O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

50 ANOS DE UM PACTO




por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



Faz 50 anos que, com o Concilio Vaticano II chegando já ao seu fim, 40 bispos latino-americanos, na sua maioria, se reuniram na catacumba de Santa Domitila, em Roma, para fazer um pacto.  Tratava-se de um compromisso de vida de todos eles – chamado O Pacto das Catacumbas – e marcou o início de uma nova espiritualidade entendida como um novo modo de ser Igreja e viver o Evangelho em meio aos pobres.

No texto assinado pelos bispos existem vários elementos que dizem respeito à conversão pessoal para uma mudança nos aspectos pessoais da vida de cada um. O que representou esta conversão?

Primeiro, um "ser como o povo". Em outras palavras, ser tão humano quanto possível, semelhante e próximo de todos os irmãos e irmãs na humanidade, de uma forma estreita e fraterna. Assim, de acordo com os signatários do pacto, por exemplo, o episcopado deve deixar de ser uma dignidade que afasta e exige elementos de conforto e luxo,  para ter a vida simples e humilde de um servo dos outros.

É isso o que é claramente indicado logo no começo do texto, quando diz que seus signatários irão se esforçar para viver de acordo com o modo ordinário da nossa população   a respeito de moradia, alimentação, meios de transporte, e, portanto, tudo que daí deriva. Trata-se de uma decisão de mudança radical de estilo de vida.  Há que sair dos palácios episcopais e ir viver em uma casa simples, como a maioria das pessoas; deixar para trás as refeições finas e elegantes, para alimenta-se como a grande maioria das pessoas; utilizar o transporte público em vez de carros particulares.

Cada parágrafo implica uma decisão forte e profunda que realmente leva a vida em outra direção.  E há muitos outros detalhes em outros pontos do pacto destinados a que a conversão radical e a experiência nas profundezas de cada um dos signatários conduzam a uma espiritualidade evangélica de estar perto e viver como os pobres.

Por exemplo, a renúncia não vem apenas com relação à posse de propriedade, mas até mesmo com respeito à aparência de riqueza no vestir, nos símbolos utilizados (como cruz peitoral, báculo, mitra). Isso significa que o bispo não deverá ser uma figura que impõe por sua aparência, mas que se confunde com as pessoas comuns. Nesse sentido, os bispos se sentem chamados a ser como os primeiros apóstolos, de quem são sucessores, e não têm "nem ouro nem prata", mas apenas a Jesus de Nazaré como prêmio e ornamento.

Com relação à posse de bens, o pacto estabelece expressamente que os seus signatários não herdarão propriedades "móveis ou imóveis" e não deverão possuir nada, como os pobres de seu povo, que não têm onde reclinar a cabeça e são forçados, às vezes, a erguer casas pobres com suas próprias mãos, para depois vê-las serem destruídas por chuvas torrenciais, inundações, incêndios, tempestades ou outros desastres.

O pacto coloca os bispos também longe do sistema financeiro capitalista, já que declaram querer abrir mão das próprias contas bancárias e tudo o que daí deriva: crédito, dinheiro fácil, cartão de crédito etc. Em suma, tudo o que dá segurança em um sistema que valoriza o dinheiro acima de todas as coisas e os pobres jamais podem alcançar. No entanto, realisticamente entendem que às vezes deverão lidar com a posse de algum bem. Mas nada é em nome próprio; ao contrário, tudo em nome da diocese ou obras sociais ou de caridade.

Em apoio a esta decisão de viver na contramão do mundo e do sistema em que estão inseridos, citam os textos bíblicos de Mt 6, 19 e Lucas 12, 33s que não recomendam ajuntar tesouros aqui na terra, pois se estará exposto à ação predatória do tempo e ladrões. É melhor vender o que se tem e dar em esmolas. O tesouro de um discípulo e apóstolo de Jesus Cristo deve estar no céu, no Reino do Pai. Só então não vai ser corroído ou destruído. Ou tem que ser dado, doado para quem precisa, e assim estar no lugar onde Deus quer. Onde está o tesouro, lá também estará o coração, e o coração de um pastor tem que estar com suas ovelhas, sensível às suas necessidades e pedidos para encontrá-los e satisfazê-los.

Em seguida, vem tudo o que diz respeito ao prestígio e honras que um bispo é quase sempre obrigado a receber.  Entre os quais os títulos que a Igreja naqueles 20 séculos se acostumou a dar àqueles que têm alguma função eclesiástica. Vale a pena ler por extenso as inspiradoras palavras que os bispos usam para essas resoluções:

5. Rejeitamos que verbalmente ou por escrito nos chamem por nomes e títulos que expressam grandeza e poder (Eminência, Excelência, Monsenhor ...). Nós preferimos ser chamados com o nome evangélico de “padre” (pai).

6. Em nosso comportamento e relações sociais, evitar qualquer coisa que possa parecer concessão de privilégios, precedência ou preferência para os ricos e poderosos (por exemplo, banquetes oferecidos ou aceitos nos serviços religiosos).

Sementes plantadas dão novos frutos, novos fertilizantes. A orientação do Papa Francisco, neste primeiro ano como sucessor de Pedro, certamente sinaliza uma grande alegria no prosseguimento dos sonhos de Dom Helder e dos outros signatários do Papa antes do Concílio Vaticano II.  Tudo isso encontramos comprovado em sua exortação “A alegria do Evangelho”. Mas também em seus gestos procurando a cicatrização de feridas e em seus trabalhos resgatando aspectos fundamentais esquecidos do Vaticano II.  Tudo isso permite esperar que se vá gestando uma igreja servidora do mundo, com um vínculo indissolúvel com os pobres, e um convite constante a viver a pobreza evangélica.

A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 


Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

TERRORISMO DE ESTADO

 por Frei Betto

                                                            

       Nada mais cínica do que a comissão de frente da Marcha pela Paz em Paris, a 11 de janeiro, contra o atentado terrorista ao “Charlie Hebdo” e ao supermercado judaico.

       Ali estavam, de braços dados, os representantes do terrorismo de Estado, como o presidente da França, país que vendeu armas aos sunitas que combatiam o governo da Síria, como também fizeram os EUA e o Reino Unido, e que, agora, são obrigados a engolir o fato de os combatentes antissírios terem se transformado no exército do Estado Islâmico.

O ataque terrorista ao jornal “Charlie Hebdo” não foi apenas um gesto tresloucado de dois jovens franceses de fé muçulmana. Ele se origina em um dos últimos capítulos da Guerra Fria: a ocupação do Afeganistão pelos soviéticos (1979-1989).

       Zbigniew Brzezinsky, responsável pela Segurança Nacional dos EUA na gestão Jimmy Carter, viu na ocupação soviética excelente oportunidade de colocar em prática seu diabólico plano para rechaçá-la e instalar um governo pró-EUA: incrementar o fanatismo religioso contra os “comunistas ateus”.

       Havia alternativas, como grupos nacionalistas afegãos, laicos, que se opunham a Moscou. Porém, a Casa Branca preferiu chocar o ovo da serpente e patrocinar os grupos fundamentalistas reunidos na Aliança Islâmica do Mujahedin (combatente) Afegão, que reagia indignada aos propósitos da infiel modernização soviética, como permitir às meninas acesso à escola...

       Agentes da CIA passaram a incentivar a jihad (guerra santa) contra os soviéticos, de modo a expulsar os “comunistas ateus” e levar ao poder um governo aliado dos EUA.

       George Bush pai era, desde os anos 60, amigo íntimo de um saudita do ramo da construção: Muhammad Bin Laden, pai de Osama. Após o Afeganistão ser invadido pelos russos, ele propôs ao amigo que seu filho trabalhasse para a CIA, na Arábia Saudita, disfarçado de monitor da ONG Blessed Relief. Logo, o jovem Osama, de 23 anos, foi transferido para Cabul, entusiasmado com a jihad financiada pelos EUA. Através de sua ONG, atraiu 4 mil voluntários sauditas que, no Afeganistão, foram incorporados à Aliança Islâmica – berço do Taliban e, a médio prazo, do Estado Islâmico.

       A queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética apressaram a saída das tropas de Moscou do Afeganistão. Porém, os 4 mil voluntários sauditas, ao retornarem a seu país de origem, já não se readaptaram à vida civil. Sem formação política, haviam sido transformados em “máquinas de matar”.

        O rei Fahd ainda tentou cooptar o jovem rebelde Osama Bin Laden. Nomeou-o conselheiro real. Mas ele retornara encantado com a jihad, obcecado em combater os infiéis. No ano seguinte, foi expulso da Arábia Saudita. E em 1996 declarou a jihad contra os EUA.

       Os atos terroristas contra o “Charlie Hebdo” e o supermercado judaico resultaram da política equivocada dos EUA e da Europa Ocidental no Oriente Médio.

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Paralela), entre outros livros.
      


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

COMPROMISSO POLÍTICO DA FÉ

Por Marcelo Barros

                                                    

Em momentos nos quais o exercício da cidadania parece pouco visível e a alienação social e política toma formas que chegam até a justificar golpe de Estado, é importante refletir sobre como restituir à Política a sua nobreza e dignidade. Alguns meios de comunicação  que se alimentam cotidianamente de assassinatos e assaltos, exacerbam o mesmo sensacionalismo, ao escolher como tema recorrente e quase único a corrupção aparentemente generalizada que assola as instituições públicas. Isso pode deixar em muitos a impressão de que todo político é corrupto e a própria Política é sempre ruim. De fato, existe uma atividade que é mais politicagem do que Política. No entanto, em todas as instituições, há pessoas profundamente éticas e corretas. Essas são a maioria das pessoas. A minoria é corrupta e venal. Acontece que uma vida consagrada aos outros e pautada na ética não é notícia. A corrupção, sim, mesmo se ainda não for comprovada e,  principalmente, se a sua divulgação favorece a interesses partidários e de classe.

No atual sistema político brasileiro, infelizmente, pessoas se aproveitam de cargos e benefícios públicos para fins privados. Esse mal se implantou em nossas instituições desde a época da colônia. Tomou formas mais sofisticadas a partir dos anos 90. A maioria dos brasileiros esperava um rigor maior e uma postura diferente de um governo prometia uma nova ética e se apresentava como de esquerda ou mais popular. Todos queremos governantes que não se omitam e não compactuem com a desonestidade. No entanto, não podemos nos deixar levar por uma carga emocional que condena antes do julgamento e quer punir, sem que haja provas concretas da ilegalidade.

Sem dúvida, toda corrupção deve ser condenada, mas a mais grave não é essa que vestais da moral bradam diariamente e sem cessar nos meios de comunicação. No plano político, a corrupção mais profunda ocorre quando um partido que se apresentava como iniciativa dos trabalhadores e tinha como programa a transformação do Brasil, se acomoda ao poder e troca o projeto de um país justo e igualitário pela mera ambição de ganhar eleições e deter o poder. Para isso, metas fundamentais como a reforma agrária, reforma política e outras reformas de base são deixadas de lado. Ao fazer todo tipo de conchavo para garantir a tal “governabilidade” pelos caminhos de sempre, o governo coordenado pelo PT se comporta como a gralha da antiga parábola de Esopo. 

Uma gralha ouviu falar que, em um pombal vizinho, as pombas se alimentavam bem. Então, se pintou de branco, fingiu-se de pomba e foi para o pombal. Deu certo até que, sem querer, ela piou. Ao ouvir o seu granido, as pombas viram que era uma gralha  e a expulsaram. Sem alternativas, ela voltou ao meio das outras gralhas que, quando a viram pintada de branco, também não a receberam. E ela ficou sozinha, nem pomba, nem gralha. No Brasil atual, banqueiros ganham 400% de lucro ao ano. O agronegócio tem até ministério no governo. Grandes empresas de comunicação ganham milhões do próprio governo para desinformar a população e destruir o pouco que foi construído. 

Mesmo assim, essa elite que representa menos de 10% da população não se conforma e não acredita na gralha vestida de pomba. E ao invés de se achar contemplada por um governo que, depois de eleito, abandonou sua base social, o destrata do mesmo modo. Ignora todas as conquistas sociais já conquistadas e tenta divulgar que o país nunca esteve tão mal como agora. E fomenta as bases para um possível golpe de Estado para libertar o país do “terrível e perigosíssimo” bolivarianismo venezuelano ou simplesmente do comunismo cubano para o qual estaríamos caminhando.  

Na Campanha da Fraternidade de 2015, a CNBB propõe o aprofundamento da missão das Igrejas cristãs em sua inserção social e política na sociedade. O papa Paulo VI ensinava que a ação política é a forma mais nobre de se viver a caridade cristã na sociedade. O objetivo da ação social e política das pessoas que têm fé é testemunhar que o projeto divino de um mundo justo e de paz é possível. É assunto não só dos políticos, mas de todos os cidadãos e, portanto de todos/as que, em meio às lutas do mundo, querem viver em Deus. O Evangelho de Jesus nos chama para irmos sempre às raízes das questões e trabalharmos por uma transformação radical de todas as estruturas da sociedade. O programa do Conselho Mundial de Igrejas que reúne 349 Igrejas cristãs resume isso no programa: Paz, Justiça e Cuidado com a Criação.       


  Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

ÀS AGRESSÕES HUMANAS, A TERRA RESPONDE COM FLORES

Por Leonardo Boff

                                            


Mais que no âmago de uma crise de proporções planetárias, nos confrontamos hoje com um processo de irreversibilidade. A Terra nunca mais será a mesma. Ela foi transformada em sua base fisico-quimica-ecológica de forma tão profunda que acabou perdendo seu equilíbrio interno. Entrou num processo de caos, vale dizer, perdeu sua sustentabilidade e afetou a continuação do que, por milênios, vinha fazendo: produzindo e reproduzindo vida.

Todo caos possui dois lados: um destrutivo e outro criativo. O destrutivo representa a desmontagem de um tipo de equilíbro que implica a erosão de parte da biodiversidade e, no limite, a diminuição da espécie humana. Esta resulta ou por incapacidade de se adaptar à nova situação ou por não conseguir mitigar os efeitos letais. Concluído esse processo de purificação, o caos começa mostrar sua face generativa. Cria novas ordens, equilibra os climas e permite os seres humanos sobreviventes construírem outro tipo de civilização.

Da história da Terra aprendemos que ela passou por cerca de quinze grandes dizimações, como a do cambriano há 480 milhões de anos, que dizimou 80-90% das espécies. Mas por ser mãe generosa, lentamente, refez a diversidade da vida.

Hoje, a comunidade científica, em sua grande maioria, nos alerta face a um eventual colapso do sistema-vida, ameaçando o próprio futuro da espécie humana. Todos podem perceber as mudanças que estão ocorrendo diante de nossos olhos. Grandes efeitos extremos: por um lado estiagens prolongadas associadas à grande escassez de água, afetando os ecossistemas e a sociedade como um todo, como está ocorrendo no sudesde de nosso país. Em outros lugares do planeta, como nos USA, invernos rigorosos como não se viam há decênios ou até centenas de anos.

O fato é que tocamos nos limites físicos do planeta Terra. Ao forçá-los como o faz a nossa voracidade produtivista e consumista, a Terra responde com tufões, tsunamis, enchentes devastadoras, terremotos e uma incontida subida do aquecimento global. Se chegarmos a um aumento de dois graus Celsius de calor, a situação é ainda administrável. Caso não não fizermos a lição de casa ao diminuirmos drasticamente a emissão de gases de efeito estufa e não reorientarmos nossa relação para com a natureza na direção da auto-contenção coletiva e de respeito aos limites de suportabilidade de cada ecossistema então preve-se que o clima pode se elevar a quatro e até seis graus Celsius. Aí conheceremos a “tribulação da desolação” para usarmos uma expressão bíblica e grande parte das formas de vida que conhecemos não irão subsistir, inclusive porções da humanidade.

A renomada revista Science de 15 de janeiro de 2015 publicou um trabalho de 18 cientistas sobre os limites planetários (Planetary Bounderies: Guiding human development on a changing Planet). Identificaram nove dimensões fundamentais para a continuidade da vida e de nosso ensaio civilizatório. Vale a pena citá-las: (1) mudanças climáticas; (2) mudança na integridade da biosfera com a erosão da biodiversidadae e a extinção acelerada de espécies;(3) diminuição da camada de ozônio estratosférico que nos protege de raios solares letais;(4) crescente acidificação dos oceanos;(5) desarranjos nos fluxos biogeoquímicos (ciclos de fósforo e de nitrogênio, fundamentais para a vida);(6) mudanças no uso dos solos como o desmatamento e a desertificação crescente;(7) escassez ameaçadora de água doce;(8)concentração de aerossóis na atmosfera(partículas microscópicas que afetam o clima e os seres vivos); (9) introdução agentes químicos sintéticos, de materiais radioativos e nanomateriais que ameaçam a vida.

Destas nove dimensões, as quatro primeiras já ultrapsssaram seus limites e as demais se encontram em elevado grau de degeneração. Esta sistemática guerra contra Gaia pode levá-la a um colapso como ocorre com as pessoas.

E apesar deste cenário dramático, olho em minha volta e vejo, extasiado, a floresta cheia de quaresmeiras roxas, fedegosos amarelos e no canto de minha casa as “belle donne” floridas, tucanos que pousam em árvores em frente de minha janela e as araras que fazem ninhos debaixo do telhado.

Então me dou conta de que a Terra é de fato mãe generosa: às nossas agressões ainda nos sorri com flora e fauna. E nos infunde a esperança de que não o apocalipse mas um novo gênesis está a caminho. A Terra vai ainda sobreviver. Como asseguram as Escrituras judeo-cristãs:“Deus é o soberano amante da vida”(Sab 11,26). E não permitirá que a vida que penosamente superou caos, venha a desaparecer.

Leonardo Boff é colunista do JBonline, filósofo, teólogo e escritor


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

TERESA DE ÁVILA, UMA MULHER APAIXONADA


   Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio



A Igreja Católica celebra em 2015 os 500 anos de uma de suas grandes místicas: Teresa de Ahumada, mais conhecida como Teresa de Ávila, ou mais ainda como Teresa de Jesus.  Nascida em 1515, em Ávila, Castela, e falecida em 1582, é, com justiça, considerada uma das mais importantes personalidades religiosas do período contra reformista.

Canonizada por Gregório XV (1622), tornou-se a primeira mulher a receber o título de doutora da Igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Essa  carmelita foi, ao lado de São João da Cruz, a reformadora da Ordem do Carmo ao fundar a Ordem das Carmelitas Descalças, mais próxima das raízes do ideal místico contemplativo. Sua iniciativa angariou-lhe muitos inimigos e um meio de defender seus ideais foi a decisão de escrever sua autobiografia, sugerida por padres confessores e amigos.

A escrita, no entanto, não era apenas exercício intimista ou diletante para  Teresa, mas uma forma de ação evangelizadora e formativa, que aplicava com as outras irmãs pelas quais era responsável e que até os dias de hoje encantam e alimentam a vida espiritual de muitas pessoas, leigos ou religiosos, apaixonados por suas reflexões. 

Há em Teresa uma profunda consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência mística, mas para a própria espiritualidade cristã. Em sua autobiografia, ela defende firmemente a valorização do corpo contra teorias platonizantes que pregavam uma espiritualidade “etérea”. Diz-nos a Santa: “(...) nós não somos anjos, ao contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra [...] é desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal. [...] em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem, e o vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia.

Essa consciência do corpo como locus, onde a experiência mística se dá, aparece tanto em sua prosa, notavelmente na autobiografia “Vida”, como em sua lírica, que se destaca pelopathos que a atravessa. São versos que impressionam pelo erotismo místico, pois, como a própria Teresa confessa em um de seus poemas,”nacidos del fuego del amor de Dios que en si tenía”.
A maior e mais evidente característica da vida e pessoa de Teresa de Ávila é, sem dúvida, sua condição de perpétua enamorada de Deus.  Ao narrar suas experiências místicas, em nenhum momento censura a dimensão erótica de sua experiência de Deus, a quem chama de Amado, a quem dedica poesias que deixam perceber a chama que a devora de amor e paixão por esse Deus que a cria e a faz para ele. Isso autentica e concede veracidade à sua condição de mística, assim reconhecida pela Igreja e por quantos entram em contato com sua experiência espiritual e sua esplêndida relação com Deus.

Mulher profundamente feminina,  que contemplou a Beleza Infinita, o Sumo Bem, a glória infinita da divindade, Teresa ficou para sempre ferida pelo encanto sob o qual este Outro a seduziu e fascinou.  Ela passou a vida  em busca de um novo pressentir desta visão que um dia a deslumbrou tão fortemente, que já não pode esquecer-se do que lhe foi dado ver e perceber, e prefere morrer antes que perder a presença amada que a fascina com sua beleza e seu fulgor.  Daí os versos tão radicais que escreveu: “Muero porque no muero”.  O desejo de morrer se explica, pois na morte esperava encontrar o Amado de sua vida sem o véu da carne que impossibilita um encontro total e pleno.

            Assim também acontece com a narrativa de sua experiência de êxtase: “Via um anjo ao pé de mim,...Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me causava esta grandíssima dor, que não se pode desejar que se tire, nem a alma se contenta com menos de que com Deus. Não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo não deixe de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão suave que têm entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar que minto... parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para ter pena nem padecer, porque vem logo o gozar.”

Contemplar a experiência de Teresa é deparar-se com um dado antropológico original, já que uma experiência como a sua inaugura em seu processo de conhecimento amoroso na relação com o Deus Transcendente algo da Nova Criação.  Sua experiência mística a recria  por completo, fazendo-a experimentar-se como nova e recém-saída das mãos do Criador. Eis porque seu processo místico é inseparável e paradoxalmente gozoso e doloroso, sem deixar por isso de ser amoroso. Nestes mistérios, Teresa de Jesus é mestra e doutora.  Não admira que sua pessoa perpetuamente enamorada continue fascinando, hoje como ontem, homens e mulheres sedentos de um amor que os recrie e dê sentido a suas vidas.

A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco. 

 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

CARNAVAL, DO SAGRADO AO PROFANO


Por Frei Betto

       Carnaval significa “festa da carne”. Aconselhados a se abster de consumo de carne e relações sexuais na Quaresma, os cristãos se fartavam de churrasco nos três dias anteriores à Quarta-Feira de Cinzas.

      Foram os portugueses que, no século XVII, introduziram o Carnaval no Brasil, com o nome de Entrudo. A diversão descambava para a violência; os foliões atiravam, uns nos outros, água, pó, cal e tudo que tivessem às mãos.

      O primeiro baile de Carnaval foi em 1840, no Rio. Confetes e serpentinas tinham tornado a festa menos violenta. Em 1846 surgiu o Zé Pereira, grupos de foliões tocando bumbos e tambores. Vieram em seguida os cordões, ranchos e blocos.

      As quadrinhas anônimas cederam lugar a composições especialmente criadas para a festa graças à Chiquinha Gonzaga, com seu “Abre-alas”, em 1899. E os ritmos se diversificaram: samba, marcha-rancho, frevo, batucada etc.

      A invenção do automóvel introduziu o corso, desfile de carros pela cidade. A primeira escola de samba, fundada em 1929, no Estácio, chamava-se “Deixa Falar”.

      De festa religiosa, o Carnaval transmutou-se em folguedo profano, em que se brinca invertendo papéis sociais. O rosto coberto com a máscara do diabo ou do político; o homem vestido de mulher e a mulher em trajes masculinos; o rico à rua em farrapos e o pobre em trajes imperiais.

      Outrora, em cada cidade do Brasil havia blocos, cordões, bailes, desfiles e carros alegóricos. Em avenidas e praças, adultos e crianças mesclavam-se na alegria. Ninguém saía à rua atento à bolsa ou à carteira. Pulava-se Carnaval sem drogas e violências, embora houvesse quem exagerasse na bebida e cheirasse lança-perfume.

      Mudou o Brasil, mudamos nós. O Carnaval adquiriu, então, o caráter de folia - do francês folie, loucura. A sobrevivência difícil reduziu o nosso espaço de lazer e o império da TV o nosso tempo.

      A festa de Momo restou como momento de catarse. Busca-se o prazer imediato no sexo e na droga; a transgressão de valores na nudez e na irreverência agressivas; a competição exacerbada na disputa de prêmios a fantasias, blocos e, sobretudo, escolas de samba.

      Hoje, o Carnaval agoniza em muitas cidades brasileiras. É um feriadão. Deixamos de ser participantes para quedar-nos como meros (tele)espectadores. Despimos a fantasia do corpo para confiná-la na mente. Eis a globalização do voyeurismo. Refestelados na poltrona, vemos a mulata esfregar-se em nosso vídeo e volatilizar-se no carrossel de imagens. Ficamos reduzidos à condição de fregueses de um açougue mágico, cujas postas são pedaços de gente salpicados de purpurina e confete.

      Restam, agora, poucos palcos: os sambódromos do Rio e de São Paulo, os trios elétricos de Salvador, os blocos de Olinda e Recife. Também ali o dinheiro supera o ronco da cuíca, os “bem-nascidos” e famosos tomam o lugar de pessoas anônimas, enredos e passistas são obscurecidos pelo nu explícito.

      Eis, em nova (di)versão, a festa da carne.


Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com



terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

IGREJA E SOCIEDADE

Por Marcelo Barros


É o tema que a Igreja Católica no Brasil assumiu para a Campanha da Fraternidade 2015. Essa é aberta por uma palavra do papa Francisco nessa quarta feira que dá início ao tempo da Quaresma e à preparação para a celebração da Páscoa. A Campanha da Fraternidade  nos lembra que a verdadeira espiritualidade passa pelo cuidado com as outras pessoas.  A Campanha da Fraternidade desse ano recorda que há 50 anos, a Igreja Católica encerrava o Concílio Vaticano II. Essa reunião de todos os bispos católicos do mundo se propunha a renovar profundamente a vida e a ação das Igrejas cristãs. Para isso, refletiu sobre a natureza da Igreja, as bases de sua fé e a sua missão no mundo. Produziu 16 documentos que, até hoje, são referência para a ação pastoral. Um dos mais importantes, publicado em dezembro de 1965 é a Constituição sobre a Igreja no mundo de hoje (Gaudium et Spes). Tanto através desse documento, como pelo testemunho dos bispos reunidos no Concílio, a Igreja Católica se propôs a aprofundar o diálogo amigo e humilde que o papa João XXIII tinha iniciado com a humanidade, com as pessoas crentes e também as descrentes. Esse diálogo que, nas últimas décadas, tinha sido interrompido, foi retomado, nos nossos dias, pelo papa Francisco.

No cinquentenário do encerramento do Concílio Vaticano II, a Campanha da Fraternidade de 2015 propõe como objetivo geral: “aprofundar, à luz do Evangelho, o diálogo e a colaboração entre a Igreja e a sociedade, propostos pelo Concílio Vaticano II, como serviço ao povo brasileiro, para a edificação do povo de Deus” (Texto-base, p. 10). Esse objetivo geral quer se concretizar em algumas metas específicas, como “atuar profeticamente, à luz da opção pelos pobres, para o desenvolvimento integral da pessoa e na construção de uma sociedade justa e solidária” (idem, p. 10).

No documento da CF 2015, a CNBB aponta um retrato bastante complexo da sociedade brasileira. Atualmente, o Brasil tem mais de 200 milhões de pessoas, das quais mais de 80% concentradas nas cidades. Essa urbanização por demais rápida não foi acompanhada de adequadas políticas de moradias. O transporte público é ineficiente. Mais de 50% dos domicílios brasileiros não tem saneamento básico. E os cuidados com a saúde ainda são insuficientes. A violência não para de crescer, sob todas as formas e em todos os extratos da sociedade. Os programas sociais do governo reduziram a pobreza extrema da população de 9, 7% para 4, 3%. E a mortalidade infantil teve uma baixa importante nesses últimos anos. No entanto, a ascensão social de uma parte da classe trabalhadora foi importante. Garantiu a muitos uma necessária e justa segurança alimentar, mas, muitas vezes, possibilitou um maior acesso ao consumo e não a uma melhor qualidade de vida. Melhorou as condições de vida, mas não conseguiu mudar as estruturas básicas da sociedade na direção de um país mais justo. A CNBB assume como sendo expressão do serviço da Igreja Católica à sociedade brasileira a ação das pastorais sociais e as diversas campanhas sociais como as que se fazem em favor de um Plebiscito para a Reforma Política e o Grito dos Excluídos. O texto da CF 2015 deixa claro que ainda há muito a fazer e que a oportunidade dessa celebração da Quaresma e Páscoa deveria nos animar a preencher essas lacunas e aprimorar o serviço da Igreja à sociedade.

Em uma sociedade muito fragmentada e individualista, é cada vez maior o número de pessoas que buscam uma espiritualidade profunda que responda à sede de infinito e do sentido da vida que existe no coração humano. No entanto, é importante que essa busca espiritual não nos aliene das responsabilidades fundamentais da vida social, dos deveres da cidadania e da solidariedade com os nossos irmãos e com a natureza ameaçada. A celebração da Páscoa de Jesus nos recorda que Deus quer entrar na nossa vida para nos levar a dar um passo (em hebraico: páscoa) de libertação para nosso povo, para o universo, como também para o interior de cada um/uma de nós. Uma palavra proclamada até hoje nas sinagogas judaicas repete a cada ano para o mundo todo: “Quando Deus conduziu o seu povo da escravidão para a liberdade e o fez passar pelo mar a pé enxuto, foi pensando em nós, de todas as gerações do mundo, que ele fez essas maravilhas”.

  Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O BEM COMUM FOI ENVIADO AO LIMBO

por Leonardo Boff

As atuais discussões políticas no Brasil em meio a uma ameaçadora crise hídrica e energética se perdem nos interesses particulares de cada partido. Há uma tentativa articulada pelos grupos dominantes, por detrás dos quais se escondem grandes corporações nacionais e multinacionais, a mídia corporativa e, seguramente, a atuação do serviços de segurança do Império norte-americano, de desestabilizar o novo governo de Dilma Rousseff. Não se trata apenas de uma feroz critica às políticas oficiais mas há algo mais profundo em ação: a vontade de desmontar e, se possível, liquidar o PT que representa os interesses das populações que historicamente sempre foram marginalizadas. Custa muito às elites conservadores aceitarem o novo sujeito histórico – o povo organizado e sua expressão partidária – pois se sentem ameaçadas em seus privilégios. Como são notoriamente egoístas e nunca pensaram no bem comum, se empenham em tirar da cena essa força social e política que poderá mudar irreversivelmente o destino do Brasil.

Estamos esquecendo que a essência da política é a busca comum do bem comum. Um dos efeitos mais avassaladores do capitalismo globalizado e de sua ideologia, o neo-liberalismo, é a demolição da noção de bem comum ou de bem-estar social. Sabemos que as sociedades civilizadas se constroem sobre três pilastras fundamentais: a participação (cidadania), a cooperação societária e respeito aos direitos humanos. Juntas criam o bem comum. Mas este foi enviado ao limbo da preocupação política. Em seu lugar, entraram as noções de rentabilidade, de flexibilização, de adaptação e de competitividade. A liberdade do cidadão é substituída pela liberdade das forças do mercado, o bem comum, pelo bem particular e a cooperação, pela competição.

A participação, a cooperação e os direitos asseguravam a existência de cada pessoa com dignidade. Negados esses valores, a existência de cada um não está mais socialmente garantida nem seus direitos afiançados. Logo, cada um se sente constrangido o garantir o seu: o seu emprego, o seu salário, o seu carro, a sua família. Impera o individualismo, o maior inimigo da convivência social. Ninguém é levado, portanto, a construir algo em comum. A única coisa em comum que resta, é a guerra de todos contra todos em vista da sobrevivência individual.

Neste contexto, quem vai implementar o bem comum do planeta Terra? Em recente artigo da revista Science (15/01/2015) 18 cientistas elencaram os nove limites planetários (Planetary Bounderies), quatro dos quais já ultrapassados: o clima, a integridade da biosfera, o uso da solo, os fluxos biogeoquímicos( fósforo e nitrogênio). Os outros encontram-se  em avançado grau de erosão. Só a ultrapassagem desses quatro, pode tornar a Terra menos hospitaleira para milhões de pessoas e para a biodiversidade. Que organismo mundial está enfrentando essa situação que destrói o bem comum planetário?

Quem cuidará do interesse geral de mais de sete bilhões de pessoas? O neoliberalismo é surdo, cego e mudo a esta questão fundamental como o tem repetido como um ritornello o Papa Francisco. Seria contraditório suscitar o tema do bem comum, pois o neoliberalismo defende concepções políticas e sociais diretamente opostas ao bem comum. Seu propósito básico é: o mercado tem que ganhar e a sociedade deve perder. Pois é o mercado que vai regular e resolver tudo. Se assim é por que vamos construir coisas em comum? Deslegitimou-se o bem-estar social.

Ocorre, entretanto, que o crescente empobrecimento mundial resulta das lógicas excludentes e predadoras da atual globalização competitiva, liberalizadora, desregulamentadora e privatizadora. Quanto mais se privatiza mais se legitima o interesse particular em detrimento do interesse geral. Como mostrou em seu livro Thomas Piketty, O Capitalismo no século XXI quanto mais se privatiza, mais crescem as desigualdades. É o triunfo do killer capitalismo. Quanto de perversidade social e de barbárie aguenta o espírito? A Grécia veio mostrar que não aguenta mais. Recusa-se a aceitar do diktat dos mercados, no caso, hegemonizados pela Alemanha de Merkel e pela França de Hollande.

Resumindo: que é o bem comum? No plano infra-estrutural é o acesso justo de todos à alimentação,à saúde, à moradia, à energia, à segurança e à cultura. No plano social e cultural é o reconhecimento, o respeito e a convivência pacífica. Pelo fato de sob a globalização competitiva foi desmantelado, o bem comum deve agora ser reconstruído. Para isso, importa dar hegemonia à cooperação e não à competição. Sem essa mudança, dificilmente se manterá a comunidade humana unida e com um futuro bom.

Ora, essa reconstrução constitui o núcleo do projeto político do PT originário e de seus afins ideológicos. Entrou pela porta certa: Fome Zero depois transformada em várias políticas públicas de cunho popular. Tentou colocar um fundamento seguro: a repactuação social a partir dos valores da cooperação e a boa-vontade de todos. Mas o efeito foi fraco, dada a nossa tradição individualista a patrimonialista.

Mas no fundo vigora esta convicção humanística de base: não há futuro a longo prazo para uma sociedade fundada sobre a falta de justiça, de igualdade, de fraternidade, de respeito aos direitos básicos, de cuidado pelos bens naturais e de cooperação. Ela nega o anseio mais originário do ser humano desde que emergiu na evolução, milhões de anos atrás. Quer queiramos ou não, mesmo admitindo erros e corrupção, o melhor do PT articulou e articula esse anseio ancestral. É a partir daí que pode se resgatar, se renovar e alimentar sua força convocatória. Se não for o PT serão outros atores em outros tempos que o farão.

Cooperação se reforça com cooperação que devemos oferecer incondicionalmente.Sem isso viveremos numa sociedade que perdeu sua altura humana e regride ao regime dos chimpanzés.

Leonardo Boff é colunista do JBonline, teólogo, filóaofo e escritor.


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

A VIDA DEPOIS DE AUSCHWITZ

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

  


No fim de janeiro, o mundo inteiro celebrou com seriedade e compunção um macabro aniversário: os 50 anos da tomada do campo de Auschwitz, coincidindo com o fim da Segunda Guerra Mundial. Em 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho libertou o campo de concentração de Auschwitz, o maior do regime nazista. Era o fim de um espaço que se tornou o símbolo do ódio, da violência organizada e do racismo. Em suas câmaras de gás e crematórios foram mortas pelo menos 1 milhão de pessoas. No auge do Holocausto, em 1944, eram assassinadas 6 mil pessoas por dia. Auschwitz tornou-se sinônimo do genocídio contra os judeus, ciganos, eslavos, comunistas, homossexuais e outros grupos perseguidos pelo III Reich.

Teatro do maior crime contra a humanidade de que se tem notícia, Auschwitz, situado na Polônia, abrigou atrás de seus muros uma história de horrores que jamais prescreverá.  Pois, segundo o Direito Internacional, o genocídio não prescreve.  E não prescreve porque significa a exterminação sistemática de pessoas, tendo como principais motivações as diferenças de nacionalidade, raça, religião e, sobretudo, étnicas. É uma prática que visa a eliminar minorias étnicas em determinada região.

Genocídio é sinônimo de extermínio. A palavra é derivada do grego "genos", que significa "raça", "tribo" ou "nação", e do termo de raiz latina "-cida" que significa "matar". O termo foi criado por Raphael Lemkin, um judeu polonês, jurista e que foi conselheiro no Departamento de Guerra dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. A tentativa de extermínio total do povo judeu pelos nazistas, conhecida desde então por Holocausto (Shoa em hebraico), foi o que levou Lemkin a lutar para que o conceito fosse aplicado à ação nazista na Segunda Guerra.  A palavra passou a ser usada após 1944 e permanece até hoje para designar não apenas o holocausto, mas também outros extermínios em massa por motivos de discriminação e separatismo.

O campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau foi criado em 1940, a cerca de 60 quilômetros da cidade polonesa de Cracóvia. Concebido inicialmente como centro para prisioneiros políticos, o complexo foi ampliado em 1941, passando a receber os que passavam pelos campos de triagem, a fim de submetê-los a trabalhos forçados, torturas, experimentos científicos laboratoriais ou cirúrgicos e levá-los à morte.  

Nunca houve na história um genocídio tão documentado.  Cada prisioneiro era minuciosamente registrado e posteriormente, ao fim da guerra, a humanidade pôde seguir as pegadas do calvário vivido por cada um ou cada uma.  As execuções em massa eram realizadas nas câmaras de gás com o composto Zyklon B, altamente tóxico. Usada em princípio para combater ratos e desinfetar navios, a substância mata em questão de minutos quando entra em contato com o ar. Os corpos eram, então, incinerados em enormes crematórios.

Os prisioneiros que sobrevivessem eram obrigados a trabalhos forçados. Muitos morreram de fome, de fraqueza, de desespero. Outros tentaram fugir e foram capturados e enforcados diante de todos para servir de exemplo. Ao chegarem os soviéticos, 8 mil prisioneiros foram libertados, a maioria em situação deplorável devido ao martírio que enfrentaram.

O mundo que comemorou chorando a vitória dos aliados e dedicou-se a resgatar prisioneiros famélicos e moribundos, ao mesmo tempo em que cadáveres eram sepultados, defrontou-se então com a inevitável pergunta:  Como pode se conceber a vida depois de Auschwitz?  E como falar de Deus depois de Auschwitz? Esta pergunta ainda não se encontra respondida, pois a humanidade, após o horror da guerra, continua produzindo outros genocídios e extermínios em massa, com outros protagonistas e por outras causas. E, paralelamente, tenta distrair-se com a sociedade do espetáculo e do consumo, para anestesiar memórias e não olhar nos olhos dos cadáveres ambulantes produzidos por Auschwitz e pelos outros extermínios que a criatividade humana fabrica sem cessar.

Mas Deus, este sim, continua falando e fazendo ouvir sua voz. E sua voz não soa forte e tonitruante como a dos carrascos nazistas dando ordens no campo e organizando a morte.  Ele fala com o fio de voz das vítimas, em seu discurso suplicante e vulnerável, proclamando, no entanto, a dignidade da vida.  Portanto, a vida depois de Auschwitz só pode ser uma vida ressuscitada, que passou pela morte e não foi por ela destruída, mas pela força do Espírito levantou-se do túmulo e espalhou a alegria que nada pode destruir.  Que o macabro jubileu de Auschwitz possa ajudar a humanidade a cultivar a memória subversiva das vítimas, a fim de não repetir tragédias e dedicar-se a cuidar da vida.

  A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)

Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

DESAFIOS À EDUCAÇÃO ESCOLAR

por Frei Betto

      A educação escolar exerce papel fundamental em todo processo de transformação social. À semelhança da política e da religião, a educação serve para libertar ou alienar; despertar protagonismo ou favorecer o conformismo; incutir visão crítica ou legitimar o status quo, como se ele fosse insuperável e imutável; suscitar práxis transformadora ou sacralizar o sistema de dominação.

      Nesse inicio de século XXI, a educação escolar difere muito da que predominou no século XX. Hoje, nosso cotidiano é invadido por novas tecnologias que nos trazem, em tempo real, informações capazes de interferir em nossa forma de existência e de relacionamentos (ciberespaço, relações virtuais, crise das ideologias libertárias, novos perfis familiares e sexuais, monopólio e manipulação da informação etc.)

      Por viver em uma mudança de época e trafegarmos entre a modernidade e a pós-modernidade, somos ameaçados pela crise de identidade teórica. O instrumental teórico que tanto nos confortava e incentivava no século XX, e que nos parecia tão sólido, ruiu com a crise da modernidade e da razão instrumental.

      O que impede a educação de formar pessoas altruístas? Falta uma educação que, além da escolaridade, de transmissão cultural do país e da humanidade, suscite nos educandos visão crítica da realidade e protagonismo social transformador.

      De fato, em muitos países a educação escolar se tornou uma prisão da mente, onde as disciplinas curriculares são sucessivamente repetidas, visando à qualificação da mão de obra destinada ao mercado de trabalho. Não se cogita a prioridade de formar cidadãos e cidadãs solidariamente comprometidos com o projeto social emancipatório.

      Vivemos, hoje, na era do impasse frente ao futuro emancipado. Estamos no limbo do processo libertário. Movimentos, grupos e partidos de esquerda, quando existem, parecem todos perplexos perante o futuro. Muitos cedem à força cooptadora do neoliberalismo e trocam o projeto de libertação social pelo mero usufruto do poder, ainda que isso implique corrupção e traição às esperanças dos oprimidos.

      A hegemonia capitalista exerce um poder tão avassalador, que muitos de nós abdicam do propósito de construir um novo modelo civilizatório. Aos poucos, como se fosse um vírus incontrolável, o capitalismo se impõe em nossas relações pessoais e sociais. Vamos aderindo à fé idolátrica de que “fora do mercado não há salvação”.

      Na esfera pessoal, abrimos mão de nossa ideologia libertária em troca de uma zona de conforto que nos permita acesso ao poder e à riqueza, livrando-nos da ameaça de integrar o contingente de 2,6 bilhões de pessoas que, hoje, sobrevivem com renda diária inferior a 2 dólares!

      A escola é, sim, um espaço político. Se não tiver clareza de seu projeto político pedagógico, corre o risco de se transformar em mero balcão de negócios para diplomar competidores avessos à ética e aos direitos humanos.

Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – Autobiografia Escolar” (Ática), entre outros livros.



quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

SOBRE OS ANJOS


Por Assuero Gomes


Os anjos são criaturas estranhas. Muitos são solitários, outros caminham de dois em dois. Raramente se aglomeram. Não falam. São taciturnos. Podemos vê-los sobre alguns edifícios, nos hospitais, especialmente nas enfermarias. Não se olham entre si.

Estão nas grandes catástrofes e nos desastres. Contam os corpos. Não entendem bem os humanos. Ficam impressionados como podemos ser tão cruéis às vezes, e ao mesmo tempo  capazes de gestos de profunda misericórdia e desprendimento.

Na maioria das ocasiões ficam apenas observando, esperando, pela manifestação do livre arbítrio dos homens e das mulheres. Estão nas creches, nos parques de diversão, nos velórios. Como não envelhecem nem esquecem, acompanham pessoas durante toda suas vidas. Reúnem-se ao entardecer e na alvorada. Questionam-se silenciosos o  porquê de não terem a mesma liberdade que os humanos.  Estão nas igrejas, nos templos e nos prostíbulos. Nos comícios e nos grandes eventos, mas especialmente se comovem ao nascimento de uma criança e ao seu final de vida quando anciãos. São fieis, imperceptíveis. Falta-lhes o improviso, o rompante, a cólera, o arroubo, o medo, a surpresa, a dor, o sofrimento, a alegria incontida, o delírio, a instabilidade, a genialidade, a paixão.

São quase cartesianos no seu caminhar. Apenas obedecem e acompanham esse breve tempo de cada homem e mulher. Não entendem, tampouco, a paixão cega que o Criador tem por esses seres tão frágeis e finitos e cheios de insegurança.

Estão juntos aos suicidas. Um anjo para cada um. Aos corpos insepultos também estão juntos, nos asilos, nos blocos cirúrgicos, nas maternidades. Evitam bares e restaurantes, esperam às suas portas. Os anjos das madrugadas, dos bêbados, dos drogados. Ficam nas esquinas sem luz.

A vida dos anjos é perene. Há anjos viajantes. Outros questionam o sentido da sua própria existência. Não há anjos nas ermidas nem nos bosques. Nas igrejas ficam dois, durante todo tempo, desde o dia da consagração do lugar.

Não falam sobre Deus, não sentem fome nem sede, nem frio nem calor, nem atração nem repulsão. São incólumes. Não caem nem se levantam, nem levitam nem gravitam. São apenas anjos. Um pouco superiores aos humanos na racionalidade pois não temem a morte nem o sofrimento. Não se permitem percebê-los, e sua presença se exprime na ausência. Quando alguma pessoa humana se apercebe da presença da pessoa angélica é numa sensação fugaz, como uma impressão. São apenas anjos. Sem asas ou decisões. Apenas anjos que acompanham peregrinos na curta e efêmera passagem dos humanos na Terra. Há que se supor que,  alguns sentem como que uma saudade, quando se despedem dos que foram habitar com o Pai, ao caminharem com seus protegidos pela estrada derradeira, mas dessa saudade não se tem conhecimento, apenas suposição.

Gostam de música e de olhar as nuvens quando empurradas pelos ventos, especialmente aos tons rubros do por do sol. São apenas anjos.

Assuero Gomes é médico pediatra, pintor e escritor



terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O CARNAVAL DA LIBERTAÇÃO


Por Marcelo Barros


Em várias cidades brasileiras, já estamos em tempo de Carnaval. No Rio de Janeiro, Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos estão nas ruas e as pessoas superam as dores e angústias do cotidiano através da dança, das brincadeiras e da alegria do Carnaval. Ainda há pessoas e grupos que veem nisso mera alienação. Alguns grupos religiosos condenam o mundanismo e julgam o Carnaval como produto do diabo. Não há dúvidas de que o Capitalismo faz de tudo mercadoria. No Carnaval, explora um erotismo simplesmente comercial. Fomenta o uso exagerado de bebidas e mesmo de drogas. Tudo isso cria um circulo vicioso com a violência urbana que explode em alguns fenômenos de massa não bem canalizados. No entanto, apesar desses problemas, toda festa, mesmo a mais aparentemente mundana, reúne pessoas em uma expressão de alegria e tem, por isso, uma dimensão nobre e, podemos mesmo dizer: espiritual.

De um modo ou de outro, todas as culturas valorizam a festa como sinal e antecipação do pleno e definitivo encontro com a divindade. Jesus afirmou que o reinado divino vem ao mundo, qual uma música deliciosa que convida todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som da música, não reagem e ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam a vida, mesmo sofrida, uma festa de alegria, inspirada pelo Espírito. Conforme o quarto evangelho, Jesus começou a anunciar o reinado divino no mundo, transformando água em vinho simplesmente para que não faltasse alegria em uma festa de casamento (Jo 2).

As pessoas e comunidades marcam a vida pela cadência das festas. Cada ano, o aniversário natalício recorda o dom da vida. Conquistas importantes, como conclusão de um curso, obtenção de um novo trabalho e casamentos são celebrados com festas. Todo país tem festas cívicas e cada religião, festividades litúrgicas. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito. 

Na Bíblia, se conta que, quando a arca da aliança foi transferida das montanhas para Jerusalém, “o rei Davi dançava alegremente”. Davi dançou para agradecer a bênção divina sobre o povo. Vários salmos aludem à dança como forma de oração. Apesar disso, a dança não é muito valorizada nas liturgias. Nas sinagogas, o uso variou muito, de acordo com o tempo. Em épocas mais recentes, principalmente em festas como a da Simchá Torá, a festa da “alegria da Lei”, no nono dia depois da festa das Tendas (Sucot), a dança é o rito central. Em um artigo na internet, o rabino Nilton Bonder explica: “Nós dançamos com a Torá e não nos damos conta como dançamos com a vida e de que a dança revela muito”. A dança é mais do que um método. É caminho de meditação interior e comunitária. Indica abertura do ser humano a uma dimensão de transcendência. No Brasil, as danças são ancestralmente praticadas pelas religiões indígenas e afro-descendentes. Muitas vezes, além de ser uma forma de orar com o corpo, servem também como instrumentos de cura e equilíbrio para a vida.

As formas mais conhecidas de danças sagradas espalhadas pelo mundo vêm do Oriente e são a Hatha Yoga, T´ai Chi e as danças do Dervixe na tradição mística Sufi (muçulmana). Um dervixe disse ao escritor grego Nikos Kazantzakis: “Bendizemos ao Senhor, dançando. A dança mata o ego e uma vez que o ego é morto não há mais obstáculos que o impeçam de se unir a Deus”.

Lamentavelmente ao se falar de dança sagrada, corre-se o risco de separar o sagrado e o profano, como se houvesse uma dança santa e a outra mundana e pervertida. É claro que, como toda atividade humana, a dança também pode se tornar instrumentalizada em espetáculos de mau gosto. Entretanto, se, em seu erotismo, ela é humana e humanizadora, repõe as energias do amor em um equilíbrio unificador da pessoa e da comunidade. Desse modo, toda dança é sinal da bênção divina e instrumento de cura do corpo e do espírito. Tanto no Carnaval, como no dia a dia, é importante valorizar os ritmos, músicas e danças de cada cultura.

Nos anos 70, Chico Buarque compôs a melodia para o filme “Quando o Carnaval chegar”, uma comédia musical de Cacá Diegues que tomava o Carnaval como parábola da festa da libertação. Apesar de que superamos a ditadura militar e, hoje, vivemos uma democracia formal, ainda há muito para alcançarmos uma igualdade social e uma realidade de justiça que signifique uma verdadeira libertação para todo o nosso povo. Por isso, continua válida a esperança proposta nas imagens daquela música de Chico, cantada no filme, junto com Maria Bethânia e Nara Leão: “Quem vê assim, tão parado e distante, parece que eu nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”. É bom que nos Carnavais que passam, não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval definitivo, mais profundo e transformador da vida.  

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países