Por
Frei Betto
A “ética” neoliberal se reduz às virtudes privadas dos indivíduos. Ignora a
visão de institucionalidade ética. Reforça, assim, a atitude paralisante do
moralismo, que a reduz à ilusória perfeição individual. Ora, em uma sociedade
estruturada, a ética é imprescindível para configurar o mundo histórico.
Portanto, exige uma teoria política normativa das instituições que regem a
sociedade.
Não basta falar em ética na política. A crítica às
instituições geradoras de injustiças e negadoras de direitos exige ética da política.
Abrir espaços para a criação de novos direitos. As instituições devem garantir
a justiça distributiva - a partilha dos bens a que todos têm direito -, e a
justiça participativa, a presença de todos (democracia) no poder que decide os
rumos da sociedade.
O grande desafio ético hoje é como criar instituições capazes de assegurar
direitos universais. Isso supõe uma ruptura com a atual visão pós-moderna,
neoliberal, de fragmentação do mundo e exacerbação egolátrica, individualista.
Ainda que o ser humano tenha defeito de fabricação, o que a teologia chama de
“pecado original”, e prazo de validade, há que se instaurar uma
institucionalidade política capaz de assegurar direitos e impedir ameaças à
liberdade e à natureza. Isso implica suscitar uma nova cultura inibidora dessas
ameaças, assim como ocorre hoje em relação à escravidão, embora ainda
praticada.
De onde tirar valores éticos universalmente aceitos? Como levar as pessoas a se
perguntarem por critérios e valores? Hans Küng sugere que uma base ética mínima
deve ser buscada nas grandes tradições religiosas. Seria o modo de passarmos de
éticas regionais a uma ética planetária. Mas como aplicá-la ao terreno
político? Mudar primeiro a sociedade ou as pessoas? O ovo ou a galinha?
Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como
precondição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a
sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos
que acentuem as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as
contradições frente às situações cotidianas (empobrecimento progressivo da
classe média, desemprego, disseminação das drogas, degradação do meio ambiente,
preconceitos e discriminações) com grandes estratégias políticas.
É concessão à lógica autoritária admitir que o Estado seja o único lugar onde
reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares,
as ONGs, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de
sentir e de agir, e modificam valores e representações ideológicas, inclusive
religiosas.
"Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo", proclamam os
zapatistas. Hoje, a luta não é apenas de uma classe contra a outra, mas de toda
a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação privada da riqueza
a única razão de viver. A luta é da humanização contra a desumanização, da
solidariedade contra a alienação, da vida contra a morte.
A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também
teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de construir um
socialismo sem stalinismo, dogmatismo, sacralização de líderes e de estruturas
políticas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de
base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir
em sua pauta as questões indígenas, étnicas, sexuais, de gênero e ecológicas.
Neste mundo desesperançado, apenas a imaginação e a criatividade são capazes de
livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, os excluídos do
sofrido conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do
socialismo e abandone toda interpretação escolástica da realidade. Sobretudo
toda atitude que, em nome do combate à velha ordem, faz a esquerda agir
mimeticamente ao incensar vaidades, apegar-se a funções de poder, ceder à
corrupção, reforçar a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em
morder uns aos outros.
O polo de referência de todos que pretendem alcançar “um outro mundo possível”,
em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres.
Frei
Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff e Mário Sergio Cortella,
de “A felicidade foi-se embora?” (Vozes), entre outros livros.
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