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sábado, 30 de outubro de 2021

Se a escola não for democrática, vai educar como?

 Prof. Martinho Condini


 

 Acredito que essa pergunta possibilita a reflexão de muitos gestores, gestoras, professoras, professores, alunas, alunos, pais e mães envolvidos na comunidade escolar.

A pandemia nos provou que a democracia passa muito longe das nossas escolas públicas. (às escolas privadas tem dono e cada um deles toca a banda e afinam os instrumentos da maneira que os agradam).

Durante a pandemia quantos jovens ficaram sem acesso às aulas por não terem recursos tecnológicos para assistir as aulas, e mesmo que alguns tivessem precários recursos, faltaram a eles o essencial no processo de ensinagem e aprendizagem, a relação humana, a ausência da amorosidade e a dialogicidade tão fundamentais para a construção da cidadania e do conhecimento.  

Mas quando me refiro à ausência de escolas democráticas, me refiro a democracia social e racial e a igualdade de oportunidade para todos na escola.

 Esta semana saiu uma pesquisa publicada no jornal a Folha de São Paulo sobre o racismo e preconceito nas escolas. 

Preconceito e Racismo, por serem estruturais em nossa cultura estão ainda muito presentes no ambiente escolar. E quando digo estrutural, significa que eles são construídos em outros espaços como a família e a religião. E a escola como espaço laico e público tem a obrigação e o dever de trabalhar essas questões a fundo, até a exaustão.  

Não podemos nos esquecer que a supremacia branca, os valores judaico-cristãos e o espírito capitalista sempre estiveram presentes na formação da nossa cultura e carregam consigo valores preconceituosos e raciais que ao longo da nossa história foram transmitidos pela escola.   

Escola pra que se ela não está dando conta de fazer as principais discussões que aflige a nossa sociedade no que tange os preconceitos e os racismos?

 É inadmissível que se possibilite manifestações de preconceito e racismo numa escola.

Isso nos aponta para um norte, a principal função da escola é formar seres humanos, humanistas na melhor concepção da palavra, em primeiro lugar.

A escola que não se importa com a formação humana, não tem comprometimento com os seres humanos e com o planeta.  

Para que isso ocorra a escola deve ser forjada nos princípios éticos e morais universais que sustentam a verdadeira democracia, isto é,  o direito de todas e todos que nela estão inseridos falarem o que pensam e serem respeitados como sujeitos da história que são.  Uma escola que não permita o diálogo, a reflexão, o debate, a discussão construtiva, a transformação e a libertação daquele que a freqüenta esta fadada ao fracasso e a inutilidade.

Sabemos que por esse Brasil a fora temos maravilhosos exemplos de práticas democráticas em instituições de ensino públicas, a custo de muito trabalho e muita luta de professoras e professores progressistas comprometidos com a liberdade e respeito a dignidade humana acima de tudo. Os tempos são difíceis e sombrios não se pode esmorecer, e como diz o ditado popular, não podemos dar sopa para o azar. 

 O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Igreja: carisma e poder: 40 anos

  Leonardo Boff


 

O Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) do Sergipe organizou entre 25-28 de outubro uma série de palestras sobre o livro Igreja: carisma e poder que celebra 40 anos de sua publicação em 1981. O CEBI é uma articulação nacional de grupos populares e ecumênicos que estudam a Bíblia de forma aprofundada, como inspiração de práticas inovadoras para dentro da Igreja e também libertárias na sociedade. O propósito era mostrar a atualidade dos temas nele tratados que articulam a Igreja com a sociedade e os modelos de Igreja vigentes.

Foi este livro que foi ajuizado em 1984 pela Congregação da Doutrina da Fé levando seu autor, no caso eu, a um verdadeiro processo judicial. Culminou em 1985 com uma “notificação” e não um decreto condenatório, proibindo a reedição do livro e a imposição ao autor de um tempo de “silêncio obsequioso”. Não se faz nenhuma condenação doutrinária, apenas se diz como conclusão:”Esta Congregação sente-se na obrigação de declarar que as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff  são de tal natureza que põe em perigo a sã doutrina da da fé, que esta Congregação tem o dever de promover e tutelar”

Observa-se que não se trata de doutrinas (campo dos dogmas) mas de “opções”(campo da moral) que podem significar um “perigo”. Evitado este perigo, não há porquê não seguir adiante nas opções que eram e continuam sendo: a centralidade do pobres e de sua libertação, o poder como serviço e não como centralização e a constituição legítima de comunidades eclesiais de base, como uma reinvenção da Igreja nos meios populares (eclesiogênese).

Lendo-se todo o texto do Card.Joseph Ratzinger expondo os tais “perigos” nota-se um equívoco de leitura. Leu-se não Igreja:carisma e poder, mas Igreja: carisma ou poder.Esta alternativa não se encontra em nenhuma página do livro. Afirma-se a legitimidade de um poder na Igreja junto com o carisma.

Seguramente o ponto central que a Congregação viu como “perigo”foi o confronto entre um modelo de Igreja, sociedade hierarquizada de poder sagrado e outro modelo de Igreja, comunidade fraterna de iguais com funções diferentes. O primeiro modelo dominante é o da Igreja-grande-instituição composta de clérigos, portadores do poder sagrado e de leigos sem poder de decisão nenhum.Aqui surgem as desigualdades, especialmente fechando as portas ao ministério sacerdotal às mulheres e impondo a lei do celibato obrigatório a todo o corpo clerical. O outro modelo é o da Igreja-rede-de-comunidades, todos sujeito de poder sagrado, exercido em funções(carismas) diferentes.

Ambos os modelos se  reportam ao passado da Igreja, o primeiro especialmente ao evangelho de São Mateus que confere grande importância a Pedro(Mt 16,18;18,16) que originará a centralização, chamada de “cefalização”(tudo se concentra na cabeça); o segundo às cartas de São Paulo que referem uma Igreja, comunidade de irmãos e irmãs, dotada de muitos carismas (funções e serviços), especialmente, em suas Cartas aos Coríntios, aos Romanos e aos Efésios. Para São Paulo o carisma pertence à cotidianidade e significa simplesmente funções ou serviços, todos animados pelo Espírito Santo e pelo Cristo ressuscitado, cabeça Igreja e no cosmos,implicando uma descentralização do poder, presente em todos e todas.

O fato histórico é, resumidamente, o seguinte: até o  século IV a Igreja, fundamentalmente, era uma comunidade fraternal. Do momento em que o cristianismo foi declarado pelo imperador Constantino (325) “religião lícita”, por Teodósio (391) “religião obrigatória” para todos, proibindo o paganismo até culminar com o imperador Justiniano (529) transformando os preceitos cristãos em leis civis, gestou-se, então, a Igreja-grande-instituição. De religião perseguida, passou a religião perseguidora dos pagãos. Sendo “religião obrigatória”, todos tiveram que assumir a fé cristã, criando uma Igreja de massa, não por conversão mas por obrigatoriedade sob medo e ameaça de morte.

Com a decadência do império romano, o bispo de Roma Leão Magno (440-461) assume o poder e o título de Papa (abreviação de pater patrum, pai dos pais), até então reservado aos imperadores. Assume-se junto o estilo imperial, os palácios, o báculo, a estola, o manto (mozeta) símbolo do poder monárquico, a púrpura e outros símbolos imperiais e pagãos que perduram até os dias de hoje.

A Igreja-grande-instituição não passou pela prova do poder. Nela se realizou o que afirma Thomas Hobbes no Levitã (1615):”Assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e de mais poder que cessa apenas com a morte; a razão disso reside no fato de que não se pode garantir o poder senão buscando mais poder ainda”(cap.X). Começa a acumulação do poder dos Papas até chegar com o Papa Gregório VII com o seu Dictatus Papae (a ditadura do Papa) a proclamar o Papa com senhor absoluto sobre Igreja e sobre os imperadores ou reis. Já não bastava ser sucessor de Pedro. O Papa Inocêncio III (+1216) se anunciou como vigário de Cristo e, por fim, Inocêncio IV(+1254) se arvorou representante de Deus. Hoje ainda se atribui ao Papa, consoante do direito canônico, um poder  que, parece, pertencer somente a Deus. O Papa  é portador de um poder sagrado”supremo, ordinário,pleno, imediato e universal”(cânon 331). A isso, desde de 1869, se acrescentou a infalibilidade em assuntos de fé e moral. Mais não se poderia ir.

A consequência é o surgimento de uma Igreja-sociedade piramidal,monárquica, rígida e rigorosa, que em termos doutrinários, de seus inquiridos, foi a minha experiência, nada esquece,nada perdoa e tudo cobra. Nesse modelo de Igreja se verifica o que o psicanalista C.G.Jung afirmava:”Onde prevalece o poder não há mais lugar para a ternura nem para o amor”.

Os únicos Papas que romperam com esta tradição, ciosa de seu poder sagrado e monárquico, foi o bom Papa João XXIII e explicitamente o Papa Francisco que, em suas primeiras palavras,disse governar a Igreja na caridade e não no poder sagrado. Por isso cobra dos pastores uma “revolução da ternura”.

Face a esse modelo, hoje em profunda crise estrutural, surgiu o outro modelo da igreja, rede-de-comunidades fraternais. Ela sempre existiu na história da Igreja, particularmente, nas ordens e congregações religiosas, mas nunca conseguiu ser hegemônica. Mas ganhou densidade na vasta rede de comunidades eclesiais de base, atualmente, espalhadas em todo o universo cristão e ecumênico. Nelas o poder é serviço real, cotidiano e por todos participado na medida em que cada um tem o seu lugar na comunidade. São muitos serviços e funções  (carismas), quem prega, quem ensina,quem organiza a liturgia, quem visita os enfermos, quem trabalha com os jovens, todos em pé de igualdade, consoante São Paulo (1Cor 7,7;12,29).Há uma função (carisma) singular que é o de criar a unidade e a coesão na comunidade fazendo com que todos os serviços (carismas) confluam para o bem comum: é o serviço da presidência da comunidade. Como tal, preside também a eucaristia, não como função exclusiva, mas simultânea com as demais. Sua função não é concentrar mas coordenar.

Este modelo traduz melhor a mensagem e o exemplo do Jesus histórico que não quis nenhum poder e que estabeleceu todo o poder como serviço e não como dominação (Mt 23,11). Esse modelo apresenta-se como uma outra forma de organizar a herança de Jesus, de gestar uma Igreja mais conforme com o seu sonho, de todos irmãos e irmãs (Mt 23,8).

Este modelo comunional se apresenta mais adequado à verdadeira evangelização que significa encarnar a mensagem cristã nas mais diferentes culturas e assimilando seus modos de ser. A igreja emergiria como um imenso tapete colorido, feita uma teia imensa de comunidades cristãs, diferentes em seus corpos, mas todas unidas no mesmo testemunho da vida nova trazida por Jesus morto e ressuscitado. Caminharia junto com o processo de mundialização que lentamente constrói a Casa Comum, o mundo necessário, dentro do qual estão os vários mundos culturais (asiático, africano, latino, indígena etc). Aí estará a Igreja-grande-instituição que seguramente persistirá mas sem a hegemonia atual e principalmente a rede imensa de comunidades cristãs diversas e unidas no mesmo testemunho do Ressuscitado e de seu Espírito, junto com outras igrejas e  caminhos espirituais a serviço de uns e de outros e da única Casa Comum que temos, a Mãe Terra.

Leonardo Boff escreveu Igreja: carisma e poder, Record, Rio de Janeiro 2005;Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja,Record,Rio de Janeiro 2008; Francisco de Assis e Francisco de Roma: uma nova primavera na Igreja, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2015.

 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

NÃO EXISTEM RAÇAS, EXISTE RACISMO

 Frei Betto


 

       Não existem raças, afirma o antropólogo italiano Marino Niola. Elas existem apenas como “mito político”. É preciso excluir a palavra raça dos vocabulários da ciência, do marketing e da Constituição brasileira, cujo artigo 3, inciso XLI, reza: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 

       Raça é uma palavra maldita, uma patologia da linguagem.  Existem apenas duas “raças”: a dos que têm e a dos que não têm. No capítulo VIII do clássico “Dom Quixote”, o herói alerta seu fiel escudeiro: “Vê ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos a vida, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da Terra.” Cético, Sancho Pança questiona: “Quais gigantes?” O escudeiro se esforça por trazer Quixote à realidade. Vale perguntar: Quais raças?

       A resiliência do termo “raça” em nossa cultura, a ponto de um governo progressista como o do PT criar a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, se deve ao fato de o racismo pretender atribuir bases científicas à sua postura execrável. As nossas diferenças de atitudes nada têm a ver com a Mãe Natureza; são filhas da Mãe Cultura. Nossos preconceitos e comportamentos discriminatórios resultam da educação que recebemos, das influências que tivemos, das experiências que vivemos. 

       Minha geração, nascida na década de 1940, é tributária dos filmes de Hollywood, nos quais os mocinhos eram sempre homens louros, de olhos claros, e os bandidos se assemelhavam a latino-americanos ou indígenas. O mesmo nas HQs da Disney, como o Pato Donald, nos quais os aborígenes figuravam como inferiores e ignorantes.

       A “bíblia” dos racistas é o livro do francês J.A. Gobineau, lançado em 1853, “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”. Ali o filósofo francês aplica aos povos os parâmetros usados na zoologia para classificar espécies animais. 

       O primeiro a denunciar essa falácia foi outro francês, Claude Lévi-Strauss, em 1952, em seu livro “Raça e história”, uma reação ao uso e abuso do termo pelos nazistas. O antropólogo francês retomou o assunto em  “A cor das ideias”, de 1971, no qual desmascara os silogismos raciais com base na ciência.

       A genética comprova que o DNA é comum a  todos os seres humanos. E as diferenças não derivam dos genes, e sim da convivência com outras pessoas que nos transmitem o patrimônio imaterial – idiomas, tradições, costumes, valores, gostos. Somos de diferentes etnias, que resultam da cultura, não raças, que supostamente resultariam da constituição biológica. 

       Vale lembrar que não há ninguém mais culto do que outro. Há distintas culturas socialmente complementares. É um erro confundir níveis de escolaridade com níveis de cultura. O físico nuclear que não sabe cozinhar depende, para sobreviver, da cultura culinária de sua cozinheira.

       A humanidade sempre se dividiu entre seres “superiores” e seres “inferiores”. A suposta superioridade não deriva da cor da pele, como alegam brancos racistas. Deriva das ferramentas empoderadoras, como o dinheiro e os recursos bélicos, que forjam a ideologia de que as características do dominador legitimam a sua superioridade em relação ao dominado. Assim, os romanos da época do império tratavam os estrangeiros como “bárbaros” e os colonizadores europeus se atribuíam direitos e privilégios negados aos povos colonizados. 

       Para os espanhóis e portugueses que invadiram a América Latina os povos originários eram ignorantes. Os ibéricos jamais tiveram olhos para reconhecer a imensa riqueza cultural das nações indígenas, como os maias, que utilizaram o zero antes dos europeus e faziam previsões meteorológicas tão acertadas que, ainda hoje, intrigam os cientistas. 

       Jorge Luis Borges, no conto “O idioma analítico de John Wilkins” escreve que “não há classificação do Universo que não seja arbitrária e conjectural”. E cita como exemplo a enciclopédia chinesa intitulada “Empório Celestial de Conhecimento Benevolente”, onde consta que os animais se dividem em 14 categorias. A última é a dos que “de longe parecem moscas.”

       Vistos à distância, do alto da arrogância e prepotência, os demais seres humanos “parecem moscas”. Isso vale para o olhar do estadunidense preconceituoso frente aos africanos; do branco frente aos negros; do cristão frente ao muçulmano; do homem frente à mulher; do habitante da cidade frente aos indígenas. Por isso, a categoria “raça” é tão conveniente para legitimar preconceitos e discriminações. 

       Sabemos todos que os recursos do planeta se aproximam do limite. Exceto um: o ser humano. Somos o único recurso abundante na face da Terra, até mesmo porque nossa reprodução exige poucas calorias e nos dá imenso prazer. Daí o esforço de tentar naturalizar as diferenças, de modo a justificar a exploração, a submissão e a exclusão. 

       Admitir que somos todos dotados das mesmas características biológicas e da mesma dignidade significa uma ameaça aos que detêm os meios de controle de uns sobre os outros, da riqueza da elite em relação aos pobres, e até da força física do homem em relação à mulher.

       Certas palavras devem ser definitivamente eliminadas do vocabulário. Não existe raça, existe sim racismo, que do mesmo modo deve ser banido da convivência humana.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org 

 

 

Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 27 de outubro de 2021

AMOR E SENSUALIDADE, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS (2)

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO 


21/10/2021

     Segundo o livro do Gênese, no início da Criação, o Universo era apenas um imenso vazio. Então o amor de Deus começou a pulsar e todas as coisas passaram a existir. O mundo criado é, pois, uma expansão do amor divino. Sua substância, sua matéria prima é moldada no amor. Daí nascemos nós, por um ato de amor e, a vida inteira, travamos uma ardente batalha de amar e ser amados. Até sermos um dia mergulhados na eternidade onde, escreve S. Paulo, "Deus será tudo para todos".

     Este belo hino cósmico ao amor encontra fundamento na realidade? Uma coisa é o que é o amor, outra coisa, o que dele  fizemos. O próprio mundo que construímos para nossa habitação não o favorece, ao contrário, propõe objetivos que lhe roubam as condições de bom êxito.

     Haverá uma relação intrínseca que faça uma ponte entre amor, sensualidade e espiritualidade? Pagamos promessa da reflexão anterior, cedendo a palavra aos grandes místicos:

    Sto. Agostinho foi uma mente genial em falar coisas belas e profundas sobre este assunto. "Amor pondus meus", dizia ele, "o amor é meu centro de gravitação". E ousava "pressionar" o próprio Deus: "não me negues o que amo, Senhor, pois me deste o dom de amar". Contudo, jamais conseguiu conciliar os dois tempos da sua existência, os anos da juventude, repleto de aventuras sensuais, e os anos posteriores da sua conversão. Ao filho que teve, e amava ternamente, deu o nome de Deodato ( dado por Deus), mas também o chamou de "fruto do meu pecado". O grande Agostinho fica sendo um exemplo a mais das incoerências humanas, a que nem os santos escapam. Nele o amor sublimado acabou asfixiando o amor carnal e isso teve uma influência marcante na doutrina moral da Igreja até hoje.

     Sto. Tomás de Aquino, outro gênio do pensamento cristão, coloca, entre os primeiros anseios do amor, o êxtase. A pessoa movida pela paixão foge do habitual para o excepcional. A paixão o leva para fora de si e o põe em estado de êxtase.

     Sta. Teresa D'Avila, uma das maiores místicas do cristianismo, levitava com frequência. A lei da gravidade não podia deter o seu voo apaixonado para Deus

("vivo sem viver em mim e tão alto bem almejo que morro por não morrer", escreve ela).

     Engana-se quem pensa que os grandes místicos foram privados de todos os prazeres prometidos aos amantes. No mundo da transcendência eles descobriram um manancial de prazer incomparável e inesgotável. Só quem os experimentou sabe a diferença.

     A pandemia do coronavírus tem sido uma oportunidade ímpar de enxergarmos os paradoxos de uma sociedade mercadora de sensações hedonistas. Ocupada 24 horas em produzir objetos de consumo, ela não se dá conta do que se passa na alma dos seus clientes. O coronavírus, fazendo jus ao próprio nome, tirou-nos do trono de nós mesmos e devolveu-nos a nossa real dimensão; obrigou-nos a reavaliar nossas relações nas várias esferas da existência e repensar nossas vidas; derrubou os mecanismos montados para legitimar  as seduções e promessas do Mercado;  aniquilou de vez a confiança em quaisquer atitudes de auto-suficiência. Ao final, nos deparamos com uma verdade assustadora: nossos maiores inimigos somos nós mesmos.

     Por outra parte, trouxe-nos a certeza de como somos peças importantes, indispensáveis, para a sobrevivência do planeta. E mais, confirmou que a única referência insubstituível de prazer confiável e duradouro está na relação com nosso semelhante. Tudo isso pode significar uma guinada na concepção do amor humano, favorecendo o equilíbrio entre sensualidade e espiritualidade. O tempo dirá se a lição foi apreendida. Enquanto esperamos, anima-nos a advertência de S. Paulo: "ainda que se corrompa o nosso homem exterior, o interior se renova dia a dia" 2Cor. 4,16.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Construir uma Política nova e renovadora

 Marcelo Barros


 

Cada vez mais, no Brasil, se manifesta um modo de fazer Política que consiste em fomentar ódio e violência e em nome de princípios sociais e religiosos. Basta um bispo explicar que “pátria amada” não pode ser “pátria armada” e, logo, um deputado o  insulta publicamente  e destila o seu ódio à conferência dos bispos católicos e ao papa Francisco. Grandes meios de comunicação colaboram para que o próprio exercício da Política caia em descrédito geral. Enquanto isso, a ONU celebra o 76o aniversário de sua fundação (24 de outubro de 1965), com atividades contra o armamentismo e em favor da justiça eco-social e da Paz.

A ONU cumpre a importante missão de zelar para que a sociedade internacional seja impregnada de valores fundamentais como o respeito à dignidade de todos os seres humanos, a supremacia da justiça, a consciência ecológica e a abertura à transcendência. Grande parte da humanidade, mais consciente da realidade internacional, sonha com um organismo mundial que abranja não somente governos, mas também uma representação legítima da sociedade civil internacional. Só uma organização internacional que reúna Estados e também representantes das organizações civis terá força para exigir do governo das grandes potências respeito pelas leis e decisões internacionais. Somente um organismo assim poderá ajudar a humanidade a recuperar a consciência de que somos todos e todas uma só família humana. Que as vacinas contra todas as doenças sejam consideradas bens comuns da humanidade e não devam ser vendidas. É preciso deter a crueldade do governo dos Estados Unidos que, em meio à pandemia, impede que países como Cuba e Venezuela recebam insumos e matérias primas para medicamentos essenciais para a saúde do povo.  

 Nos últimos séculos, o controle cada vez maior, exercido pela Economia sobre a Política tem sido uma catástrofe para o mundo. A Terra tem quase oito bilhões de habitantes. Menos de um bilhão consome sozinho mais de 83% dos recursos disponíveis na terra. Metade da humanidade, mais de três bilhões de pessoas, devem viver com menos de dois dólares por dia. A cada ano, mais de 60 milhões de pessoas morrem de fome. Mais de um bilhão de crianças vive abaixo da pobreza. Conforme cálculos do Banco Mundial, com 40 bilhões de dólares, se poderia resolver todo o problema da fome e da saúde dos pobres no mundo. Ora somente, em um ano, os Estados Unidos gastam dois bilhões de dólares em armas para as guerras que mantêm no mundo. Ao mesmo tempo, a sociedade dominante fecha suas fronteiras aos migrantes que tentam sobreviver ao extermínio.

A sociedade civil não aceita mais essa iníqua organização do mundo. O papa Francisco pede que superemos “a cultura da indiferença”. É urgente estimular uma nova cultura contra a insensibilidade vigente com o que se passa com milhões de seres humanos.

A crise atual aponta para a necessidade de uma nova política econômica e social a serviço da construção de uma sociedade internacional e dos Estados. É preciso unir todas as pessoas de boa vontade e grupos articulados da sociedade civil para “democratizar a democracia”, ou seja, elaborar um novo estilo modelo de Política, efetivamente, centrado no bem comum. Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, martirizado em 1980, propunha um retorno ao que ele chamava  de “grande Política”.

Nestes próximos dias, a ONU organiza duas conferências mundiais, uma sobre Biodiversidade e outra sobre Mudanças Climáticas. O papa Francisco e 40 líderes de diversas religiões publicaram um Apelo pela sustentabilidade do planeta e pelo cuidado com a Vida. É importante que em nossos países reforcemos as políticas que garantam esse direito da Vida. 

 

  Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019Email: irmarcelobarros@uol.com.br  

domingo, 24 de outubro de 2021

Amor e Sensualidade, em Tempos de Coronavírus

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(23/10/2021)

 

     Qualquer pessoa que tenha feito uma experiência de amor real e profunda percebe que o amor fala linguagens diferentes, de acordo com as suas diferentes fontes vitais. A maioria das pessoas, contudo, na pressa de desfrutar de seus prazeres, limita-se a uma única linguagem, a dos sentidos, da sensualidade.  

     Vivemos numa sociedade onde há uma superabundância de estímulos sensuais externos (praias, out-doors, casas de show, bancas de revista, etc.). No entanto, quanto mais estímulos são oferecidos, tanto mais é preciso oferecer. O excesso de visibilidade comprova por si mesmo que esta sociedade encontra-se deserotizada. A sobrecarga de erotização destruíu o verdadeiro erotismo.

     Foi preciso criar uma nova terminologia enquadrada nestas circunstâncias; fala-se em "fazer amor" e em "fazer sexo". O amor foi partido em dois. Como se o sexo tivesse de pagar tributo ao amor, pagar-lhe uma taxa extra para redimi-lo do pecado. Isso porque se o prazer sensual fosse dispensado de qualquer sentido ético, a vida coletiva estaria sob ameaça.

     Os que querem ir mais a fundo neste assunto mergulham no estudo de Sigismundo Freud. Por motivo de ignorância, não me arrisco a jogar a rede em águas profundas; prefiro pegar peixe miúdo na superfície, apenas lembrando que, para Freud, todos os amores são derivados do amor erótico, todos estão ligados a uma base de energia psico-física chamada libido.

 

     Enquanto alguns poucos entendidos discutem Freud, uma procissão infinita de viventes vai desfilando e movendo-se à procura do único bem que conta com a aprovação unânime universal, o mais valioso e apreciado, o bem supremo: a felicidade. Segue esta multidão numa marcha apressada, competitiva e dispendiosa. Não há tempo de perguntar "o que é a felicidade?". Novento e nove vírgula nove por cento concorda, de antemão, que ela tem que ter o gosto inconfundível do prazer sensorial. Onde não houver prazer dos sentidos não há felicidade.

       Uns descobrem migalhas e outros miragens de felicidade. Uns se empanturram de objetos de consumo, outros vomitam de tédio. Alguns matam e outros se deixam morrer. Poucos fazem fortuna, a maioria empobrece. Uns desmaiam de overdose, outros, de fome. Não poucos enlouquecem. Ouve-se de longe a voz de uma criança "felicidade é o peixinho comer a isca sem se machucar no anzol". E ouve-se também a voz forte de uma jovem a cantar "felicidade é uma calça jean azul e desbotada". Um poeta com 80 anos desnuda as ilusões e escreve "há duas épocas na vida em que a felicidade está numa caixa de bombons"(C.D.A.). Enfim, um flósofo filosofa "estamos condenados a ser felizes" (Sartre).  Mas, aconteça o que acontecer, nada ou ninguém consegue deter a marcha inexorável e a multidão continua perambulando pelo mundo, sem ver o seu ser. Sucede, vez por outra, que alguém escapa e vai olhar à distância e percebe que toda essa multidão não é senão uma ilha. E se lhes abrem os olhos. Destes falaremos no próximo capítulo.

      Inesperadamente infiltra-se nesse meio um fantasma invisível. E por ser invisível, recebe um nome simbólico: coronavirus. Ele ataca e, ao mesmo tempo em que espalha dores e mortes, deixa lições inesquecíveis. Sendo a melhor delas a seguinte: O amor mais necessário e eficaz, na luta pela vida, tem sido amor desvinculado de seus componentes de erotismo e sensualidade. Vimos profissionais da saúde salvar vidas a preço de ingentes sacrifícios. Cientistas dia e noite isolados em suas pesquisas até alcançar a descoberta da almejada vacina. Pais e mães juntando suas últimas forças de reserva, a fim de garantir a harmonia da família, exaurida numa longa e compulsória quarentena. Anônimos trabalhadores de hospitais, garantindo a imprescindível higiene. E outros tantos preservando a dignidade  dos mortos, no ato de devolvê-los ao seio da terra. Heróis e heroinas desconhecidos, indiferentes ao risco da própria vida, desde que pudessem acompanhar cada instante dos seus entes queridos, que caminhavam para o fim.

     O que há de prazer sensorial nestes verdadeiros holocaustos   de amor ao próximo? Perguntemos aos seus protagonistas e os ouviremos falar de  uma satisfação transcendente, vivida na profundidade da alma, a que nenhum outro prazer se compara, vinda desta descoberta: "não há maior prova de amor do que dar a vida..." Jo.15,13.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

sábado, 23 de outubro de 2021

O Estado burguês e uma educação quase inútil

 Prof. Martinho Condini


 

Os clássicos do marxismo, em sua práxis política, trataram do Estado como uma realidade mais complexa do que a definição da teoria marxista do Estado.

No marxismo o aparelho repressivo de Estado compreende o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, a educação, etc. Eles são repressivos porque através da violência (física ou não, como a violência administrativa), exercem o suposto papel de guardiãs da sociedade.

Para Gramsci o Estado não se resumia ao aparelho repressivo, mas que este é composto de aparelhos ideológicos representados por instituições inseridas na sociedade civil.

Quando falamos dos aparelhos ideológicos de Estado estamos nos referindo: a família, a escola, a religião, a justiça, ao sistema político, aos sindicatos, a cultura (letras, belas artes, esportes, cinema, teatro, etc.), a imprensa, o rádio, a televisão, as redes sociais e a relação capital-trabalho tão perverso no capitalismo selvagem e neoliberal que aflige as sociedades.

Apesar das diferenças existentes entre o aparelho repressivo do Estado e os aparelhos ideológicos do Estado, ambos caminham juntos em perfeita harmonia em prol dos interesses daqueles que estão no comando do Estado e a serviço dos grupos que eles representam, ou seja, a classe dominante.

Estes aparelhos ideológicos funcionam por meio da ideologia das classes dominantes que detêm o poder e o controle do Estado e, conseqüentemente, dispõe do aparelho repressivo de Estado a seu favor.

Mesmo diante desta hegemonia e controle das classes dominantes, os aparelhos ideológicos de Estado são também espaços e lugares de luta de classes, pois neles as classes exploradas podem resistir e encontrar formas de resistência, como por exemplo, a escola. Quero ressaltar o quanto é importante o papel da professora e do professor nesse engajamento e resistência. A escola é também um espaço de luta, não nos esqueçamos que educar para a liberdade é um ato político. E isso se dá através do diálogo e da conscientização, e não por meio do controle e da dogmatização realizada pelo aparelhamento do Estado.     

Muitas vezes a escola funciona como aparelho ideológico de Estado com muita eficiência, pois tem nele uma matéria prima de rica potencialidade a ser moldada. Às crianças e os jovens são inseridos os valores sociais, morais, filosóficos e éticos que interessa ao Estado burguês e não valores universais. E temos que considerar que a presença dessas crianças e jovens na escola é obrigatória por anos, o que facilita a sua doutrinação.

Por isso, é fundamental que professoras e professoras dentro do espaço escolar suspeitem do trabalho que o Estado os obriga a fazer. Por isso, não devem se deixar levar pelo tão natural e o raso discurso da importância da escola a qualquer preço. De qual escola? De qual Educação? Bancária ou Libertadora? Se for aquela escola quase inútil que tem como principal objetivo atingir os índices dos sistemas avaliativos governamentais para que o Estado receba verbas do Banco Mundial, essa? Interessa a quem?

Mas há uma parcela de professoras e professores se desinteressam em fazer esses questionamentos ao Estado que lhe paga o salário e lhe garante o sustento da família. Mas é importante não  esquecermos  que escola não é fábrica e crianças e jovens vão para a escola para aprender e ensinar, construir conhecimento com o outro e se espantar com as surpresas e os desafios. E que professoras e professores não são meros papagaios de pirata repetidores das ideias e práticas determinadas pelos lacaios que comandam o Estado burguês.

  Por outro lado, o alento é que há muitas professoras e professores engajados na resistência e na luta, que diuturnamente no chão da sala de aula, com muito trabalho enfrentam com garra e galhardia essa nobre tarefa da ensinagem e da aprendizagem que liberta.

E a qualquer vacilo do Estado em mostrar suas garras, lutam pela dignidade e liberdade de seus alunos e alunas. E cada uma dessas professoras e professores, como se fossem beija flores, fazem os seus trabalhos no chão da sala de aula, formando cidadãs e cidadãos conscientes de seu papel na sociedade e sabedores da sua condição de sujeitos da história, capazes de transformar a sua história e da sociedade que fazem parte. 


 O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

O grande player excluído na COP26 em Glasgow

 Leonardo Boff


Do dia 31 de outubro a 12 de novembro ocorrerá a vigésima sexta edição da COP (Conferência das Partes) da ONU na cidade de Glasgow na Escócia.O grande tema que será tratado pelos 191 países participantes é como controlar o aquecimento global, efeito da emissão de gases de efeito estufa. Segundo o recente relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) o cenário mundial se apresenta, mais do nunca antes, sombrio. Temos apenas uma década para reduzir ao menos pela metade as emissões de CO2.Caso contrário atingiremos um aquecimento de 1,5 graus Celsius.Com esta temperatura ocorreria uma grave devastação da natureza, pois a maioria dos seres vivos não se adaptaria e poderia desaparecer; atingiria também dramaticamente a  humanidade, com milhões de emigrados climáticos, pois suas regiões se tornaram demasiadamente quentes para viver e produzir; além do mais, poderia haver a intrusão de vasta gama de vírus que  sacrificariam seguramente um número inimaginável de vidas humanas, muito maior que o atual  Covid-19.

Em razão do que já foi acumulado na atmosfera, pois o CO2 permanece lá por 100 a 120 anos, as mudanças que fizermos agora não mudarão  o curso crescente de eventos extremos causados por esta acumulação; ao contrário, tendem a se agravar como vimos pela inundação de águas do mar da cidade de Nova York. Nem a geoenharia, proposta pela ciência, deteria o nível das mudanças climáticas. Razão pela qual muitos estudiosos do clima sustentam que chegamos atrasados demais e não há como voltar atrás. Esta constatação  faz com que inúmeros  cientistas se tornassem céticos e tecnofatalistas. No entanto, afirmam que se não podemos mais mudar o curso do crescente aquecimento podemos, pelos menos, utilizar a ciência e a tecnologia disponíveis para minimizar seus efeitos desastrosos. O clima atual comparado com o que vier, nos parecerá ameno.

O relatório do IPCC é contundente ao afirmar que esta situação é consequência, absolutamente segura, das atividades humanas danosas para com a natureza (desmatamento,utilização excessiva de energia fóssil, erosão da biodiversidade. crescente desertificação e mau trato dos solos etc). É imperioso reconhecer que estes transtornos climáticos tem pouco  a ver com a grande maioria da humanidade empobrecida e vítima do sistema imperante. Este produz, infelizmente, uma dupla injustiça: uma ecológica ao devastar inteiros ecossistemas e outra social fazendo aumentar a pobreza e a miséria a nível mundial. Os verdadeiros causadores são as megacorporações industrialistas e extrativistas mundializadas que não respeitam os limites da natureza  e que partem da falsa a premissa de um crescimento/desenvolvimento ilimitado porque os recursos naturais também seriam ilimitados. A encíclica Laudato Sí do Papa Francisco declara como mentira esta pressuposição (n.106).

Que esperar da COP26 em Glasgow? São muitos a colocar em dúvida se haverá consenso suficiente para manter o Acordo de Paris, com o compromisso de redução de emissão de CO2 e outros gases de efeito estufa até chegar por volta de 2050 a zerá-la. Sabemos, no entanto, a partir das COPs anteriores, que a agenda é controlada pelos agentes das megacorporações, particularmente,do petróleo e da alimentação entre outras. Elas tendem a manter o status quo que as beneficia e se opõem a transformações de fundo que as obrigaria a também mudar seu modo de produção e diminuir seus ganhos em função do bem geral planetário. Assim que criam obstáculos ao consenso e freiam medidas mais drásticas face à evidente deterioração do equilíbrio climático da Terra.

Obviando um longo arrazoado, diria simplesmente o que a Carta da Terra (2003) e as duas encíclicas ecológicas do Papa Francisco, a Laudato Si:sobre o cuidado da Casa Comum (2015) e a Fratelli tutti (2020) afirmam com toda a seriedade: temos que operar uma “profunda conversão ecológica” pois ”estamos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”(Carta de Terra,preâmbulo e final:Fratelli n.30.34). Ocorre que o tema: como está nossa relação para com a natureza, de rapinagem ou de cuidado? De preservação de sua biocapacidade ou exaustão dos seus bens e serviços necessários à nossa vida e à sobrevivência? Como não é posto não é também considerado e respondido.

A Terra e a natureza constituem, no entanto, o Grande Player. De sua preservação, dependem  todos os demais projetos dos pleyers e o futuro de nossa civilização. A análise da situação degradada da Terra, inegável e desenfreada, nunca é considerada nas diversas COPs. A centralidade é ocupada pela economia política vigente, o player dominante, o verdadeiro causador dos desequilíbrios climáticos. Este nunca é colocado em questão.

O verdadeiro player salvador é a natureza, a Terra-Gaia, mas são totalmente ausentes em todas as COPs e será, pressupomos, também em Glasgow. Na perspectiva da Fratelli tutti: ou passamos do paradigma do dominus, o ser humano desligado da natureza e se entendendo seu dono e dominador para o paradigma do frater, do ser humano sentindo-se parte da natureza e irmão e irmã com os humanos e com todos os demais seres da natureza ou então vamos ao encontro do pior. Esta é a quaestio stantis et cadentis, vale dizer, a questão fundamental, sem a qual todas as demais questões se invalidam.

Desta vez, o futuro está em nossas mãos. Como afirma no seu final a Carta da Terra:”como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo” Em seu sentido mais profundo, esta é a lição que o Covid-19 nos quer passar. Voltaremos ao antes, aterrador para a maioria da humanidade,ou teremos coragem para um “um novo começo”, contrário ao Great Rezet ( a grande reinicialização) dos bilionários? Almejamos um verdadeiro “novo começo” benéfico para toda a comunidade de vida especialmente para a Casa Comum e para nós, seus habitantes, a natureza incluída.É a condição de nossa continuidade sobre este pequeno e esplendoroso planeta Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu Cuidar da Terra-proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record, Rio de Janeiro 2010; com J.Moltmann, Há esperança para a criação ameaçada? Vozes, Petrópolis 2014.