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domingo, 17 de outubro de 2021

AMOR E MISERICÓRDIA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS (2)

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(15/10/2021)

 

     A "Parábola do Filho Pródigo", além de uma das páginas mais belas da Bíblia, é tida como uma obra prima da literatura universal. Sobre ela debruçaram-se alguns gênios da filosofia e da arte, com a intenção de sondar-lhe o tesouro de saber e mistério. Um destes foi o poeta pernambucano Augusto Frederico Schmidt. Ele descreve o que se passaria n'alma do irmão mais novo, no momento em que surpreende seus familiares com a decisão de partir.

 

      "Os seus olhos viviam escondendo desejos de fuga. Ele mesmo não sabia porque, mas se sentia diferente dos outros, dos que nasceram na vasta casa paterna, dos que trabalhavam com o pai no engrandecimento e na prosperidade da família. Sentia-se despreendido da velha árvore. Enquanto os outros dormiam e encontravam no abandono noturno a reparação das longas fadigas do dia, o filho pródigo era assistido pela miragem e a provocação dos seus sonhos."

 

     O poeta também nos convida entender as tensões do coração paterno. "Nada é tão triste como o olhar do pai que se despede do filho. Nada é tão triste como as mãos que se

levantam para a última  bênção sobre a cabeça de um jovem que um dia foi pequeno nos seus braços paternos e cresceu ao lado do pai protetor e vigilante e agora principia a pensar e caminhar por si mesmo..."

 

     Um dos maiores pintores da história foi Rembrant. Um dos seus quadros mais famosos retrata o exato momento em que o terno abraço paterno acolhe o filho arrependido e humilhado. Sua face tem os olhos cegos. Ele os gastara perscrutando sombras na noite. Tentando descobrir no longe do caminho, sol a pino, o vulto do filho regressando. Cego também por não querer ver a culpa do filho. Sem contar as lágrimas escondidas. No centro do quadro observa-se o milagre das suas mãos: uma rude e grossa, é mão de homem; outra longa e fina, é mão de mulher. O artista não consegue admitir, nessa estória, a ausência da figura materna. Parece querer dizer: "Deus é um pai que ama como uma mãe.

 

     André Gide, dos mais renomados escritores franceses do século passado, escreveu "O Regresso do Filho Pródigo". Ele o imagina num encontro individual com um por um dos familiares,  cada qual reagindo ao seu modo. A mãe a reclamar a dor da saudade. O pai, a falta de mais um operário nos trabalhos da família. O irmão mais velho, a irresponsabilidade. No entanto, surge uma surpresa em cena: um terceiro filho que nascera na sua ausência. Este chorava inconsolável. Interpelado, desabafa: todos os dias sonhava acordado com o irmão distante. Era seu herói. Era seu idólo. E agora, na mesma noite em que decidira partir também, aquele volta e destroi os seus planos.

 

     Partir é uma sina irrecusável do desenvolvimento humano. Onde estaríamos muitos de nós, se nossos avós não tivessem trocado as brenhas do sertão pela cidade grande, onde seus filhos pudessem estudar, doutorar-se, "ser gente na vida" (dizia minha mãe).

 

     Durante estes meses sombrios do coronavirus, assistimos a cenas  extraordinariamente tocantes de partidas e regressos. Pessoas queridas contagiadas, trocando o abrigo do lar pelo hospital e, em seguida, a enfermaria pela UTI. O olhar apreensivo de parentes, disfarçando o medo com sinais de esperança. Outras tantas vezes, o regresso dos que se curavam, como um cortejo jubiloso, para o abraço e a festa inesquecível da família.

 

     No entanto, muitos foram infectados porque relaxaram o isolamento doméstico, em busca de aventuras proibidas.

 

     Na verdade, os filhos pródigos, figuras que se reproduzem sempre de novo na história, não regressam para abdicar de ser livres, mas sim para recomeçar o longo aprendizado da liberdade.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

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