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domingo, 5 de dezembro de 2010

UM DEUS QUE FALA

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio


O tempo da Igreja "deve ser cada dia mais o de uma nova escuta da Palavra de Deus e de uma nova evangelização", diz o Papa Bento XVI na nova exortação apostólica "Verbum Domini", lançada no Vaticano, no dia 11 de novembro.

A Verbum Domini é fruto da 12ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, realizada de 5 a 26 de outubro de 2008. Nas páginas do documento, o Papa procura mostrar que, ainda que no século XX tenha havido um renascer de consciência da necessidade da Palavra de Deus em temas como a reforma litúrgica, a catequese e os estudos bíblicos, existe um déficit que deve ser suprido em relação à vida espiritual do povo de Deus. Este tem o direito de ser mais inspirado e nutrido por uma aproximação mais orante e eclesial das Sagradas Escrituras.

Em vários pontos da exortação apostólica, Bento XVI insiste que o cristianismo “não é fruto de uma sabedoria humana ou de uma ideia genial”, nem seus textos resultados da indústria humana, mas decorrem, sim, “de um encontro e de uma aliança com uma Pessoa que dá à existência humana sua orientação e forma decisivas.”

Ao longo de quase 40 páginas das muitas mais que compõem o documento, o Papa destaca a necessidade de apresentar uma hermenêutica de forma “clara, construtiva, situando a ciência bíblica, exegética e teológica no interior e a serviço da fé da Igreja.” É preciso – segundo o Pontífice - uma interpretação das Sagradas Escrituras, que deve ser complementada com uma leitura teológica e científica e que, além disso, exige “o valor da exegese patrística” e convida “os exegetas, teólogos e pastores a um diálogo construtivo para a vida e para a missão da Igreja”.

Na verdade, voltar a pensar o lugar da Escritura na vida da Igreja é uma tarefa sempre pendente, ao mesmo tempo que primordial para todos aqueles que crêem. Pois a Bíblia é para todos que professam a fé cristã fonte da Revelação que lhes suscita a resposta da fé e, por isso mesmo, chamada Palavra de Deus.

Nos primórdios da Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que captaram e falaram sobre essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e fala. Mas se sabe e se declara que fala porque existe um ouvinte, ser humano ou mulher, que ouviu, ouve e fala daquilo que ouviu.

A linguagem humana, na medida em que toma consciência de si mesma, perceberá que fala do que lhe foi dado, fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na origem sem origem que foi caos e agora é cosmos.

Nó de relações aberto ao mundo, aos outros, a Deus, o ser humano vive tensionado como arco cuja flecha mira o infinito lutando com o peso da gravidade que o conduz ao chão onde partilha com os outros seres criados a condição perecível e o destino mortal. Por seu ouvido aberto, no entanto, penetra continuamente a palavra divina que o constitui ouvinte da Palavra criadora, pronunciada antes de todo nome sobre o caos primitivo. E em suas narinas é soprado o “nefesh” divino que lhe imprime o selo que o faz à imagem e semelhança do Criador.

A Revelação chega ao ser humano como graça que surpreende e convoca a liberdade. Proposta graciosa e gratuita, que pede uma resposta igualmente gratuita por ser fruto da graça que a precede. É, portanto, graça de Deus não só o fato de Ele fazer essa proposta ao ser humano, mas também o fato deste último, em sua limitação e finitude, poder ouvi-la, acolhê-la e a ela responder na fé, carente de evidências e comprovações empíricas. O milagre da escrita torna possível consignar esta escuta e esta resposta em signos legíveis e codificados. Mas por ser não apenas série de signos, letra invertebrada, e sim texto vivo e cheio de carne e seiva, a Palavra assim ouvida, assim falada se torna Escritura: escrita do Mistério maior que é Deus.

O homem e a mulher – seres históricos, sujeitos à caducidade do tempo - são referidos ao ser como mistério, ou seja, são seres sob misteriosa disposição alheia. Por isso, são pacientes mesmo quando agentes; desconhecidos mesmo para si próprios. A salvação os alcança como proposta que vem de Deus, mas que deverá ser experimentada e respondida dentro dos limites humanos: históricos, sociais, culturais.

Sendo algo tão fundamental para a compreensão mesma do que implica ser humano, esta categoria passa a ser uma definição da própria identidade humana: “ouvinte da palavra”. Porém, além de ser um ouvinte da Palavra, o ser humano é um ser criador e emissor de palavra, um ser de linguagem. Não apenas ouvinte da linguagem elaborada e proferida por outro, mas também criador de linguagem que transforma a realidade.
A Bíblia – Verbum Domini, Palavra de Deus – é a Palavra que liberta e dá a vida. Sobre ela, o Papa exorta que se torne não apenas letra morta, mas Palavra de vida, que faz o que diz e faz fazer.


A teóloga é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)


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POR UMA ECONOMIA A SERVIÇO DA VIDA


POR UMA ECONOMIA A SERVIÇO DA VIDA artigo de Frei Betto
por Frei Betto




A vida, dom maior de Deus, tem base econômica. Para sobreviver, o ser humano é capaz de prescindir de muitos bens, exceto comida e bebida. Por isso, Jesus ensinou a oração com dois refrões: “Pai Nosso” e “ pão nosso”. Deus é verdadeiramente Pai nosso, de todos, se o pão – símbolo dos bens essenciais à existência – é partilhado entre todos.

Hoje, os bens da Terra e os frutos do trabalho humano não são partilhados entre todos. Apenas 20% da população mundial, concentrados na parte ocidental do hemisfério Norte, detêm 80% da riqueza do planeta. No Brasil, basta sair à rua para se deparar com a miséria – que, além de ser um problema econômico, deveria ser, para todos, um desafio ético. Nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que nasceu. Se não padecemos necessidades básicas é por mero acaso da loteria biológica.

No mundo, de cada três nascidos vivos, dois vêm à luz na pobreza ou na miséria. Portanto, nossa condição de vida digna não deveria ser encarada como um privilégio, e sim como dívida social. Injusto é existir a loteria biológica num planeta que produz alimentos para 12 bilhões de bocas e é habitado por pouco mais da metade.

Nossos avós, antes de iniciarem a labuta diária, consultavam a Palavra de Deus. Nossos pais, o serviço de meteorologia. Nós, os índices do mercado financeiro... A quem as pessoas de fé dão, hoje, mais importância? Aos preceitos divinos ou às suas contas bancárias?

Economia - palavra que deriva do grego oikos+nomos,

É preciso sensibilizar a sociedade sobre o valor sagrado de cada pessoa; criticar o consumismo e superar o individualismo; enfatizar a relação entre fé e vida, através da prática da justiça; ampliar a democracia firmada em metas de sustentabilidade; fortalecer a globalização da solidariedade, de modo a criar uma nova alternativa de sociedade na qual o que há de mais sagrado – a vida humana – esteja acima da idolatria do dinheiro.

A ONU informa que, em 2009, foram investidos US$ 18 trilhões para socorrer bancos e empresas ameaçados de quebra devido às dificuldades econômicas e financeiras. De onde surgiu esta imensa quantia de dinheiro? A pergunta é pertinente, pois até então se dizia não haver recursos para garantir os direitos básicos das pessoas nem para a superação da miséria e da fome. Nos últimos 49 anos, a ajuda dos países ricos às nações em desenvolvimento foi de apenas US$ 2 trilhões! Uma mísera esmola ao longo de quase meio século!

A crise financeira comprovou que, por si só, o mercado é incapaz de reduzir o índice de exclusão social e assegurar a prosperidade coletiva. Nem é este o seu objetivo.

Na raiz da desigualdade social imperante no Brasil está a concentração de terras em mãos de poucas famílias ou empresas. Temos a segunda maior concentração da propriedade fundiária do planeta. Apenas 2,8% do total das propriedades rurais do país têm mais de 1.000 ha e ocupam 56,7% das terras cultiváveis. Os minifúndios representam 62,2% dos imóveis rurais e ocupam apenas 7,9% da área total – de acordo com o Atlas Fundiário do INCRA. É como se a área conjunta dos estados de São Paulo e Paraná estivesse em mãos dos 300 maiores proprietários rurais, enquanto 4,8 milhões de famílias sem-terra estão à espera de chão para plantar.

A lógica econômica que predomina na política do governo insiste, sob pretexto de evitar a inflação, em elevar os juros para favorecer o mercado financeiro e não os consumidores. Basta dizer que governo federal gastou em 2008, com a dívida pública, 30,57% do orçamento da União para irrigar a especulação financeira. E apenas 11,73% do orçamento com saúde (4,81%), educação (2,57%), assistência social (3,08%), habitação (0,02%), segurança pública (0,59%), organização agrária (0,27%), saneamento (0,05%), urbanismo (0,12%), cultura (0,06%) e gestão ambiental (0,16%).

Quem mais paga impostos são os pobres. Os 10% mais pobres da população destinam 32,8% de sua escassa renda ao pagamento de tributos, enquanto os 10% mais ricos, que dispõem de mecanismos de isenção tributária, apenas 22,7% da renda.

O ciclo da moderna economia política fecha-se num mundo autossuficiente, indiferente a qualquer consideração ética sobre a vida humana e a preservação da natureza. Os fatos históricos e a miséria em que vive grande parte da humanidade – 2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza, segundo a ONU -, põem em questão o rigor e a seriedade dessa ciência e a bondade das políticas econômicas voltadas mais ao crescimento e à acumulação da riqueza do que ao verdadeiro desenvolvimento sustentável.
“administração da casa” - não deveria ser encarada pela ótica da maximização do lucro, e sim do bem-estar da coletividade. Em outras palavras, se todos os aspectos de nossas vidas se relacionam à economia, como fazer de conta que ela prescinde de valores éticos e princípios evangélicos?

SOMOS AS MUDANÇAS QUE QUEREMOS NO PLANETA

Lboff/Itaipu 2Estou em Cancun e antes que comece o trabalho pesado das comissões sobre as mudanças climaticas envio o artigo que completa o anterior sobre o Cultivando Agua Boa. Voltarei sobre o tema de Cancun.
Abraço
LeonardoBoff
Teólogo

Esta frase que parece arrogante é, na verdade, o testemunho do que significa o projeto “Cultivando Agua Boa” implementado pela grande hidrelétrica Itaipu Binacional nos limites entre o Brasil e o Paraguai envolvendo cerca de um milhão de pessoas. Os diretores da empresa – Jorge Samek e Nelton Friedrich – com suas equipes sabiamente entenderam o desafio global que nos vem do aquecimento global e resolveram dar uma resposta local, o mais inclusiva e holística possível. Esta se mostrou tão bem sucedida que fez-se uma referência internacional.

Seus diretores-inspiradores dizem-no claramente: ”A hidrelétrica Itaipu adotou para si o papel de indutora de um verdadeiro movimento cultural rumo à sustentabilidade, articulando, compartilhando, somando esforços com os diversos atores da Bacia Paraná 3 em torno de uma série de programas e projetos interconectados de forma sistêmica e holística e que compõem o Cultivando Agua Boa; eles foram criados à luz de documentos planetários como a Carta da Terra, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis, a Agenda 21 e os Objetivos do Milênio”.

Operaram, o que é extremamente difícil, uma verdadeira revolução cultural, vale dizer, introduziram um complexo de princípios, valores, hábitos, estilos de educação, formas de relacionamento com a sociedade e com a natureza, modos de produção e de consumo que justifica o lema, escrito em todas as camisetas dos quatro mil participantes do último grande encontro em meados de novembro:”somos as mudanças que queremos no planeta”.

Com efeito, a gravidade da crise do sistema-vida e do sitema-Terra é de tal magnitude que não bastam mais as iniciativas dos Estados, geralmente, tardias e pouco eficazes. A Humanidade inteira, todos os saberes, as instâncias sociais e as pessoas individuais, devem dar a sua contribição e tomar o destino comum em suas mãos. Caso contrário, dificilmente, sobreviveremos coletivamente.

Christian de Duve, prêmio Nobel de Fisiologia de 1974, nos adverte em seu conhecido livro “Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico”(1997) que “nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções em massa”. Efetivamente, o ser humano tornou-se uma força geofísica destruidora. Outrora eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra, hoje o meteoro rasante davastador se chama o ser humano sapiens e demens, duplamente demens.
Dai a importância de “Cultivando Agua Boa”: mostrar que a tragédia não é fatal. Podemos operar as mudanças que vão desde a organização de centenas de cursos de educação ambiental e capacitação, do surgimento de uma consciência coletiva de corresponsabilidade e cuidado pelo ambiente, da gestão compartilhda das bacias hidrográficas, de incentivo à agricultura familiar, da criação de um refúgio biológico de espécies regionais, de corredores de biodiversidade unindo várias reservas florestais, de mais de 800 km de cercas de proteção das matas ciliares, do resgate de todos os rios, do cultivo de plantas medicinais, da geração de energia mediante os dejetos de suinos e aves, da construção de um canal de 10 km para vencer um desnível de 120 metros e permitir a passagem de peixes de piracema até a criação de um Centro Tecnológico, Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e da Universidade da Integração Latino-Americana entre outras não citadas aquí.

A sustentabilidade, o cuidado e a participação/cooperação da sociedade civil são as pilastras que sustentam este projeto. A sustentabilidade introduz uma racionalidade responsável pelo uso solidário dos recursos escassos. O cuidado funda uma ética de relação respeitosa para com a natureza, curando feridas passadas e evitando futuras e a participação da sociedade cria o sujeito coletivo que implementa todas as iniciativas. Tais valores são sempre revisados e pactados. O resultado final é a emergência de um tipo novo de sociedade, integrada com o ambiente, com uma cultura da valorização de toda a vida, com uma produção limpa e dentro dos limites do ecossistema e com profunda solidariedade entre todos. Uma aura espiritual benfazeja perpassa os encontros como se todos se sentissem um só coração e uma só alma.

Não é assim que começa o resgate da natureza e o nascimento de um novo paradigma de civilização?

ITAIPU BINACIONAL; MINIATURA DA BIOCIVILIZAÇÃO


Lboff/Cultivando Agua Boa
por LEONARDO BOFF

Há hoje na cultura mundial muita desesperança e perplexidade generalizada. Não sabemos para onde estamos rumando. O vôo é cego num rumo ao desconhecido. O que mais dói é a falta de alternativa ao modelo vigente que visa grande acumulação em vista do acelerado consumo, à custa da depredação da natureza e da geração de gritantes injustiças sociais a nivel mundial.
Com as “externalidades” surgidas (aquecimento global, escassêz de recursos, desequilíbrio global do sistema-Terra) a sensação predominante é que assim como está o mundo não pode continuar. Temos que mudar. Por isso, por todas as partes, surgem novas visões e especialmente práticas que nos devolvem certa esperança de que outro mundo é possível e necessário. A nova centralidade gira ao redor do cuidado da vida, da salvaguarda da Humanidade e da proteção do planeta Terra. O que vai nascer será uma biocivilização ou uma Terra da Boa Esperança (Ignacy Sachs).

Eis que em nosso pais encontramos uma miniatura do desejo coletivo, uma pequena antecipação daquilo que deverá ser dominante na Humanidade: o projeto “Cultivando Agua Boa” da Itaipu Binacional em Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná.
Ai, num acordo entre Brasil e Paraguai, se construiu a maior hidrelétrica do mundo com um reservatório de água de 176 quilômetros de comprimento, onde estão estocados 19 bilhões de metros cúbicos de água, utilizados por 20 turbinas que geram 14 mil megawatts.

Qual foi o “insight” de seus diretores Jorge Samek e Nelton Friedrich já nos inícios de sua administração em 2003? Que a água não se destina apenas para produzir energia elétrica, mas também para gerar todo tipo de energia necessária aos seres que dependem vitalmente da água, especialmente os humanos.

Foi então se modelou o projeto “Cultivando Agua Boa” que envolve os 29 municípios lindeiros nos quais vivem cerca de um milhão de pessoas, com a criação de aves e suinos, das maiores do pais. Trata-se de um projeto altamente complexo que envolve praticamente todas as dimensões da realidade, resultando numa verdadeira revolução cultural, pois este é o propósito dos milhares que implementam o projeto. É exatamente isso que precisamos: de um novo ensaio civilizatório, testado numa miniatura, que seja viável dentro das condições mudadas da Terra em processo de aquecimento e de exaustão de seus recursos. O motto diz tudo:”um novo modo de ser para a sustentabilidade”.

Sempre afirmei que a sustentabilidade foi sequestrada pelo projeto do capital, esvaziando-a para impedir que significasse um paradigma alternativo a ele, já que é intrinsecamente insustentável. Libertada deste cativeiro, ela adquire valor central de um novo arranjo civilizatório que estabelece uma equação equilibrada entre ser humano-natureza-desenvolvimento-solidariedade generacional. Em Itaipu se conseguiu instaurar esta equação feliz. Começaram corretamente com a sensibilização das comunidades. Quer dizer, iniciaram com o alargamento das consciências, convocando nomes notáveis do pensamento ecológico, como F. Capra, Enrique Leff (Pnuma latinoamericano), Marcos Sorrentino, Carlos e Paulo Nobre entre outros. Eu mesmo acompanho o projeto desde o seu início. Definiram o espaço não pelos limites arbitrários dos municípios mas pelos naturais das hidrobacias. Envolveram todas as comunidades, criando comités gestores de cada bacia, legalizados pelas prefeituras. Sabiamente se deram conta de que a educação ambiental representa o motor da mudança de ser, de sentir, de produzir e de consumir. Não é isso a inauguração de uma revolução cultural? Formaram algumas centenas de formadores ambientais, atingindo milhares de pessoas. Uma nova geração está surgindo que busca um modo sustentável de viver.

No próximo artigo quero detalhar o vasto campo de atividades que vão desde o aproveitamento dos dejetos sólidos gerando energia, até a inovação tecnológica com o carro elétrico, a pesquisa sobre o hidrogênio, a criação do Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e a da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Quem acompanha aquele projeto sai com esta certeza: a Humanidade é resgatável, ela tem jeito, é possível, como dizia Fernando Pessoa, criar um mundo que ainda não foi ensaiado.

OLHANDO MARIA


por ASSUERO GOMES

Sobem o morro multidões em crise e outros nem tanto, felizes. Alguns vendedores experimentam o milagre da sobrevivência mais farta, por pelo menos oito dias. Crianças sonham com o carrossel do parque popular, os vendedores de velas e fitas se alegram. Patroas e empregadas sobem juntas. Prostitutas e freiras. Mendigos pedem, senhoras pedem, o pároco pede, o coral canta, os fogos explodem. É júbilo, é oração, é festa.

Quem os vê de longe pode pensar numa serpente caprichosa que vai ser pisada pelos pés da Virgem, mas são passageiros de uma terra em movimento, paroquianos do planeta, poeira cósmica cintilante e opaca, a romaria das filhas e dos filhos que segue morro acima. Vão debulhar suas novenas, como grãos semeados em terços devotos.

É festa no Morro. É festa no coração, entre lágrimas e sorrisos e olhares todos procuram pela Mãe. Não será esta a eterna procura dos seres humanos enquanto vivos? Procuram o carinho, o alívio, a proteção, a saúde, o conforto. Alguns sobem de joelhos, outros carregam pedras, como se o fardo de viver e caminhar já não fosse bastante pesado para todos, especialmente para os miseráveis, filhos e filhas de Eva neste vale de lágrimas.

Vãos os devotos e os profanos, os puros e os promíscuos, estão de azul e branco. Olham serenos o olhar sereno da serena maternidade de Maria.

O que pensará a Mãe nestes dias de festa e devoção?

Olhando aquela multidão desesperada e compassiva, como ovelhas no meio de lobos, olhará para o Filho e intercederá por cada um, citando nome por nome, derramando misericórdia no já transbordante coração misericordioso de Jesus. Bastando um olhar de súplica, que vale mais que todas as orações de todos os anjos e santos do universo celeste. Maria contará no seu coração cada lágrima de uma mãe aflita, de um pai de família desempregado, de um drogado, de uma violentada, de uma família destroçada. Transformará estas lágrimas em um rosário translúcido, como uma jóia rara, e o depositará nas mãos do Filho para que os alivie.

Lá vai o cego camelô vendendo óculos, o profeta bêbado que grita contra o governo, a cantora lírica que está afônica, a afilhada que foge da madrinha, o homem de paletó com a Bíblia na mão clamando o fim do mundo, o aleijado tentando subir correndo, a gestante que não encontrou lugar para ela na maternidade, o pedinte com a perna enfaixada, a faminta que pede comida numa lata de goiabada, o dançarino de frevo numa cadeira de rodas, e a procissão aumentando. É a humanidade peregrina no seu cortejo humano aos pés da santa.

O que ninguém sabe, e isso é um segredo mariano, é que ela desce do pedestal, e ali no meio de seus filhos e filhas caminha com eles, incógnita, invisível, no entanto aqueles que veem com os olhos do coração, especialmente as crianças e os pobres, a reconhecem e se animam mais um pouco, até a chegada final da peregrinação. Segue com eles cantando a canção e os hinos de vitória, pois o Filho traz a história na mão.

Olhar Maria, só através dos olhos dos necessitados, dos aflitos e dos corajosos. Entender Maria só com o coração ferido de uma mãe cujo filho sangra a dor do abandono e da necessidade. Pedir a Maria é ter certeza da sua intercessão junto ao Filho, agora, amar Maria só amando seus filhos, que são nossos irmãos.

O DIREITO DE SER FELIZ


O direito de ser feliz

Por: Marcelo Barros

Um dos atuais projetos de lei, proposto ao Congresso Nacional, propõe que se introduza na Constituição Brasileira o direito de todas as pessoas à felicidade, como objetivo a ser alcançado pela sociedade nacional e dever a ser salvaguardado pelo Estado. À primeira vista, parece estranho e sem sentido imaginar que a felicidade possa ser decretada como lei e um governo deva ter uma função neste domínio. Isso causa mais espanto em uma sociedade na qual o individualismo se tornou dogma inquestionável e as pessoas pensam a felicidade como algo absolutamente individual. Ninguém teria nada a ver com a felicidade do outro. Cientistas das mais diferentes áreas contestam isso. Em seu livro “Inteligência Emocional”, Daniel Golemann mostra que, quando há cerca de 125 milhões de anos, o ser humano se distinguiu dos outros mamíferos, o que marcou a diferença foi o surgimento de uma capacidade de associação afetiva que nos liga essencialmente ao outro. Naquela etapa da evolução, em uma espécie de mamíferos humanóides, em tudo semelhantes aos outros macacos, surgiu o cérebro límbico, parte do nosso sistema cerebral, responsável pelo afeto, pelo cuidado e pelos sentimentos. Mais tarde e somente há quatro milhões de anos, o nosso corpo desenvolveu o neocortex, a parte do cérebro capaz de razão abstrata, conceitos e linguagem racional. Todo o nosso ser é um só e tudo deve ser integrado. Entretanto, se fosse necessário, distinguir e hierarquizar nossas funções de forma isolada, temos de reconhecer: o ser humano é primeiramente um animal emocional e afetivamente ligado aos outros e só depois é racional. Para corresponder à natureza humana mais profunda, a sociedade deve se basear na colaboração e na comunhão e jamais na competitividade e na concorrência que, infelizmente, ainda se encontram nos empregos, nas escolas, nas famílias e até em comunidades religiosas.

“Bustão é um pequeno reino nas encostas do Himalaia, espremido entre a China, a Índia e o Tibet. Tem apenas dois milhões de habitantes e a capital é Timfu, com 50 mil habitantes. O país é governado por um rei e por um monge budista que, coordena o judiciário. Juntos dialogam com os conselheiros, responsáveis pelo legislativo. É o único país do mundo, no qual, de acordo com a lei do Estado, o objetivo do desenvolvimento do país não depende apenas do Produto Interno Bruto (PIB), mas, principalmente, do “índice de felicidade interna”. A cada ano, as pesquisas sociais não computam apenas o que o país produziu em serviços e bens de consumo, mas procuram saber se as políticas públicas foram capazes de sustentar e fortalecer no povo um “índice de felicidade interna”(L. Boff, Cuidar da Terra, Proteger a Vida, Record, 2010, p. 141).

A experiência humana mostra como a felicidade das pessoas depende de uma série de fatores imponderáveis e misteriosos. Um Estado bem organizado pode favorecer uma boa qualidade de vida nas cidades e no campo, mas não pode garantir que as pessoas sejam felizes. É claro que uma educação à solidariedade e à descoberta de valores mais profundos na vida podem ser fundamentais neste caminho. Em todo o Brasil, as diversas unidades regionais da “Universidade da Paz” e trabalhos similares têm ajudado muita gente a se encontrar e a desenvolver valores de vida mais profundos.

As novas Constituições cidadãs da Bolívia e do Equador ensinam que o sumak kawsat do povo Quétchua, ou o suma qamaña dos Aymara (o bom viver) é um objetivo social a ser perseguido pelo Estado e por toda a sociedade. Não se trata apenas de viver melhor, mas de viver dignamente e a partir da realização profunda das potencialidades da pessoa, sempre dentro da sua comunidade humana e na comunhão com a Mãe Terra e com todo o universo. O “bom viver” é realmente um jeito de viver solidário e afetuoso que respeita a individualidade das pessoas, mas ajuda cada uma a se desenvolver a partir de uma educação essencialmente comunitária e solidária. Ninguém pode ser feliz isolado. E ser feliz não depende da quantidade de objetos de consumo que se possui. Ter dinheiro pode ser útil para satisfazer necessidades básicas, mas se a sociedade as garante de forma saudável e justa, isso se torna relativo. O objetivo da construção de uma comunidade verdadeiramente integrada é o caminho da boa convivência.

No Brasil, para que possamos ter em nossa lei o direito e o dever à felicidade pessoal e comunitária, é preciso que, antes de tudo, criemos a consciência de que esta é a nossa vocação humana e espiritual. Quem é cristão deve se recordar de que o próprio Jesus declarou: “Eu vim ao mundo para que todas as pessoas tenham Vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).