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quarta-feira, 8 de junho de 2016

E SE O PAPA SE FAZ DE BOBO?


Por Eduardo Hoornaert


Introdução.

Desde sua eleição ao papado no dia 15 de março de 2013, o argentino Jorge Bergoglio tem desenhado uma trajetória fortemente contrastante com seus dois predecessores João Paulo II e Bento XVI. Ele tem feito gestos que ao mesmo tempo causam estranheza e até hostilidade por parte da Cúria Romana e simpatia por parte de amplos setores da sociedade, dentro e fora da Igreja Católica (um papa ‘pop’). Tanto para a sociedade como para o governo central da Igreja Católica (o Vaticano), o Papa Francisco é uma surpresa e, até certo ponto, um enigma. Depois de mais de três anos no governo geral da Igreja Católica (escrevo em junho de 2016), ele permanece para muitos (as) uma figura de difícil compreensão. É da direita ou da esquerda? Faz ‘opção pelo pobre’? (não costuma usar o termo ‘pobre’, prefere falar em ‘povo’.) É contra a Teologia da Libertação? (costuma falar em ‘Teologia do Povo’, mas ao mesmo tempo recebe calorosamente o Padre Gustavo Gutiérrez, principal mentor da Teologia da Libertação). Não aprofunda questões como a do sacerdócio feminino, da readmissão de padres casados ou da licença para que divorciados recasados recebam a ‘Santa Comunhão’. Diante do homossexualismo a mesma aparente contradição: ele diz que não quer impedir um homossexual de se aproximar de Deus (decodificando: receber os sacramentos) e, mesmo assim, se declara contrário ao casamento gay.
Diante desse quadro confuso, penso que vale a pena recuar no tempo e situar o atual papa diante de um painel histórico mais amplo. Neste trabalho recuo até o século IV, pois naquele remoto século acontecem mudanças estruturais no cristianismo que até hoje marcam a Igreja Católica. Então pensei em formular uma pergunta provocativa: o Papa Francisco se faz de ‘bobo na Corte’?  Essa pergunta pressupõe outra: o governo central da Igreja é uma Corte? Vou por pontos: (1) O que se entende aqui por ‘Corte’ (sempre com maiúscula)? (2) Qual o papel do ‘bobo na Corte’? (3) O figurino do ‘bobo’ ajuda a entender o Papa Francisco?

1. A Corte.

De certo modo, o ano 325 pode ser considerada a data de fundação da Igreja Católica tal qual existe hoje. Nesse ano, bispos cristãos, que representam um movimento ainda muito recentemente perseguido pela administração romana, cedem à poderosa a sedução da Corte Romana. São acolhidos com grandes honrarias na própria Residência de Verão do Imperador Constantino em Niceia, perto da nova metrópole Constantinopla, que está em plena construção, para aí realizar sua primeira Assembleia Geral, que passou para a história sob o nome ‘Primeiro Concílio Ecumênico’. Esses homens rudes, provenientes de regiões rurais e culturas largamente analfabetas, estranham o ambiente luxuoso, os ritos e as cerimônias refinadas. Ao abrir essa sua residência aos bispos cristãos, o Imperador Constantino sabe o que faz. Ele percebeu, já faz algum tempo, que a política de seu predecessor Diocleciano chegou a um impasse, pois observa com apreensão o surgimento, em diversos setores da administração romana, de formas ditatoriais e totalitários. Ele teme uma ruptura com o tradicional ideal romano de cidadania livre (‘politeia’) e da ideia republicana (‘res publica’) propriamente dita, assim como a derrocada da legitimação imperial romana por parte de povos militarmente submissos. Enfim, Constantino procura forças vivas capazes de reanimar a sociedade e corrigir um sistema corroído por corrupção e falta de ética. Sua mãe Helena lhe aponta os valores morais e éticos do cristianismo, sua força e seu dinamismo, em contraste flagrante com a desmoralização e a falta de ética nos diversos setores da administração do Império. Constantino ouve sua mãe e resolve dar uma guinada radical na política diante do cristianismo: acolhimento em vez de perseguição, valorização em vez de desprezo, cooptação em vez de rejeição. Para tanto, ele prepara um acolhimento excepcional aos bispos cristãos. Temos um relato que descreve esse acolhimento em cores vivas, escrito pelo bispo historiador Eusébio de Cesareia: ‘Destacamentos da guarda imperial e de outras tropas cercaram a entrada do palácio com espadas desembainhadas. Os Homens de Deus puderam passar sem medo em meio a soldados, até o coração dos aposentos imperiais, onde alguns se sentavam à mesa junto com o Imperador e outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem olhava tinha a impressão de que se tratava de uma imagem do Reino de Cristo, de um sonho, em vez da realidade (Vita Constantini, 3, 15. Cit. Crossan, J.D., O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo, Imago, Rio de Janeiro, 1994, 462).
Eis um texto precioso da história da Igreja, pois flagra o momento exato em que tudo muda. Há diversos termos que circunscrevem esse momento histórico: constantinismo, cesaropapismo, cristandade, triunfo da fé, era cristã, era de paz. Um termo que me parece particularmente apropriado é inspirado num ensaio escrito em 1933 pelo sociólogo Norbert Elias sob o título: ‘A Sociedade de Corte’ (Zahar, Rio de Janeiro, 2001; o texto original é de 1933). Nesse livro, Elias não focaliza Niceia em tempos de Constantino nem a Roma papal da Idade Média, mas Versailles (subúrbio de Paris) em tempos do Rei Luís XIV, às vésperas da Revolução Francesa. A originalidade de Elias consiste em transformar a metáfora ‘Corte’ em paradigma histórico e síndrome psicológica, o que se evidencia nos demais livros de sua autoria: ‘O Processo Civilizador’ (Zahar, Rio de Janeiro, 1990-1993); ‘A Sociedade dos Indivíduos’ (Zahar, 1994), ‘Os Estabelecidos e os Outsiders’ (Zahar, 2000). Ele descreve o paradigma ‘Corte’ por meio de análises precisas: luta pelo prestígio, maledicência, ritualismo, cerimonialismo, protocolo, aparência de bom comportamento, adulação, retórica (arte de falar), divisão do mundo entre os ‘de dentro’ (os estabelecidos) e os ‘de fora’ (os outsiders). Pode-se dizer que, em Niceia, a Igreja Católica vira uma ‘sociedade de corte’. A coisa mais importante de Niceia não está no famoso Credo, mas na síndrome psicológica causado na mente dos bispos pela brusca mudança da política imperial a seu respeito. Depois da cruel perseguição de Diocleciano (a mais generalizada de todas as perseguições) vem o aconchego de Constantino. A Igreja entra num período de tranquilidade e de autoestima. Os bispos mudam: de simples e até rudes, eles aprendem a ter modos suaves, polidos, ‘civilizados’, educados e refinados. Aprendem a caprichar na maneira de falar e de se comportar, manejam a arte retórica, controlam falas e gestos, usam roupas que os distinguem do comum dos mortais. Eles aprendem a cortesia.  

2. As Cortes católicas.

Em pouco tempo se espalham Cortes católicas (pelo termo ‘católico’ entendo aqui ‘universal’) por campos e cidades.  A primeira Corte episcopal registrada pela história é a de Paulo de Samósata (260-272), já na segunda parte do século III, que forma em seu redor uma miniatura da grande Corte Romana Imperial, com nomenclaturas da administração romana e liturgias pomposas. Mas é após Niceia 325 que tudo muda em pouco tempo: aparecem Palácios episcopais (do latim ‘palatium’, residência do Imperador Augusto no Monte Palatino), Catedrais (do latim ‘cathedra’, cadeira alta, forrada de almofadas, usada no transporte de senadores), Basílicas (do latim ‘basilica’, lugar de audiência do Imperador ou outro alto funcionário romano, que funcionava igualmente como Corte de Justiça e Bolsa financeira). As igrejas deixam de ser residências familiares (igreja doméstica) ou pequenos centros comunitários (igreja comunitária) e se tornam edifícios específicos para fins litúrgicos. O primeiro edifício-igreja atestado pela arqueologia é o de Edessa, na Síria Oriental (à beira do Rio Eufrates), do século III. Surgem as dioceses (do latim ‘dioecesis’, distrito, território conquistado pelas legiões romanas e administrados pelo Império). Enfim, a administração eclesiástica se molda segundo esquemas emprestados da administração imperial romana. Deve-se acrescentar que os eclesiásticos gozam de isenção de impostos e dispõem de meios de transporte e correio rápidos e gratuitos através das ‘vias romanas’.
A principal novidade do século IV consiste na aprendizagem das regras da corte pelo segmento eclesiástico. Comento essa novidade brevemente em sete pontos: novas palavras, nova linguagem, novas vestes, nova administração, nova política, nova disciplina e nova liturgia. Há outros pontos, sem dúvida. Mas não se pode dizer tudo.
- Novas palavras. O vocabulário cristão ganha uma nova palavra: religião. O termo latim ‘religio’ significa tradicionalmente a adesão fiel do cidadão romano ao Imperador, venerado como ‘divi filius’ (filho de Deus). Uma adesão periodicamente expressa por meio de ritos apropriados (sacrifícios, etc.). A ‘religião’ é algo peculiar ao Império Romano, pois o termo não encontra equivalência na cultura helenística da época. A Bíblia não fala em ‘religião’. Trata-se de uma usurpação do nome de Deus. O Imperador penetra no mundo sagrado e desse modo adquire uma autoridade inconteste. Ele se apropria do nome de Deus, o que resulta na divisão do espaço da vida em dois campos: o sagrado e o profano. Na labuta de cada dia, as pessoas vivem no espaço profano, ou seja, no espaço ‘anterior ao Templo’, pois o termo latino ‘pro fanum’ significa ‘anterior ao Templo’. Depois de trabalhar, os camponeses vão ao Templo. Ali entram em terreno sagrado. Por essa alternação entre trabalho e ‘religião’, a administração romana transforma o sagrado em instrumento político. Muitos líderes cristãos não percebem o jogo e caem na armadilha. Acabam aceitando a distinção entre profano e sagrado e construindo teologia em cima dela. O que facilita sua aceitação do esquema é que essa distinção aumenta a autoridade dos líderes das comunidades junto ao povo. É uma das razões da aceitação do esquema religioso por parte dos bispos.
- Nova linguagem. Adota-se uma nova linguagem, baseada na divisão entre o profano e o sagrado. Os líderes das comunidades se tornam ‘ministros sagrados’. Transforma-se o apóstolo Pedro em ‘sacerdote’ e ‘pontífice’ (do latim ‘pontifex’, um título imperial que significa que o Imperador faz a ponte entre céu e terra). Uma evolução flagrantemente contrária à antiga tradição cristã. Ainda no século III, o escritor cristão Tertuliano considera o termo ‘pontífice’ um insulto (em seu tratado ‘De pudicitia’) e chama ironicamente o bispo de Roma ironicamente de ‘pontifex romanus’. Revoltado, escreve: ‘tenham vergonha, vocês se comportam como pagãos!’. Mas no século IV se passa por cima da revolta de Tertuliano. A sensibilidade eclesiástica muda completamente. Pedro ‘pontífice’, revestido de vestes sacerdotais, faz seu ‘introito’ (do latim ‘introitus’, que significa a entrada solene do Imperador ou Alto Funcionário na Basílica). Em seu redor, tudo é superlativo: ‘santíssimo, reverendíssimo, excelentíssimo, todo-poderoso, onipotente’. Ele se dirige à ‘cathedra Petri’, o trono de onde distribui bênçãos com benevolência e condescendência. Os bispos se tornam ‘sucessores dos apóstolos’, conforme construção literária do bispo historiador Eusébio de Cesareia que, nos capítulos 4 a 7 de sua História Eclesiástica, elabora longas listas ‘dinásticas’ episcopais, relativas às principais cidades do Império. A intenção é criar a imagem de uma ininterrupta ‘sucessão apostólica’, desde o apóstolo Pedro, que atravessa os séculos.
- Novas vestes. Após Niceia 325, a veste talar faz sua entrada no cristianismo. Até Jesus ganha uma roupa que o cobre até os pés. Um afresco na Catacumba de São Calisto, em Roma, do século III, ainda apresenta Jesus vestido da túnica do pastor, que vai até os joelhos e deixa pernas e braços desnudos. No ombro uma mochila a tiracolo, na mão direita as perninhas de uma ovelha enrolada nos ombros e na outra mão uma chaleira, caldeira ou panela, para o preparo dos alimentos. Esse Jesus desaparece a partir do século IV. Os bispos herdam dos sacerdotes de Mitra as suas mitras.
(4) Nova administração. Impressionados com as facilidades organizatórias da administração romana, os bispos embarcam no projeto da unificação do Império por meio da ‘religião’. Não a religião do Imperador, mas a religião de Jesus Cristo onipotente (do grego ‘autokratôr’, dominador supremo).  Eles combatem as heresias e qualquer ameaça à unidade do Império. A Igreja adota o modelo diocesano, herdado da administração romana, e passa a dividir o universo cristão em ‘territórios’ (não mais ‘comunidades’). A diocese é uma opção administrativa fundamental, ela possibilita a implementação do grande projeto católico no século V. Outro procedimento administrativo consiste na divisão entre clero e laicato (‘estabelecidos’ e ‘outsiders’). O leigo é o outsider do sistema católico, como apresentei acima a respeito da obra de Norbert Elias.
(5) Nova política. Doravante, os clérigos cristãos entram em competição com os sacerdotes da oficialidade romana, enquanto, ao mesmo tempo, se apresentam sempre mais como sacerdotes e não mais como mestres, como na tradição anterior. Como eles não se sentem devidamente respeitados na sociedade, passam a se unir numa corporação, o clero (do grego ‘klèros’, parte espiritual, herança espiritual). O princípio corporativo sempre mais orienta a política da Igreja como um todo.
(6) Nova disciplina. Clemente de Alexandria, um escritor cristão do início do século III, já escreveu que o cristão não grita, não se altera, não ri. Um século mais tarde, o metropolita João Crisóstomo chega a afirmar que Cristo nunca riu (Migne, Patrologia grega, 57, 69). Nos escritos dos Padres da Igreja em geral, prazer e expansão de sentimentos espontâneos são abordados de forma negativa. A regra consiste em educar os jovens antes para o sofrimento que para o prazer, antes com afazeres intelectuais e espirituais que com carnais. Em seu romance ‘O Nome da Rosa’, Umberto Eco conta que o velho bibliotecário do mosteiro medieval, onde se desenrola a trama, bem sabe que ‘o riso é incentivo à dúvida’ (ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1983, 159) e não permite que os jovens monges discutam sobre o riso de Cristo. Os monges não podem conhecer o Cristo brincalhão, que contradiz a sisudez do abade, do bispo e do papa. Inútil dizer que tudo isso pode desembocar em regimes políticos de feição tensa e punho fechado, braço levantado e bandeira erguida. Dentro desse contexto germina a experiência do Seminário (do latim ‘seminarium’, sementeira), um dos maiores sucessos da história da Igreja. Esse Seminário visa o autocontrole, que se manifesta principalmente no celibato (do latim ‘caelebs’, solteiro). Os trabalhos do historiador Peter Brown mostram que o controle do corpo, que desemboca na exaltação do celibato, não deve ser entendido no sentido de rejeição da sexualidade, mas do controle do homem superior, o homem de ‘classe A’. (Brown, P., Corpo e Sociedade: o Homem, a Mulher e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1990). O cidadão de classe superior tem de mostrar superioridade diante dos escravos e dos empregados por meio do autocontrole.
(7) Nova liturgia. Ao adentrar na ideologia ‘cortesã’, a liturgia cristã se ‘teatraliza’. Deixa de ser comunitária e espontânea, passa a imitar o cerimonial romano. Com o tempo, as igrejas se parecem antes com salas de teatro que com casas comunitárias. A Basílica Hagia Sofia (Santa Sabedoria) de Constantinopla (hoje Istambul), que é o primeiro grande edifício da história do cristianismo (ainda pode ser visitada hoje), já é uma sala de teatro, com clara divisão espacial entre clero e povo. O aspecto mais negativo da teatralização da liturgia consiste no fato que ela deixa o indivíduo isolado. Não cria mais laços, como na anterior liturgia doméstica ou comunitária.

3. O bobo na Corte.

A Corte bem organizada não existe sem ‘bobo’, como demonstra a história.  Esse bobo aparece nas culturas desde tempos imemoráveis, sob as mais diversas nomeações: bobo, bufão, clown, tolo, idiota, ignorante, brincalhão, trapaceiro, humorista, etc. Ao lado do rei, do imperador, do faraó, do sultão ou do presidente, há de se situar o bobo. Mas, ‘ao contrário do que muita gente pensa’, afirma o historiador Nachman Falbel, da USP, ‘o bobo da Corte não é nada bobo’. Para o observador superficial, o riso do bobo pode ser entendido como entretenimento, relaxe, diversão. Enfim, o bobo ganha seu pão divertindo o público e fazendo com que as cerimônias na Corte sejam menos entediadas. Mas, num olhar mais penetrante, a figura séria que representa a suprema autoridade postula, a seu lado, uma figura que signifique o limite, a fragilidade e a provisoriedade do poder. Um bom governo comporta um rei e de um bobo. Seriedade e senso de limite, sisudez e humor, autoridade e senso de provisoriedade. O bom governo valoriza o ‘bobo da Corte’. Nos tempos do Império Romano, quando o Imperador passava pelo Arco do Triunfo e recebia as supremas honras, o cerimonial exigia que houvesse a seu lado alguém que lhe sussurrasse continuamente no ouvido as seguintes palavras: ‘memento mori’ (lembre-se: um dia você morre). Nas Cortes dos reis medievais, em meio às mais solenes sessões, o bobo da corte agitava de vez em quando, rindo e dançando, um espelho diante da face do rei, como para dizer: ‘veja que besteira você está fazendo! ’. O bobo está nas narrativas de muitos dos grandes escritores. Dom Quixote de Cervantes, que sempre sonha com os mais elevados ideais, vai acompanhado de Sancho Pancha que só pensa em ‘sombra e água fresca’. Quando Dostojevski conta a história de um homem realmente bom, ele o chama de ‘idiota’. Mas quem melhor definiu a posição do bobo da Corte foi o gênio do teatro inglês William Shakespeare (1564-1616), que mostra em suas peças que o bobo representa uma lógica de desestabelecimento do poder constituído. O dramaturgo inglês a tal ponto destaca a figura do bobo que lhe atribui papéis de grande importância em sua obra. ‘Em peças como Rei Lear e A Noite de Reis, o bobo é o mais esperto dos personagens. Ele fala aquilo que ninguém mais ousa dizer’, afirma John Milton, professor de Literatura Inglesa da USP, que acrescenta: ‘No teatro de Shakespeare, o público não ri dos bobos da corte, ri junto com eles’. A bobagem como desmantelo da autoridade ‘cortesã’, a ironia corrosiva. Só quem se faz de bobo é capaz de desconstruir a síndrome da Corte.
Quando, no início dos anos 1960, alguns cardeais foram aconselhar o papa João XXIII a não convocar um Concílio, alegando que tudo estava OK na Igreja, ele se levantou da cadeira e abriu uma janela da sala. Uma lufada de ar fresco penetrou nos sagrados recintos do Vaticano (que cheiram a mofo). Em plena sessão do Concílio Vaticano II, Dom Helder teve sonhos bobos: de repente, ele viu o Imperador Constantino, de cavalo, irromper na nave central da imensa basílica de São Pedro. Num outro sonho, ele enxergou o papa jogando sua tiara no rio Tibre, dançando e cantando pelas ruas de Roma. Essas ‘bobagens’ têm seus limites, notadamente quando o rei não tem espírito de humor, como escreveu Millôr Fernandes: ‘para que ser o bobo da Corte se o rei não tem espírito de humor? ’. Depois de visitar Adolfo Hitler em 1938, o escritor americano Henry Miller anotou em seu Diário: ´Aqui as coisas andam mal. O homem não sabe rir´.

4. Três discípulos de Romano Guardini.

Os três últimos papas podem ser considerados, de uma ou outra forma, discípulos do  sacerdote ítalo-alemão Romano Guardini (1885-1968), pois se encontram traços do mestre liturgista no percurso de formação de cada um deles, seja pela escolha de suas teses universitárias, seja por citações repetidas. Nos anos 1980, por exemplo, o futuro Papa Francisco passa uma temporada em Munique e ali trabalha o pensamento de Guardini (ao que sei, esse trabalho nunca foi publicado). Sua leitura do mestre difere fundamentalmente daquela praticada por Bento XVI, que lê os ensinos de seu mestre na perspectiva de uma luta incessante contra a ‘tirania do relativismo’ e de uma defesa intransigente da ‘verdade cristã’. Pelo contrário, Francisco descobre em Guardini lições de liberdade e abertura ao mundo. Ele aprende principalmente o ‘princípio da observação’: é preciso observar as coisas antes de se pronunciar. Os famosos livros de Guardini sobre a liturgia são baseados numa arguta observação de práticas populares e é isso que faz sua originalidade. Quando as pessoas rezam, assistem à missa ou fazem romaria, estão vivendo uma ‘experiência’: andam, falam, rezam, ajoelham-se, fecham os olhos, juntam as mãos, batem palmas, cantam. Chegam por vezes a gritar de forma exaltada, dançar, pular ou entrar em transe. O gesto religioso - no canto ou na fala, no choro ou no riso, na reza ou no grito, no silêncio ou na exaltação - expressa uma experiência do ser humano. Uns colocam o retrato de alguém na cômoda e o beijam; outros sobem de joelhos as escadarias de uma igreja. Há quem acende uma vela ou desfila as contas de um rosário pelos dedos, enquanto outros gesticulam, choram, gritam e se exaltam. Por mais estranhos que possam parecer esses gestos, eles expressam experiências humanas. Daí Guardini chega a uma conclusão importante: a religião expressa uma experiência existencial. Quando o observador verifica que, na liturgia, se pronunciam termos como ‘céu, inferno, anjo, demônio, altar, nascimento, morte, palavra, oráculo, profecia, deus, anjo, vida eterna’, esse observador tem de intuir como as pessoas na sua frente interpretam essas metáforas e principalmente o que fazem com elas na vida concreta. Lembro-me de, certa vez, ter perguntado a uma mulher porque ela tinha o quadro da Fuga da Família Sagrada ao Egito na parede de sua casa. Então, ela me contou que perdera ao marido e teve de ‘fugir’ ao Maranhão com uma criança recém-nascida. Indo à feira, ela viu o quadro da ‘Fuga ao Egito’ e sentiu imediatamente: ‘sou eu’. Adquiriu o quadro e o preserva em sua casa. O quadro na parede revela a vida daquela mulher: ‘tenho de continuar lutando’. As imagens religiosas são metáforas que servem de âncoras no mar turbulento da vida. Os símbolos religiosos só têm sentido quando mergulhados na vida concreta das pessoas. Estamos aqui diante de um linguajar universalmente humano, que serve para as pessoas encontrar um sentido diante de questões da vida de uma forma que a razão não consegue explicar. De forma misteriosa, Deus se revela e nos ajuda a viver. Escreve o neurocientista Damásio que esse ‘pressentimento’ religioso é uma propriedade de nosso ‘cérebro sensível’ (the feeling brain). (Veja Damasio, A., O Mistério da Consciência, Companhia das Letras, São Paulo, 2002; Em Busca de Espinosa, Companhia das Letras, São Paulo, 2004; O Erro de Descartes, Companhia das Letras, São Paulo, 2005; E o cérebro criou o homem, Companhia das Letras, São Paulo, 2011).
Em seus escritos, Guardini demonstrou que não basta ‘descrever’ a religião, mas que é preciso interpretá-la como uma ‘invenção do homem comum’. Precisa estimular em nós mesmos a capacidade de empatia com as práticas religiosas anônimas em nosso redor. A mesma empatia, afinal, que fez com que Freud dedicasse tanto tempo a escutar pessoas deitadas no famoso ‘sofá’ e daí tirou conclusões que até hoje ajudam inúmeras pessoas na vida. A mesma empatia que fez com que o filósofo Wittgenstein abandonasse o posto de professor catedrático em Cambridge e procurou, por meio de encontros extracurriculares com estudantes, estimulá-los a prestar atenção ao que acontece no universo de pessoas anônimas e comuns. Subjaz a tudo isso uma empatia pelo ser humano comum, marca registrada de Guardini. Penso que foi ele que ensinou a Bergoglio a debruçar-se com ternura e atenção sobre as experiências religiosas de pessoas comuns, aquelas que encontramos em procissões e novenas, missas e cultos, rezas e desobrigas. Há de se olhar com ternura e simpatia, pois à primeira vista essas práticas não apresentam nenhuma novidade nem contêm nenhuma estratégia. O observador terá de seguir as orientações do mestre: escutar, observar, reparar, não se apressar nas conclusões.
Com esse modo de proceder, Guardini ocupava uma posição isolada dentro do cenário católico: liberal demais para os tomistas (que transformavam a teologia do mestre medieval numa arma contra os modernos) e católico demais para os secularistas. O mesmo acontece com o Papa Francisco: católico demais para uns, liberal demais para outros. Como seu mestre, ele pula na corda bamba entre liberdade e fidelidade à tradição, como demonstram algumas de suas frases espontâneas:  ‘Façam barulho’; ‘Fora o clericalismo’; ‘Aos jovens digo: não tenham medo de ir contra a corrente’; ‘Sou contra bispos de luxo’ (acerca de um arcebispo alemão que gastou 31 milhões de euros para remodelar a Sede de seu arcebispado); ‘Não existe um Deus católico, existe Deus’; ‘Podem quebrar os pratos, mas depois se perdoem’ (num encontro sobre casais em crise); ‘A Cúria (leia: o governo central da Igreja) é vaticanocêntrica’ (ou seja, o governo central da igreja mal enxerga o que se passa no mundo); ‘Se receberem uma reprimenda por parte da Cúria, podem rasgar’ (recomendação dada a religiosas representantes de movimentos de irmãs norte-americanas que tentam renovar a vida religiosa feminina e são criticadas pela Cúria Romana). Sua resposta à jornalista, no avião de volta da Jornada da Juventude do Rio de Janeiro, em 2014, é surpreendente: ’quem sou eu para impedir que um gay se aproxime de Deus? ’. A mesma resposta ‘bamba’ em relação a recasados desejosos de participar da Eucaristia e em relação à readmissão de padres casados. Escrevi essa exposição um tanto longa sobre o valor da religiosidade popular nos escritos de Guardini na intenção de mostrar que Bergoglio se mostra um bom discípulo do mestre ítalo-alemão na abertura a valores vividos fora das regras morais codificadas e a modos de pensamento nem tão ortodoxos, mas sem dirimir a questão.

5. Como o Papa Francisco escapa do dilema entre ‘dizer o que pensa’ e ‘dizer o que convém’?

Penso que o Papa Francisco está frequentemente diante do que se lhe apresenta como um dilema: se ele abre o jogo e enfrenta de vez a Cúria Romana, ele sabe que seus dias são contados, como reza o ditado espanhol: ‘el dia que diga lo que pienso me borran del mapa’. Mas, de outro lado, se ele se conformar a ‘dizer o que convém’, ele se torna cúmplice de abusos cometidos no seio da administração central da Igreja. Vejo que ele não faz nem um nem outro e prefere se fazer de bobo. Estamos aqui diante de uma postura nada ortodoxa, e talvez seja útil recorrer ao pensamento do filósofo francês Gruzinski, expressa em seu livro ‘La pensée métisse’ (Ed. Fayard, Paris, 1999), traduzido e editado no Brasil pela Companhia das Letras (São Paulo) em 2001: ‘O pensamento mestiço’. Esse livro, cuja edição brasileira infelizmente está esgotada, concentra nossa atenção num tipo de pensamento que tem muito a ver com o que se verifica no Papa Francisco.

O que significa ‘pensamento mestiço’? Imaginemos um jogo de futebol. Não é o jogador que o tempo todo chuta direto ao gol que efetivamente emplaca. O bom jogador só chuta ao gol depois de ter vencido os obstáculos existentes entre a bola e o gol. A ‘mestiçagem’, aqui, consiste na sabença de obstáculos a serem evitados ou contornados. O bom jogador só entra em ação depois de tomar conhecimento dos obstáculos existentes entre a bola e o gol. Ele sempre procura uma brecha na defesa do time adverso. Só chuta direto para o gol depois de praticar tergiversações, aparentes recuos, passes, aparentemente incôngruas, ou seja, sem sentido. É isso, exatamente, que faz o Papa Francisco. Enquanto muitos partem logo em cima dos problemas (chutam direto ao gol), o Papa sabe que a linha reta nunca é o caminho mais curto entre dois pontos. O ziguezague entre obstáculos, o drible diante das dificuldades, eis o caminho mais curto. Só assim se cria um espaço ‘viável’ dentro de um sistema ‘inviável’. Como repetia Mestre Comblin, sempre há um jeito, uma brecha, uma fissura, um vazamento no sistema, por onde brota uma possibilidade de vida. Assim se compreende, por exemplo, que ele não se posiciona nem a favor nem contra a Teologia da Libertação, ‘muito pelo contrário’. Seu pensamento não é retilíneo, ele não chuta direto ao gol, não entra logo no ringue contra seus opositores. Pois sabe que a Corte do Vaticano só pode ser reformado por uma dinâmica eventualmente posta em ação por bobos inteligentes. Estruturas mentais, que vigoram no cérebro pela repetição de imagens ao longo de muitos séculos, não se combatem por meio de oposição aberta nem muito menos por algum tipo de cooptação populista. Há de se acenar para a multidão silenciosa e passiva, lançar sinais e sugestões, se fazer entender com as forças latentes de mudança numa estrutura tão hierarquizada como é a Igreja Católica, esperar pacientemente alguma mudança, algum sinal de mudança. O Papa diz o tempo todo: reajam, façam alguma coisa, manifestem-se, reclamem, não se acomodem. Eis uma coisa que pede muita perseverança, criatividade e paciência



Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

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