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domingo, 24 de outubro de 2021

Amor e Sensualidade, em Tempos de Coronavírus

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(23/10/2021)

 

     Qualquer pessoa que tenha feito uma experiência de amor real e profunda percebe que o amor fala linguagens diferentes, de acordo com as suas diferentes fontes vitais. A maioria das pessoas, contudo, na pressa de desfrutar de seus prazeres, limita-se a uma única linguagem, a dos sentidos, da sensualidade.  

     Vivemos numa sociedade onde há uma superabundância de estímulos sensuais externos (praias, out-doors, casas de show, bancas de revista, etc.). No entanto, quanto mais estímulos são oferecidos, tanto mais é preciso oferecer. O excesso de visibilidade comprova por si mesmo que esta sociedade encontra-se deserotizada. A sobrecarga de erotização destruíu o verdadeiro erotismo.

     Foi preciso criar uma nova terminologia enquadrada nestas circunstâncias; fala-se em "fazer amor" e em "fazer sexo". O amor foi partido em dois. Como se o sexo tivesse de pagar tributo ao amor, pagar-lhe uma taxa extra para redimi-lo do pecado. Isso porque se o prazer sensual fosse dispensado de qualquer sentido ético, a vida coletiva estaria sob ameaça.

     Os que querem ir mais a fundo neste assunto mergulham no estudo de Sigismundo Freud. Por motivo de ignorância, não me arrisco a jogar a rede em águas profundas; prefiro pegar peixe miúdo na superfície, apenas lembrando que, para Freud, todos os amores são derivados do amor erótico, todos estão ligados a uma base de energia psico-física chamada libido.

 

     Enquanto alguns poucos entendidos discutem Freud, uma procissão infinita de viventes vai desfilando e movendo-se à procura do único bem que conta com a aprovação unânime universal, o mais valioso e apreciado, o bem supremo: a felicidade. Segue esta multidão numa marcha apressada, competitiva e dispendiosa. Não há tempo de perguntar "o que é a felicidade?". Novento e nove vírgula nove por cento concorda, de antemão, que ela tem que ter o gosto inconfundível do prazer sensorial. Onde não houver prazer dos sentidos não há felicidade.

       Uns descobrem migalhas e outros miragens de felicidade. Uns se empanturram de objetos de consumo, outros vomitam de tédio. Alguns matam e outros se deixam morrer. Poucos fazem fortuna, a maioria empobrece. Uns desmaiam de overdose, outros, de fome. Não poucos enlouquecem. Ouve-se de longe a voz de uma criança "felicidade é o peixinho comer a isca sem se machucar no anzol". E ouve-se também a voz forte de uma jovem a cantar "felicidade é uma calça jean azul e desbotada". Um poeta com 80 anos desnuda as ilusões e escreve "há duas épocas na vida em que a felicidade está numa caixa de bombons"(C.D.A.). Enfim, um flósofo filosofa "estamos condenados a ser felizes" (Sartre).  Mas, aconteça o que acontecer, nada ou ninguém consegue deter a marcha inexorável e a multidão continua perambulando pelo mundo, sem ver o seu ser. Sucede, vez por outra, que alguém escapa e vai olhar à distância e percebe que toda essa multidão não é senão uma ilha. E se lhes abrem os olhos. Destes falaremos no próximo capítulo.

      Inesperadamente infiltra-se nesse meio um fantasma invisível. E por ser invisível, recebe um nome simbólico: coronavirus. Ele ataca e, ao mesmo tempo em que espalha dores e mortes, deixa lições inesquecíveis. Sendo a melhor delas a seguinte: O amor mais necessário e eficaz, na luta pela vida, tem sido amor desvinculado de seus componentes de erotismo e sensualidade. Vimos profissionais da saúde salvar vidas a preço de ingentes sacrifícios. Cientistas dia e noite isolados em suas pesquisas até alcançar a descoberta da almejada vacina. Pais e mães juntando suas últimas forças de reserva, a fim de garantir a harmonia da família, exaurida numa longa e compulsória quarentena. Anônimos trabalhadores de hospitais, garantindo a imprescindível higiene. E outros tantos preservando a dignidade  dos mortos, no ato de devolvê-los ao seio da terra. Heróis e heroinas desconhecidos, indiferentes ao risco da própria vida, desde que pudessem acompanhar cada instante dos seus entes queridos, que caminhavam para o fim.

     O que há de prazer sensorial nestes verdadeiros holocaustos   de amor ao próximo? Perguntemos aos seus protagonistas e os ouviremos falar de  uma satisfação transcendente, vivida na profundidade da alma, a que nenhum outro prazer se compara, vinda desta descoberta: "não há maior prova de amor do que dar a vida..." Jo.15,13.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

 

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