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segunda-feira, 30 de abril de 2018

ALFIE EVANS E O BEBÊ REAL: ENTRE A MORAL E A RAZÃO



por  Maria Clara Bingemer                                               

O mundo inteiro distraiu-se um pouco de suas mazelas nos últimos dias para voltar os olhos para Londres.  Ali, na porta do hospital st. Mary, apareceram o príncipe William da Inglaterra, acompanhado de sua esposa Kate, duquesa de Cambridge, para apresentar ao povo inglês o novo bebê real. Com eles, os outros dois filhos, George, de 5 anos, Charlotte, de 2.  O caçula é um menino e ainda não teve seu nome divulgado. Bela família, feliz, saudável e aplaudida.

Enquanto isso, no hospital Alder Grey, em Liverpool, outra família sofre e clamava pelo direito de tentar mais um recurso para salvar a vida do filho.  Alfie Evans era um bebê de 23 meses acometido de uma doença degenerativa rara, que o fez ter um retardo em seu desenvolvimento.  O médico procurado à época disse que ele era preguiçoso, gostava de dormir e custaria mais do que os bebês normais a se desenvolver.  No entanto, uma severa infecção levou à primeira internação do menino. Depois mais outra e mais outra.  Finalmente, Alfie acabou permanecendo internado, pois dependia de aparelhos para ajudá-lo a respirar e se alimentar. 

Os pais de Alfie, Tom e Kate, afirmavam que o filho estava lutando com todas as forças que armazenava em seu pequeno corpo combalido pela doença.   E não queriam de forma alguma que os aparelhos fossem desligados.  Pela internet circulavam vídeos e fotos do pequeno piscando e fazendo gestos, mostrando que estava vivo.  O hospital e sua equipe de médicos mantiveram-se inamovíveis na convicção de que o pequeno Alfie devia ser desconectado dos aparelhos que lhe davam suporte e passar a receber apenas cuidados paliativos.  O caso foi à justiça. 

Tom e Kate não aceitavam esta decisão e já que não eram ouvidos nos tribunais de seu país, apelaram para o mundo.  Nas redes sociais, criaram-se sites e grupos em favor do direito de Alfie de continuar vivendo. Finalmente, a Itália se dispôs a receber a família Evans.  O menino viajaria em um avião equipado com todos os recursos e seria levado a um hospital para ali receber outros cuidados e tentar avançar em sua luta pela vida.  

Nos últimos dias, após o último recurso jurídico perdido por Tom e Kate Evans, Alfie foi desconectado dos aparelhos.  Porém, continuava respirando sozinho.  Segundo os pais, não foi a única vez em que isso aconteceu.  Em outros momentos em que quiseram desconectá-lo dos aparelhos que lhe dariam suporte para respirar e alimentar-se, Alfie também conseguiu respirar sozinho e o hospital foi obrigado a reconectá-lo. Mas nestas ocasiões ainda não havia a decisão jurídica final.  Uma vez que esta chegou, Alfie foi desligado da vida. 

A situação era dramática.  Por um lado, Alfie continuava vivo sem o suporte de nenhum aparelho.  Havia um avião pronto para decolar da Itália para ir buscá-lo e à sua família em Liverpool. Até a cidadania italiana lhe foi dada para reforçar mais a disposição do país em recebê-lo e contornar possíveis dificuldades migratórias.  Ali usariam procedimentos até então não utilizados como traqueostomia, a fim de tentar chegar a um diagnóstico mais preciso sobre sua saúde e traçar um novo plano de tratamento. 

A justiça inglesa não permite que isso seja feito e o hospital recusava-se a dar oxigênio para que o menino respirasse e soro para alimentá-lo. Após o desligamento dos aparelhos de suporte, se eventualmente o paciente continuasse com os sinais vitais, seria obrigatório fazê-lo.  Mas o hospital argumentou que o caso de Alfie não tinha esperança.  Havia que oferecer-lhe apenas cuidados paliativos, para que não sofresse. 

  Os pais não desistiam e faziam nele  respiração boca a boca para ajudá-lo a respirar e viver.  E continuavam lutando na justiça, acreditando que seu bebê merecia todas as chances para continuar vivo.  Mostravam ao mundo os relatórios hospitalares de Alfie, onde era comprovado que não estava sentindo dor nem sofrendo.  Reivindicavam seu direito de tomar a decisão que envolve a vida de um filho.  Argumentavam que havia outros países que queriam recebê-lo e tentar tratá-lo. 

No conflito entre o hospital e a família, apareceu claramente o polaridade entre moral e razão.  A posição dos médicos e da justiça britânica era, sem sombra de dúvida, racional. A razão dizia que aquele menino não tinha futuro.  Suas chances de sobrevida eram mínimas e não se devia prolongar inutilmente seu sofrimento e o de seus pais.  Esta é a decisão racional a ser tomada.

Os pais de Alfie, porém, viam nele uma vida que não se apagara.  Embora combalida, ali estava, latente, como “a mecha que ainda fumega” de que falava o profeta Isaías.  Por que não lhe dar mais uma chance?  Por que, se havia equipes médicas dispostas a atendêlo e tratá-lo?

    A mesma nação que se enternece e aclama o recém-nascido príncipe tem um sistema jurídico que condenava Alfie e o impedia de receber mais um recurso de acesso à vida.  Por quê? Em que a vida de Alfie importava menos que a do bebê de William e Kate? O que aconteceria se fosse este último que estivesse doente? A razão e a ciência existem no Reino Unido e na Itália.  Se há divergências na medicina de um e outro país, por que não dar a Alfie o benefício dos que viam positivamente seu caso e se dispunham a tratá -lo? 

Em todo caso, Tom e Kate Evans geraram aquela vida. Não pela razão, mas pelo amor.  Que a decisão que diz respeito à vida do filho fosse deixada a eles.  Torci para que pudesse  voar no avião italiano no encalço da esperança que os animava. 

Alfie morreu na madrugada deste sábado no Hospital Alder Hey. Seus pais divulgaram nota em que afirmavam: "Nosso bebê cresceu asas às 2h30m da madrugada. Nós estamos com o coração partido. Obrigado a todos pelo apoio."



Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc), entre outros livros

sexta-feira, 27 de abril de 2018

PALAVRAS MALICIOSAMENTE DETURPADAS EM UM BLOG HOJE



por Leonardo Boff

Não fiz as críticas a Lula que falsamente me atribuem.

Introdução: Repito agora. 24/04/2018,  o artigo escrito há um ano atrás sobre inverdades. No contexto atual onde ganhou publicidade internacional a proibição arbitrária do Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Perez Esquivel e eu para visitarmos humanitariamente o ex-Presidente Lula, nosso amigo de longa data, lamento mais uma vez a manipulação das minhas palavras e da minha pessoa para interesses excusos e mesquinhos. LBoff

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24/04/2017

Correm pelas redes sociais críticas que teria feito a Lula. Elas são falsas. Pessoalmente não fiz nenhuma crítica. O que fiz foi publicar no meu blog (leonardoboff.wordpress.com) um artigo de Carla Jiménez no jornal espanhol El Pais que leva como o título:”Uma elite amoral e mesquinha se revela nas delações da Odebrecht”.

Considerei o artigo bem informado sobre a corrupção que tomou conta das empreiteiras. Estas  corromperam e beneficiaram a quase todos os grandes partidos com caixa 2 ou com propinas. Um olhar de fora é sempre instrutivo, pois quando alguém escreve algo semelhante, aqui dentro do país, frequentemente é desqualificado como partidista, oportunista e mesmo falso.

No referido artigo Carla Jiménez, no final, faz críticas ao Lula o que considero, dentro da democracia, legítimo, embora não concorde.

Fiz um introdução bastante longa ao artigo e depois o transcrevi.

Pessoas mal intencionadas tomaram aquele tópico critico a Lula e o atribuíram a mim como se eu tivesse escrito tal coisa. E assim foi distribuído nas redes sociais. Repito: tal crítica não é minha, mas da jornalista do El Pais. Repudio a má fé de quem tirou do texto aquele tópico e falsamente afirma que a crítica foi feita por mim.

Corrupção se realiza não apenas nos negócios, mas corrupção existe também nas mentes de pessoas interessadas em desfazer a imagem do outro atribuindo-lhe coisas que não disse e não fez.

Fica aqui o meu esclarecimento em função da verdade e como denúncia de uma atribiução feita malevolamente.

Leonardo Boff, teólogo e escritor

quinta-feira, 26 de abril de 2018

ESPIRITUALIDADE E POLÍTICA


 por Frei Betto


       Para justificar decepções e encobrir omissões, criamos estereótipos. Na atual conjuntura, a demonização da política e dos políticos. Tal maniqueísmo favorece exatamente o que se critica, a má política.

       Distanciar-se da política é se refugiar em suposta redoma de vidro enquanto grassa o dilúvio. Muito pouca coisa é insubstituível na história humana. Uma delas é a política. Ainda não se inventou outra forma de nos organizar como coletividade. A política permeia todos os espaços pessoais e sociais, da qualidade do pão do café da manhã ao acesso à saúde e à educação.

       Se a política é “a forma mais perfeita de caridade”, como enfatiza o papa Francisco, por ser capaz de erradicar a fome e a miséria, as estruturas políticas são passíveis de severa crítica quando favorecem a desigualdade e a corrupção.

       A política não é intrinsecamente nefasta. Nefasto é o modelo político que sabota a democracia, privilegia a minoria rica, e nada faz de eficaz para promover a inclusão social. Ao contrário, permite ampliar a exclusão e reforça os mecanismos, inclusive repressores, que impedem os excluídos de avançarem da margem para o centro.

       Todos os grandes mestres espirituais foram políticos. Buda se indignou ao transpor as muralhas de seu palácio e se deparar com o sofrimento dos súditos. Jesus, na versão de sua mãe, Maria, veio para “derrubar os poderosos de seus tronos e exaltar os humildes, despedir os ricos com mãos vazias e saciar de bens os famintos” (Lucas 1, 52-53). Pagou com a vida a ousadia de anunciar, dentro do reino de César, outro projeto civilizatório denominado Reino de Deus.

       A política é uma exigência espiritual. Santo Tomás de Aquino preconizou não poder esperar virtudes de quem carece de condições dignas de vida. A política diz respeito ao outro, ao próximo, ao bem-estar da coletividade. Repudiá-la é entregá-la às mãos daqueles que a transformam em arma para defender apenas os próprios interesses.

       Se a política perpassa os aspectos mais íntimos de nossas vidas, como dispor ou não de um teto sob o qual se abrigar das intempéries, nem todos participam do mesmo modo. Há múltiplas maneiras de fazer política, seja por participação, seja por omissão.
       O modo mais universal é o voto, uma falácia quando o povo vota e o poder econômico elege. Um embuste quando a democracia é como Saci-Pererê: os eleitores decidem quem administrará o país, mas não como os recursos da nação serão utilizados.

       Se não há democracia econômica, se a desigualdade se agrava, a democracia política é uma farsa. De que adianta a Constituição, uma carta política, proclamar que todos têm direito a uma vida digna se a estrutura socioeconômica impede a maioria de desfrutar de fato deste direito?

       No reino de César, Jesus rogou ao Pai: “Venha a nós o vosso reino”, ou seja, o projeto civilizatório no qual todos “tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Esta a espiritualidade que move quem se empenha em fazer da política ferramenta de libertação, não de opressão e exclusão.

 Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco)
Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com

quarta-feira, 25 de abril de 2018

BEM VINDO AO TEMPO QUE SE CHAMA HOJE


por Ivone Gebara

Estamos hoje habituadas a ler e a ouvir que vivemos em tempos obscuros, que perdemos o rumo da verdade e da justiça e estamos imersos numa longa noite escura. Tudo isso talvez seja verdadeiro, mas se absolutizado, corre o risco de atrapalhar a percepção das coisas boas que também estão acontecendo. Coisas boas não são apenas coisas agradáveis no imediato, mas são passos na direção de valores que foram objeto de longas ou pequenas lutas de muitas pessoas. Coisas boas são coisas difíceis que apesar do sofrimento que nos causam indicam que estamos num caminho de purificação de nossas relações.

É, nesse sentido, que busco louvar este tempo, tempo que é nosso, um hoje único que nos é oferecido. Em meio às muitas ambiguidades e contradições temos que reconhecer as revelações, as denúncias e exigências de respeito que soam bem alto como realidades positivas. Elas quebram a ordem estabelecida da injustiça sobre muitos corpos, quebram a hegemonia dos poderes e dos deuses. Revelam o nefasto escondido, a opressão consentida. Refiro-me especialmente a algo que vem acontecendo nos lugares de dominação masculina religiosa. Quantas denúncias acolhemos em relação à pedofilia do clero! Quantos pedidos de inquérito em relação às contas das igrejas! Quantas noticias de assédio, de violência e responsabilidades não assumidas! As novas vozes que gritam abrem as portas das sacristias, dos conventos e igrejas como abriram dos escritórios de empresários famosos, de artistas, de cineastas, de políticos. Vão mostrando à luz do dia as cenas de exploração antes ocultas nas alcovas e confessionários.

Ah! Que belos tempos os nossos onde até no Vaticano as freiras, religiosas de diferentes congregações que trabalham lá ousam revelar o regime de trabalho injusto a que são submetidas. Exploração de sua mão de obra a serviço de prelados e de muitos clérigos sem mesmo receber o devido pagamento. Os jornais europeus e norte-americanos da última semana como Euronews, e outros como o britânico ‘The Guardian’ nos deixarem estarrecidas. A notícia de fato saiu numa revista distribuída pelo L‘Osservatore Romano’ embora possa parecer contraditório que um jornal ligado a ‘Santa Sé’ fale da exploração das freiras que lá trabalham. Uma casa falando mal da própria casa! 

As freiras não têm o hábito de reivindicar direitos para si mesmas, mas dessa vez a exploração estendida por muitos e muitos anos chegou a seu limite. As religiosas denunciam o peso e a enorme quantidade de trabalho servil doméstico que fazem e a pouca retribuição que recebem pelo trabalho realizado. Além disso, dizem sentir-se exploradas “pelos homens da hierarquia da Igreja” que elas servem diariamente sem nenhum reconhecimento de seu trabalho. São mulheres simples vindas de muitos lugares do mundo e obedientes ao chamado que lhes foi feito. Nessa linha sugiro a leitura de uma série de artigos sobre o trabalho doméstico e especialmente o trabalho das religiosas no Vaticano escrito por várias intelectuais. A religião é também empresa exploradora da mão de obra feminina! 

Sem nomear diretamente os beneficiários desses serviços femininos desde muito tempo, sabemos bem que os homens da Igreja desenvolveram a ideologia de que os sacerdotes representam a Cristo na terra. Mesmo os mais sinceros são atingidos indiretamente por ela. As mulheres que se consagraram a Cristo muitas vezes se sentiram obrigadas a se consagrarem também aos homens da religião acolhendo acriticamente essa falsa representação. Homens, obedientes às suas necessidades não hesitaram em incentivar a fundação de congregações dedicadas aos Seminários, à ajuda ao clero, ao cuidado com os bispos, cardeais e papas. Os prelados e seus jovens alunos continuam proclamando-se celibatários por causa do Cristo, mas não abriram mão dos benefícios de ter mulheres para cuidar da limpeza de sua casa, da roupa e da cozinha. Reproduzem o mesmo sistema vigente em muitos lugares do mundo. Continuam a ter casa e comida cuidada e preparada pelas especialistas do mundo doméstico, aquelas cujo corpo lhes serve idealizado como o a da Virgem Maria e, ao mesmo tempo usado para os cuidados da vida cotidiana.

O tom crítico e até meio irônico dessa crônica é também marcado pela alegria diante da coragem de muitas religiosas que estão abrindo a boca em relação a sua condição subalterna exaltada pelos clérigos como serviço gratuito ao Senhor. Fariam bem de usar aqui o plural e falar de serviço e submissão aos senhores!

Não sei se somos nós, as feministas espalhadas pelo mundo todo, se são as atrizes de Hollywood ou as intelectuais que lutam pelo direito das minorias que estamos enfim ajudando tantas mulheres a ouvir os clamores coletivos de seus corpos no lugar em que vivem sua consagração. Não sei se é a internet e seu acesso em alguns conventos inclusive no Vaticano que têm aberto as mentes, os corações e as bocas de muitas que estão ousando fazer a denúncia dos senhores representantes do Senhor. O fato é que tempos novos estão sendo anunciados! E isso é maravilhoso!

Minha ira e minha alegria misturadas são enormes porque estamos acordando para a farsa em que vivemos. Estamos percebendo o ópio misturado ao Evangelho de Jesus. Mesmo com boa fé, mesmo acreditando no bem que estávamos fazendo, estávamos e estamos reforçando um sistema que nos exclui e explora. De repente nossos olhos estão se abrindo e percebemos a falsidade no interior dos belos discursos nos quais acreditávamos terem vindo dos céus através das bocas clericais. É claro que a vida é uma mistura mais complexa do que um texto de denúncia, mas quando a gente percebe que ingredientes inadequados nos fazem mal então é preciso fazer de tudo para eliminá-los.

Na mesma linha embora de forma diferente, entristeceu a muitas de nós ver através dos meios de comunicação o Encontro do Papa Francisco com 500 monjas contemplativas no Perú. Que humor mais sem graça o do Papa Francisco qualificando a ‘fofoca’ como o maior pecado das religiosas contemplativas. E não só isso falando que essa ‘fofoca’ (bisbilhotice) era mais perigosa que as antigas ações do grupo Guerrilheiro Sendero Luminoso. E muitas das religiosas entre as presentes, por vício de educação riram com ele embora não tivessem gostado de seu discurso! Por favor, Papa Francisco! Há formas de humor que são aviltantes! Há formas de humor que destilam desrespeito, ignorância e injustiça. E a sua foi uma. Perdoe-me a ousadia de deixar pública a minha ira, mesmo sabendo de sua atuação brilhante em outras áreas da vida dos cristãos. Um deslize sem dúvida, mas um grave deslize que confirma as formas de tratamento que os sacerdotes e bispos dedicam às mulheres.

O Papa Francisco seguindo um raciocínio que convidava as religiosas a construírem a unidade em seus conventos afirmou: “O diabo é mentiroso, e também bisbilhoteiro: gosta de levar e trazer, procura dividir, deseja que, nas comunidades, falem mal umas das outras. Já disse isto muitas vezes, repetindo-me: Sabeis o que é uma religiosa bisbilhoteira (fofoqueira)? É uma "terrorista". Pior que aqueles terroristas de Ayacucho, alguns anos atrás. Pior, porque o mexerico é como uma bomba: ela vai e "bss... bss... bss...", como o diabo, atira a bomba, destrói e parte tranquila. Nada de irmãs "terroristas", sem bisbilhotices. Já sabeis que o melhor remédio para não bisbilhotar é morder-se a língua. A enfermeira terá um pouco que fazer, porque a vossa língua se inflamará, mas pelo menos não atirastes a bomba. Por conseguinte, que não haja bisbilhotices no convento, porque isto é inspirado pelo diabo. Ele, por natureza, é bisbilhoteiro e mentiroso. E recordai-vos dos terroristas de Ayacucho, quando vos vier vontade de bisbilhotar. 

Bisbilhotice, terrorismo, coisas do demônio, convite a morder a própria língua... Que linguagem inadequada para falar para as monjas, para mulheres que tiveram e têm uma história de dedicação ímpar na Igreja!

A forma de comportamento com que as religiosas são tratadas pelos clérigos em todas as escalas da hierarquia sugere que elas sejam umas ignorantes e ingênuas. Fico simplesmente irada com a palavra “irmãzinha” que muitas vezes usam para dirigir-se a nós. Longe do afeto fraterno e sororal que podemos dedicar uns aos outros o tom é de superioridade melosa, de uma artificialidade impar e de uma falsidade que provoca náuseas.

Se nós mulheres temos hoje que reconhecer nossa submissão ao clero que identificamos erroneamente à Igreja, os homens têm que reconhecer como se aproveitaram da ingenuidade e do bom coração de muitas para fazer valer a realização de suas necessidades domésticas.

Perdoem-me os leitores e leitoras! Mas a experiência na frequentação desses ambientes ensinou-me muitas vezes a avaliar o alcance da inconsistência da educação que o clero dá a si mesmo para manter as aparências de um poder mentiroso, de uma caridade falsa e de uma doutrina que eles pregam, mas na qual não creem. Apesar das exceções, há um excesso de palavras bonitas endereçadas a umas e outras. Mas essas palavras não colam mais a realidade. São falsas e produtoras dos mais diferentes tipos de violência e alienação.

Bendito esse tempo que é o nosso! Tempo do acordar da consciência das mulheres religiosas! Tempo em que não ficará mais pedra sobre pedra, que já vê caírem templos e palácios episcopais e se ouvem os gritos e os lamentos dos falsos profetas. Em cumplicidade com os políticos roubam os pobres e iludem os ignorantes. Não ficará pedra sobre pedra. Estamos ainda no começo da destruição da mentira que impomos uns aos outros em nome de nossa astúcia e egoísmo ‘religiosos’.

Mas há bem mais do que esse fatos acima narrados. Lembrei-me da Comissão Teológica para estudar a ordenação diaconal das mulheres estabelecida pelo Papa Francisco. Em que deu? Em nada. Provavelmente daqui a alguns meses teremos um documento dizendo que após longos estudos a Comissão chegou à conclusão de que tradição da Igreja Católica Una, Santa, Masculina e Vaticana não autoriza a essa Comissão a se desfazer de uma sólida Tradição. Só não dirão que foi a tradição que eles mesmos criaram e querem manter. Afirmarão convictos que a escolha dos 12 apóstolos, apenas homens, não é deles, mas herança de Jesus e, portanto desígnio divino. É simplesmente triste! Só ouvem a sua voz e só se apegam aos dogmas que os mantêm ainda por um tempo no poder. Mas daqui a um tempo cairão para que novos tempos possam de fato aparecer!

Sei que estes problemas que abordo nesse momento são menores frente aos dramas de populações inteiras destruídas pelas paixões humanas como é o caso atual da Síria e do crescente número de emigrantes forçados, desempregados e famintos do mundo. Mas acredito que o pequeno tem a ver com o grande assim como o grande se manifesta no pequeno. Tudo o que fazemos de bom a um pequeno fazemos indiretamente a todo o mundo.

Por isso, as mulheres religiosas do Vaticano fazem o bem ao mundo ao dizer: Basta! E com elas muitas mulheres e homens fazem eco a esse profético BASTA!

Não queremos ser um tribunal uns dos outros. Nem atirar pedras. Não é essa a ética dos Evangelhos. Mas queremos sim nos alertar mutuamente para as paixões que nos atraem, cegam e levam-nos a negar o respeito devido à vida de todas as pessoas. Por isso continuamos dizendo: BASTA!

Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.

terça-feira, 24 de abril de 2018

A MÃE TERRA E O CUIDADO



por Marcelo Barros

No calendário da ONU, o dia 22 de abril é o Dia Internacional da Mãe Terra. Esse dia foi criado para recordar a urgência de um cuidado maior com o planeta, "nossa casa comum". De fato, no ano 2000, a Carta da Terra nos fazia essa advertência:: «Estamos num momento crítico da história da Terra, na qual a humanidade deve escolher o seu futuro…A escolha nossa é: ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e cuidarmos uns dos outros ou arriscamos nossa própria destruição e a da diversidade da vida”(Preâmbulo). Essa mesma proposta, o papa Francisco retoma em sua carta sobre o cuidado com a Terra. 

Atualmente, no mundo inteiro, os grupos comprometidos com o futuro da humanidade e os movimentos sociais estão de acordo: a sustentabilidade da vida e do planeta devem ocupar o primeiro lugar em nossas preocupações e compromissos sociais. E esse cuidado com a Terra não pode acontecer apenas porque se a Terra se tornar inabitável, a primeira vítima dessa tragédia seremos nós mesmos, seres humanos. É claro que não podemos ser indiferentes a essa constatação. No entanto, eticamente, a Terra e a natureza têm direitos à sua integridade e a vocação humana é sermos os jardineiros da criação e não seus assassinos.

No Brasil em que vivemos, conforme o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, que monitora a devastação da floresta, em 2017, o desmatamento na Amazônia cresceu quase 30%. É o pior resultado desde 2008. Pará, Rondônia e Mato Grosso foram os estados que mais desmataram. Todos os biomas brasileiros correm risco sérios de não cumprirem mais o seu papel de úteros da vida e das águas. Isso afeta o clima em todo o planeta, ameaça a renovação das águas e põe em risco toda a vida no planeta. O conhecido biólogo Edward O. Wilson escreve: Num grama de terra ou seja, em menos de um punhado, vivem cerca de dez bilhões de bactérias pertencentes até a seis mil espécies diferentes”. 

A Terra é Mãe fecunda. No entanto, cientistas de todo o mundo confirmam: esse modelo de desenvolvimento depredador de tal forma destrói a natureza que a Terra ultrapassou em 40% sua capacidade de reposição dos recursos necessários para as demandas humanas. Neste momento, mesmo se não nos damos conta disso, estamos esgotando o sistema de vida na Terra mais do que ela é capaz de renová-lo. As consequências disso já são desastrosas, mas, como adverte a Carta da Terra, em breve, podem ser fatais. Na encíclica Laudato sii, o papa propõe como saída para esse impasse uma aliança da humanidade pela vida. Concretamente, sugere que essa aliança seja motivada e conduzida por uma unidade das religiões e tradições espirituais em defesa da Terra.

De fato, desde os tempos mais antigos, as culturas e religiões sempre têm testemunhado a crença na Terra como Grande Mãe, Magna Mater, Inana e Pachamama. Os povos originários de ontem e de hoje tinham e têm clara consciência de que a Terra é geradora de todos os viventes. Somente um ser vivo pode produzir vida em suas mais diferentes formas. A Terra é, pois, nossa Mãe universal. Embora ela não seja um ser vivo como nós ou como os animais, ela se constitui como uma espécie de organismo vivo que respira e é capaz de sentir o nosso amor. Hoje, cada vez mais a própria Ciência se detém admirada ao perceber o mistério que encerra a vida no planeta. De acordo com as descobertas e conclusões da Ciência, o planeta Terra existe há 4, 4 bilhões de anos. Num momento avançado de sua evolução, de sua complexidade e de sua auto-organização, começou a sentir, a pensar e a amar. Foi quando emergiu o ser humano. Em seu discurso à assembleia geral da ONU (2009), Leonardo Boff afirmou: "Com razão nas línguas ocidentais homo/homem vem de húmus, terra fecunda. E em hebraico Adam se deriva de adamah, terra cultivável. Por isso, o ser humano é a própria Terra que anda, que sente, que pensa e que ama, como dizia o poeta indígena e cantador argentino Atahualpa Yupanqui".

Durante séculos e séculos, em todo o mundo, prevaleceu essa visão da Terra como Mãe cuidadosa da Vida. Ela começou a desaparecer com o surgimento do que se chamou "espírito científico" no século XVI e com o desenvolvimento do sistema capitalista. A partir de então, a Terra começou a ser considerada como uma realidade sem espírito, mero reservatório de recursos naturais, disponíveis para a acumulação e o consumo humano. Tornou-se apenas uma mercadoria, entregue ao ser humano para ser submetida, mesmo com violência. 

Neste novo paradigma não se coloca a questão dos limites de suporte do sistema-Terra nem dos bens e serviços naturais não renováveis. Pressupunha-se que os recursos seriam infinitos e que poderíamos ir crescendo ilimitadamente na direção do futuro. O que efetivamente é uma grande ilusão. Estamos agora sofrendo as consequências dessa visão mercantil. É urgente mudarmos o nosso modo de ver a Terra. É preciso retomarmos nossos sentimentos mais profundos: cultivar a compaixão e os sonhos que nos inspiram ações salvadoras. Nossa missão, no conjunto dos seres, é a de ser os guardiães e cuidadores desta sagrada herança que recebemos do universo: a Terra, nossa Mãe.

Conforme a Bíblia, a ressurreição de Jesus inaugurou uma renovação de toda a criação. Ela é salva e resgatada como a humanidade. Quem crê é convidado/a a olhar a Terra com tudo o que ela contém como um grande corpo cósmico de Deus a nos abrigar e acolher em seu regaço maternal. 

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

DONA IVONE LARA E SEU SONHO MAIOR




por Maria Clara Bingemer 

Imagino Dona Ivone Lara entrando no céu e abrindo passagem com sua presença majestosa e suave. Seguramente foi recebida com cuícas, tamborins, cavaquinhos e quantos mais sejam os instrumentos que a acompanharam por toda a vida.  No samba viveu, dele bebeu inspiração e sentido. Ao samba deu o melhor de si, do samba sua vida projetou-se para além dela mesma.  O samba foi sua casa, sua moradia, seu abrigo, sua verdade e sua raiz. Como não havia de acompanhá-la quando entra na vida plena e definitiva pela qual todo ser humano aspira? 
O samba foi o sonho sonhado e realizado dessa que hoje o Brasil chora.  Rainha, primeira dama de todos os enredos e escolas.  Presença inspiradora para o seu querido Império Serrano e luz fulgurante para as mulheres, os negros e quantos buscam nesse Rio de Janeiro e nesse Brasil o caminho para a luz e a paz. Essa mulher negra bebeu música desde que abriu os olhos para o mundo.  Aprendeu a tocar, a cantar e isso a ajudou a atravessar a precoce orfandade e as muitas lutas da vida que se apresentaram.

Nunca se separou do samba.  Entrou no território machista e patriarcal da organização das escolas e foi a primeira mulher a compor um samba enredo escolhido e presente na avenida.  Em território onde os homens predominam e as mulheres ficam em segundo plano, Dona Ivone sempre foi respeitada e reinou soberana. Foi madrinha da ala dos compositores de sua escola Império Serrano.  “Nasci para sonhar e cantar”, dizia ela em um de seus sambas. E sonhou e cantou durante toda a sua vida. 

O sonho da moça nascida em Botafogo foi sendo traduzido e comunicado em suas composições.  Seu coração se derramava em samba e enchia ouvidos e corações, sendo depois cantado em várias bocas e dançado nos pés incansáveis de seu povo. 


“Nasci para sonhar e cantar/ Na busca incessante do amor/Que desejo encontrar”, cantava a rainha do samba.  Nessa busca do amor era incansável, na “madrugada/ que padece e não esquece”. Mas anunciava que “há sempre um amanhã para o seu pranto secar”. 

 Dona Ivone amou e foi amada.  Teve filhos, netos e bisnetos. Viveu a gama de emoções e sentimentos que toda mulher experimenta quando ama e  sonha com o amor feito de entrega total e plenitude.  Mas também conheceu, por experimentar ou por observar nos que a rodeavam, a dor do desejo não satisfeito, do sentimento não correspondido, da saudade, do sonho não realizado. E assim compôs sambas que falam de traição, de volta, de perdão e distanciamento, de coração magoado e de vida retomada, ultrapassando mágoas e ressentimentos. O samba “Sonho meu”, gravado por ela  e por outros grandes intérpretes é um de seus carros-chefes. Fala de um sonho que vai buscar quem mora longe.
Dona Ivone era negra.  Uma negra orgulhosa de sua identidade e de sua negritude. Para cantar a beleza de sua condição compôs sambas inesquecíveis. O mais famoso talvez seja  “Sorriso negro”, no qual canta sua identidade e a maravilha do sorriso negro, do abraço negro, de tudo que traz felicidade porque é a raiz da liberdade. Canta o “negro que já foi escravo”, que é a voz da verdade, é destino, é inspiração, é amor, e também saudade. Sua voz suave e solene ressoou durante décadas, levantantou alto a bandeira da negritude e desse povo a quem o Brasil deve capítulos gloriosos de sua história. 

Dona Ivone Lara jamais parou de sonhar.  E seus sonhos foram em boa parte realizados.  Sua amada escola Império Serrano cresceu e foi campeã.  Ela fez enredo para a escola e também foi enredo em 2012.  Seu talento foi reconhecido e celebrado em todos os tons. À medida que o tempo passava, sua inspiração enchia o cancioneiro brasileiro de beleza e ritmo, e ela se afirmava como rainha do samba que tanto amou. Como mulher e negra, pertencendo portanto a duas categorias que em nosso país ainda devem lutar por seus direitos, conseguiu abrir caminho e ocupar um espaço que jamais lhe será tirado. 

Hoje, quando choramos sua ausência e celebramos o rastro luminoso que deixou atrás de si não podemos deixar de lembrar um dos sonhos de Dona Ivone que ainda não se encontra plenamente realizado.  No samba “Juízo Final”, ela expressa sua utopia, comum a todos os brasileiros e a todos os seres humanos.  Trata-se do sonho de que o bem vença o mal, de que o amor triunfe e seja eterno novamente.  Dona Ivone cantou em seu samba desejar “ter olhos para ver” do mal ser queimada a semente e a maldade desaparecer.  Sonhou ver e viver o triunfo definitivo do bem sobre o mal e do amor sobre o desespero e a tristeza. 

Dona Ivone, primeira dama, estrela maior de nosso samba, creio que agora você sabe que o amor vai triunfar. Lá, de onde você canta samba por toda a eternidade, certamente pode experimentar essa plenitude do amor e da paz.  Só nos resta agradecer pelo tanto de beleza, inspiração, talento que você derramou sobre nós.  A semente do mal ainda não foi totalmente destruída, mas o amor teimosamente levanta a cabeça e a esmaga a cada momento.  Você muito contribuiu para manter viva e desperta  a esperança de que um dia acontecerá o triunfo do amor sobre toda maldade. 

 Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de  Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.

 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

quinta-feira, 19 de abril de 2018

O FATOR LULA


Frei Betto

        Difícil prender Lula. Ainda que detido na Polícia Federal, em Curitiba, a presença dele impregna o imaginário de parcela significativa do povo brasileiro. Impossível ignorá-lo. E isso vale também para quem o odeia e comemora a sua prisão.

       O Brasil carece de heróis. Os poucos que transcendem o período no qual viveram são admirados justamente por terem resistido às forças do conservadorismo, de Zumbi a Tiradentes, de Antônio Conselheiro a Lampião, de Marighella a Chico Mendes, de Betinho e Marielle.

       Não há como condenar Lula ao olvido. Vários fatores excepcionais moldaram a sua biografia singular: a miséria da família em Garanhuns (PE); a mudança para São Paulo em pau-de-arara; o líder sindical que escapou da cooptação da esquerda e da direita, e liderou as mais expressivas greves operárias de nossa história durante a ditadura militar; a fundação do PT; os dois mandatos presidenciais encerrados com 87% de aprovação etc.

       Ainda que a Justiça o condene como corrupto, no imaginário popular o fiel da balança se inclina a seu favor. Por simples razão: a Justiça brasileira é leniente com os poderosos (ainda que a Lava Jato por vezes se esforce por reverter essa tendência) e severamente cruel com os pobres acusados de pequenos delitos.

       Fora Lula, quantos políticos o STF condenou até hoje? Quantos de nossos 600 mil encarcerados têm acesso a advogados? E a juízes? Os julgamentos são considerados imparciais?

       Na opinião pública, o juiz perde credibilidade ao aceitar, além de gordo salário, injustificáveis privilégios, como auxílio-moradia e auxílio-“salsicha” (alimentação).

       De pouco mais de dois mil juízes e desembargadores do estado de São Paulo, apenas 168 abrem mão dessas mordomias (informação de um desembargador).

       O Brasil é, hoje, uma nau sem rumo. Nosso futuro é imprevisível. Sua sinalização ocorrerá em outubro, com o resultado da eleição presidencial. E qualquer que seja o resultado, a nação não será apaziguada. Nossas divergências não se situam no patamar das ideias, e sim da esfera social, onde as disparidades de renda são gritantes. A opulência da Casa Grande não logra ofuscar a miséria que multiplica corpos estendidos nas calçadas, e ainda aquece o caldo de cultura da violência urbana e rural.

       Enquanto não houver um governo que faça do Estado indutor do desenvolvimento social, adotando políticas que combatam as causas das desigualdades, o Brasil não superará essa atual etapa de sebastianismo. Porque é inegável que Lula presidente deu passos significativos na direção de maior justiça e inclusão sociais.



Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.


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quarta-feira, 18 de abril de 2018

A HISTÓRIA QUE SE REPETE


por Goretti Santos

Você riu, você comemorou,
Bateu palmas, bateu panelas,
Quando prenderam nosso profeta
E Gandhi ficou dois anos na cadeia...

Você riu, você comemorou,
Bateu palmas, soltou fogos, 
Quando prenderam nosso profeta,
E Mather Luther king foi preso por “ vadiagem”,
Teve sua família ameaçada,
E por fim foi assassinado...

 Você riu, você comemorou,
Bateu palmas, gritou com todo seu ódio de costume,
Prendam-no, prendam-no
E Mandela passou 27 anos na prisão...

Você riu, você comemorou, bateu palmas, 
Bateu panelas, soltou fogos, bebeu champanhe,
Quando prenderam nosso profeta, 
E gritou a plenos pulmões, destilando todo seu ódio,
Crucifica-o, Crucifica-o!
E mataram Jesus...

Você ri, você comemora, alimentado no seu ódio, 
Toda vez que prendem um profeta,
O que você não sabe, mas deveria,
É que não se pode prender, nem matar um profeta
Porque ele renasce mais forte
No sonho de Liberdade do Povo!
                                                                                             07/04/2018

terça-feira, 17 de abril de 2018

JUSTIÇA, TERRA E PAZ, FONTES DO BEM VIVER



por Marcelo Barros

Esse é o tema da Semana dos Povos Indígenas de 2018 que, em nosso país, se realiza anualmente, nos dias próximos ao 19 de abril que, desde 1940, é celebrado como "Dia do Índio". Em todas as regiões do Brasil, se promovem encontros e eventos que a   judem a população a redescobrir os povos indígenas e a se solidarizar com eles. De norte a sul, o Brasil deu nomes indígenas a cidades, praças e centros comerciais, mas como memória de personagens antigos da História. De fato, as estimativas atuais ensinam que, quando os conquistadores chegaram à nossa terra,  aqui habitavam cerca de quatro milhões de pessoas distribuídas em mais de mil povos. 

A colonização foi responsável por um verdadeiro genocídio. Apesar disso e de todos os sofrimentos e perseguições sofridas, os índios resistem e, desde os anos 90, veem crescer sua população. Conforme o censo mais recente, atualmente no Brasil existem mais de 900 mil índios, pertencentes a 305 povos conhecidos. Além deles, existem ainda mais de 70 tribos isoladas que não têm nenhum contato com nossa sociedade. Se no tempo da colônia, todo o país era deles, em nossos dias, 1.116 áreas são reconhecidas como territórios indígenas, nas quais, desde tempos imemoriais, vive um ou várias comunidades indígenas. De todos esses territórios, até hoje, somente 398 áreas foram demarcadas e legalizadas. E mesmo dessas terras confirmadas pela lei, muitas delas continuam invadidas por garimpeiros, fazendeiros e latifundiários. 

Até hoje, os Guarani Kaiowá, expulsos de seu território por fazendeiros, se sentem chamados pelo Espírito a voltar a suas terras consideradas sagradas. E eles dizem que voltam para viver ou para nelas morrer. E, de fato, muitos homens, mulheres e crianças, têm sido assassinados e ali enterrados. Os fazendeiros fazem isso imaginando que assim os expulsam. No entanto, quanto mais matam índios, mais a terra se torna sagrada pelo sangue dos que caíram e os parentes dos falecidos nunca a deixarão.   
Essa Semana dos Povos Indígenas nos ajuda a descobrir que muitos índios (no Brasil, 325 mil) vivem nas periferias das cidades e muitos deles estão misturados no meio da nossa população mais pobre. Alguns jovens índios frequentam nossas escolas e cada vez mais temos índios formados em diversas profissões liberais. 

O tema dessa Semana dos Povos Indígenas nos lembra que a Paz está intimamente ligada à Justiça e ao direito à posse da Terra. Sem acesso ao seu território, um povo não pode viver sua cultura própria e, pouco a pouco, se dispersa e desaparece. A Justiça, a Paz e o direito à Terra estão intimamente ligados e são fontes do Bem Viver, proposta que, hoje, é compreendida como um paradigma civilizatório para toda a humanidade. 

Todas as pessoas de boa vontade e que têm fome e sede de justiça sabem que o cuidado com a Terra, a Água e a natureza deve ser a prioridade de qualquer sociedade sadia. A educação, a saúde e a dignidade de vida do povo devem ser confirmados como objetivos do Estado. Muitos setores lutam por uma radicalização da democracia participativa e direta. Cada vez mais um número maior de pessoas está convencido de que os povos indígenas têm muito a nos ensinar nesse caminho. Essa Semana de Povos Indígenas, ao proporcionar ocasião de diálogos e maior escuta dos índios pode nos ajudar a aprofundar esse caminho. A raiz de tudo isso é a redescoberta de uma cultura amorosa que, antropologicamente, se compreende como uma espiritualidade humana. Nesse tempo pascal, quem é cristão pode ouvir Jesus ressuscitado afirmar em relação aos índios: "Tudo aquilo que fizerdes a um desses pequeninos é a mim que fazeis" (Mt 25, 40). 

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

SANTIDADE AO ALCANCE DE TODOS


                     por Maria Clara Bingemer                  

Em meio ao tenebroso momento que vivemos no país chega-nos a exortação apostólica do Papa falando de santidade. Tema abstrato e distante da realidade? perguntarão alguns. Alienação perigosa que remete a claustros, vitrais e fuga do mundo com seus conflitos? indagarão outros. Na verdade, não.  O que propõe o pontífice em sua exortação é uma compreensão mais realista e humana do que seja o ideal de ser santo em um mundo fragmentado e dividido.

Acostumamo-nos a pensar nos santos como aqueles homens e mulheres que vemos retratados em quadros ou vitrais, em geral ajoelhados e em extática contemplação; ou em ascéticos exercícios de piedade que os faz vencerem o mundo e suas ambiguidades e contradições.  Imaginamos tratar-se de pessoas que nada têm a ver com a profanidade das coisas e as limitações das pessoas e buscam a perfeição em uma ascensão ininterrupta a um estado de vida quase angélico e pouco humano.

O que propõe Francisco é, na verdade, o inverso disso.  A santidade não é uma subida, mas sim uma descida ao encontro dos outros.  Por aí passa o ponto de cruzamento entre a espiritualidade e a ética cristãs.  Não se trata de um apelo para alguns poucos escolhidos que se distinguem do resto da humanidade, a qual se debate em dúvidas, tentações e imperfeições.  Pelo contrário, é a radicalização do ser humano como caminho para o encontro com o verdadeiro Deus. 

O caminho da santidade é, segundo Francisco, transfigurar o cotidiano, resgatar em meio ao ordinário o extraordinário. É também vigiar constantemente e estar atento às armadilhas que aparecem a cada momento da vida e superá-las inspirados pela experiência de amar e as opções fundamentais que daí decorrem.   É discernir constantemente não entre o bem e o mal, mas entre o bom e o melhor.  Assim as escolhas vitais qualificarão a existência, não deixando que esta seja arrastada por ideologias que a apequenam e lhe diluem a nobreza.

Na verdade, o que o Papa afirma, ousadamente, é que a santidade é um chamado para todos e não somente para os padres, as freiras, os religiosos.  É um caminho para todo ser humano que não se conforma com este mundo e entende que deve fazer o possível para transformá-lo e humanizá-lo.  É uma vocação para todo aquele ou aquela que não aceita que sua vida tenha que resumir-se a satisfazer pulsões, buscar sensações sofregamente e contentar-se com gratificações superficiais que se desvanecem rapidamente deixando gosto amargo e frustrante na boca e no coração.

Francisco adverte: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora, enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente.”  A santidade não é apenas uma maneira de comportar-se religiosamente ou um estilo de rezar, mas uma maneira de conceber a própria existência enquanto serviço oferecido ao outro.  

E este serviço se deseja ao mesmo tempo fiel a Deus e às realidades humanas.  E essas realidades humanas têm alcance maior do que simplesmente as relações interpessoais ou micro comunitárias.  Mas alcançam as próprias estruturas que condicionam a vida dos outros homens e mulheres e podem favorecer ou contrariar a justiça, a paz e a vida plena para todos.

Neste sentido, santidade não é apenas uma “performance” sempre mais acurada de ascese e crescimento individual, mas um compromisso pela vida, sobretudo a dos outros e dentre estes dos mais vulneráveis e frágeis.  Francisco diz explicitamente que “a defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. “

É assim que a santidade está ao alcance de todos aqueles e aquelas que reconhecem sua própria finitude e desejam ser transformados pelo amor que é maior e os faz plenamente humanos. Ser santo não é para campeões de perfeição, mas para pecadores que se reconhecem como tais, mas se deixam configurar pela graça de Deus e pelo apelo que vem da alteridade desfigurada de todo aquele que sofre e necessita cuidado e atenção.

Como diz o grande filósofo católico francês Jean Luc Marion: “Pecadores e traidores é o que mais existe na Igreja.  O extraordinário, o surpreendente, é que esta mesma Igreja ainda seja capaz de produzir santos.“ Francisco parece acreditar nesta capacidade.  E não a restringe apenas a um seleto grupo de especialistas, mas a estende ampla e universalmente a todo aquele ou aquela que desejar viver plena e radicalmente sua condição humana criada e redimida pelo Deus da vida.

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de  Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.

 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 13 de abril de 2018

LULA, O CARISMÁTICO LÍDER SERVIDOR


por Leonardo Boff

Nenhuma sociedade reforça sua identidade senão através de grandes símbolos que lhe conferem foco e que lhe apontam uma direção. Estes símbolos se encontram nos monumentos referenciais como o Cristo do Corcovado, ou numa inteira cidade como Brasíia ou as imagens dos profetas de Aleijadinho, nas estátuas que enfeitam as praças e outras. Os nomes das ruas reavivam a memória de escritores, de poetas, de artistas e de figuras que permanecem na consciência coletiva. No mundo político não se pode negar a predominância de Getúlio Vargas, um dos maiores líderes políticos de nossa história, que deu outro rumo ao Brasil e o introduziu no mundo moderno, beneficiando particularmente a classe trabalhadora.

Nesta linha se situa a figura de Luiz Inácio Lula da Silva. Ninguém pode negar-lhe o carisma de que é possuído, reconhecido nacional e internacionalmente. O decisivo de sua figura carismática é que provem das classes abandonadas pelas elites que sempre ocuparam o Estado e elaboraram políticas que os beneficiavam, de costas para o povo. Nunca tiveram um projeto para o Brasil, apenas para si mesmas.

De repente, irrompe Lula no cenário político com a força de um carisma excepcional, representando as vítimas da tragédia brasileira, marcada por uma desigualdade-injustiça social das maiores do mundo. Mesmo tendo que aceitar a lógica do mercado capitalista, perversa porque excludente e por isso, anti-democrática por natureza, conseguiu abrir brechas que beneficiaram milhões de brasileiros começando com o programa da Fome Zero e completada por várias outras políticas sociais.

Os que o criticam de populismo e de assistencialismo não sabem o que é a fome que Gandhi afirmava ser ela “um insulto; ela avilta, desumaniza e destrói o corpo e o espírito; é a forma mais assassina que existe”. Sempre que se faz algo em benefício dos mais necessitados, logo surge a crítica das elites endinheiradas e de seus aliados, de populismo e de assistencialismo quando não de uso político dos pobres. Esquecem o que é elementar numa sociedade minimamente civilizada: a primeira tarefa do Estado é garantir e cuidar da vida de seu povo, e não deixá-lo na exclusão e na miséria que vitimam suas crianças e os fazem morrer antes do tempo. A onda de ódio e de difamação que grassa atualmente no país nasce do espírito dos herdeiros da Casa Grande: o desprezo que dedicavam aos escravos o repassaram aos pobres, aos negros, especialmente às mulheres negras e outras pobres.

Lula com seus projetos de inclusão não apenas saciou a fome e atendeu a outras necessidades de quase 40 milhões de pessoas, senão que lhes devolveu o mais importante que é a dignidade e a consciência de que são cidadãos e filhos e filhas de Deus.

O verdadeiro lider serve a uma causa além de si mesmo. Lula, filho da pobreza nordestina, se propôs como Presidente que nenhum braseileiro precisasse passar fome. Quantas vezes o ouvi pessoalmente dizer que todo o sentido de sua vida e de sua política é dar centralidade aos pobres e arrancá-los do inferno da miséria. Outra vez, vindo de carro com ele de São Bernardo, passando por um lugar ermo fez parar o carro para me confessar: “muitas vezes, saindo da fábrica, sentei aqui nesse capim e chorava porque não tinha nada para levar para meus irmãos que em casa que passavam fome”. Como Chefe de Estado quis criar as condições para que ninguém precisasse chorar por causa da fome.

Lula foi e é um lider servidor desta causa. O líder carismático servidor fala para o profundo das pessoas. Dai nasce o entusiasmo e atração que todo lider suscita. Quantas vezes, nas minhas andanças pelas comunidades da periferia ouvi esta frase:”Lula foi o único que pensou em nós pobres e fez coisas boas para nós”. Dele se podem apontar limitações que pertencem à humana condição, até equívocos políticos, mas jamais se poderá dizer que abandonou o propósito básico de sua vida e de sua ação política. Sinal disso é o fato de que passava os Natais com os mendigos, cuidados pelo Padre Júlio Lancelotti, debaixo da ponte em São Paulo. Encontrava seus irmãos e irmãs de destino, mostrando-lhe solidariedade e companhia.

A sanha dos que querem o Brasil dos privilégios para poucos, conseguiram aprisioná-lo. Mas o sonho de um Brasil rico porque não tem miseráveis jamais pode ser aprisionado. Lula com seu sonho é imorredouro e se faz, como se diz na tradição judaica, “um justo entre as nações”.

Esses poucos exemplos aduzidos mostram como se pode ser líder político servidor do povo e suscitar em seus seguidores o mesmo espírito de serviço solidário e construtivo.

Tal atitude aponta para um outro tipo de Brasil que queremos e merecemos, animado por representantes que fazem da política, no dizer de Gandhi, “um gesto amoroso para com povo e um cuidado por tudo aquilo que é comum”. Lula se inscreve nesta honrosa tradição.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e e publicou Brasi: concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

FETICHE DO PODER


por Frei Betto

       A partir de agora o presidente da China pode ser sucessivamente reeleito. Isso significa um retrocesso aos tempos imperiais. A diferença é não ser considerado imperador, e sim ditador.

       Com plenos poderes nas mãos, Xi Jinping cuidará de afastar da máquina pública todos os potenciais adversários. Só dois fatores poderão derrubá-lo: um golpe de Estado ou a morte.

       “O poder desperta a ambição e faz multiplicar a cobiça”, dizia Aristóteles. Os espanhóis cunharam um provérbio que diz o mesmo em outras palavras: “Si quieres conocer a Juanito, dale un carguito” (Se queres conhecer a Juanito, dá-lhe um carguinho). Em dois anos no Palácio do Planalto, como assessor presidencial, aprendi que o poder não muda ninguém, faz com que as pessoas se revelem.

       Por que o poder é a mais sedutora ambição do ser humano e a maior de todas as tentações, acima do dinheiro e do sexo? Porque virtualmente possibilita a realização de todas as demais ambições. Ele “diviniza” o poderoso. Sempre cercado de quem lhe faz eco, se reveste de imunidade e impunidade. Qualquer de suas palavras e atitudes é sucedida de elogios, o que o priva da capacidade de autocrítica.

       O poder nasceu democrático. Toda a tribo debatia como abater o mamute e distribuir a carne à satisfação de todos. À medida que a tribo trocou o nomadismo pelo sedentarismo, tornou-se possível conservar o excedente da caça e da colheita. A apropriação desse excedente empoderou seus responsáveis. Poder legitimado por xamãs, feiticeiros e sacerdotes que sacramentaram a autoridade da minoria sobre a maioria.

       Se na monarquia o poder se deslocou de Deus para os reis, na democracia ele trocou o trono pelas ruas. O poder seria concedido pelo povo e em seu nome exercido. Isso de fato jamais aconteceu. Os eleitos criaram uma enorme barreira entre a rua e o palácio – a burocracia estatal. Instituições intermediárias, como partidos, ministérios, agências reguladoras e o aparato policial militar, tornam o governo praticamente impermeável às demandas populares.

       O poder é, sim, permeável às demandas da elite, manifestadas pela mídia, bancos e empresas. Em uma sociedade marcada por abissal desigualdade social, o poder é sempre monopólio da minoria afortunada.

       A fratura mais grave da democracia é a que separa poder político do poder econômico e submete o primeiro ao segundo. O eleitor vota, a elite financeira elege. Os cidadãos não apenas são excluídos das decisões que regem a economia, como também são retalhados em classes sociais distintas e antagônicas de acordo com a renda a que têm acesso.

       Mais importante do que saber quem exerce o poder é discernir para quem ele é exercido. Para uma classe minoritária? Para a maioria da população? “A loucura dos grandes precisa ser vigiada”, alertou Shakespeare.

       Em ano eleitoral, os eleitores devem pesquisar bem o perfil e a vida pregressa de cada candidato. E votar naqueles que inspiram confiança de agir com ética por mudanças estruturais em favor da maioria da população.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
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