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terça-feira, 29 de setembro de 2015

A ARTE DE ENVELHECER

Por Marcelo Barros



A ONU consagra o 1o de outubro como dia internacional de proteção às pessoas idosas. No Brasil, nessa data, em 2003,  foi assinado o Estatuto do Idoso. Nesse mesmo ano, a CNBB começou a Pastoral das Pessoas Idosas, com o objetivo de assegurar a dignidade e a valorização integral dos idosos na sociedade. 

No mundo atual, um número sempre maior de pessoas atinge idades que, em outros tempos, poucos conseguiam alcançar. O desafio é lhes proporcionar uma vida o mais possível ativa e integrada no conjunto da sociedade. Na sociedade atual, apesar do envelhecimento da população, a sociedade é pensada para a juventude. Como os mais velhos não produzem mais, perdem sua importância social. Parece que só a juventude importa. As pessoas fazem cirurgia plástica e malhação para se manter sempre jovens. Envelhecer se torna mais doloroso e difícil. No Brasil, são 22 milhões de pessoas que passam dos 65 anos. Isso exige aumento de assistência e médicos especializados.  Uma senhora de mais de 90 anos afirmava à sua filha: “Agora, está muito difícil morrer”.

Em muitas cidades, existem associações da terceira idade que promovem encontros, lazer, danças e até passeios. Para elas, as universidades têm programas de extensão universitária e atividades como cursos de computação, ginástica, natação, música, dança e outras artes.

Às pessoas idosas e a toda sociedade, essas organizações propõem fazer as coisas com calma no lugar da agitação. Sugerem a disponibilidade no lugar do estresse. Valorizam mais a identidade do que só a função; a qualidade e não somente a quantidade. Trata-se, finalmente, de viver a graça do dia de hoje mais do que o afã da permanente projeção para o amanhã.

Em qualquer cultura, para toda pessoa, envelhecer é sempre um processo difícil e exigente. Não é fácil ver o corpo ir progressivamente decaindo e manter o espírito jovial. Envelhecer fisicamente é um processo inexorável e ninguém pode mudar isso. Não depende da vontade da pessoa. No entanto, podemos fazer escolhas que nos permitam envelhecer de forma mais humanizada e humanizadora. Ninguém sabe ainda a causa biológica do envelhecimento, nem se pode, até agora, deter ou evitar esse fenômeno. Clineu de Melo, médico especialista em Geriatria da USP, afirmou: “O envelhecimento é a perda gradativa das reservas que todos os organismos têm para usar em momentos de estresse”[1]. Todos os organismos foram pensados pela natureza para nascer, viver, reproduzir-se e depois morrer. Há uma seleção natural. Nesse sentido, pelo que se sabe, durante milênios, o ser humano a média da vida humana era de 30 anos. Vários cientistas dizem que, a partir dos 30 anos, entramos em uma etapa da vida para a qual a seleção natural não nos preparou. Leonard Stayflick, professor na Universidade de Califórnia, chega a afirmar: “A velhice é um produto da civilização. Só ocorre propriamente nos seres humanos, nos animais domésticos e nos mantidos em zoológicos e em laboratórios”. Comumente ligamos o envelhecimento à idade e, de fato, há uma relação, mas não é direta e linear. Há pessoas de 90 anos que parecem ter 70 e há pessoas de 60 com jeito de 90. Apesar de não se poder generalizar, há uma pesquisa que mostra que a longevidade humana é maior em mosteiros budistas, em conventos cristãos, em templos de Candomblé e em comunidades de outras religiões do que na sociedade na qual as pessoas mais velhas são simplesmente postas em asilo ou em depósitos humanos esperando a morte. É claro que o processo do envelhecimento depende da saúde, do clima e mesmo da raça a qual pertencemos, mas depende também do temperamento e estilo de vida. Por isso, podemos dizer que até certo ponto a espiritualidade, isso é, a energia do espírito em ação na pessoa, pode ter aí uma boa influência. A primeira coisa que as tradições espirituais propõem é manter sempre um projeto de vida profundo e de acordo com o projeto divino para o mundo e a comunidade a qual pertencemos. No começo dos anos 90, no Recife, Dom Hélder Câmara, com seus quase 90 anos, recebeu a visita do Abbé Pierre, fundador de uma associação que trabalha com sofredores de rua. Os dois anciãos conversaram durante horas. Depois, um jornalista perguntou: - Como vocês se sentem ao perceber que, depois de consagrarem toda a vida à libertação dos pobres do mundo, conseguiram tão pouco? Dom Helder falou: - Ficamos felizes de ter conseguido ao menos esse pouco e nos comprometemos em dar até o nosso último suspiro por essa causa na qual acreditamos e pela qual queremos dar a vida.



 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países 





segunda-feira, 28 de setembro de 2015

ECOLOGIA HOJE: UMA APOSTA PELA VIDA

Por Leonardo Boff


          Há poucos pensadores no campo da ecologia que tentam ir às raízes da atual crise ecológica global. Um dos mais renomados é seguramente o mexicano Enrique Leff com seu mais recente livro: A aposta pela vida: imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do Sul “((a sair pela Vozes). Além de professor e pesquisador, foi por vários anos o Coordenador da Rede de Formação Ambiental para a América Latina e o Caribe no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Acumulou muitas experiências que serviram e servem de base para a sua produção intelectual.

Dá ênfase à preocupação filosófico-social, pois seu interesse é decifrar os mecanismos que nos levaram à atual crise e como poderemos sair bem dela. Portanto, estuda as causas metafísicas (a concepção do ser e da realidade) e epistemológicas (os modos de conhecimento) em suas diversas ontologias (determinações sociais, políticas, culturais e do mundo da vida, entre outras).

Procede a um detalhado trabalho de reconstrução da ecologia social e da ecologia política: como surgiram e evoluíram face à crescente crise ecológica, especialmente ao aquecimento global. Essa parte é relevante para quem quiser conhecer os meandros dos discurso ecológico em suas diferentes tendências.

A pergunta que atravessa todo seu texto, denso, rico em referências bibliográficas de várias ciências e tendências, se concentra nesta questão: como estabelecer as condições adequadas à vida num mundo feito insustentável?

A resposta demanda duas tarefas:

A primeira é a demolição dos pressupostos equivocados da modernidade com sua racionalidade técnico-científica-utilitarista e vontade de dominação de tudo: de territórios, de povos, da natureza e dos processos da vida; realiza esta diligência com uma argumentação cerrada, citando as autoridades filosóficas e científicas mais sérias, sempre salvaguardando o que é irrenunciável mas denunciando como esse tipo exacerbado de racionalidade levou a uma crise civilizatória global com processos insustentáveis e hostis à vida, podendo levar, em seu termo final, a um colapso de nossa civilização.

A segunda consiste na criação de uma nova consciência e o sentido de um destino comum Terra-Natureza-Humanidade. É a parte mais criativa. Auxilia-o a teoria da complexidade e do caos; discute o sentido da sustentabilidade como princípio de vida e de imperativo da sobreviência. Interroga as várias teorias do surgimento da vida e sustenta a tese de F. Capra segundo o qual a vida se originaria do metabolismo entre matéria e energia, gerando redes autogenerativas que liberam os fluxos da vida.

Detalha os diferentes modos de se reconstruir e de se apropriar da natureza, respeitando seus ritmos e ciclos.

Contrariando o paradigma vigente de apropriação privada da natureza e dos fluxos vitais em função do enriquecimento, sabendo apenas modernizar sem ecologizar os saberes, postula vários imaginários alternativos de organizar a Casa Comum, consoante as diferentes culturas nas quas a identidade e a diferença são trabalhadas de forma integradora. Valoriza especialmente a contribuição andina do “bien vivir”. Mais que uma filosofia de vida é uma metáfora de um mundo em harmonia com o Todo. O sumak kawsai (bien vivir) engloba práticas sociais nas quais se expressam as relações dos povos com o cosmos, com seu território, seus ecossitemas, suas culturas e suas relações sociais.

A parte final nos comunica grande esperança: o crescimento a nível mundial através de incontáveis movimentos e experiências locais que revelam a capacidade das populações de resistir à razão econômica, instrumental e utilitarista vigente. Os países centrais que já exploraram praticamente quase todos os seus serviços e bens naturais tentam recolonizar especialmente a América Latina para que seja uma reserva destes bens para eles. Na nossa visão latino-americana, tais “bondades da natureza” como dizem os povos originários, constituem a base para os direitos da natureza e da Terra tida como a Pachamama, para os direitos culturais e ambientais que concretizam outras formas de habitar a Casa Comum e de se beneficiar de tudo o que ela nos oferece para viver em harmonia.

Aqui se revela uma nova aposta pela vida, que não a ameaça, mas dela cuida, cria-lhe as condições de sua permanência sobre a face da Terra e lhe garante as condições de co-evoluir e constituir-se num bem a ser herdado pelas gerações que virão depois de nós.

Este livro de Leff é um alento para aqueles que uma vez despertaram para a crise ecológica, não se resignam diante das estratégias de dominação dos poderosos, mas resitem e ensaiam novas formas de convivência, de produção, de consumo e de cuidado e respeito para com todos os seres especialmente pela grande e generosa Mãe Terra.

É um livro necessário que vai na linha exposta com grande força pelo Papa Francisco em sua encíclica sobre “o cuidado da Casa Comum.

Leonardo Boff é colunista do JB on line e escreveu: Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes 2002.

 


sexta-feira, 25 de setembro de 2015

RECONCILIAÇÃO: O APELO DE FRANCISCO EM CUBA


por Maria Clara Bingemer 




            O mundo acompanha com atenção extrema o périplo de Francisco pela Ilha caribenha de Cuba seguido de visitas a algumas cidades dos Estados Unidos. É sintomático e coerente com o estilo papal que haja começado por Cuba.  O todo poderoso império estadunidense vem depois da pequena Ilha, tão combalida por tantas adversidades nos últimos tempos.  Como tem sido a marca de seu pontificado, Francisco agora reafirma: primeiro os que passam por mais dificuldades, os pobres, os que sofrem.

            É abundante e rico em conteúdo o que vem falando o pontífice em seu périplo cubano.  A mídia foi pródiga em imagens e notícias: a saudação cordial a Raúl Castro, a visita fraterna e íntima ao velho comandante Fidel e a troca de livros entre ambos, a peregrinação “como filho e peregrino” ao santuário da Virgem de la Caridad del Cobre, Cachita, como a chamam carinhosamente os habitantes da Ilha.

Em poucas palavras e nos limites desse artigo seria difícil chamar a atenção para  todos os destaques  importantes desta visita histórica.  O Papa sela com sua presença a reaproximação entre os dois países, para a qual sua mediação foi importante elemento.  O caminho a andar ainda é grande.  Há resistências de um lado e de outro.  Por isso, ao chegar Francisco disse a palavra que guiaria toda a sua visita: reconciliação.

No aeroporto internacional José Martí, em seu primeiro discurso em território cubano, o Papa afirmou que a reaproximação entre Cuba e Estados Unidos é um “exemplo” para o mundo atual. “É um exemplo...e o mundo precisa desse exemplo, porque vivemos um momento de uma terceira guerra mundial em capítulos.“  E neste mesmo discurso afirmou ser a reaproximação entre os dois países, por décadas com as relações rompidas, uma vitória do diálogo.

Em seu segundo dia de visita, a tônica das palavras do Papa foi a questão do serviço.  Encareceu a importância de que esse serviço não seja ideológico, pois não se serve a ideias e sim a pessoas.  Em seguida, ressaltou a forma que deve tomar este serviço: cuidar das fragilidades das pessoas, ou seja, dirigir-se àqueles que são mais vulneráveis, que estão mais desprotegidos e expostos às intempéries da vida. Segundo o Pontífice, a grandeza de um país se mede pela maneira como trata aqueles que são mais frágeis.

Embora não tenha dito expressamente, pode-se interpretar aí uma aprovação de Francisco a certas conquistas positivas do regime cubano, sobretudo em relação às crianças e também aos idosos. Ou seja, aos mais frágeis.  Igualmente não estaria ausente das preocupações do Papa o perigo latente com a abertura da Ilha às relações com o vizinho do norte de que o consumo invada e seduza a população.  Por décadas Cuba construiu um modelo que, com todos os seus defeitos, busca a justiça através de um estilo de vida austero e sóbrio, embora não isento de sacrifícios.  E com grande dignidade. 

A reconciliação que implicaria no fim do embargo imposto à Ilha pelo governo estadunidense e a liberação de Guantánamo, atualmente base militar americana, poderia devolver aos cubanos uma tranquilidade pela qual há muito esperam.  Pois apesar da dignidade com que erguem a cabeça, da alegria na qual insistem em viver, todos sabem que a vida não tem sido fácil nos últimos anos para o povo da ilha.  Por isso, Francisco paternalmente disse, em seu segundo dia de visita: "apesar das feridas que tem como qualquer povo, (o povo cubano) sabe abrir os braços, caminhar com esperança, porque se sente chamado para a grandeza".

A reconciliação que abriria as portas da comunicação e do livre comércio entre Cuba e os Estados Unidos implicaria concessões de ambos os lados.  Se aos estadunidenses seriam pedidas medidas concretas com impacto na abertura das relações comerciais e no reconhecimento efetivo da soberania da Ilha, do governo cubano seria pedida maior liberdade ao povo, além da democratização do regime, com eleições e todos os demais rituais da democracia.

Francisco sabe que isso não é fácil nem rápido.  Trata-se de um processo lento e delicado, a ser realizado e acompanhado com muito carinho.  Por isso, no último dia de sua visita foi depositar suas intenções aos pés da Virgem mambisa, mãe de todos os cubanos.  Em Santiago de Cuba, sede do santuário do Cobre, Francisco louvou Maria como a personificação de "uma revolução da ternura", e instou os cubanos a seguirem o seu exemplo "para construírem pontes, deitar abaixo muros, plantar sementes de reconciliação", em clara alusão a esse recente e delicado processo de reconciliação que ajudou a iniciar.

Dirigindo-se filialmente a Nossa Senhora, chamou-a “Mãe da Reconciliação” e pediu-lhe que reunisse todo o seu povo disperso pelo mundo, fazendo da nação cubana um lar de irmãos e irmãs. Francisco partiu rumo ao Norte.  Em solo cubano, deixou a semente da reconciliação.  E um apelo: no país que foi capaz de fazer a revolução que trouxe tantas conquistas de justiça para um povo oprimido e subjugado, ter a coragem de fazer a “revolução da reconciliação”, interna e externamente.  É exigente, é difícil, mas extremamente libertador. 

 Esperemos que de ambas as partes os muros sejam derrubados, as pontes se estendam sobre os espaços vazios e as sementes brotem em flores e frutos.  E que Deus continue inspirando o peregrino e mensageiro da reconciliação e da paz.

 Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, teóloga e autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco. 

 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O PAPA ENTRE CUBA E EUA

por Frei Betto



      HAVANA - A iniciativa de recorrer ao papa Francisco para que interviesse no reatamento de relações diplomáticas entre EUA e Cuba foi do senador estadunidense Patrick Leahy. Católico e amigo de Cuba, o democrata enviou carta ao papa, no ano passado, insistindo que aproveitasse o pouco tempo que resta a Obama no poder para lograr a reaproximação entre os dois países.

      Em meados de 2014, Francisco convocou ao Vaticano o cardeal Jaime Ortega, de Cuba, e confiou a ele duas cartas, uma para Raúl Castro, outra para Obama, com a proposta de reconciliação. O papa preferiu não correr o risco de recorrer a um cardeal dos EUA para enviar a carta à Casa Branca, receoso de que a influência anticastrista naquele país desfavorecesse o objetivo da missão.

      Após entregar a carta ao presidente cubano, o cardeal viajou a Washington e, fora de agenda oficial, foi recebido pelo presidente dos EUA, que deu seu acordo ao teor da correspondência.

      Iniciaram-se, então, os entendimentos entre delegações de ambos os países em território neutro: Canadá. Tudo sob sigilo, para evitar ressonâncias negativas, sobretudo entre os “duros” que cercam Obama.

      A 17 de dezembro de 2014, os dois presidentes, na mesma hora, anunciaram a decisão de reaproximar seus países. Detalhe curioso: 17 de dezembro é a data de aniversário do papa Francisco e o dia da mais popular festa religiosa de Havana, a peregrinação ao santuário de São Lázaro, a quem muitos atribuíram o “milagre” do início da distensão entre EUA e Cuba.

      Dos pronunciamentos do papa em Havana, destacam-se, na saudação ao desembarcar, a ênfase de que já nos encontramos “na terceira guerra mundial, feita por etapas” e, na missa campal na Praça da Revolução, seu apelo em favor das negociações de paz que transcorrem na capital cubana, entre o governo da Colômbia e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.

      Um papa não improvisa. Nem quando profere sermão. Considerado infalível em questões de fé e moral, todos os seus pronunciamentos são lidos após cuidadosa preparação.

      Francisco fugiu à regra e à tradição. Na tarde de domingo, 20, deixou de lado a preleção escrita e, comovido pelo testemunho de uma jovem religiosa que cuida de portadores de deficiências, exortou religiosos e clero a abraçar a pobreza e a misericórdia.

      Os cardeais da Cúria Romana que o acompanham nesta viagem às Américas devem ter ficado em pânico, imaginando o que aconteceria se o papa dissesse algo equivocado ou dúbio. Francisco criticou duramente os que, na Igreja, se apegam ao dinheiro. Declarou que é uma bênção de Deus quando uma instituição religiosa é tão mal administrada que acaba falindo. Combateu também o moralismo de sacerdotes incapazes de perdoar os penitentes. Recordei-me de um pintor amigo que encontrara no aeroporto, na noite de meu embarque para Cuba, desolado porque decidira se confessar e o padre lhe fizera uma peroração farisaica ao ouvir que ele é casado pela segunda vez.

      “Sejam misericordiosos como Jesus”, disse Francisco aos padres. E recordou a frase de Santo Ambrósio: “Onde há misericórdia, aí está o Espírito de Deus. Onde há rigidez, aí estão os Seus ministros...”

      Agora, nos EUA, o papa Francisco enfrenta a etapa mais difícil de sua viagem às Américas. Em plena campanha eleitoral à sucessão de Obama, qualquer coisa que diga agradará ou desapontará republicanos e democratas. Hoje, pela primeira vez na história, um papa fala no Congresso dos EUA. Amanhã, discursa na assembleia geral da ONU. Deverá ser o seu pronunciamento mais contundente. No sábado e domingo, em Filadélfia, enfrenta os polêmicos temas de novos perfis de família, gênero e sexualidade.

      João XXIII fez uma revolução na Igreja, ao convocar o Concílio Vaticano II (1962-1965). Francisco faz na Igreja e no mundo, ao explicitar a dimensão social, política e econômica da mensagem evangélica.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
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terça-feira, 22 de setembro de 2015

O FILTRO PLANETÁRIO DA VIDA

Por Marcelo Barros



Nesses dias, se encerrou em Bonn, na Alemanha uma reunião de representantes de diversos países para preparar os acordos necessários a serem tomados, no começo de dezembro, em Paris, no encontro da ONU sobre mudanças climáticas. No entanto, o assunto dessa semana foi a proteção da camada de ozônio na estratosfera. A cada ano, o dia 16 de setembro é considerado pela ONU “o dia internacional de proteção à camada de ozônio”. Em vários países, durante essa semana, se realizaram eventos para alertar a humanidade sobre a situação atual e propor um maior cuidado com a atmosfera. O ozônio é um gás altamente volátil. Sua molécula é composta por três átomos de oxigênio (O3). Na superfície da terra , é um gás poluidor e negativo. Na atmosfera, entre 25 e 30 quilômetros de distância da terra, há uma camada de ozônio que absorve a radiação ultravioleta do sol e, assim, protege plantas, animais e os seres humanos dos raios ultravioletas. Para o planeta Terra, ela é o filtro da vida e da saúde. Quando a camada de ozônio diminui ou desaparece, ficamos expostos a várias enfermidades e problemas. E isso começou a acontecer nos anos 70.

 O 16 de setembro é considerado o “dia internacional da preservação da camada de ozônio”, porque em 1987, nessa data, 46 países assinaram o “Protocolo de Montreal”. Ali, se comprometeram a parar a fabricação de clorofluorcarbono (CFC) afim de deter a destruição da camada de ozônio na estratosfera terrestre. Esse acordo foi importante e mais eficaz do que o protocolo de Kyoto, assinado mais tarde para deter o aquecimento global. Conforme os cientistas da OMM (Organização Mundial e Meteorologia), desde a assinatura do documento de Montreal,  a produção do CFC chegou a cair 76% em relação aos anos anteriores ao tratado. Entretanto, a própria ONU reconhece: no mercado negro, a cada ano, continuam a ser vendidas mais de 30 mil toneladas de CFC, em forma de gás para geladeiras e de latas de spray. Isso mostra que não basta a lei para mudar a realidade.

Em Brevik, pequena cidade ao oeste de Oslo, na Noruega, uma empresa desenvolve um projeto condenado pela maioria dos ecologistas e temido pela sociedade civil. Trata-se de um meio de recuperar o dióxido de carbono (CO2) imediatamente quando ele sai das chaminés das fábricas e usinas para enterrá-lo no subsolo, estoca-lo em um reservatório subterrâneo, no qual ele não possa provocar o efeito serra. Querem, assim, “descarbonizá-lo”, ou seja, convertê-lo em energia limpa. A maioria dos ecologistas denuncia o risco de tal empreendimento, cujos efeitos ainda são desconhecidos. Além disso, será uma solução que não muda a mentalidade exploradora e dominadora do ser humano sobre a natureza.
   

Em sua nova encíclica sobre o cuidado com a casa comum, o papa Francisco insiste: é preciso uma consciência nova e uma mudança cultural. Não se trata apenas de evitar as consequências terríveis das mudanças climáticas. É preciso mudar o nosso modo de conviver com a natureza. Cuidar da proteção da camada de ozônio é responsabilidade dos governos, mas é importante que todos nós, cidadãos, entremos nessa campanha. As Igrejas e religiões têm uma responsabilidade séria na formação de uma nova sensibilidade com relação ao cuidado com a natureza. Recentemente, o papa determinou que, a cada ano, junto com as Igrejas Ortodoxas, a Igreja Católica celebre no começo de setembro um dia de oração e cuidado com a criação divina, o universo. O Conselho Mundial de Igrejas que reúne 349 Igrejas evangélicas e ortodoxas enviou à ONU um documento no qual se propõe a ajudar as comunidades cristãs a se comportarem como “antessalas da criação divina” e assumirem o compromisso de cuidarem com mais afinco de uma unidade holística que abrange toda a natureza como comunidade da vida.  A proteção da camada de ozônio, filtro da vida no planeta, entra nessa pastoral do amor ecológico. 

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

UMA OUTRA FORMA DE RESOLVER OS CONFLITOS


Por Leonardo Boff


A humanidade, especialmente, sob o patriarcado, conheceu conflitos de toda ordem. A forma predominante de resolvê-los foi e é a utilização da violência, para dobrar o outro e enquadrá-lo numa determinada ordem. Esse é o pior dos caminhos, pois deixa nos vencidos um rastro de amargura, humilhação e de vontade de vingança. Estes sentimentos suscitam uma espiral da violência que hoje ganha especialmente a forma de terrorismo, expressão da vingança dos humilhados. Será esta o única forma de os seres humanos resolverem suas contendas?

Houve alguém que se considerava “um louco de Deus”(pazzus Dei), Francisco de Assis que poderia ser também o atual Francisco de Roma que perseguiu outro caminho. O anterior era o de ganha-perde. Este último, o ganha-ganha, esvaziando as bases para o espírito belicoso. Tomemos exemplos da prática de Francisco de Assis. Sua saudação usual era desejar a todos: “paz e bem”. Pedia aos seguidores: ”Todo aquele que se aproximar, seja amigo ou inimigo, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade”(Regra não bulada,7).

Consideremos a estratégia de Francisco face à violência. Tomemos duas legendas, que, como legendas, guardam o espírito melhor que a letra dos fatos: os ladrões do Borgo San Sepolcro e o lobo de Gubbio (Fioretti, c. 21).

Um bando de ladrões se escondia nos bosques e saqueavam a redondeza e os transeuntes. Movidos pela fome foram ao eremitério dos frades para pedir comida.

 São atendidos mas não sem remorsos destes: ”Não é justo que demos esmola a esta casta de ladrões que tanto mal faz neste mundo”. Apresentam a questão a Francisco. Este sugeriu a seguinte estratégia: levar ao bosque pão e vinho e gritar-lhes: ”Irmãos ladrões, vinde cá; somos irmãos e lhes trouxemos pão e vinho. Felizes, comem e bebem. Em seguida falem-lhe de Deus; mas não lhes peçam que abandonem a vida que levam porque seria pedir demais; apenas peçam que ao assaltar, não façam mal às pessoas. Numa outra vez, aconselha Francisco, levem coisa melhor: queijo e ovos. Mais felizes ainda os ladrões se refestelam. Mas ouvem a exortação dos frades: “larguem esta vida de fome e sofrimento; deixem de roubar; convertam-se ao trabalho que o bom Deus vai providenciar o necessário para o corpo e para a alma”. Os ladrões, comovidos por tanta bondade, deixam aquela vida e alguns até se fizeram frades.

Aqui se renuncia ao dedo em riste acusando e condenando em nome da aproximação calorosa e da confiança na energia escondida neles de ser outra coisa que ladrões. Supera-se todo maniqueísmo que distribui a bondade de um lado e a maldade do outro. Na verdade, em cada um se esconde um possível ladrão e um possível frade. Com terno afeto se pode resgatar o frade escondido dentro do ladrão. E ocorreu.

Claramente aparece esta estratégia da renúncia da violência na legenda do lobo de Gubbio que atacava a população da pequena cidade. Supera-se de novo a esquematização: de um lado o “lobo grandíssimo, terrível e feroz” e do outro o povo bom, cheio de medo e armado. Dois atores se enfrentam cuja única relação é a violência e a destruição mútua. A estratégia de Francisco não é buscar uma trégua ou um equilíbrio de forças sob a égide do medo. Nem toma partido de um lado ou de outro, num falso farisaísmo: “mau é o outro, não eu, e por isso deve ser destruído”. Ninguém se pergunta se dentro de cada um não pode se esconder um lobo mau e e ao mesmo tempo um bom cidadão?

O caminho de Francisco é desolcultar esta união dos opostos e aproximar a ambos para que possam fazer um pacto de paz. Vai ao lobo e lhe diz: ”irmão lobo, és homicida péssimo e mereces a forca; mas também reconheço que é pela fome que fazes tanto mal. Vamos fazer um pacto: a população vai te alimentar e tu deixarás de ameaçá-la”. Em seguida se dirige à população e lhes prega: ”voltem-se para Deus, deixem de pecar.

Garantam alimento suficiente ao lobo e assim Deus os livrará dos castigos eternos e do lobo mau”. Diz a legenda que a cidadezinha mudou de hábitos, decidiu alimentar o lobo e este passeava entre todos, como se fosse um manso cidadão.

Houve intérpretes que leram essa legenda como uma metáfora da luta de classes. Pode ser. O fato é que a paz conseguida não foi a vitória de um dos lados, mas a superação dos lados e dos partidos. Cada um cedeu, verificou-se o ganha-ganha e irrompeu a paz que não existe em si, mas que é fruto de uma construção coletiva entre os cidadãos e o lobo.

Conclusão: Francisco não acirrou as contradições nem remexeu a dimensão sombria onde se acoitam os ódios. Confiou na capacidade humanizadora da bondade, do diálogo e da mutua confiança. Não foi um ingênuo. Sabia que vivemos na “regio dissimilitudinis”, no mundo das desigualdades (Fioretti c. 37). Mas não se resignou a esta situação decadente. Intuía que para além da amargura, vigora no fundo de cada criatura uma bondade ignorada a ser resgatada. E o foi.

Chegará o dia em que os seres humanos assumirão a inteligência cordial e espiritual, cuja base biológica, os novos neurólogos identificaram e que completa a razão intelectual que divide e atomiza. Então teremos inaugurado o reino da paz e da concórdia. O lobo seguirá lobo mas não ameaçará mais ninguém.

Leonardo Boff escreveu Francisco de Assis: ternura e vigor, Vozes 2000.


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

PERFUMES, ODORES, AROMAS


      Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



             Fechando nossa lista dos cinco sentidos, voltamo-nos hoje para o olfato, o cheiro, a capacidade de captar os odores vários que entram em nossa corporeidade aberta para a vida. O órgão principal do sistema olfativo é o nariz.  Ao inspirarmos, o ar entra pelo nariz e alcança as células olfatórias, que, estimuladas pelas moléculas aromáticas, enviam impulsos nervosos ao cérebro, onde são produzidas as sensações olfativas. A sensibilidade das células olfativas é grande, de modo que poucas partículas são capazes de estimulá-las e produzir a sensação de odor. Quanto maior o estimulo, maior a intensidade da sensação de odor.

            A palavra olfato vem do latimolfactus, que significa a ação de cheirar, de farejar.  Derivado do verboolfacere, que quer dizer sentir pelo olfato, por sua vez deriva de olefacioe, que é ligado a olor, oloris, cheiro, odor.  Assim, a palavra que designa o sentido pelo qual enchemos nossas narinas com os odores da natureza e da vida combina duas raízes: olor, odor e fazer.

            Dos cinco sentidos, o olfato é o primeiro a desenvolver-se no recém-nascido.  Não deveria surpreender-nos, portanto, quando vemos um bebezinho com apenas algumas horas de vida apontar a boquinha em certeira pontaria para o seio materno e ali plantar sua boquinha que sugará o leite que será então seu alimento.  Enquanto os outros sentidos só se desenvolverão após alguns dias, o cheiro da mãe cativa o bebê desde sempre e, seguindo aquele odor, ele aprenderá a reconhecer e localizar aquela que é a fonte palpável de sua vida, que lhe dá alimento, carinho, contato e conforto.

            Dali em diante, desde a mais tenra infância, a criança vai ser muitas vezes guiada pelo olfato, inclusive quando lhe faltarem ou escassearem os outros sentidos. Oitenta por cento do gosto de um alimento não vem do paladar, mas do olfato. É por isso que temos dificuldade para sentir gosto quando estamos gripados. Assim também o cheiro que provoca nossa capacidade olfativa pode funcionar como memória corporal, desencadeando lembranças e associando sensações e emoções agradáveis ou desagradáveis diretamente em nosso cérebro.  O olfato não apenas  agudiza nossa capacidade de identificar cheiros, aromas e perfumes, como também impacta nosso comportamento.

            Quem não se lembra do grande ator Al Pacino desempenhando o papel de um veterano de guerra cego no primoroso filme “Perfume de mulher”? Mergulhado em sua cegueira, Al Pacino identifica os perfumes que as mulheres usam.  É pelo perfume que ele acabará dançando o tango “Por una cabeza” com a jovem que, sozinha no restaurante, esperava o namorado.  O show de interpretação do idoso cego que representava foi pelo perfume da jovem provocado em sua virilidade, proporcionando-lhe a ela e a todos nós, espectadores de tão bela cena, um momento estético inesquecível.

            Sentido de fundamental importância, indica que nossa capacidade para experimentar e expressar emoções se terá desenvolvido a partir da habilidade para processar os odores.  Só mais tarde a evolução da espécie haverá desenvolvido outras estruturas orgânicas mais complexas, mas talvez menos afetivas.  A resposta imediata aos odores transmite uma mensagem simples que gera o prazer ou a rejeição.  Por isso quando, à raiz de um trauma, a pessoa perde o olfato, todas as suas experiências vitais se encontram diminuídas, provocando um decréscimo da vitalidade e de muitas das capacidades e das experiências emocionais.
            As memórias que incluem lembrança de odores têm tendência a ser mais intensas e mais fortes emocionalmente.  E um odor que haja marcado uma experiência importante pode ter a memória evocada automaticamente quando há o reencontro desse odor.  Ainda que o conteúdo da experiência não tenha necessariamente relação direta com o odor, será muito difícil que não apareça novamente sempre que o odor em questão se fizer presente.

            Assim também os odores que alegram e intensificam a humanidade – do pão quente saído do forno, do ramo de flores frescas colhidas que vem alegrar o ambiente, do frasco cheio de preciosa essência que empresta ao corpo o odor do amor e do carinho – enchem a vida de alegria e avisam que é momento de festa e celebração.  Assim aconteceu com o profeta de Nazaré que na casa do fariseu, sem receber os sinais da hospitalidade por parte do anfitrião, teve seus pés ungidos e acarinhados por preciosa essência de nardo.  Ou que em seu refúgio de Bethânia, recebeu sobre sua cabeça que não tinha onde repousar o dom do perfume caro que a mulher Maria não hesitou em derramar.

            Deflorando o olfato esmaecido e insosso dos varões prisioneiros da Lei, a liberdade feminina tem sido o canal por onde o sentido do olfato se sente gratificado ao longo da história. Maternal, amistosa ou sensualmente, o perfume do amor que o veterano cego foi capaz de identificar e que o Messias agradeceu e abençoou não pode jamais faltar à memória corporal sob pena de que esta se atrofie e não consiga mais inspirar a plenos pulmões o Espírito que, como o ar, sopra onde quer e carrega em si o aroma da Vida que não morre.

 Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, teóloga e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão"(Edusc) 

 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

CUBA RECEBE O PAPA FRANCISCO

Por Frei Betto



     HAVANA – O papa Francisco desembarca na capital cubana neste sábado, 19/9, às 16h. Na manhã do domingo celebra missa campal na Praça da Revolução e, em seguida, terá encontro com Raúl Castro. Prevê-se que, no mesmo dia, visite Fidel Castro em sua casa.

     No fim da tarde, na catedral de Havana, dialogará com clero e religiosos, antes do encontro com os jovens no Centro Félix Varela.
     Na segunda, 21/9, Francisco celebra missa campal em Holguín, vizinha à base naval de Guantánamo e, em seguida, irá para Santiago de Cuba, onde terá encontro com os bispos do país.

Na terça, 22/9, celebra missa, pela manhã, no Santuário Nacional da Virgem da Caridade do Cobre e, após receber famílias católicas, embarca para os EUA.      

Cuba e Brasil são os únicos países da América Latina que tiveram o privilégio de, em período relativamente curto (em se tratando de viagens pontifícias), receber a visita de três papas – João Paulo II, Bento XVI e Francisco.

      O Brasil, considerado o país com maior número de católicos (70% da população de 203 milhões de habitantes), é visto, por outras nações latino-americanas, como merecedor de tal privilégio. Mas... e Cuba? México, Colômbia e Argentina, predominantemente católicos, não se conformam de não merecer a mesma deferência. Por ocasião de sua visita a Cuba, Bento XVI não resistiu à pressão do episcopado latino-americano e fez uma escala em León, no México, para encontrar os bispos.

Revolução e religião

      Cuba é, hoje, uma nação de pouco mais de 11 milhões de habitantes dotados de forte religiosidade sincrética, mescla de cristianismo de origem espanhola, marcadamente franquista, com tradições religiosas oriundas da África, como a santería, que equivale ao nosso candomblé, trazidas por antigos escravos destinados aos engenhos de cana-de-açúcar.

      A Revolução liderada por Fidel, vitoriosa em 1959, não se fez contra a religião. Fidel e Raúl são de família cristã, e durante mais de dez anos estiveram internados em escolas católicas de lassalistas e jesuítas. Isso significa que participaram de missas diárias, como era costume na primeira metade do século XX.

      Lina, a mãe dos comandantes revolucionários, fez com que prometessem, se saíssem vivos da guerrilha de Sierra Maestra, depositar suas armas aos pés da Virgem da Caridade do Cobre, padroeira de Cuba. A promessa foi cumprida e, em 1981, por ocasião de minha primeira viagem ao país, vi as armas expostas no santuário.

      A guerrilha de Sierra Maestra contou com um capelão, o padre Guillermo Sardiñas, designado pela conferência episcopal. Cabia a ele batizar os filhos de camponeses, casar os noivos, enterrar os mortos vítimas da guerra revolucionária. Após a vitória, Sardiñas recebeu o titulo máximo de Comandante da Revolução e obteve, do papa João XXIII, permissão para trajar batina verde-oliva...
      Os conflitos causados pela reforma agrária e a expropriação de empresas de propriedade estadunidense levaram o presidente Kennedy a patrocinar, em 1961, a fracassada invasão mercenária da Baía dos Porcos. Em clima quente da Guerra Fria, o episódio motivou Fidel a declarar o caráter socialista da Revolução e empurrou Cuba para os braços da União Soviética. Esse alinhamento afetou a religiosidade cubana.

“Ateísmo científico”

      Embora nenhum templo tenha sido fechado e nenhum padre ou pastor fuzilado, o caráter ateu do Estado e do Partido Comunista cubanos, e o ensino, nas escolas, do “ateísmo científico”, reforçaram o preconceito à religião. A prática litúrgica da fé recuou ao interior das casas e dos templos. Livros de catequese e teologia, inclusive Bíblias, eram impedidos de entrar no país. Padres e pastores se viram obrigados a se submeter à “reeducação ideológica” em campos de trabalho manual.

     Enquanto as Igrejas protestantes se alinharam à Revolução, e a santería passou a ser admitida como mero “folclore”, o único canal desobstruído entre a Revolução e a Igreja Católica era a amizade que unia Fidel ao núncio apostólico, monsenhor Cesare Zacchi. Graças a isso, jamais se romperam as relações entre Cuba e o Estado do Vaticano.

Perguntas a Fidel

      Em julho de 1980, conversei pela primeira vez com Fidel, em Manágua, por ocasião do primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Supus que fosse a minha única oportunidade de dialogar com o líder cubano. Aproveitei para fazer duas perguntas: “Comandante, qual a atitude da Revolução frente à Igreja Católica? Antes que responda, adianto que há três hipóteses. Em qual delas a Revolução se enquadra? A primeira, perseguir os católicos. Se é assim, a Revolução presta um bom serviço à Casa Branca, demonstrando que entre Revolução e religião não há conciliação. A segunda, indiferença da Revolução em relação aos católicos. Nesse caso, a Revolução favorece aqueles que, dentro de Cuba, são contrários a ela. Como não podem deixar a ilha, se refugiam na sacristia das igrejas. A terceira, a Revolução, como ente político, mantém diálogo com todas as instituições cubanas, inclusive a Igreja Católica. Qual das três hipóteses é abraçada pela Revolução?”

      Fidel mostrou-se surpreso e retrucou: “Você tem razão. A terceira hipótese é a mais sensata. Há dezesseis anos não falo com um bispo cubano. Você estaria disposto a nos ajudar na reaproximação?”

     Antes de responder positivamente, passei à segunda pergunta: “Por que o Estado e o Partido Comunista de Cuba são confessionais?” Fidel se espantou: “Como confessionais? Somos ateus!” “Ora, Comandante, afirmar ou negar a existência de Deus é mera confessionalidade. A modernidade exige Estado e partidos laicos.”

     Fidel concordou que nunca havia encarado o tema por essa óptica. Pouco depois, tanto a Constituição de Cuba quanto os estatutos do Partido Comunista anularam o caráter ateu e se tornaram oficialmente laicos.

“Fidel e a religião”

     Com a anuência da conferência episcopal de Cuba, iniciei o delicado trabalho de reaproximar Igreja Católica e Estado. O momento forte foi em 1985 quando, em maio, Fidel me concedeu longa entrevista sobre o tema religioso, publicada sob o título “Fidel e a religião”, a ser reeditado em breve, no Brasil, pela Companhia das Letras. Era a primeira vez que um líder comunista no poder se pronunciava positivamente sobre o fenômeno religioso.

     Mais de 300 mil exemplares do livro foram vendidos em Cuba por ocasião do lançamento, em novembro de 1985. Apenas na ilha se editaram, até hoje, 1,3 milhão de exemplares. Como declarou um bispo cubano, “este livro tira o medo dos cristãos e o preconceito dos comunistas.”

     Fidel voltou a dialogar com o episcopado, e o povo cubano a manifestar publicamente sua fé cristã, inclusive militantes do Partido Comunista que desclandestinizaram suas convicções religiosas. Suprimiu-se o “ateísmo científico” dos currículos escolares.

     Esse processo favoreceu a visita de João Paulo II à ilha, em 1998. Houve muita pressão da Casa Branca para que o papa não efetuasse a viagem e, se o fizesse, condenasse o socialismo. João Paulo II foi, ficou cinco dias, visitou todas as dioceses, criou vínculos de amizade com Fidel, condenou o bloqueio imposto pelos EUA, e ainda elogiou os avanços da Revolução nos campos da saúde e da educação.

     Bento XVI visitou a ilha em março de 2012, por ocasião dos 400 anos de aparição da Virgem da Caridade do Cobre. Também condenou o bloqueio e pediu mais liberdade religiosa, em especial a reabertura das escolas católicas.

     Hoje, são excelentes as relações entre Igreja Católica e Revolução. A admiração recíproca une Raúl Castro e o cardeal Jaime Ortega, que tem desempenhado importantes funções na defesa dos direitos humanos e na liberação de prisioneiros políticos.

     Para os católicos de Cuba, o país tem direito a uma democracia que não se enquadre no autoritarismo herdado da influência soviética e muito menos o reconduza ao capitalismo, que tanto sofrimento e miséria implantou na America Latina.

     É em função dessa promissora engenharia política que o papa Francisco interveio para favorecer a reaproximação de EUA e Cuba. O bloqueio tem um custo social excessivamente pesado para a ilha. Foi com alívio que os cubanos viram Obama na TV, em 17 de dezembro de 2014, admitir que o bloqueio “não funcionou”. Resta saber, como me disse Fidel em janeiro deste ano, se isso significa “apenas uma mudança de métodos ou implica também em mudança de objetivos.”

     Francisco será acolhido pelacaliente solidariedade cubana que, atualmente, se estende por mais de 100 países que contam com os serviços de seus médicos e professores. E desembarcará em Havana no momento em que Cuba passa por importantes mudanças, de modo a adaptar sua economia aos novos parceiros fora do bloco socialista. Todo esse processo é visto pela população com esperança e cautela. Esperança de que a ilha receba investimentos expressivos e dobre o número de três milhões de turistas que a visitam anualmente, trazendo mais divisas. Cautela porque, como me declarou um amigo cubano, “sera um choque do tsunami consumista com a austeridade revolucionária”. Só o tempo mostrará o novo perfil do único país socialista da história do Ocidente.

Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco), entre outros livros.


terça-feira, 15 de setembro de 2015

DEMOCRACIA DAS RUAS

por Marcelo Barros



Ao festejar, nessa segunda feira, a data da independência do Brasil, a imensa maioria do povo brasileiro está consciente de que a emancipação política do império português foi importante, mas apenas como início de um processo a ser permanentemente aprofundado e atualizado. A independência política formal só se completa com uma verdadeira libertação social e econômica. Tudo isso está ligado a uma autonomia cultural e até à liberdade espiritual das pessoas e das comunidades.

Em cada sete de setembro, enquanto se repete o desfile militar de outros tempos, como se o militarismo fosse  a solução para a liberdade, há mais de 25 anos, organizações sociais e comunitárias têm ido à rua para manifestar seu anseio por uma libertação integral. É o Grito dos Excluídos. Em muitas cidades brasileiras, ano após ano, essa manifestação popular tem mostrado que o problema político brasileiro não consiste em colocar ou tirar presidente. Sem dúvida, é importante contar com um poder executivo sensível e capaz de ouvir os gritos da rua. No entanto, o mais importante é um sistema político que possibilite a participação de todos. O sistema democrático representativo deve ser aprimorado por uma profunda democracia social e participativa de todos os brasileiros.  Além disso, é fundamental reformar as leis que permitem abusos no sistema de eleição, como o fato de empresas privadas financiarem campanhas de candidatos. Como diz frei Betto: “Nós votamos e as empresas elegem”.

Desde agosto, o Brasil tem visto manifestações de rua que reúnem milhares de pessoas. No domingo 16 de agosto, a grande manifestação foi das pessoas e grupos que são contra o governo. No dia 20, outra grande manifestação protestava contra qualquer tentativa de golpe. Em ambas, a maioria dos/das manifestantes criticava diversas  medidas do governo. Infelizmente, apesar de, durante a última campanha eleitoral, a presidente ter prometido dialogar com a sociedade, ela tem se revelado praticamente autista. Não aceita dialogar com a esquerda que confiou nela e a elegeu. Tenta agradar à direita que, de todos os modos, nunca a aceitaria. São pessoas e grupos que querem derrubá-la. Não porque ela não mantém uma política energética superada, ou porque não liga para a Ecologia, ou não defende as comunidades indígenas. Esses não são os pontos aos quais a oposição é sensível. Simplesmente não a querem. Por outro lado, não parecem saber o que querem, já que o Brasil presidido por Michel Temer ou por Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, terceiro na linha da sucessão, não parece ser o sonho da maioria dos brasileiros.

Nas últimas décadas, na América Latina, as organizações de base do campo e da cidade suscitaram uma nova proposta de caminho para a sociedade. Baseado no paradigma indígena do Bem Viver coletivo como objetivo do Estado, buscam uma forma nova e mais democrática de um verdadeiro socialismo. Desde o movimento dos índios de Chiapas e os círculos de cultura espalhados pelos bairros de periferia de várias cidades do continente, surgiu a proposta de um novo bolivarianismo. Em 1965, em suas cartas escritas de Roma, durante a última sessão do Concílio Vaticano II, Dom Helder Camara já aludia a esse movimento de integração latino-americana e que se inspira nas propostas de Simon Bolívar, o libertador.  As mesmas elites que, com razão ou sem razão, rejeitam Dilma, Lula e o PT, demonizam ainda mais Hugo Chávez, Nicolas Maduro, Evo Morales, Rafael Correa e qualquer bolivarianismo  que, no continente, queira mudar as desigualdades sociais e ameace os privilégios que a elite sempre teve.

Em meio a tudo isso, é bom saber que o próprio papa Francisco tem se pronunciado a favor das propostas do Bolivarianismo: a  integração latino-americana, a libertação do imperialismo e a busca de um caminho novo para uma sociedade alternativa. Para isso, propôs às Igrejas e à toda sociedade dialogar com os movimentos sociais organizados. Assim, caminharemos para uma nova realidade social, baseada na justiça, paz e comunhão com a nossa casa comum, a Terra.    

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países