Por Eduardo Hoornaert
Introdução.
Desde sua eleição ao papado no dia 15
de março de 2013, o argentino Jorge Bergoglio tem desenhado uma trajetória
fortemente contrastante com seus dois predecessores João Paulo II e Bento XVI.
Ele tem feito gestos que ao mesmo tempo causam estranheza e até hostilidade por
parte da Cúria Romana e simpatia por parte de amplos setores da sociedade,
dentro e fora da Igreja Católica (um papa ‘pop’). Tanto para a sociedade como
para o governo central da Igreja Católica (o Vaticano), o Papa Francisco é uma
surpresa e, até certo ponto, um enigma. Depois de mais de três anos no governo
geral da Igreja Católica (escrevo em junho de 2016), ele permanece para muitos
(as) uma figura de difícil compreensão. É da direita ou da esquerda? Faz ‘opção
pelo pobre’? (não costuma usar o termo ‘pobre’, prefere falar em ‘povo’.) É
contra a Teologia da Libertação? (costuma falar em ‘Teologia do Povo’, mas ao
mesmo tempo recebe calorosamente o Padre Gustavo Gutiérrez, principal mentor da
Teologia da Libertação). Não aprofunda questões como a do sacerdócio feminino,
da readmissão de padres casados ou da licença para que divorciados recasados
recebam a ‘Santa Comunhão’. Diante do homossexualismo a mesma aparente
contradição: ele diz que não quer impedir um homossexual de se aproximar de Deus
(decodificando: receber os sacramentos) e, mesmo assim, se declara contrário ao
casamento gay.
Diante desse quadro confuso, penso
que vale a pena recuar no tempo e situar o atual papa diante de um painel
histórico mais amplo. Neste trabalho recuo até o século IV, pois naquele remoto
século acontecem mudanças estruturais no cristianismo que até hoje marcam a
Igreja Católica. Então pensei em formular uma pergunta provocativa: o Papa
Francisco se faz de ‘bobo na Corte’? Essa pergunta pressupõe outra: o governo
central da Igreja é uma Corte? Vou por pontos: (1) O que se entende aqui por
‘Corte’ (sempre com maiúscula)? (2) Qual o papel do ‘bobo na Corte’? (3) O
figurino do ‘bobo’ ajuda a entender o Papa Francisco?
1. A Corte.
De certo modo, o ano 325 pode ser
considerada a data de fundação da Igreja Católica tal qual existe hoje. Nesse
ano, bispos cristãos, que representam um movimento ainda muito recentemente
perseguido pela administração romana, cedem à poderosa a sedução da Corte
Romana. São acolhidos com grandes honrarias na própria Residência de Verão do
Imperador Constantino em Niceia, perto da nova metrópole Constantinopla, que
está em plena construção, para aí realizar sua primeira Assembleia Geral, que
passou para a história sob o nome ‘Primeiro Concílio Ecumênico’. Esses homens
rudes, provenientes de regiões rurais e culturas largamente analfabetas,
estranham o ambiente luxuoso, os ritos e as cerimônias refinadas. Ao abrir essa
sua residência aos bispos cristãos, o Imperador Constantino sabe o que faz. Ele
percebeu, já faz algum tempo, que a política de seu predecessor Diocleciano
chegou a um impasse, pois observa com apreensão o surgimento, em diversos
setores da administração romana, de formas ditatoriais e totalitários. Ele teme
uma ruptura com o tradicional ideal romano de cidadania livre (‘politeia’) e da
ideia republicana (‘res publica’) propriamente dita, assim como a derrocada da
legitimação imperial romana por parte de povos militarmente submissos. Enfim,
Constantino procura forças vivas capazes de reanimar a sociedade e corrigir um
sistema corroído por corrupção e falta de ética. Sua mãe Helena lhe aponta os
valores morais e éticos do cristianismo, sua força e seu dinamismo, em
contraste flagrante com a desmoralização e a falta de ética nos diversos
setores da administração do Império. Constantino ouve sua mãe e resolve dar uma
guinada radical na política diante do cristianismo: acolhimento em vez de
perseguição, valorização em vez de desprezo, cooptação em vez de rejeição. Para
tanto, ele prepara um acolhimento excepcional aos bispos cristãos. Temos um
relato que descreve esse acolhimento em cores vivas, escrito pelo bispo
historiador Eusébio de Cesareia: ‘Destacamentos da guarda imperial e de
outras tropas cercaram a entrada do palácio com espadas desembainhadas. Os
Homens de Deus puderam passar sem medo em meio a soldados, até o coração dos
aposentos imperiais, onde alguns se sentavam à mesa junto com o Imperador e
outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem olhava tinha a
impressão de que se tratava de uma imagem do Reino de Cristo, de um sonho, em
vez da realidade’ (Vita Constantini, 3, 15. Cit. Crossan, J.D., O
Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo, Imago, Rio de
Janeiro, 1994, 462).
Eis um texto precioso da história da
Igreja, pois flagra o momento exato em que tudo muda. Há diversos termos que
circunscrevem esse momento histórico: constantinismo, cesaropapismo,
cristandade, triunfo da fé, era cristã, era de paz. Um termo que me parece
particularmente apropriado é inspirado num ensaio escrito em 1933 pelo
sociólogo Norbert Elias sob o título: ‘A Sociedade de Corte’ (Zahar, Rio de Janeiro,
2001; o texto original é de 1933). Nesse
livro, Elias não focaliza Niceia em tempos de Constantino nem a Roma papal da
Idade Média, mas Versailles (subúrbio de Paris) em tempos do Rei Luís XIV, às
vésperas da Revolução Francesa. A originalidade de Elias consiste em
transformar a metáfora ‘Corte’ em paradigma histórico e síndrome psicológica, o
que se evidencia nos demais livros de sua autoria: ‘O Processo Civilizador’
(Zahar, Rio de Janeiro, 1990-1993); ‘A Sociedade dos Indivíduos’ (Zahar, 1994),
‘Os Estabelecidos e os Outsiders’ (Zahar, 2000). Ele descreve o paradigma
‘Corte’ por meio de análises precisas: luta pelo prestígio, maledicência,
ritualismo, cerimonialismo, protocolo, aparência de bom comportamento,
adulação, retórica (arte de falar), divisão do mundo entre os ‘de dentro’ (os
estabelecidos) e os ‘de fora’ (os outsiders). Pode-se dizer que, em Niceia, a Igreja
Católica vira uma ‘sociedade de corte’. A coisa mais importante de Niceia não
está no famoso Credo, mas na síndrome psicológica causado na mente dos bispos
pela brusca mudança da política imperial a seu respeito. Depois da cruel
perseguição de Diocleciano (a mais generalizada de todas as perseguições) vem o
aconchego de Constantino. A Igreja entra num período de tranquilidade e de
autoestima. Os bispos mudam: de simples e até rudes, eles aprendem a ter modos
suaves, polidos, ‘civilizados’, educados e refinados. Aprendem a caprichar na
maneira de falar e de se comportar, manejam a arte retórica, controlam falas e
gestos, usam roupas que os distinguem do comum dos mortais. Eles aprendem a
cortesia.
2. As Cortes católicas.
Em pouco tempo se espalham Cortes
católicas (pelo termo ‘católico’ entendo aqui ‘universal’) por campos e
cidades. A primeira Corte episcopal registrada pela história é a de Paulo
de Samósata (260-272), já na segunda parte do século III, que forma em seu
redor uma miniatura da grande Corte Romana Imperial, com nomenclaturas da
administração romana e liturgias pomposas. Mas é após Niceia 325 que tudo muda
em pouco tempo: aparecem Palácios episcopais (do latim ‘palatium’, residência
do Imperador Augusto no Monte Palatino), Catedrais (do latim ‘cathedra’,
cadeira alta, forrada de almofadas, usada no transporte de senadores),
Basílicas (do latim ‘basilica’, lugar de audiência do Imperador ou outro alto
funcionário romano, que funcionava igualmente como Corte de Justiça e Bolsa
financeira). As igrejas deixam de ser residências familiares (igreja doméstica)
ou pequenos centros comunitários (igreja comunitária) e se tornam edifícios
específicos para fins litúrgicos. O primeiro edifício-igreja atestado pela
arqueologia é o de Edessa, na Síria Oriental (à beira do Rio Eufrates), do
século III. Surgem as dioceses (do latim ‘dioecesis’, distrito, território
conquistado pelas legiões romanas e administrados pelo Império). Enfim, a
administração eclesiástica se molda segundo esquemas emprestados da administração
imperial romana. Deve-se acrescentar que os eclesiásticos gozam de isenção de
impostos e dispõem de meios de transporte e correio rápidos e gratuitos através
das ‘vias romanas’.
A principal novidade do século IV
consiste na aprendizagem das regras da corte pelo segmento eclesiástico.
Comento essa novidade brevemente em sete pontos: novas palavras, nova
linguagem, novas vestes, nova administração, nova política, nova disciplina e
nova liturgia. Há outros pontos, sem dúvida. Mas não se pode dizer tudo.
- Novas palavras. O vocabulário
cristão ganha uma nova palavra: religião. O termo latim ‘religio’ significa
tradicionalmente a adesão fiel do cidadão romano ao Imperador, venerado como
‘divi filius’ (filho de Deus). Uma adesão periodicamente expressa por meio de
ritos apropriados (sacrifícios, etc.). A ‘religião’ é algo peculiar ao Império
Romano, pois o termo não encontra equivalência na cultura helenística da época.
A Bíblia não fala em ‘religião’. Trata-se de uma usurpação do nome de Deus. O
Imperador penetra no mundo sagrado e desse modo adquire uma autoridade
inconteste. Ele se apropria do nome de Deus, o que resulta na divisão do espaço
da vida em dois campos: o sagrado e o profano. Na labuta de cada dia, as
pessoas vivem no espaço profano, ou seja, no espaço ‘anterior ao Templo’, pois
o termo latino ‘pro fanum’ significa ‘anterior ao Templo’. Depois de trabalhar,
os camponeses vão ao Templo. Ali entram em terreno sagrado. Por essa alternação
entre trabalho e ‘religião’, a administração romana transforma o sagrado em
instrumento político. Muitos líderes cristãos não percebem o jogo e caem na
armadilha. Acabam aceitando a distinção entre profano e sagrado e construindo
teologia em cima dela. O que facilita sua aceitação do esquema é que essa distinção
aumenta a autoridade dos líderes das comunidades junto ao povo. É uma das
razões da aceitação do esquema religioso por parte dos bispos.
- Nova linguagem. Adota-se uma nova
linguagem, baseada na divisão entre o profano e o sagrado. Os líderes das comunidades
se tornam ‘ministros sagrados’. Transforma-se o apóstolo Pedro em ‘sacerdote’ e
‘pontífice’ (do latim ‘pontifex’, um título imperial que significa que o
Imperador faz a ponte entre céu e terra). Uma evolução flagrantemente contrária
à antiga tradição cristã. Ainda no século III, o escritor cristão Tertuliano
considera o termo ‘pontífice’ um insulto (em seu tratado ‘De pudicitia’) e
chama ironicamente o bispo de Roma ironicamente de ‘pontifex romanus’.
Revoltado, escreve: ‘tenham vergonha, vocês se comportam como pagãos!’. Mas no
século IV se passa por cima da revolta de Tertuliano. A sensibilidade
eclesiástica muda completamente. Pedro ‘pontífice’, revestido de vestes
sacerdotais, faz seu ‘introito’ (do latim ‘introitus’, que significa a entrada
solene do Imperador ou Alto Funcionário na Basílica). Em seu redor, tudo é
superlativo: ‘santíssimo, reverendíssimo, excelentíssimo, todo-poderoso,
onipotente’. Ele se dirige à ‘cathedra Petri’, o trono de onde distribui
bênçãos com benevolência e condescendência. Os bispos se tornam ‘sucessores dos
apóstolos’, conforme construção literária do bispo historiador Eusébio de
Cesareia que, nos capítulos 4 a 7 de sua História Eclesiástica, elabora longas
listas ‘dinásticas’ episcopais, relativas às principais cidades do Império. A
intenção é criar a imagem de uma ininterrupta ‘sucessão apostólica’, desde o
apóstolo Pedro, que atravessa os séculos.
- Novas vestes. Após Niceia 325, a
veste talar faz sua entrada no cristianismo. Até Jesus ganha uma roupa que o
cobre até os pés. Um afresco na Catacumba de São Calisto, em Roma, do século
III, ainda apresenta Jesus vestido da túnica do pastor, que vai até os joelhos
e deixa pernas e braços desnudos. No ombro uma mochila a tiracolo, na mão
direita as perninhas de uma ovelha enrolada nos ombros e na outra mão uma
chaleira, caldeira ou panela, para o preparo dos alimentos. Esse Jesus
desaparece a partir do século IV. Os bispos herdam dos sacerdotes de Mitra as
suas mitras.
(4) Nova administração.
Impressionados com as facilidades organizatórias da administração romana, os
bispos embarcam no projeto da unificação do Império por meio da ‘religião’. Não
a religião do Imperador, mas a religião de Jesus Cristo onipotente (do grego
‘autokratôr’, dominador supremo). Eles combatem as heresias e qualquer
ameaça à unidade do Império. A Igreja adota o modelo diocesano, herdado da
administração romana, e passa a dividir o universo cristão em ‘territórios’
(não mais ‘comunidades’). A diocese é uma opção administrativa fundamental, ela
possibilita a implementação do grande projeto católico no século V. Outro
procedimento administrativo consiste na divisão entre clero e laicato
(‘estabelecidos’ e ‘outsiders’). O leigo é o outsider do sistema católico, como
apresentei acima a respeito da obra de Norbert Elias.
(5) Nova política. Doravante, os
clérigos cristãos entram em competição com os sacerdotes da oficialidade
romana, enquanto, ao mesmo tempo, se apresentam sempre mais como sacerdotes e
não mais como mestres, como na tradição anterior. Como eles não se sentem
devidamente respeitados na sociedade, passam a se unir numa corporação, o clero
(do grego ‘klèros’, parte espiritual, herança espiritual). O princípio
corporativo sempre mais orienta a política da Igreja como um todo.
(6) Nova disciplina. Clemente de
Alexandria, um escritor cristão do início do século III, já escreveu que o
cristão não grita, não se altera, não ri. Um século mais tarde, o metropolita
João Crisóstomo chega a afirmar que Cristo nunca riu (Migne, Patrologia grega, 57,
69). Nos escritos dos Padres da Igreja em
geral, prazer e expansão de sentimentos espontâneos são abordados de forma
negativa. A regra consiste em educar os jovens antes para o sofrimento que para
o prazer, antes com afazeres intelectuais e espirituais que com carnais. Em seu
romance ‘O Nome da Rosa’, Umberto Eco conta que o velho bibliotecário do
mosteiro medieval, onde se desenrola a trama, bem sabe que ‘o riso é incentivo
à dúvida’ (ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1983, 159) e não permite que os
jovens monges discutam sobre o riso de Cristo. Os monges não podem conhecer o
Cristo brincalhão, que contradiz a sisudez do abade, do bispo e do papa. Inútil
dizer que tudo isso pode desembocar em regimes políticos de feição tensa e
punho fechado, braço levantado e bandeira erguida. Dentro desse contexto
germina a experiência do Seminário (do latim ‘seminarium’, sementeira), um dos
maiores sucessos da história da Igreja. Esse Seminário visa o autocontrole, que
se manifesta principalmente no celibato (do latim ‘caelebs’, solteiro). Os
trabalhos do historiador Peter Brown mostram que o controle do corpo, que
desemboca na exaltação do celibato, não deve ser entendido no sentido de
rejeição da sexualidade, mas do controle do homem superior, o homem de ‘classe
A’. (Brown, P., Corpo
e Sociedade: o Homem, a Mulher e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo,
Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1990).
O cidadão de classe superior tem de mostrar superioridade diante dos escravos e
dos empregados por meio do autocontrole.
(7) Nova liturgia. Ao adentrar na
ideologia ‘cortesã’, a liturgia cristã se ‘teatraliza’. Deixa de ser
comunitária e espontânea, passa a imitar o cerimonial romano. Com o tempo, as
igrejas se parecem antes com salas de teatro que com casas comunitárias. A
Basílica Hagia Sofia (Santa Sabedoria) de Constantinopla (hoje Istambul), que é
o primeiro grande edifício da história do cristianismo (ainda pode ser visitada
hoje), já é uma sala de teatro, com clara divisão espacial entre clero e povo.
O aspecto mais negativo da teatralização da liturgia consiste no fato que ela
deixa o indivíduo isolado. Não cria mais laços, como na anterior liturgia
doméstica ou comunitária.
3. O bobo na Corte.
A Corte bem organizada não existe sem
‘bobo’, como demonstra a história. Esse bobo aparece nas culturas desde
tempos imemoráveis, sob as mais diversas nomeações: bobo, bufão, clown, tolo,
idiota, ignorante, brincalhão, trapaceiro, humorista, etc. Ao lado do rei, do
imperador, do faraó, do sultão ou do presidente, há de se situar o bobo. Mas,
‘ao contrário do que muita gente pensa’, afirma o historiador Nachman Falbel,
da USP, ‘o bobo da Corte não é nada bobo’. Para o observador superficial, o
riso do bobo pode ser entendido como entretenimento, relaxe, diversão. Enfim, o
bobo ganha seu pão divertindo o público e fazendo com que as cerimônias na
Corte sejam menos entediadas. Mas, num olhar mais penetrante, a figura séria
que representa a suprema autoridade postula, a seu lado, uma figura que
signifique o limite, a fragilidade e a provisoriedade do poder. Um bom governo
comporta um rei e de um bobo. Seriedade e senso de limite, sisudez e humor,
autoridade e senso de provisoriedade. O bom governo valoriza o ‘bobo da Corte’.
Nos tempos do Império Romano, quando o Imperador passava pelo Arco do Triunfo e
recebia as supremas honras, o cerimonial exigia que houvesse a seu lado alguém
que lhe sussurrasse continuamente no ouvido as seguintes palavras: ‘memento
mori’ (lembre-se: um dia você morre). Nas Cortes dos reis medievais, em meio às
mais solenes sessões, o bobo da corte agitava de vez em quando, rindo e
dançando, um espelho diante da face do rei, como para dizer: ‘veja que besteira
você está fazendo! ’. O bobo está nas narrativas de muitos dos grandes
escritores. Dom Quixote de Cervantes, que sempre sonha com os mais elevados
ideais, vai acompanhado de Sancho Pancha que só pensa em ‘sombra e água
fresca’. Quando Dostojevski conta a história de um homem realmente bom, ele o
chama de ‘idiota’. Mas quem melhor definiu a posição do bobo da Corte foi o
gênio do teatro inglês William Shakespeare (1564-1616), que mostra em suas
peças que o bobo representa uma lógica de desestabelecimento do poder
constituído. O dramaturgo inglês a tal ponto destaca a figura do bobo que lhe
atribui papéis de grande importância em sua obra. ‘Em peças como Rei Lear e A
Noite de Reis, o bobo é o mais esperto dos personagens. Ele fala aquilo que
ninguém mais ousa dizer’, afirma John Milton, professor de Literatura Inglesa
da USP, que acrescenta: ‘No teatro de Shakespeare, o público não ri dos bobos
da corte, ri junto com eles’. A bobagem como desmantelo da autoridade
‘cortesã’, a ironia corrosiva. Só quem se faz de bobo é capaz de desconstruir a
síndrome da Corte.
Quando, no início dos anos 1960,
alguns cardeais foram aconselhar o papa João XXIII a não convocar um Concílio,
alegando que tudo estava OK na Igreja, ele se levantou da cadeira e abriu uma
janela da sala. Uma lufada de ar fresco penetrou nos sagrados recintos do
Vaticano (que cheiram a mofo). Em plena sessão do Concílio Vaticano II, Dom
Helder teve sonhos bobos: de repente, ele viu o Imperador Constantino, de
cavalo, irromper na nave central da imensa basílica de São Pedro. Num outro sonho,
ele enxergou o papa jogando sua tiara no rio Tibre, dançando e cantando pelas
ruas de Roma. Essas ‘bobagens’ têm seus limites, notadamente quando o rei não
tem espírito de humor, como escreveu Millôr Fernandes: ‘para que ser o bobo da
Corte se o rei não tem espírito de humor? ’. Depois de visitar Adolfo Hitler em
1938, o escritor americano Henry Miller anotou em seu Diário: ´Aqui as coisas
andam mal. O homem não sabe rir´.
4. Três discípulos de Romano Guardini.
Os
três últimos papas podem ser considerados, de uma ou outra forma, discípulos do sacerdote ítalo-alemão Romano Guardini
(1885-1968), pois se encontram traços do mestre liturgista no percurso de
formação de cada um deles, seja pela escolha de suas teses universitárias, seja
por citações repetidas. Nos anos 1980, por exemplo, o futuro Papa Francisco
passa uma temporada em Munique e ali trabalha o pensamento de Guardini (ao que
sei, esse trabalho nunca foi publicado). Sua leitura do mestre difere fundamentalmente
daquela praticada por Bento XVI, que lê os ensinos de seu mestre na perspectiva
de uma luta incessante contra a ‘tirania do relativismo’ e de uma defesa
intransigente da ‘verdade cristã’. Pelo contrário, Francisco descobre em
Guardini lições de liberdade e abertura ao mundo. Ele aprende principalmente o
‘princípio da observação’: é preciso observar as coisas antes de se pronunciar.
Os famosos livros de Guardini sobre a liturgia são baseados numa arguta
observação de práticas populares e é isso que faz sua originalidade. Quando as
pessoas rezam, assistem à missa ou fazem romaria, estão vivendo uma
‘experiência’: andam, falam, rezam, ajoelham-se, fecham os olhos, juntam as
mãos, batem palmas, cantam. Chegam por vezes a gritar de forma exaltada, dançar,
pular ou entrar em transe. O gesto religioso - no canto ou na fala, no choro ou
no riso, na reza ou no grito, no silêncio ou na exaltação - expressa uma
experiência do ser humano. Uns colocam o retrato de alguém na cômoda e o
beijam; outros sobem de joelhos as escadarias de uma igreja. Há quem acende uma
vela ou desfila as contas de um rosário pelos dedos, enquanto outros
gesticulam, choram, gritam e se exaltam. Por mais estranhos que possam parecer
esses gestos, eles expressam experiências humanas. Daí Guardini chega a uma
conclusão importante: a religião expressa uma experiência existencial. Quando o
observador verifica que, na liturgia, se pronunciam termos como ‘céu, inferno,
anjo, demônio, altar, nascimento, morte, palavra, oráculo, profecia, deus, anjo,
vida eterna’, esse observador tem de intuir como as pessoas na sua frente
interpretam essas metáforas e principalmente o que fazem com elas na vida
concreta. Lembro-me de, certa vez, ter perguntado a uma mulher porque ela tinha
o quadro da Fuga da Família Sagrada ao Egito na parede de sua casa. Então, ela
me contou que perdera ao marido e teve de ‘fugir’ ao Maranhão com uma criança
recém-nascida. Indo à feira, ela viu o quadro da ‘Fuga ao Egito’ e sentiu
imediatamente: ‘sou eu’. Adquiriu o quadro e o preserva em sua casa. O quadro
na parede revela a vida daquela mulher: ‘tenho de continuar lutando’. As
imagens religiosas são metáforas que servem de âncoras no mar turbulento da
vida. Os símbolos religiosos só têm sentido quando mergulhados na vida concreta
das pessoas. Estamos aqui diante de um linguajar universalmente humano, que
serve para as pessoas encontrar um sentido diante de questões da vida de uma
forma que a razão não consegue explicar. De forma misteriosa, Deus se revela e
nos ajuda a viver. Escreve o neurocientista Damásio que esse ‘pressentimento’
religioso é uma propriedade de nosso ‘cérebro sensível’ (the feeling brain).
(Veja Damasio, A., O Mistério da Consciência, Companhia das Letras, São Paulo,
2002; Em Busca de Espinosa, Companhia das Letras, São Paulo, 2004; O Erro de
Descartes, Companhia das Letras, São Paulo, 2005; E o cérebro criou o homem,
Companhia das Letras, São Paulo, 2011).
Em seus escritos, Guardini demonstrou
que não basta ‘descrever’ a religião, mas que é preciso interpretá-la como uma
‘invenção do homem comum’. Precisa estimular em nós mesmos a capacidade de
empatia com as práticas religiosas anônimas em nosso redor. A mesma empatia,
afinal, que fez com que Freud dedicasse tanto tempo a escutar pessoas deitadas
no famoso ‘sofá’ e daí tirou conclusões que até hoje ajudam inúmeras pessoas na
vida. A mesma empatia que fez com que o filósofo Wittgenstein abandonasse o
posto de professor catedrático em Cambridge e procurou, por meio de encontros
extracurriculares com estudantes, estimulá-los a prestar atenção ao que
acontece no universo de pessoas anônimas e comuns. Subjaz a tudo isso uma
empatia pelo ser humano comum, marca registrada de Guardini. Penso que foi ele
que ensinou a Bergoglio a debruçar-se com ternura e atenção sobre as experiências
religiosas de pessoas comuns, aquelas que encontramos em procissões e novenas,
missas e cultos, rezas e desobrigas. Há de se olhar com ternura e simpatia,
pois à primeira vista essas práticas não apresentam nenhuma novidade nem contêm
nenhuma estratégia. O observador terá de seguir as orientações do mestre:
escutar, observar, reparar, não se apressar nas conclusões.
Com esse modo de proceder, Guardini
ocupava uma posição isolada dentro do cenário católico: liberal demais para os
tomistas (que transformavam a teologia do mestre medieval numa arma contra os
modernos) e católico demais para os secularistas. O mesmo acontece com o Papa
Francisco: católico demais para uns, liberal demais para outros. Como seu
mestre, ele pula na corda bamba entre liberdade e fidelidade à tradição, como
demonstram algumas de suas frases espontâneas: ‘Façam barulho’; ‘Fora o
clericalismo’; ‘Aos jovens digo: não tenham medo de ir contra a corrente’; ‘Sou
contra bispos de luxo’ (acerca de um arcebispo alemão que gastou 31 milhões de
euros para remodelar a Sede de seu arcebispado); ‘Não existe um Deus católico,
existe Deus’; ‘Podem quebrar os pratos, mas depois se perdoem’ (num encontro
sobre casais em crise); ‘A Cúria (leia: o governo central da Igreja) é
vaticanocêntrica’ (ou seja, o governo central da igreja mal enxerga o que se
passa no mundo); ‘Se receberem uma reprimenda por parte da Cúria, podem rasgar’
(recomendação dada a religiosas representantes de movimentos de irmãs
norte-americanas que tentam renovar a vida religiosa feminina e são criticadas
pela Cúria Romana). Sua resposta à jornalista, no avião de volta da Jornada da
Juventude do Rio de Janeiro, em 2014, é surpreendente: ’quem sou eu para
impedir que um gay se aproxime de Deus? ’. A mesma resposta ‘bamba’ em relação
a recasados desejosos de participar da Eucaristia e em relação à readmissão de
padres casados. Escrevi essa exposição um tanto longa sobre o valor da
religiosidade popular nos escritos de Guardini na intenção de mostrar que
Bergoglio se mostra um bom discípulo do mestre ítalo-alemão na abertura a
valores vividos fora das regras morais codificadas e a modos de pensamento nem
tão ortodoxos, mas sem dirimir a questão.
5. Como o Papa Francisco escapa do
dilema entre ‘dizer o que pensa’ e ‘dizer o que convém’?
Penso que o Papa Francisco está
frequentemente diante do que se lhe apresenta como um dilema: se ele abre o
jogo e enfrenta de vez a Cúria Romana, ele sabe que seus dias são contados,
como reza o ditado espanhol: ‘el dia que diga lo que pienso me borran del
mapa’. Mas, de outro lado, se ele se conformar a ‘dizer o que convém’, ele se
torna cúmplice de abusos cometidos no seio da administração central da Igreja.
Vejo que ele não faz nem um nem outro e prefere se fazer de bobo. Estamos aqui
diante de uma postura nada ortodoxa, e talvez seja útil recorrer ao pensamento
do filósofo francês Gruzinski, expressa em seu livro ‘La pensée métisse’ (Ed.
Fayard, Paris, 1999), traduzido e editado no Brasil pela Companhia das Letras
(São Paulo) em 2001: ‘O pensamento mestiço’. Esse livro, cuja edição brasileira
infelizmente está esgotada, concentra nossa atenção num tipo de pensamento que
tem muito a ver com o que se verifica no Papa Francisco.
O que significa ‘pensamento mestiço’?
Imaginemos um jogo de futebol. Não é o jogador que o tempo todo chuta direto ao
gol que efetivamente emplaca. O bom jogador só chuta ao gol depois de ter
vencido os obstáculos existentes entre a bola e o gol. A ‘mestiçagem’, aqui,
consiste na sabença de obstáculos a serem evitados ou contornados. O bom
jogador só entra em ação depois de tomar conhecimento dos obstáculos existentes
entre a bola e o gol. Ele sempre procura uma brecha na defesa do time adverso.
Só chuta direto para o gol depois de praticar tergiversações, aparentes recuos,
passes, aparentemente incôngruas, ou seja, sem sentido. É isso, exatamente, que
faz o Papa Francisco. Enquanto muitos partem logo em cima dos problemas (chutam
direto ao gol), o Papa sabe que a linha reta nunca é o caminho mais curto entre
dois pontos. O ziguezague entre obstáculos, o drible diante das dificuldades,
eis o caminho mais curto. Só assim se cria um espaço ‘viável’ dentro de um
sistema ‘inviável’. Como repetia Mestre Comblin, sempre há um jeito, uma
brecha, uma fissura, um vazamento no sistema, por onde brota uma possibilidade
de vida. Assim se compreende, por exemplo, que ele não se posiciona nem a favor
nem contra a Teologia da Libertação, ‘muito pelo contrário’. Seu pensamento não
é retilíneo, ele
não chuta direto ao gol, não entra logo no ringue contra seus opositores. Pois
sabe que a Corte do Vaticano só pode ser reformado por uma dinâmica
eventualmente posta em ação por bobos inteligentes. Estruturas mentais, que
vigoram no cérebro pela repetição de imagens ao longo de muitos séculos, não se
combatem por meio de oposição aberta nem muito menos por algum tipo de
cooptação populista. Há de se acenar para a multidão silenciosa e passiva,
lançar sinais e sugestões, se fazer entender com as forças latentes de mudança
numa estrutura tão hierarquizada como é a Igreja Católica, esperar
pacientemente alguma mudança, algum sinal de mudança. O Papa diz o tempo todo:
reajam, façam alguma coisa, manifestem-se, reclamem, não se acomodem. Eis uma
coisa que pede muita perseverança, criatividade e paciência
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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