistas garantem trabalho e renda mais digna para a maioria. Na mesma linha, pela primeira vez, o povo da Bolívia elege um índio como presidente. Há poucos meses, ele foi reeleito com mais de 70% de aprovação. E acaba de receber um prêmio internacional da UNESCO pelo seu plano de alfabetização de adultos e sua política de inclusão dos povos indígenas no destino do país. No Brasil, apesar da senadora do Tocantins declarar que é normal trabalhadores rurais ser escravizados por grandes fazendeiros, o governo brasileiro continua lutando para acabar com a escravidão no campo.
Não há como negar: em meio a contradições e muitas dificuldades, em todo o continente, florescem novos movimentos sociais e políticos. Eles não se baseiam em partidos e não se classificam nos moldes dos velhos padrões socialistas. Inspiram-se nas culturas indígenas e buscam como critério “o bom viver”, ideal que as civilizações andinas propõem para todas as pessoas e até na relação com todos os seres vivos. Os governos todos são eleitos e respeitam eleições democráticas e o sistema parlamentar. Entretanto, ao lado da democracia representativa, aprofundam o direito constitucional das comunidades e organizações populares participarem mais das decisões sociais e políticas. É a “democracia participativa” que assegura o direito do povo destituir qualquer deputado ou governante, mesmo no meio de um mandato, se este não cumprir o compromisso assumido com seus eleitores. Neste começo de campanha eleitoral, é bom os candidatos saberem disso: cada vez mais, também no Brasil, os eleitores terão, cada vez, mais direito de intervir nos destinos do país e do Estado. Mesmo se as instâncias do Judiciário ainda aceitarem candidaturas menos limpas, cada vez mais a consciência do povo rejeitará candidatos acusados de corrupção. A lei da ficha limpa veio para ficar. Além disso, o antigo Código de Graciano, lei das Igrejas cristãs nos primeiros séculos já ensinava: “Tudo o que diz respeito a todos, deve ser, por direito, decidido por todos”.

REFLEXÕES DE UM ELEITOR INDIGNADO


por FREI BETTO

Miro a propaganda eleitoral na TV, ouço-a no rádio. E me pergunto: em que galáxia habito? Fico a me perguntar se o desfile mórbido de candidatos difere muito da apresentação dos gladiadores prestes a disputar o direito à vida no Coliseu de Roma.

São tantas besteiras, tantas promessas inconsistentes, tantas ofensas à língua pátria, que chego a preferir um passeio pelo zoológico, onde se pode apreciar, de jaula em jaula, a variedade do animais, sem o incômodo de escutar tanta bobagem.

Claro que incontáveis aparelhos de TV e rádio desligados no horário eleitoral significam um recado óbvio: reforma política já! Como não virá imediatamente, tudo indica que, de novo, a partir de 2011 veremos a nossa representação política – nas Assembleias Legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado – integrada por figuras respeitáveis, competentes, éticas, ombro a ombro com o besteirol: políticos eleitos, não pelo que representam como promotores do bem comum, e sim pela fama na mídia, no esporte, na esbórnia, na exuberância das nádegas e no escracho geral.

Pobre Brasil! A culpa é de quem? Do eleitor? Discordo. A culpa é dos partidos que aceitam filiações irresponsáveis, funcionam como legenda de aluguel, abrem as portas aos arrecadadores de votos, meros candidatos-iscas para robustecer a bancada partidária no Poder Legislativo. Não importa se o eleito não fala lé com cré. Importa é ter amealhado votos em quantidade.

Isso revela algo muito grave: os partidos cada vez menos representam uma parte ou segmento da sociedade. Representam a si mesmos. Viraram clubes políticos destinados a beneficiar seus sócios. Vivem descolados da base social, gabam-se de não ter ideologia, apenas interesses e, em tudo que fazem, buscam, em primeiro lugar, reforçar o próprio poder. E funcionam na base da ação entre amigos, pois quem se elege trata de nomear quem não se elegeu para um cargo público bem remunerado.

O Brasil precisa, sim, urgentemente, de uma reforma de seu sistema político. Não basta mudar as regras do jogo. Faz-se necessário modificar a atual cultura política, fundada no compadrio e nepotismo (como pode uma ministra incorporar familiares na máquina do governo?), no tráfico de influências, no uso dos recursos do Estado para benefício próprio.

Quem se faz representar em nosso poder legislativo? A elite, o agronegócio, os lobbies de armas e bebidas alcoólicas, da devastação da Amazônia e da abertura irresponsável do país ao capital estrangeiro. Esta é a minoria da população, poderosa, mas minoria.

Quem representa os sem terra e os sem teto? Quem representa os que padecem a falta de saúde e educação? Quem representa os povos indígenas, as pessoas com necessidades especiais, os jovens e idosos? Quem representa os movimentos populares?

Introduzir uma nova cultura política é criar mecanismos de controle civil do poder público, de modo a inibir a corrupção, punir os que agem ao arrepio das leis e combater tudo isso que, na estrutura socioeconômica brasileira, favorece e fortalece diferentes formas de desigualdades.

A revogabilidade de mandatos, mormente em casos de corrupção comprovada, deveria figurar como princípio pétreo em nosso sistema político. Por que permitir que uma mesma pessoa possa, indefinidamente, candidatar-se, perpetuando-se na política? Ninguém deveria ter o direito a mais de dois mandatos sucessivos na mesma função.

Para avançar rumo à democracia participativa, o Brasil precisa reformular seu sistema de comunicação, de modo a possibilitar o acesso dos setores populares à livre expressão; promover plebiscitos e consultas populares; adotar o financiamento público de campanhas eleitorais; criar mecanismos de controle social das políticas econômicas e do orçamento. Por que não há representação sindical na direção do Banco Central?

Como falar em democracia se, em plena campanha presidencial, apenas quatro candidatos têm direito a participar dos debates na TV? E os demais? Foram legal e legitimamente indicados por seus partidos. Não importa que sejam partidos nanicos. Uma democracia não se faz sem isonomia. O eleitor tem o direito de conhecer as propostas de todos que são oficialmente candidatos a funções executivas.

Desde o fim da ditadura, em 1985, a democracia se aprimorou muito no Brasil. Contudo, não se julga um país pela perfeição de suas leis, e sim pela aplicação dessas mesmas leis. A aprovação da Ficha Limpa demonstra que a sociedade civil organizada e mobilizada pode mais do que ela mesma crê. É hora de não apenas ouvir o que têm a propor os candidatos, mas de os movimentos sociais e congêneres apresentarem a eles suas propostas e sugestões.

Autoridade é o povo, de quem os políticos são meros servidores.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org – twitter: @freibetto.

COMPRAR, GASTAR, CONSUMIR: PRAZERES PÓS-MODERNOS


Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio


Talvez nunca como agora o tema do corpo tenha estado no centro das atenções humanas. A sociedade ocidental, durante longo tempo identificada com uma mentalidade dualista, que separa corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu, manteve a questão do corpo algo exilada e silenciada. Recentemente, no entanto, o corpo voltou a ocupar o lugar que lhe corresponde: no vértice do que seja a compreensão do que significa ser humano. Somos um corpo, o corpo e nossa identidade. Quanto mais reprimirmos aquilo que se refere ao corpo, mais veremos isso que tentamos banir da perspectiva da atenção pessoal e comunitária reaparecer com vigor, reclamando seus direitos.
“Nosso corpo: nós mesmos” é o título de um livro coletivo publicado nos Estados Unidos, na década de 1970. Embora refira-se especificamente às mutações no corpo da mulher nas diversas etapas da vida, o título pode bem apontar para todo o gênero humano. Nosso corpo diz quem somos e não dar atenção a ele significa perder o rumo de nossa identidade humana mais profunda.
No entanto, a cultura em que vivemos é cheia de complexidades e, mais ainda, de ambiguidades. Em plena libertação sexual, vemos que a mesma talvez não nos tenha levado a sermos realmente mais autênticos e felizes, como seria de se esperar. A pós-modernidade em boa parte “liquefez “ os ideais e utopias que davam força aos projetos históricos individuais e coletivos. Além disso, contribuiu para uma exacerbação exponencial do consumo, instilando-o sorrateiramente dentro dos indivíduos. Assim, colocou ao alcance dos corpos, mentes e sensibilidades de hoje prazeres “outros” que não se aproximam sequer longinquamente da satisfação dos desejos e das pulsões corpóreas que compõem a rica sexualidade humana.
Os anos 1960 proclamaram sua ânsia de liberdade em todos os sentidos. Fazer amor e não a guerra era o lema dos hippies floridos que enchiam Woodstock com músicas que a nossa geração tanto cantou e parece não encantar tanto nossos filhos e netos. Na verdade, a desaparição dos modelos denunciados na revolução hippie não gerou mais liberdade e plenitude para as gerações seguintes. Pelo contrário, o legado do século XX é mais de angústia, vazio existencial e encurtamento de horizontes.
Nos dias de hoje, sentimos a sociedade doente e carente de verdadeira plenitude e satisfação. A avidez do consumo congela e paralisa nossos melhores desejos: de amor, de gratuidade, de plenitude, de contemplação. A atitude predatória da humanidade ameaça extinguir e baixar a níveis alarmantes os recursos do planeta. Toda essa situação ameaça conduzir-nos a uma autêntica “frigidez dos sentidos”, que se desvia daquilo para que foram feitos: o trabalho, o amor, o louvor. E passam a voltar-se para objetos outros, verdadeiros fetiches e ídolos menores que lhes roubam a energia e a finalidade. Comprar, gastar e consumir: esses são os verdadeiros prazeres pós-modernos.
Recente pesquisa realizada por cientistas ingleses demonstrou que comprar pode ser tão excitante e prazeroso para as mulheres quanto a atividade sexual. A pesquisa mediu a atividade de áreas do cérebro que controlam a emoção. As pessoas pesquisadas faziam uma série de atividades enquanto monitoradas. E o resultado mostrou que adquirir bens de consumo em liquidação provoca tanta excitação e prazer quanto ver imagens eróticas.
A pesquisa apresenta como uma de suas conclusões uma correlação entre picos emocionais e manifestações corpóreas de prazer e compras feitas em liquidações. O fato de o consumo provocar tais sensações catárticas quando são adquiridos objetos com desconto não atenua, e sim agrava, a nosso ver, o diagnóstico de que estamos caminhando para ser uma sociedade frígida no pior sentido da palavra.
O sexo como manifestação de amor e plenificação dos sentidos, canal por onde correm os movimentos da vida, está se tornando barato. Tão barato que pode ser equiparado à compra de um eletrônico ou um sapato ou... qualquer objeto que nos apresentem como a febre do momento. Desde que com desconto, é claro!
O corpo humano está em sério perigo. Está sendo liquidado ou vendido em suaves prestações mensais.

Para frear esse processo, seria urgente retomar a narrativa do Gênesis, primeiro livro da Bíblia, que nos diz que o que diferencia nós, humanos, dos outros seres criados, é o fato de o Criador, após nos criar do barro ter soprado em nossas narinas seu espírito vital. Somos um corpo, sim. Mas um corpo animado pelo espírito divino. Esta é nossa identidade, que jamais pode estar à venda nem ser posta em liquidação.


Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape


Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

A MÍDIA COMERCIAL EM GUERRA CONTRA LULA E DILMA


por Leonardo Boff

Sou profundamente pela liberdade de expressão em nome da qual fui punido com o “silêncio obsequioso”pelas autoridades do Vaticano. Sob risco de ser preso e torturado, ajudei a editora Vozes a publicar corajosamente o “Brasil Nunca Mais” onde se denunciavam as torturas, usando exclusivamente fontes militares, o que acelerou a queda do regime autoritário.

Esta história de vida, me avalisa fazer as críticas que ora faço ao atual enfrentamento entre o Presidente Lula e a midia comercial que reclama ser tolhida em sua liberdade. O que está ocorrendo já não é um enfrentamento de idéias e de interpretações e o uso legítimo da liberdade da imprensa. Está havendo um abuso da liberdade de imprensa que, na previsão de uma derrota eleitoral, decidiu mover uma guerra acirrada contra o Presidente Lula e a candidata Dilma Rousseff. Nessa guerra vale tudo: o factóide, a ocultação de fatos, a distorção e a mentira direta.

Precisamos dar o nome a esta mídia comercial. São famílias que, quando vêem seus interesses comerciais e ideológicos contrariados, se comportam como “famiglia” mafiosa. São donos privados que pretendem falar para todo Brasil e manter sob tutela a assim chamada opinião pública. São os donos do Estado de São Paulo, da Folha de São Paulo, de O Globo, da revista Veja na qual se instalou a razão cínica e o que há de mais falso e xulo da imprensa brasileira. Estes estão a serviço de um bloco histórico, assentado sobre o capital que sempre explorou o povo e que não aceita um Presidente que vem deste povo. Mais que informar e fornecer material para a discusão pública, pois essa é a missão da imprensa, esta mídia empresarial se comporta como um feroz partido de oposição.

Na sua fúria, quais desesperados e inapelavelmente derrotados, seus donos, editorialistas e analistas não têm o mínimo respeito devido à mais alta autoridade do pais, ao Presidente Lula. Nele vêem apenas um peão a ser tratado com o chicote da palavra que humilha.

Mas há um fato que eles não conseguem digerir em seu estômago elitista. Custa-lhes aceitar que um operário, nordestino, sobrevivente da grande tribulação dos filhos da pobreza, chegasse a ser Presidente. Este lugar, a Presidência, assim pensam, cabe a eles, os ilustrados, os articulados com o mundo, embora não consigam se livrar do complexo de vira-latas, pois se sentem meramente menores e associados ao grande jogo mundial. Para eles, o lugar do peão é na fábrica produzindo.

Como o mostrou o grande historiador José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma) “a maioria dominante, conservadora ou liberal, foi sempre alienada, antiprogresssita, antinacional e nãocontemporânea. A liderança nunca se reconciliou com o povo. Nunca viu nele uma criatura de Deus, nunca o reconheceu, pois gostaria que ele fosse o que não é. Nunca viu suas virtudes nem admirou seus serviços ao país, chamou-o de tudo, Jeca Tatu, negou seus direitos, arrasou sua vida e logo que o viu crescer ela lhe negou, pouco a pouco, sua aprovação, conspirou para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que contiua achando que lhe pertence (p.16)”.

Pois esse é o sentido da guerra que movem contra Lula. É uma guerra contra os pobres que estão se libertando. Eles não temem o pobre submisso. Eles tem pavor do pobre que pensa, que fala, que progride e que faz uma trajetória ascedente como Lula. Trata-se, como se depreende, de uma questão de classe. Os de baixo devem ficar em baixo. Ocorre que alguém de baixo chegou lá em cima. Tornou-se o Presidene de todos os brasileiros. Isso para eles é simplesmente intolerável.

Os donos e seus aliados ideológicos perderam o pulso da história. Não se deram conta de que o Brasil mudou. Surgiram redes de movimentos sociais organizados de onde vem Lula e tantas outras lideranças. Não há mais lugar para coroneis e de “fazedores de cabeça” do povo. Quando Lula afirmou que “a opinião pública somos nós”, frase tão distorcida por essa midia raivosa, quis enfatizar que o povo organizado e consciente arrebatou a pretensão da midia comercial de ser a formadora e a porta-voz exclusiva da opinião pública. Ela tem que renunciar à ditadura da palabra escrita, falada e televisionada e disputar com outras fontes de informação e de opinião.

O povo cansado de ser governado pelas classes dominantes resolveu votar em si mesmo. Votou em Lula como o seu representante. Uma vez no Governo, operou uma revolução conceptual, inaceitável para elas. O Estado não se fez inimigo do povo, mas o indutor de mudanças profundas que beneficiaram mais de 30 milhões de brasileiros. De miseráveis se fizeram pobres laboriosos, de pobres laboriosos se fizeram classe média baixa e de classe média baixa de fizeram classe média. Começaram a comer, a ter luz em casa, a poder mandar seus filhos para a escola, a ganhar mais salário, em fim, a melhorar de vida.

Outro conceito inovador foi o desenvolvimento com inclusão soicial e distribuição de renda. Antes havia apenas desenvolvimento/crescimento que beneficiava aos já beneficiados à custa das massas destituidas e com salários de fome. Agora ocorreu visível mobilização de classes, gerando satisfação das grandes maiorias e a esperança que tudo ainda pode ficar melhor. Concedemos que no Governo atual há um déficit de consciência e de práticas ecológicas. Mas importa reconhecer que Lula foi fiel à sua promessa de fazer amplas políticas públicas na direção dos mais marginalizados.

O que a grande maioria almeja é manter a continuidade deste processo de melhora e de mudança. Ora, esta continuidade é perigosa para a mídia comercial que assiste, assustada, o fortalecimento da soberania popular que se torna crítica, não mais manipulável e com vontade de ser ator dessa nova história democrática do Brasil. Vai ser uma democracia cada vez mais participativa e não apenas delegatícia. Esta abria amplo espaço à corrupção das elites e dava preponderância aos interesses das classes opulentas e ao seu braço ideológico que é a mídia comercial. A democracia participativa escuta os movimentos sociais, faz do Movimento dos Sem Terra (MST), odiado especialmente pela VEJA faz questão de não ver, protagonista de mudanças sociais não somente com referência à terra mas também ao modelo econômico e às formas cooperativas de produção.

O que está em jogo neste enfrentamento entre a midia comercial e Lula/Dilma é a questão: que Brasil queremos? Aquele injusto, neocoloncial, neoglobalizado e no fundo, retrógrado e velhista ou o Brasil novo com sujeitos históricos novos, antes sempre mantidos à margem e agora despontando com energias novas para construir um Brasil que ainda nunca tínhamos visto antes.

Esse Brasil é combatido na pessoa do Presidente Lula e da candidata Dilma. Mas estes representam o que deve ser. E o que deve ser tem força. Irão triunfar a despeito das má vontade deste setor endurecido da midia comercial e empresarial. A vitória de Dilma dará solidez a este caminho novo ansiado e construido com suor e sangue por tantas gerações de brasileiros.

*teólogo, filósofo, escritor e representante da Iniciativa Internacional da Carta da Terra.

domingo, 19 de setembro de 2010

PREFÁCIOS


por Frei Betto

Não faço prefácios de livros. Nem apresentações. Decisão tomada há cinco anos ao não suportar pressões de neoescritores para que eu escrevesse o quanto antes. Deixar de lado meu trabalho literário para ler obra alheia, fora do meu campo de interesse naquele momento, fazia-me perder o fio da meada. Pior quando eu não gostava do texto e, ao apontar falhas ou imaturidade na escrita, e recusar o prefácio, criava uma saia justa e, em alguns casos, perdia uma amizade.
Escritores têm muitas virtudes, como a persistência de tecer (daí texto) letrinha por letrinha e de conter a ansiedade até sentir que deu o melhor de si. Porém, somos um balaio de defeitos. O mais notório é a vaidade literária. Você ousa dizer à mãe que o filho dela é horroroso? Do mesmo modo, escritores acreditam que suas obras são o máximo! Se alguém fala mal do livro, não é o livro que não presta, é o detrator que é burro, ignorante, carece de cultura para apreender o valor da obra...
Você conhece algum clássico da literatura de ficção precedido de prefácio? Prefácio é para obras antigas que requerem contextualizar o leitor hodierno. Fora disso, funciona como cartão de apresentação. Ora, se alguém vem a você apresentado por seu melhor amigo, nem por isso significa que seja simpático e confiável como seu amigo. Do mesmo modo, não há prefácio que salve a má qualidade de uma obra de ficção. Pode ser assinado por James Joyce ou Gabriel Garcia Márquez. É o livro em si que cativa ou não o leitor. Aliás, tentei três vezes ler e apreciar Ulisses do Joyce, atraído pelo prefácio de Antônio Houaiss. Devido à minha obtusidade, fracassei.
Entendo que um escritor iniciante queira ver a sua obra recomendada por autor consagrado. Também não escapei da tentação de pedir a Tristão de Athayde e Dom Paulo Evaristo Arns para prefaciarem meus dois primeiros livros: Cartas da Prisão (Agir) e Das Catacumbas (hoje incluído no volume da Agir).
Em livro de ficção prefácio não se justifica. Exceto se se trata de tragédia grega ou de obra traduzida cujo autor seja desconhecido de seu novo público. Fora disso, há que ir direto ao texto e avaliá-lo por sua qualidade intrínseca, e não pelos confetes jogados pelo prefaciador. Aliás, já li prefácios melhores que o próprio livro recomendado.
O que escritores inéditos devem fazer, frente à recusa das editoras em publicá-los, é enviar seus originais aos inúmeros concursos literários. Um livro premiado abre portas de editoras. E jamais se deixarem abater pela recusa do editor. Proust foi rejeitado por André Gide, editor da Gallimard, e Carmen Balcells, uma das mais prestigiadas agentes literárias do mundo, devolveu a Umberto Eco os originais de O nome da rosa por considerá-lo, não um romance, mas uma tese acadêmica romanceada... A editora inglesa Hogarth Press recusou os originais de Ulisses, o que Virginia Woolf, publicada por ela, considerava “uma memorável catástrofe”.
Tornar-se um autor – pois escritores há muitos – é uma tarefa árdua. Exige persistência e, sobretudo, muita leitura e tempo dedicado a escrever e reescrever inúmeras vezes o mesmo texto. Em se tratando de ficção, ele nunca está definitivamente pronto. Como dizia Paul Valéry, não se termina um romance, apenas o abandona...
Meu primeiro editor foi Ênio Silveira, da Civilização Brasileira. Perguntei a ele como saber que um livro está maduro para ser remetido à editora. Respondeu: “Nunca o faça sem estar convencido de que você fez o melhor. Não blefe consigo mesmo.”
Guimarães Rosa adotava e recomendava o hábito de, terminado um livro, deixá-lo na gaveta “descansar”, como massa de bolo, por uns meses e, então, relê-lo. O autor certamente o fará com olho crítico, aprimorando o texto. Além de seguir-lhe o conselho, sempre repasso meus originais a meia-dúzia de leitores qualificados para que façam críticas e sugestões.

Frei Betto é escritor, autor de “Hotel Brasil – o mistério das cabeças degoladas” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org – Twitter:@freibetto



Copyright 2010 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

Cidadania continental


por MARCELO BARROS

O conceito de cidadania tem se democratizado. Onde há discriminação econômica, não se consegue realizar uma democracia social e política, verdadeira e completa. Apesar disso, em quase todo o mundo, homens e mulheres, das mais diferentes raças e cores, conquistaram, ao menos juridicamente, a igualdade perante a lei e o reconhecimento de sua dignidade e seus direitos humanos. Infelizmente, na América Latina, índios ainda são socialmente marginalizados e muitos trabalhadores rurais mantidos em regime de escravidão parcial. Quase sempre ser negro significa também ser pobre. Além disso, em muitos casos, a mulher ainda sofre discriminações. Seja como for, não se pode negar: novos ventos de liberdade e de justiça varrem o continente. Especialmente nestes dias, as atenções de boa parte da humanidade se voltam para o nosso hemisfério. Desta quarta-feira, 11 de agosto ao domingo, 15, se realiza em Assunção, capital do Paraguai, o 4º Fórum Social das Américas. Este fórum reunirá homens, mulheres, jovens, idosos, lideranças sociais, representantes de movimentos civis, índios negros e grupos feministas, em quase cinco dias de diálogo e estudos. O tema primeiro e central será a análise dos alcances e desafios do atual processo de mudanças sociais e políticas que está ocorrendo nas Américas. Principalmente, depois da evidente crise que o atual sistema econômico manifesta no mundo inteiro, pessoas de todo o mundo percebem com mais clareza que a economia é um assunto sério demais e tem tanta repercussão em nossas vidas que não pode ser deixado apenas em mãos de governos elitistas e técnicos burocratas.
Não é a primeira vez que os movimentos sociais e cidadãos/as deste continente se reúnem em fóruns de diálogo e discussão democrática. O primeiro aconteceu em Quito (2004). O segundo se realizou em Caracas (2006) durante um evento do 6º Fórum Social Mundial. O terceiro ocorreu em Guatemala (2008). O que começa nesta quarta feira será o quarto e, pela primeira vez contará com a acolhida dos nossos irmãos e irmãs do Paraguai. Como por princípio é um fórum de cidadania, autoridades que se fazem presentes vão como cidadãos, com direitos iguais a qualquer outra pessoa e não como políticos ou detentores de privilégios especiais.
Um elemento que tem se repetido em outros fóruns e caracteriza este de Assunção é o fato de se realizar nas dependências de duas universidades. Uma parte das reuniões se dará no Instituto Superior de Educação (ISE) e outra na Escola de Educação Física (EEF). É extremamente importante esta relação entre a Universidade e o povo. Cada vez mais, se torna necessário que os muros das escolas não se tornem barreiras para a cidadania e nem fechem professores e alunos em ilhas de especialização pouco conectadas com a realidade social e política que vivemos.
Antes mesmo de iniciar este fórum, seus participantes têm algumas conquistas a festejar. Com a criação de organismos de integração entre nossos povos como a UNASUL (União das Nações da América do Sul), a ALBA (Aliança Bolivariana das Américas) e mesmo o Mercosul, se tem alcançado uma nova consciência de pertença e identidade continental que antes não havia. Além disso, a noção indígena do bom viver tem entrado nas novas Constituições de países como o Equador e a Bolívia, como objetivo dos Estados (garantir uma vida digna, saudável e mesmo, na medida do possível, feliz para todos os cidadãos) e uma consciência social que vai se ampliando. O desafio ecológico e a sustentabilidade do planeta exigem rapidamente mudanças civilizatórias e isso também está sendo verdadeiramente assumido e amplamente discutido pelos grupos e comunidades de base.
Os fóruns sociais não têm poder de decisão. Por isso, há quem pense que são inúteis ou ao menos pouco relevantes. Quem acompanha as mudanças e conquistas obtidas nestes anos recentes, em todo o continente, pelas populações indígenas, negras e por outros segmentos dos setores populares sabe que isso não é verdade. Os fóruns sociais exercem sua função exatamente no campo da educação social e da cidadania. E ajudam as pessoas a descobrirem: embora somente a educação não consiga mudar nada, nada será mudado no mundo sem a educação. Quem busca aprofundar um caminho de espiritualidade pode pensar que estes assuntos sociais não tenham muito a ver com a fé. Ledo engano. O Dalai Lama percorre o mundo inteiro não para pregar uma religião e sim para estimular todos os seres humanos a uma solidariedade compassiva. Do mesmo modo, o núcleo da mensagem judaica e cristã é o amor solidário ao próximo que hoje não é apenas uma pessoa, mas povos inteiros necessitados de justiça e de paz.

Sobre universidade e universalidade


por MARIA CLARA BINGEMER

A palavra universidade faz interface em sua raiz com outra palavra, universal. Assim é que ao buscar a fonte do que seja a universidade, encontra-se o universo com sua conotação de absoluto e totalidade. Universal é a criação, falando ao espírito humano que a toca e experimenta de voos ainda maiores, para além do que os sentidos percebem ou atingem. Assim se dá a história do pensamento e do conhecimento da humanidade. Avançando no saber e na reflexão, estendendo o conhecimento além de todos os limites que vão sendo alcançados, voando sem limite algum para o horizonte infinito que as asas de seu desejo e sua razão pretendem atingir, transpondo a cada momento todas as fronteiras. Assim nasceram as universidades católicas no Ocidente.
No fundo da motivação para construir uma universidade como morada do saber, do ensino e da pesquisa está a razão inspirada pela caridade. Caridade que deseja a Verdade e busca o conhecimento através da pesquisa, da investigação e da reflexão. Para posteriormente difundi-lo mais universalmente. Caridade que crê no ser humano como ser de razão e transcendência, em contínua abertura para o universo e em constante desejo de crescer e compreender a si e ao mundo que o rodeia. Para isso está a Universidade oferecendo leque mais totalizante e universal de oportunidades, refletindo e aprofundando o conhecido, elaborando novas formulações e sínteses sobre o apreendido e lançando-se com atenção alerta sobre o ainda não descoberto.
Recebido e apropriado pela mente humana, o conhecimento aponta para além de si e de seus limites buscando transmitir-se e transgredir-se a si mesmo. Transmitir-se na medida em que difunde a outros o caminho percorrido e seu conteúdo. Transgredir-se pois nunca encontrará repouso no já adquirido, mas sempre tenderá para mais, em contínua e persistente busca de uma universalidade maior. A autoridade do aprendido será levada a “outras partes”, abrindo horizontes e inaugurando novos mundos por onde o espírito humano poderá andar e comunicar o que aprendeu, alargando assim o espaço do saber. Essa é a razão de ser da universidade, que encontra seu segredo em nunca acabada universalidade.
Por um lado, está a inspiração e razão de ser de uma obra como a Universidade católica, que se encontram presentes na Igreja desde a Idade Media. Trata-se do desejo de dar alcance universal à missão de ajudar a outros através do conhecimento. Por outro, o objetivo e o ideal das universidades que os mesmos jesuítas assumirão a seu cargo atravessam o espaço da realidade e mergulham em plena transcendência. A razão de ser e a meta de uma universidade como a nossa, onde se busca a excelência do conhecimento, aterrissa no coração da realidade, na busca e no exercício da caridade e na ajuda do próximo. Comprometer-se com as questões concretas e os desafios reais da sociedade produzindo conhecimento e formando pessoas que possam construir uma sociedade mais justa é constitutivo da identidade da universidade confessional.
Tudo para a maior glória de Deus. Não por outro motivo a palavra universal é sinônimo de católico. E o cath-olon é a totalidade com a qual a mesma universidade se identifica. “O bem, quanto mais universal, mais divino”, dizia Inácio de Loyola, nos albores da modernidade, aos jesuítas que desejava ver percorrendo o mundo inteiro, buscando o maior serviço divino e a maior glória de Deus. Como meio para esse serviço maior a esse bem mais universal, a universidade desponta como espaço adequado onde os saberes se entrecruzam e falam de totalidade e absoluto.
Fiel a sua identidade, a universidade católica é igualmente chamada a ser espaço plural, onde a liberdade do pensar permanece aberta ao diálogo com outras crenças e também com os que não creem. Por isso podem ser encontrados em seus quadros, com pleno direito e cidadania, docentes, pesquisadores e alunos de todos os credos e também aqueles sem filiação a qualquer credo. O único pressuposto para o ingresso no seio da universidade permanece sendo – além da competência acadêmica - a integridade ética, o respeito mútuo e o compromisso humanista.
Essa reflexão deseja celebrar com alegria os 70 anos da PUC-Rio. Esperamos que essa celebração seja cheia da criativa fidelidade à inspiração que fez nascer a Universidade e que a faz ser o que é: a melhor universidade privada do país. Em seu brasão, o desejo e a ousadia da universalidade expressos pelas duas asas da fé e da razão. Assim voando, nada é pesado e os limites se convertem em desafios e oportunidades na fascinante aventura humana de pensar, conhecer e acreditar. “Alis grave nil”.

Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/agape)
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O velho agoniza e o novo custa a nascer


por LEONARDO BOFF

Entre os muitos problemas atuais, três comparecem como os mais desafiadores: a grave crise social mundial, as mudanças climáticas e a insustentabilidade do sistema-Terra.

A crise social mundial deriva diretamente do modo de produção que ainda impera em todo o mundo, o capitalista. Sua dinâmica leva a uma exacerbada acumulação de riqueza em poucas mãos à custa de uma espantosa pilhagem da natureza e do empobrecimento das grandes maiorias dos povos. Ela é crescente e os gritos caninos dos famélicos e considerados “óleo queimado” não podem mas ser silenciados.

Este sistema deve ser denunciado como inumano, cruel, sem piedade e hostil à vida. Ele tem uma tendência suicida e se não for superado historicamente, poderá levar o sistema-vida a um grande impasse e até ao extermínio da espécie humana.

O segundo grave problema é constituido pelas mudanças climáticas que se revelam por eventos extremos: grandes frios de um lado e prolongadas estiagens de outro. Estas mudanças sinalizam um dado irreversível: a Terra perdeu seu equilíbrio e está buscando um ponto de estabilidade que se alcançará subindo sua temperatura. Até dois graus Celsius de aumento, o sistema-Terra é ainda administrável. Se não fizermos o suficiente e o clima atingir até 4 graus Celsius (conforme advertem sérios centros de pesquisa), então a vida assim como a conhecemos não será mais possível. Haverá uma paisagem sinistra: uma Terra devastada e coberta de cadáveres.

Nunca a humanidade, como um todo, se confrontou com semelhante alternativa: ou mudar radicalmente ou aceitar a nossa destruição e a devastação da diversidade da vida. A Terra continuará, entregue às bactéria, mas sem nós.

Importa entender que o problema não é a Terra. É nossa relação agressiva e não cooperativa para com seus ritmos e dinâmicas. Talvez ao buscar um novo ponto de equilíbrio, ela se verá forçada a reduzir a biosfera, implicando na eliminação de muitos seres vivos, não excluindo seres humanos.

O terceiro problema é a insustentabilidade do sistema-Terra. Hoje sabemos empiricamente que a Terra é um superorganismo vivo que harmoniza com sutileza e inteligência todos os elementos necessários para a vida a fim de continuamente produzir ou reproduzir vidas e garantir tudo o que elas precisam para subsistir.

Ocorre que a excessiva exploração de seus recursos naturais, muitos renováveis e outros não, fez com que ela não conseguisse, com seus próprios mecanismos internos, se autoreproduzir e autoregular. A humanidade consome atualmente 30% mais do que aquilo que a Terra pode repor. Desta forma ela não se torna mais sustentável. Há crescentes perdas de solos, de ar, de águas, de florestas, de espécies vivas e da própria fertilidade humana. Quando estas perdas vão parar? E se não pararem qual será o nosso futuro?

Tudo isso nos obriga a uma mudança de paradigma civilizacional. Mudança de civilização implica fundamentalmente um novo começo, uma nova relação de sinergia e de mútua pertença entre a Terra e a humanidade, a vivência de valores ligados ao capital espiritual como o cuidado, o respeito, a colaboração, a solidariedade, a compaixão, a convivência pacífica e uma abertura às dimensões transcendentes que dizem respeito ao sentido terminal nosso e do universo inteiro.

Sem uma espiritualidade, vale dizer, sem uma nova experiência radical do Ser e sem um mergulho na Fonte originária de todos os seres de onde nasce um novo horizonte de esperança, certamente não conseguiremos fazer uma travessia feliz.

Enfrentamos um problema: o velho ainda persiste e o novo custa a nascer, para usar uma expressão de Antonio Gramsci.

Vivemos tempos urgentes. São as urgências que nos fazem pensar e são os perigos que nos obrigam a criar arcas de Noé salvadoras. Estamos inconformados com a atual situação da Terra. Mesmo assim cremos que está ao nosso alcance construir um mundo do "bem viver" em harmonia com todos os seres e com as energias da natureza e principalmente em cooperação com todos os seres humanos e numa profunda reverência para com a Mãe Terra.

Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra e Cuidar da vida: como evitar o fim do mundo, a sair pela Record 2010.