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quinta-feira, 30 de junho de 2016

LÓGICA DO GOVERNO GOLPISTA

Por Frei Betto

     
      Na feliz expressão de Renato Meirelles, presidente do instituto de pesquisa Data Popular, “perder dói mais do que deixar de ganhar.”
      De fato, ninguém se queixa de viajar de ônibus de São Paulo a Belo Horizonte, até o dia em que se vê em condições de cobrir o percurso em avião. Logo vê-se impossibilitado de voar e obrigado a viajar de novo por terra. Isso dói.

      Essa dor da perda faz milhões de brasileiros se decepcionarem com o governo golpista de Temer. De cara, ele passou o rodo nos ministérios e secretarias especiais que, em 13 anos de governo do PT, trouxeram avanços significativos em suas respectivas áreas: Cultura, Direitos Humanos, Mulheres, Juventude e Igualdade Racial.
      O ministro da Saúde ameaçou ignorar a Constituição e restringir o acesso dos brasileiros ao SUS. Tentou ainda erradicar o programa Mais Médicos e enviar os profissionais cubanos de retorno à ilha. Teve de recuar. Quantos doutores brasileiros estão dispostos a atuar em regiões remotas do país junto à população mais pobre?

      O ministro da Educação – que falou “eu ovo” em vez de “eu ouço” – também ameaçou tirar os recursos de programas, como o FIES, que possibilitaram, nos útimos 10 anos, o ingresso de mais 9 milhões de alunos nas universidades brasileiras. Acuado, prometeu rever seu propósito, aliás digno da política colonial portuguesa, que sempre impediu o Brasil de ter universidade, enquanto no Peru e na República Dominicana ela existe desde o século XVI.

      Reduzir os recursos do Bolsa Família, por exemplo, é tirar milhões de crianças da escola e do acesso às garantias mínimas de saúde, como as vacinas, já que a renda destinada à família vincula a obrigatoriedade de frequência escolar e atenção sanitária dos filhos.

      Tais medidas são exemplos da lógica perversa do governo golpista: dependurar a economia nas exportações; asfixiá-la pelos ajustes fiscais; implantar o Estado mínimo; considerar gastos os investimentos em programas culturais e sociais. Assim, o Brasil perpetua sua impossibilidade de fomentar o mercado interno – medida adotada pelos EUA para sair do atoleiro após a crise econômica de 1929.

      Um país só fortalece seu mercado interno se investir em capital humano, ou seja, saúde educação e cultura. Quando se joga pra escanteio tais direitos, assina-se o atestado de pobreza e dependência de uma nação desigual e injusta.

      Os eleitores de Lula e Dilma votaram na igualdade de oportunidades. Os apoiadores de Temer preferem a meritocracia. Ora, como assegurar mérito se a desigualdade social exclui milhões de pessoas de acesso à escola e ao emprego formal?

      A cultura escravocrata ficou tão impregnada no brasileiro que paira no ar o medo de se tornar realidade a hipótese de não haver mais Casa Grande nem senzala...

      Portanto, se perder dói, não nos resta outra alternativa  que lutar para ganhar. Quem não chora não mama.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.


quarta-feira, 29 de junho de 2016

DOIS ANOS DE PONTIFICADO DE FRANCISCO

 É  com muita alegria que, a partir de hoje, temos uma nova colaboradora em nosso blog. Seja muito bem vinda.

Por Ivone Gebara



“A grande maioria dos fiéis parece silenciosa e desconhece sua história, sua política e sua teologia, quando muito o acham simpático e não hesitariam, talvez, em comprar uma foto do Papa e guardá-la como lembrança”, comenta Ivone Gebara, filósofa e teóloga feminista/ecofeminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife, fechado em 1989 por ordens do Vaticano.

A quem de fato interessa a avaliação dos dois anos de pontificado de Francisco? O que as múltiplas e diversas avaliações contribuem para o conjunto das comunidades católicas e para o mundo? O que as pessoas mais simples das paróquias, comunidades de base e movimentos eclesiais teriam para dizer sobre sua atuação? O que as outras Igrejas cristãs estão dizendo?

Sinto que os diferentes grupos da Igreja Católica querem, cada um de seu jeito, recuperar as posições do Papa como seu aliado ou mesmo seu refém. Alguns fazem dele adepto da teologia da libertação e até discípulo de célebres teólogos. Outros o descrevem como silencioso em relação à ditadura militar argentina. Outros falam de sua simplicidade, de suas posições políticas a favor dos pobres, de sua proximidade aos marginalizados e injustiçados de muitas partes do mundo. Alguns o temem e pensam que sua postura liberal poderá conduzir a Igreja Católica a uma desordem maior do que a existente. Entretanto, a grande maioria dos fiéis parece silenciosa e desconhece sua história, sua política e sua teologia, quando muito o acham simpático e não hesitariam, talvez, em comprar uma foto do Papa e guardá-la como lembrança. Com essas observações quero lembrar a complexidade das avaliações e análises publicadas pela imprensa em relação ao Papa Francisco. Muitas vezes os meios de comunicação social colecionam opiniões, polemizam, mas pouco ajudam no envolvimento e responsabilidade das pessoas em relação às grandes questões de nosso tempo.

Abertura

Creio que é constatação inegável a abertura de Francisco à situação dos povos em busca de sobrevivência, dos refugiados de todos os países, dos condenados ao desterro, dos mortos tragados pelo mar quando buscavam vida. Além disso, Francisco prepara uma encíclica sobre a gravíssima situação climática de nosso planeta como questão fundamental de nosso tempo. Ele tem sido capaz de ser sensível a muitos problemas vividos pela comunidade internacional, pelo 'planeta azul' exposto a graves riscos de destruição, sem esquecer as iniciativas em relação à reforma da cúria romana.

Entretanto, para além das opiniões, avaliações e previsões de tantos especialistas, pergunto: que diria Francisco de seu pontificado? Ousaria expressar as múltiplas pressões políticas internacionais e vaticanas a algumas de suas posições? Ousaria afirmar-se em oposição aos que o precederam, sobretudo os mais próximos? Que angústias o acometem quando se vê “aprisionado” por tantos interesses diferentes? Que sombras o envolvem quando quase octogenário se sente questionado por tantas visões diferentes de mundo?

As pequenas notas destoantes em relação aos seus predecessores e algumas atitudes de simplicidade não significam necessariamente a inauguração de um novo modelo de coordenação e governo da Igreja Católica. A tradição de um Papado vinculado a um Estado político, o Estado do Vaticano, perpassa todas as atitudes e boas intenções de Francisco e revelam a complexidade da História do Catolicismo Romano.

Mulheres

Sei que algumas leitoras e leitores esperam que eu emita alguma opinião sobre a postura de Francisco em relação às mulheres. Em outras ocasiões já escrevi e falei sobre a dificuldade de uma Igreja patriarcal cujo poder de mando repousa sobre cabeças masculinas de se sentir aliada e solidária com os esforços de luta pela dignidade feminina neste século. Não conseguem nem pronunciar palavras como ‘feminismo’ de forma positiva, além de desconhecerem quase completamente as teses feministas. Podemos reconhecer a solidariedade hierárquica masculina quando se trata de situações-limite expressas em diversas formas de violência cultural e social contra as mulheres. Entretanto, muitas formas de exclusão, de desvalorização, de violência simbólica, de falta de autonomia, de linguagem excludente, mal chegam a ser percebidas, sobretudo quando acontecem no interior da própria instituição católica. Não percebem ‘nem traves e nem palhas em seus olhos’ e atitudes. Não querem ouvir os clamores femininos de coração aberto.

A antropologia teológica que preside a grande maioria das posturas da oficialidade da Igreja Católica Romana provém de uma visão hierárquica que privilegia o masculino como imagem primeira do divino. E privilegia o divino com imagem histórica masculina. Além disso, justifica essas posturas como sendo ‘revelação divina’, escondendo atrás dessa justificação limites imensos. Estes limites impedem o diálogo com os diferentes grupos que se sentem também parte da tradição de Jesus de Nazaré sempre de novo interpretada, não necessariamente através de referenciais filosóficos antigos e medievais. Acentua-se, por exemplo, a crucifixão de Jesus e muito pouco as lágrimas de Maria e da comunidade de crentes. Muito embora esta referência esteja presente, não é capaz de modificar a interpretação da "sagrada" masculina hierarquia dominante.

Pensar, desejar, esperar é sempre bom e necessário. Por isso espero que sejamos nós as/os pontífices de nossas comunidades, ou seja, que sejamos capazes de ser ‘pontes’ para nos articularmos, aprendermos e ajudar-nos uns aos outros orientados pelo difícil amor ao próximo como a nós mesmos. E que o irmão Francisco se torne cada vez mais um símbolo significativo do que somos e queremos ser uns para os outros.


Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.

terça-feira, 28 de junho de 2016

A FORÇA DA UTOPIA


Por Marcelo Barros




Nesses dias (de 22 a 26 de junho), na cidade de Maricá, RJ, ocorreu o 1o Festival Internacional da Utopia. Gente de todo o mundo se encontrou ali para partilhar seus melhores sonhos e se fortalecer uns aos outros na esperança de um novo caminho para a humanidade. O encontro foi rico em reflexões e debates. No entanto, a marca principal foi o caráter de grande celebração da vida com muitas representações musicais e artísticas. Para ensaiar novas formas de organizar a sociedade e confirmar que "outro mundo é possível", esse encontro da esperança militante não ocorreu como congresso acadêmico, nem como fórum de reflexões e sim como festival lúdico e afetuoso. Assim, antecipou a festa definitiva da vitória. 

Nos anos 60, em plena ditadura militar, as pessoas cantavam: Quem sabe faz a hora. Não espera acontecer". De fato, existe uma forma passiva e acomodada de esperar, sinônimo de aguardar ou deixar para depois. Isso nada tem a ver com a vigília esperançosa de quem prepara um novo dia de trabalho e de luta. Conforme Ernest Bloch, a verdadeira esperança é uma determinação fundamental da pessoa que dá uma orientação à vida e à realidade, no rumo de uma meta que é a utopia.

O termo grego utopia significa "o não caminho", ou o que está além do caminho. No século XVI, tornou-se título do livro de Thomas Morus que falava de uma ilha, na qual o objetivo de cada um de seus habitantes era fazer com que todos pudessem ser felizes. Parece que Morus se inspirou na descrição que Américo Vespucci fez sobre a ilha de Fernando de Noronha que ele tinha visitado. Parecia o paraíso terrestre reencontrado no novo mundo descoberto por Colombo. A partir daí Morus imaginou a sociedade perfeita, na qual não havia propriedade privada e todos tinham tudo em comum em uma espécie de socialismo fraterno e pacífico. Até o século XX, considerava-se utopia algo impossível e irreal. Quando  alguém queria acusar um filósofo de não ter compromisso com a realidade, bastava classificá-lo como "socialista utópico". Ernest Bloch resgatou a Utopia como algo positivo. Com ele, o termo passou a significar não um ideal irrealizável e alienado, mas a meta de uma sociedade nova. Embora não seja alcançada totalmente na história, a Utopia é importante porque mobiliza ações e possibilita projetos nos quais, ao menos em parte, a esperança é alcançada. Quanto mais alto e mais profundo for o teor da nossa esperança, mais somos chamados a nos comprometer em transformar desde já a realidade atual. Eduardo Galeano explica isso com uma imagem muito concreta: "A utopia está lá no horizonte. Eu me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos. A utopia parece mais distante. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que, então, serve a utopia? Serve para isso: para me fazer caminhar".

A utopia mostra a meta para melhor fortalecer o caminho. Várias religiões se denominam como caminho. Na cultura chinesa, Tao significa caminho. Taoísmo é a espiritualidade que permite as pessoas caminharem de modo justo nas trilhas dessa vida. Também o Cristianismo primitivo tinha como nome o caminho. Na literatura brasileira, Guimarães Rosa fazia Riobaldo do "Grande Sertão Veredas", repetir sempre: "O perigo não está na partida nem na chegada. Está na travessia".

O 1o Festival da Utopia em Maricá, assim como todos os fóruns sociais que, pelos diversos continentes, reúnem a sociedade civil e os movimentos sociais insistem que a humanidade precisa e quer mudar de caminho. Todos serão mais felizes se passarem de uma cultura da competição para a cooperação. Podemos nos organizar não mais a partir da hierarquia e sim da parceria. A sustentabilidade pede que não se pense o futuro só a curto prazo, mas como dizem os índios iroqueses, "pensemos se nossas ações farão bem até a oitava geração de nossos filhos". Isso supõe ampliar o foco do que é desejável para a sociedade. Até agora a meta parece ser  exclusivamente centrada no crescimento e na expansão. É urgente dar prioridade ao cuidado e à sacralidade da vida. Homens e mulheres precisam superar o mundo patriarcal para uma convivência de equilíbrio e igualdade entre os gêneros. 

A fé judaico-cristã nos lembra que o destino de todo ser humano é aquilo que os profetas e os evangelhos chamam de "reino de Deus", ou seja, a realização plena do projeto ou programa que Deus tem para o mundo. Segundo a Bíblia, não é apenas a sociedade melhorada. É uma revolução total, expressa em imagens como "vejo um novo céu e uma nova terra, na qual não haverá mais choro, nem luto, nem dor, porque tudo o que era da antiga condição foi superado e o amor divino será tudo em todos" (Cf. Ap 21, 5 ss).


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 

A PAIXÃO DE PAULO: A CRUZ DE CRISTO

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer


 
        Poucos encontros na história da humanidade são narrados com tamanha intensidade e paixão como o de Paulo de Tarso com Jesus Cristo.  O texto do Novo Testamento usa expressões de grande força simbólica e evocativa para descrevê-lo: uma luz resplandecente vinda do céu, uma voz que soava forte e perguntava: “Por que me persegues?”
        Aquilo que se apresenta como uma teofania esmagadora e terrível provocou em Paulo uma rendição sem limites.  A pessoa que se manifesta naquela luz e naquela voz é por ele chamada de Senhor desde o primeiro momento. Entre trêmulo e atônito, Paulo só ousa perguntar humildemente àquele que o conquistou para sempre o que deve fazer. Apaixonado e seduzido no mais profundo de si mesmo encontraria a partir dali o sentido de sua vida na pessoa do Cristo Ressuscitado que atravessou seu caminho na estrada de Damasco.
         Quando nos apaixonamos tudo passa a ser diferente.  É o amor apaixonado que determina nossa vida.  Nosso acordar pela manhã e nosso entardecer.  Nossas decisões, o que fazer com nosso tempo, o que priorizar em nossas escolhas. O que é capaz de assombrar-nos, o que tem poder de maravilhar-nos.  O que provoca nossa entrega sem retorno e sem voltar atrás.  Aquilo pelo qual somos capazes de morrer e que por isso dá um sentido à nossa vida.
         Assim foi com o amor apaixonado que Paulo de Tarso sentiu e experimentou desde aquele primeiro minuto na estrada de Damasco até o fim de sua vida.  A paixão por Jesus Cristo determinava seus afetos, atos, pensamentos e polarizava todas as suas energias.  A única coisa que passou a importar para ele foi seguir esse Senhor que lhe arrebatara o coração, anunciá-lo por toda parte e a toda gente. E identificar-se com ele de modo tão profundo que já não houvesse separação possível entre os dois.

         Tudo que antes Paulo considerava valioso e apreciável, diante da magnitude da presença de Jesus Cristo em sua vida tornou-se lixo e perda. A única coisa que o urgia e impulsionava para frente era o amor de Cristo. Viver para Paulo era, então, não mais viver para si, mas para Aquele que por nós morreu e ressuscitou. Tomado por um amor incondicional, Paulo se lança para frente com os olhos fixos em Jesus Cristo e dessa união extrai forças para o seu ministério apostólico cheio de vicissitudes e dificuldades.
         Diante delas, porém, Paulo não recua nem treme, pois considera um privilégio e uma alegria trazer em seu corpo as marcas de Cristo e experimentar na carne os sofrimentos de Cristo pelo bem de sua Igreja. A mútua compenetração entre amante e amado se faz cada vez mais íntima e profunda a ponto de fazer Paulo sentir e exclamar estar pregado na cruz com Jesus Cristo.  Não é mais ele que vive, mas Cristo que nele vive. 
         A fé em Jesus Cristo e o amor que dela deriva levam Paulo a morrer para a lei pela qual antes se guiava cegamente, a fim de viver para Deus.  E a viver sua vida na fé no Filho de Deus que – confessa ele cheio de gratidão – “me amou e se entregou por mim”. Diante da entrega total da paixão de Cristo, Paulo sente-se arrebatado de amor e declara não pretender jamais gloriar-se a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para ele e ele para o mundo..
         Em nosso tempo de relações líquidas e fugazes, que se fazem e desfazem com o simples toque de um clic, onde tudo é descartável e efêmero, e se desfaz no momento seguinte em que se faz, a gigantesca figura de Paulo de Tarso nos diz algo importante sobre o que é o amor.  Não emoção passageira, sentimento barato, sensação volátil.  Mas paixão que arrebata e exige a vida inteira.  Algo pelo qual vale a pena morrer e que por isso mesmo ensina a viver com sentido e plenitude. 
         
 Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ, é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco)


sexta-feira, 24 de junho de 2016

FESTA DE SÃO JOÃO

por Frei Betto



      João, santo cuja festa se celebra a 24 de junho, era primo de Jesus, filho de Zacarias, sacerdote do Templo de Jerusalém, e de Isabel, prima de Maria. Como o nascimento de Jesus se comemora a 25 de dezembro, por ter nascido seis meses depois de seu primo, João tem a sua festa natalícia a 24 de junho.

      De fato, as duas festas decorrem das festividades pagãs, apropriadas pela Igreja, dos solstícios de verão e inverno no hemisfério norte. Solstício vem do latimsol + sistere, “que não se mexe”. É quando o sol, medida a sua latitude a partir da linha do equador, se encontra em sua maior declinação em relação à Terra. Então, neste dia, no hemisfério norte o dia é o mais longo do ano e, a noite, a mais curta. No hemisfério sul ocorre o contrário.

      Os solstícios não ocorrem sempre no mesmo dia. Variam conforme o ano. Mas quase sempre entre os dias 20 e 25 de junho e dezembro. Por isso, os dias 21 de junho e 21 de dezembro marcam as mudanças de estações. No hemisfério sul, do outono para o inverno, em junho; e da primavera para o verão, em dezembro.

      Há indícios de que João, decidido a não seguir a carreira sacerdotal do pai no Templo de Jerusalém, preferiu unir-se aos monges essênios de Qumran, junto ao Mar Morto. Talvez por discordar do elitismo espiritual dos essênios, que se consideravam os prediletos de Deus, João trocou a vida monástica pela pregação ambulante às margens do rio Jordão. Ali formou a sua própria comunidade, selada pelo batismo cuja espiritualidade se centrava na prática da justiça. Daí passou a ser conhecido como João Batista (aquele que batiza). Jesus aderiu à comunidade de seu primo e foi por ele batizado nas águas do Jordão.

      João denunciou a vida corrupta e devassa do governador da Galileia, Herodes Antipas, que se juntara à mulher de seu irmão, Felipe. Preso, foi degolado a pedido de Salomé, enteada do governador, orientada pelo ódio vingativo de sua mãe, Herodíades. Em plena festa palaciana, a cabeça de João foi exibida em uma bandeja.

      A atuação de Jesus só teve início após o martírio de João. É como se o primo firmasse posição para demonstrar a Herodes Antipas, a quem chamava de “raposa”, que a luta continua... Seus primeiros discípulos, André e Simão, o cananeu, vieram do grupo de João.
      Da comunidade dos doze apóstolos, o mais jovem também se chamava João, autor do quarto evangelho. Ele abre o seu relato em homenagem ao xará, a quem chama de “enviado de Deus para ser testemunha da luz.”

      A festa de São João é marcada, no hemisfério sul, pela fogueira e os fogos de artifício, que simbolizam a “luz do mundo” e o fato de a luz (Jesus) vencer as trevas (da noite mais longa do ano).

      Desde o século XVIII, a festa é comemorada no Brasil com adereços que os portugueses trouxeram da Ásia, especialmente da China, como balões, bandeirinhas e fogos de artifício. Já a dança da quadrilha (quadrille, dança de quatro casais), aqui em trajes caipiras, veio da Holanda e recebeu influências portuguesa e francesa. A marcação, hoje abrasileirada, lembra foneticamente o francês: anarriê (en arièrre, retornar); anavantu (tout em avance, todos para frente).

      Neste ano, todos nós, devotos de São João, devemos pedir muita luz para o Brasil, onde muitas cabeças vêm sendo degoladas pela corrupção e os desmandos administrativos.

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Fontanar, 2016), entre outros livros.





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quinta-feira, 23 de junho de 2016

QUEM VOCÊ PREFERE MORTO?

por Frei Betto


       Frei Guilherme, professor de filosofia, nos dava aulas de sabedoria. Introduziu-nos no tema “preconceito e discriminação”, evocando Sócrates, Platão e Aristóteles. Frisava: “É fácil saber se nutrimos preconceito ou discriminação a uma pessoa ou grupo social. Basta se fazer a pergunta: quem eu gostaria de ver morto? Talvez você não se imagine portando uma arma e atirando contra quem, por alguma razão, lhe causa repugnância. Mas ficaria satisfeito se outro o fizesse?”

      Suas lições me vieram à lembrança por ocasião do massacre na boate Pulse, em Orlando (EUA), na madrugada de 12 de junho. Omar Mateen, de 29 anos, desafogou todo o seu ódio aos gays ao disparar, a esmo, um fuzil e uma pistola. Tirou a vida de 49 pessoas e feriu 53.

      É fácil lamentar a morte de tantas vítimas inocentes da homofobia extrema. Difícil é responder no íntimo ao questionamento de frei Guilherme. No entanto, a história está repleta de respostas.

      Sócrates foi “suicidado” por priorizar a própria consciência. Jesus, assassinado, por rejeitar o reino de César e preconizar o de Deus. As Cruzadas mataram muçulmanos por não acatarem a autoridade do pontífice romano. A Inquisição levou à fogueira todos os suspeitos de professarem uma crença que não correspondia à ortodoxia católica.

      Colonizadores ibéricos dizimaram aldeias indígenas por julgarem que aqueles selvagens nada valiam comparados à prata e ao ouro que se avizinhavam de suas aldeias. Ingleses, portugueses e espanhóis capturaram africanos para escravizá-los em suas colônias, convencidos de que negros são subespécie humana e, quiçá, nem alma possuem. Hitler exterminou milhões de judeus, comunistas, homossexuais e ciganos, por estar convencido de que ameaçavam a pureza da raça ariana.

      Talvez um de nós diga: eu não faria nada disso. Contudo, a indagação de frei Guilherme ecoa ainda hoje: daria a sua aprovação a quem o fez? Ora, tão ou mais culpados são aqueles que, por omissão ou aprovação, são cúmplices dos que apontam armas em nome da defesa de gênero, etnia, patrimônio, crença religiosa ou posição política. Aprovam ou ficam indiferentes à exclusão e morte de quem não corresponde ao figurino dos algozes.

      Todo preconceito ou discriminação resulta do caldo de cultura aquecido pela cultura necrófila que, aos poucos, destila o veneno do ódio. Quando se admite que um torcedor atire bananas a um jogador negro; um país de cristãos feche as portas aos refugiados muçulmanos; a família tente impedir que o filho assuma a sua homossexualidade; a escola seja criticada por ensinar identidades de gênero; a polícia trate jovens pobres como potenciais bandidos; o fazendeiro adote em sua propriedade trabalho similar ao escravo; então, todos os ingredientes de um caldo de cultura explosivo estão devidamente preparados. E a violência impera.

Frei Betto é escritor, autor de “Fidel e a religião” (Fontanar), entre outros livros.
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quarta-feira, 22 de junho de 2016

SINCERAMENTE, O BRASIL ATUAL TEM JEITO?


Por Leonardo Boff


        Quem olha a cena político-social-econômica atual se pergunta sinceramente:o Brasil tem jeito? Um bando de ladrões, travestidos de senadores-juízes tenta, contra todos os argumentos contrários, condenar uma mulher inocente, a Presidenta Dilma Rousseff, contra a qual não se acusa de nenhuma apropriação de bem público e de corrupção pessoal.

Com as recentes delações premiadas, ficou claro que o problema não é a Presidenta. É a Lava Jato que, para além das delações seletivas contra o PT, está alcançando a maioria dos líderes da oposição. Todos, de uma forma ou outra, se beneficiaram das propinas da Petrobrás para garantir a sua vitória eleitoral. “Precisamos estancar essa sangria” diz um dos notórios corruptos; “do contrário seremos todos comidos; há que se afastar a Dilma”.

Ninguém aliena nada de seus bens para financiar sua campanha. Nem precisa: existe a mina do caixa 2 abastecida pelas empresas corruptoras que criam corruptos a troco de vantagens posteriores em termos de grandes projetos, geralmente superfaturados, donde adquirem grande parte de suas fortunas.

Chegamos a um ponto ridículo, aos olhos do mundo: dois presidentes, um usurpador, fraco e sem nenhum carisma e outro legítimo mas afastado e feito prisioneiro em seu palácio; dois ministros do planejamento, um retirado e outro substituto: um governo monstruoso, antipopular e reacionário.

Estamos efetivamente num voo cego. Ninguém sabe para onde vai esta nação, a sétima economia do mundo, com jazidas de petróleo e gás das maiores do mundo e com uma riqueza ecológica sem comparação, base da futura economia. Assim como se delineia a correlação de forças, não vamos a lugar nenhum, Não é impossível um eventual conflito social, dada a política atual que corta direitos sociais especialmente, nos salários, na saúde e na educação.

O pobre, a maioria da população, se acostumou a sofrer e a encontrar saídas como pode. Mas chega a um ponto em que o sofrimento se torna insuportável. Ninguém aguenta, indiferente, ao ver um filho morrendo de fome ou de absoluta falta de assistência médica. E diz: assim não pode ser; temos que rebelar-nos.

Isso me faz lembrar um bispo franciscano do século XIII da Escócia que recusando os altos impostos cobrados pelo Papa, respondeu: non accepto, recuso et rebello” (“não aceito, me recuso e me rebelo”). E o Papa retrocedeu. Não poderá ocorrer algo semelhante entre nós?

Quando, nas palestras, fazendo um esforço imenso para deixar um laivo de esperança, me dizem: ”mas você é pessimista”! Respondo com Saramago: “não sou pessimista; a realidade é que é péssima”.

Efetivamente, a realidade está sendo péssima para todos, menos para aquelas elites endinheiradas, acostumadas à rapinagem, ganhando com a desgraça de todo um povo. Elas têm o seu templo de profanação na Avenida Paulista em São Paulo, onde se concentra grande parte do PIB brasileiro. Setores deles, especialmente da FIESP estão atrás do impeachment da Presidenta.

O grave é que estamos faltos de lideranças. Abstraindo o ex-presidente Lula, cujo carisma é inconteste, apontam para mim dois: Ciro Gomes e Roberto Requião, a meu ver, as únicas lideranças fortes, com coragem de dizer a verdade e pensar mais no Brasil que nos interesses partidários.

Essa crise tem um pano de fundo nunca resolvido em nossa história, desmascarado recentemente por Jessé Souza. (A tolice da inteligência brasileira, 2015). Somos herdeiros de séculos de colonialismo que nos deixou a marca  de “vira-latas” sempre dependendo dos outros de fora. Pior ainda é a herança secular do escravismo que fez com que os herdeiros da Casa Grande se sintam senhores da vida e da morte dos negros e pobres. Não basta lançá-los nas periferias; há que desprezá-los e humilhá-los. E a classe média que imita os de cima, tolamente se deixa manipular por eles e inocentemente se faz cúmplice da horrorosa desigualdade social, talvez o verdadeiro problema social brasileiro. Eticamente vista, essa desigualdade é a nossa maior corrupção, pois nos faz indiferentes ao sofrimento das maiorias e pouco fazemos para diminui-la.

Essas elites de super-endinheirados (71.440 pessoas lucram 600 mil dólares por mês nos diz o IPEA) conquistaram os meios de comunicação de massa, golpistas e reacionários, que funcionam como azeite para a sua maquinaria de dominação. Essas elites nunca quiseram a democracia, apenas aquela de baixíssima intensidade, que a podem comprar e manipular; preferem os golpes e as ditaduras; aí o capitalismo viceja à tripa forra.

Hoje já não é mais possível o recurso às baionetas e aos canhões. Excogitou-se outro expediente: o golpe vem por uma artificiosa articulação entre  políticos corruptos, o judiciário politizado e a repressão policial. Três tipos de golpe, portanto: o político, o jurídico e o policial.

Termino com as palavras pertinentes de Jessé Souza: “encontramo-nos num mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos”.

Filosofando, direi com Martin Heidegger:“só um Deus nos poderá salvar”? Marx talvez seja mais modesto e verdadeiro:”para cada problema há sempre uma solução”. Deverá surgir uma para nós a partir do caos político em que nos encontramos. O caos pode ser generativo do novo.

Leonardo Boff é articulista do Jornal do Brasil e escritor


terça-feira, 21 de junho de 2016

OS REFUGIADOS E A RESPONSABILIDADE CIDADÃ


 por Marcelo Barros


Atualmente, no mundo inteiro, a onda de refugiados triplicou. Somente na África oito conflitos internacionais ou internos geram dez milhões de refugiados. Na Ásia, a guerra civil na Síria faz com que multidões imensas procurem sair do país para escapar com vida aos mísseis norte-americanos e à mortandade que vem de um lado e do outro. Nas portas da Europa, a cada dia, milhares de pessoas veem as fronteiras fechadas e são obrigadas a sobreviver prisioneiras em campos de concentração para não voltarem aos seus países. E a maioria dos refugiados nem procuram os países ricos. Já sabem que serão mal recebidos. Tentam países pobres do mesmo continente. Somente no Quênia, 300 mil somalis foram repatriados de um campo de fronteira. Na América Latina, a guerra civil na Colômbia provocou a fuga de milhares de pessoas para países vizinhos e para a Europa. Mais do que o terremoto, a opressão do império norte-americano sobre o Haiti provoca a fuga de milhares de haitianos que saem do seu país para sobreviver. Nesses últimos três anos, o Brasil recebeu dez  milhões de refugiados/as, vindos de 79 países diferentes.

Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), refugiada é toda a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição, é obrigada a sair do seu país de origem e nacionalidade. Devido à sua raça, religião, nacionalidade, pertença a determinado grupo social ou opinião política, essas pessoas buscam refúgio fora do seu país de origem. E, por se sentirem ameaçadas, não podem regressar ao mesmo. Em muitos casos, as pessoas são obrigadas a deixar seu país devido a grave e generalizada violação de direitos humanos. Nos últimos anos, além de refugiados por motivos políticos, temos também muitos refugiados/as ambientais. Saem de suas terras por causa de catástrofes ambientais e desastres naturais.  Atualmente, calculam-se em mais de 65 milhões de pessoas no mundo em condições de refugiados/as.

O direito de refúgio é dos mais antigos direitos humanos existentes na terra. Há milhares de anos, mesmo impérios e civilizações antigas o reconheciam. Na Idade Média, as Igrejas e mosteiros eram lugares sagrados de refúgio. Quem ali se abrigasse tinha a sua vida e segurança protegidas. No século XX, a primeira e a segunda grande guerra provocaram uma onda imensa de refugiados. Eram pessoas que fugiam dos países da Europa, destruídos pelas bombas. Para sobreviver com suas famílias, migravam para a América ou para algum país da Ásia. Hoje, a onda de refugiados vai no sentido contrária. A maioria vem dos países mais pobres do mundo. Aos refugiados se junta uma multidão maior ainda de migrantes, pessoas que tentam sair dos seus países, não por perseguições políticas ou por guerras, mas por causa da pobreza e da fome. Tentam sobreviver em alguma terra estrangeira.  

Em 1948, a Declaração dos Direitos Humanos reconhecia como direito humano a possibilidade das pessoas fugirem de situações de guerra ou/e de fome e migrarem para outros países. No entanto, a sociedade atual, dominada pela idolatria do mercado, é mais cruel do que as antigas civilizações imperiais. Trata os refugiados de modo pior do que os senhores feudais da Idade Média agiam com os seus inimigos. Somente nesse ano de 2016, se calculam em mais de 2700 o número de migrantes da África e da Ásia que buscavam refúgio na Europa e naufragaram no mar Mediterrâneo. Foram engolidos pelo mar, mas porque já haviam sido condenados à morte pelos governos da Itália, Grécia, França e de outros países civilizados da Europa.

O papa Francisco tem repetidamente chamado a atenção do mundo para o drama dos refugiados e para a necessidade de uma nova aliança de solidariedade entre toda a humanidade. Quem é cristão precisa lembrar que sua fé descende de Abraão, velho migrante que, segundo a Bíblia, saiu do atual Iraque para onde hoje é Israel. E, conforme o evangelho, assim que nasceu, Jesus se tornou refugiado. José e Maria fugiram da Judéia com o menino e se refugiaram no Egito. Essas tradições não existem apenas para o sentimentalismo de devoções individualistas, mas para pedir que nos posicionemos pela justiça e pela solidariedade com toda pessoa migrante e refugiada.

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 



segunda-feira, 20 de junho de 2016

ORLANDO OU A VIDA EM CONTÍNUO SOBRESSALTO

por Maria Clara Lucchetti Bingemer


De novo, o horror, gratuito e inexplicável. Em uma boate gay de Orlando, o afegão Omar Mateen, de 29 anos, disparou sua poderosa metralhadora sobre os frequentadores.  Era sábado à noite, o local estava cheio de jovens.  Saldo de 50 mortos e 53 feridos.  O atirador, casado e pai de família, figura entre os mortos.  Quando a polícia entrou, tirou-lhe a vida.

Mais um massacre, mais uma declaração de fracasso da humanidade em sua dignidade. Novamente o relato da dor, as imagens do sofrimento estampadas na mídia.  As lágrimas, as mensagens antes da morte, as fotos.  Tudo horrível.

 Mas o que mais me impressionou desta feita foi ler que a mulher de Omar sabia de seus planos e havia mesmo ido com ele mapear a Disney, lugar onde, pelo visto, ele pretendia realizar outro massacre.  Algo o fez optar pela boate gay, mas um dos alvos planejados era a Disney. 

Isso me encheu de horror e me convenceu que a vida hoje é um contínuo e ininterrupto sobressalto, um nunca mais ter sossego nem tranquilidade apenas devido ao fato de ser humano e viver neste planeta.  Por maior que seja minha implicância contra o parque temático da Disneylandia, que acho fútil, idiotizador, levando seus frequentadores apenas a consumir mais e mais ideologia, brinquedos inúteis e outros fetiches pós-modernos, meu horror persiste por se tratar de um lugar onde comparecem majoritariamente crianças.

Isso revela que Omar Mateen tinha entre seus alvos principais e deliberados crianças da idade de seu filho ou mesmo mais novas.  Mapeava o local para fazer seus planos macabros e acionar ali sua metralhadora, se não houvesse sido abatido pela polícia na boate gay.  Este lugar onde meus netos já foram mais de uma vez, já que meus filhos não participam de minha antipatia pelo local, podia ter sido o palco onde o atirador pretendia espetacularizar suas frustrações e recalques vários de vida inteira.  E com as minhas amadas crianças lá dentro.

É claro que quando penso em meus netos a barbárie me dói mais no peito.  Me atinge mais, na medida do amor por eles.  Mas o fato é aterrador em si mesmo, ainda que meus netos não fossem personagens, ainda que a tragédia não fosse com os seres que amo.

Um ser humano armar-se com a mais requintada e poderosa das metralhadoras e planejar cuidadosamente o assassinato de pessoas indefesas é algo monstruoso.  O fato de que tudo isso possa ser dirigido a crianças é mais monstruoso ainda.  Crianças pequenas, incapazes de se defender, pois não têm ainda sequer entendimento. 

Os frequentadores da boate Pulse também foram tomados totalmente de surpresa.  Até porque o atirador frequentava a boate.  Apesar de casado, Omar Mateen era usuário de sites de relacionamento gay e frequentador da boate.

Sobre sua vida privada, não queremos nem devemos comentar, embora inevitavelmente detalhes de sua infância e adolescência tenham vindo à tona após o massacre que perpetrou.  E esses nos dizem ter sido Omar vítima de cruel e constante bullying na escola que frequentava. A hostilidade dos colegas, que chegava até a agressão física, se devia à sua aparência: gordinho e “de outra raça”, descendente de afegãos. Mais uma vítima da discriminação e do racismo que impera na sociedade onde vivia e que se vinga de sua frustração e sua dor provocando a dor alheia.

Preocupado em afirmar sua masculinidade, Omar Mateen trabalhava como segurança, andava armado, carregava em si todos os símbolos do macho americano.  Mas quando a pressão dentro de si ameaçava explodir frequentava sites de relacionamento gays e boates gays. 

Sua homofobia transbordava em identidade bem próxima daqueles a quem tanto odiava e tanto desejava exterminar e combater.  E na boate Pulse, no último sábado, explodiu pela última e definitiva vez, matando os que formavam parte do grupo que lhe ensinaram a odiar, mas ao qual temia pertencer.

Omar Mateen, o assassino de 49 pessoas cuja maneira de amar odiava, é um produto típico do processo para formar homens em um sistema machista.  E o adulto Omar, que não hesitou em descarregar sua arma sobre pessoas indefesas e pretendia fazer o mesmo com crianças na Disney, carregava em si o menino machucado pelas cruéis brincadeiras dos colegas sobre sua raça, sua cor, seu corpo.

A impressão é que não estamos minimamente seguros em lugar algum.  Queremos proteger os que amamos, mas não temos poder para isso. A qualquer momento pode cruzar nosso caminho um ser cruelmente ferido pela sociedade que construímos. Um ser como Omar Mateen.  E seremos as vítimas de nossa própria intolerância, nosso racismo, nosso machismo, nossa aversão às diferenças dos outros.  É bom parar enquanto é tempo...se é que ainda é tempo.

 Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ.
 A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  
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sexta-feira, 17 de junho de 2016

SINCERAMENTE, O BRASIL ATUAL TEM JEITO?

Por Leonardo Boff


        Quem olha a cena político-social-econômica atual se pergunta sinceramente:o Brasil tem jeito? Um bando de ladrões, travestidos de senadores-juízes tenta, contra todos os argumentos contrários, condenar uma mulher inocente, a Presidenta Dilma Rousseff, contra a qual não se acusa de nenhuma apropriação de bem público e de corrupção pessoal.

Com as recentes delações premiadas, ficou claro que o problema não é a Presidenta. É a Lava Jato que, para além das delações seletivas contra o PT, está alcançando a maioria dos líderes da oposição. 

Todos, de uma forma ou outra, se beneficiaram das propinas da Petrobrás para garantir a sua vitória eleitoral. “Precisamos estancar essa sangria” diz um dos notórios corruptos; “do contrário seremos todos comidos; há que se afastar a Dilma”.

Ninguém aliena nada de seus bens para financiar sua campanha. Nem precisa: existe a mina do caixa 2 abastecida pelas empresas corruptoras que criam corruptos a troco de vantagens posteriores em termos de grandes projetos, geralmente superfaturados, donde adquirem grande parte de suas fortunas.

Chegamos a um ponto ridículo, aos olhos do mundo: dois presidentes, um usurpador, fraco e sem nenhum carisma e outro legítimo mas afastado e feito prisioneiro em seu palácio; dois ministros do planejamento, um retirado e outro substituto: um governo monstruoso, antipopular e reacionário.

Estamos efetivamente num voo cego. Ninguém sabe para onde vai esta nação, a sétima economia do mundo, com jazidas de petróleo e gás das maiores do mundo e com uma riqueza ecológica sem comparação, base da futura economia. Assim como se delineia a correlação de forças, não vamos a lugar nenhum, Não é impossível um eventual conflito social, dada a política atual que corta direitos sociais especialmente, nos salários, na saúde e na educação.

O pobre, a maioria da população, se acostumou a sofrer e a encontrar saídas como pode. Mas chega a um ponto em que o sofrimento se torna insuportável. Ninguém aguenta, indiferente, ao ver um filho morrendo de fome ou de absoluta falta de assistência médica. E diz: assim não pode ser; temos que rebelar-nos.

Isso me faz lembrar um bispo franciscano do século XIII da Escócia que recusando os altos impostos cobrados pelo Papa, respondeu: non accepto, recuso et rebello” (“não aceito, me recuso e me rebelo”). E o Papa retrocedeu. Não poderá ocorrer algo semelhante entre nós?

Quando, nas palestras, fazendo um esforço imenso para deixar um laivo de esperança, me dizem: ”mas você é pessimista”! Respondo com Saramago: “não sou pessimista; a realidade é que é péssima”.

Efetivamente, a realidade está sendo péssima para todos, menos para aquelas elites endinheiradas, acostumadas à rapinagem, ganhando com a desgraça de todo um povo. Elas têm o seu templo de profanação na Avenida Paulista em São Paulo, onde se concentra grande parte do PIB brasileiro. Setores deles, especialmente da FIESP estão atrás do impeachment da Presidenta.

O grave é que estamos faltos de lideranças. Abstraindo o ex-presidente Lula, cujo carisma é inconteste, apontam para mim dois: Ciro Gomes e Roberto Requião, a meu ver, as únicas lideranças fortes, com coragem de dizer a verdade e pensar mais no Brasil que nos interesses partidários.

Essa crise tem um pano de fundo nunca resolvido em nossa história, desmascarado recentemente por Jessé Souza. (A tolice da inteligência brasileira, 2015). Somos herdeiros de séculos de colonialismo que nos deixou a marca  de “vira-latas” sempre dependendo dos outros de fora. Pior ainda é a herança secular do escravismo que fez com que os herdeiros da Casa Grande se sintam senhores da vida e da morte dos negros e pobres. Não basta lançá-los nas periferias; há que desprezá-los e humilhá-los. E a classe média que imita os de cima, tolamente se deixa manipular por eles e inocentemente se faz cúmplice da horrorosa desigualdade social, talvez o verdadeiro problema social brasileiro. Eticamente vista, essa desigualdade é a nossa maior corrupção, pois nos faz indiferentes ao sofrimento das maiorias e pouco fazemos para diminui-la.

Essas elites de super-endinheirados (71.440 pessoas lucram 600 mil dólares por mês nos diz o IPEA) conquistaram os meios de comunicação de massa, golpistas e reacionários, que funcionam como azeite para a sua maquinaria de dominação. Essas elites nunca quiseram a democracia, apenas aquela de baixíssima intensidade, que a podem comprar e manipular; preferem os golpes e as ditaduras; aí o capitalismo viceja à tripa forra.

Hoje já não é mais possível o recurso às baionetas e aos canhões. Excogitou-se outro expediente: o golpe vem por uma artificiosa articulação entre  políticos corruptos, o judiciário politizado e a repressão policial. Três tipos de golpe, portanto: o político, o jurídico e o policial.

Termino com as palavras pertinentes de Jessé Souza: “encontramo-nos num mundo comandado por um sindicato de ladrões na política, uma justiça de “justiceiros” que os protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o espelho do que nos tornamos”.

Filosofando, direi com Martin Heidegger:“só um Deus nos poderá salvar”? Marx talvez seja mais modesto e verdadeiro:”para cada problema há sempre uma solução”. Deverá surgir uma para nós a partir do caos político em que nos encontramos. O caos pode ser generativo do novo.

Leonardo Boff é articulista do Jornal do Brasil e escritor