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terça-feira, 30 de maio de 2017

A VENTANIA DA LIBERDADE

Por Marcelo Barros


No mais íntimo de cada pessoa, há uma permanente busca de sentido para a vida. Todos os seres humanos têm em comum o desejo íntimo e insaciável por algo mais profundo do que a mera cotidianidade e as necessidades imediatas. Há uma fome e sede de infinito. Mesmo se nos deixamos absorver pelas correrias do dia a dia, dentro de nós pulsa um misterioso apelo para um reencontro mais profundo conosco mesmo, para uma relação solidária com as outras pessoas e com o universo. Quem crê em Deus não pode vê-lo como uma entidade fora da realidade. Ao contrário, é um segredo de Amor presente e por trás de tudo o que existe. No fundo, é esse mistério de amor que todos os seres humanos pressentem e no qual buscam saciar sua sede de mais vida. No século IV, Santo Agostinho afirmou: "O coração humano vive inquieto até que possa repousar em Ti".

Conforme a fé cristã, a abertura ao Espírito é dom e corresponde a um chamado divino colocado no mais profundo de nós. O povo antigo acreditava que o Espírito Divino era uma ventania que sacode tudo e renova a vida. Em uma das tradições religiosas afro-brasileiras, a ventania é expressão de Iansã, o Orixá dos ventos e das tempestades. Em hebraico, o termo "espírito" é “ruah”, ventania. Na primeira página, o Gênesis afirma que antes que Deus pusesse ordem na criação, "a ventania divina pairava sobre as águas (Gn 1, 2). Mais tarde, quando os hebreus precisavam atravessar o Mar Vermelho para se libertar da escravidão do Egito, a ventania divina soprou durante toda a noite, separando as águas, para que o povo pudesse atravessar o mar a pé enxuto (Ex 14).

Na Bíblia, muitas vezes, o Espírito Divino toma a expressão feminina de mãe carinhosa a soprar a vida sobre a primeira humanidade (Adão), depois a fazer com o povo uma aliança de amor, baseada no casamento entre verdade e amor fidelidade e ternura. Conforme o evangelho de João, quando ressuscitou, Jesus apareceu aos discípulos reunidos e, assim como na criação da humanidade, Deus tinha soprado sobre o ser humano lhe dando vida, Jesus soprou sobre os seus discípulos e discípulas para lhes dar a vida nova do Espírito” (Jo 20, 19- 23).

Nesse próximo domingo,  mais uma vez, as Igrejas encerram as festas anuais da Páscoa com a celebração de Pentecostes. No Centro-oeste e em outras regiões do Brasil, as folias do Divino saem às ruas com seus ritos, suas melodias e seus tambores. Invocam o Espírito sobre a natureza ameaçada e sobre esse nosso mundo que parece tão sem rumo. 

Hoje, homens e mulheres das mais diversas religiões, assim como pessoas que não seguem nenhum credo, se engajam em buscar “um novo mundo possível”. Deixam-se tocar pela brisa suave da ventania divina e se mobilizam ao ver o fortalecimento de movimentos populares, indígenas e negros em todo o nosso continente. Quem abrir os olhos verá que há algo de novo acontece. Em todo o mundo, a realidade social e política tem se tornado mais dura e cruel. No entanto, os movimentos sociais têm se unido na luta pacífica por mais justiça e paz. Mesmo em meio a muitas contradições, a presença do Espírito em nós, não nos deixa perder a esperança. A festa de Pentecostes vem nos lembrar nossa vocação para a liberdade. Em suas cartas, Paulo nos assegura: “Vocês não vivem mais sob o domínio dos instintos egoístas (carne), mas sob o Espírito e o próprio Espírito Divino habita em vocês” (Rm 8, 9).  "Onde estiver o Espírito de Deus, aí haverá liberdade" (2 Cor 3, 17). "Foi para que sejamos livres que Cristo nos libertou" (Gal 5, 13).


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.




A CULTURA DO ENCONTRO


 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer



Uma das expressões mais presentes nos discursos e na prática do Papa Francisco é a "cultura de encontro". Ele a  tem repetido muitas vezes e em diversas ocasiões, e é uma prática importante de  seu pontificado por ser a mensagem que deseja transmitir a quem a ouve, em número cada vez maior, em todo o mundo, não só em Roma.

O objetivo deste artigo é refletir sobre a proposta do Papa Francisco de transmitir o que é primordial em um encontro. Não só conhecer, mas procurar ouvir as pessoas, estar com elas, não apenas para lamentar, mas se deixar levar pela compaixão às que são mais vulneráveis. Dizer-lhes  “não chorem” e dar-lhes “pelo menos uma gota de vida".

A intenção do Papa é combater a indiferença que prevalece em todos nós, a superficialidade das relações, buscar um encontro verdadeiro e profundo com o outro. Mas para que isso ocorra, afirma o pontífice, precisamos ser pacientes se quisermos entender quem é diferente de nós. A pessoa não se expressa plenamente quando é simplesmente tolerada, e sim quando percebe que é verdadeiramente bem-vinda. É preciso termos um desejo genuíno de ouvir o outro,  aprender a ver o mundo com olhos diferentes e apreciar a experiência humana que se manifesta em diferentes culturas e tradições. Apreciar melhor os grandes valores inspirados do cristianismo, como a visão do homem como pessoa, o casamento e a família, a distinção entre as esferas religiosa e política, os princípios de solidariedade e subsidiariedade, entre outros.

Devemos demonstrar ao outro nossa espiritualidade e o desejo de servir a Deus. Se o outro me deixa indiferente, trancado no meu próprio eu, o encontro não acontece, nem a transformação da vida. O próprio Papa Francisco nos diz: "Estamos acostumados a uma cultura de indiferença e temos de trabalhar e rezar pela graça de fazer uma cultura de encontro. Resgatar em cada pessoa a sua dignidade como filhos de Deus, a dignidade da vida. Estamos acostumados à ficarmos indiferentes quando vemos tanto as calamidades deste mundo como as pequenas coisas. Dizemos apenas ”quanta pobreza, quanto sofrimento”. Se não olharmos o suficiente para ver, não podemos ajudar a fazer uma cultura de encontro.”

O discernimento passa através da corporeidade que é a nossa condição de presença no mundo. Todos os sentidos têm que estar presentes quando se trata de realizar uma reunião com o outro. É preciso olhar, ouvir, tocar, ficar mais perto sempre, para não só dar, mas também e igualmente receber o que o outro tem para mim. “A cultura do encontro exige que estejamos dispostos não só para dar mas também para receber dos outros."

Segundo o Papa, para que isso ocorra é preciso acreditar no outro; acreditar que ele ou ela tem algo bom para mim, para me ajudar a crescer, para viver plenamente, para dar a minha medida como ser humano, como filho de Deus. É preciso estabelecer um diálogo com os homens e as mulheres  para entender suas expectativas, suas dúvidas, suas esperanças, e para oferecer o Evangelho que é Jesus Cristo, Deus feito homem, que morreu e ressuscitou para nos libertar do pecado. Este desafio exige uma profunda atenção à vida, exige sensibilidade espiritual. Dialogar significa estar convencido de que o outro tem algo bom para dizer, aceitar o seu ponto de vista, as suas propostas. O diálogo não significa desistir das ideias e tradições.

O Papa deixa claro que a experiência do encontro envolve diferenças e cresce com elas. No encontro com o outro que é diferente de nós podemos aprender muito e enriquecer toda a Igreja e a sociedade, a partir da experiência e a perspectiva do outro. Isso, porém, não significa perder a minha identidade. Até porque a minha identidade é parte do poliedro, é a minha contribuição, é o meu dom para os outros. Se não houver identidades claras, não há conflito, mas também não há vida, tudo é vazio.

A "unidade na diversidade" ou "diversidade reconciliada" é a proposta do Papa em relação a outras religiões e de outras igrejas. O outro, o diferente, tem o seu lugar.

Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. É autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.

Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 25 de maio de 2017

O PAÍS DO ESPELHO

por Frei Betto


      Depois de visitar o País das Maravilhas, Alice, personagem de Lewis Carroll, decidiu atravessar o espelho de sua casa. Assim, entrou no País do Espelho, onde viu tudo ao contrário do que realmente é.

      Se vivesse hoje no Brasil, bastaria Alice sair à rua para ver a realidade invertida: o bem comum ignorado pela maioria dos políticos; a propina superior ao salário; a mentira a tentar encobrir a verdade; a safadeza a predominar sobre a ética; e a venalidade sobre a honestidade.

      Veria vários Brasis. E dois em destaque: o da maioria, que trabalha arduamente para ganhar por mês menos de dois salários mínimos, e quando doente sofre ainda mais por não contar com a eficiência do SUS e nem poder pagar o preço abusivo de remédios e planos de saúde.

      E o Brasil dos que subornam instituições, juízes, deputados, senadores e governadores, para facilitar seus negócios e engordar os lucros. O Brasil dos que mamam nas tetas do Estado.

      É tamanha a fila dos que têm rabo preso que todos eles devem estar se perguntando: “Quando chegará a minha vez?”

      O presidente Temer recebeu no porão do Palácio Jaburu, no dia 7 de março, um bandido que se chama Joesley Batista, mas ingressou na residência oficial sob a alcunha de “Rodrigo”. Ali ele descreveu descaradamente, à máxima autoridade do país, as falcatruas nas quais andava metido. Recebeu do presidente estímulo para continuá-las.

      Não me surpreende se, naquela noite, ao colocar para dormir o pequeno Michel, Temer tenha lido para o filho Alice no país do espelho e gravado na memória este trecho, no qual acreditou ao receber o homem que diz ter corrompido 1829 políticos: “Acho que não podem me escutar... e tenho quase certeza de que não podem me ver. Alguma coisa me diz que estou invisível...”

      O rei está nu! E, apesar de seus dois pronunciamentos, não conseguirá ingressar no espelho e ver a sua real situação invertida.

Frei Betto é escritor, autor de “Ofício de escrever” (Anfiteatro), entre outros livros.
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quarta-feira, 24 de maio de 2017

DOM MANOEL DELSON É O NOVO ARCEBISPO DA PARAÍBA


 Desde o último dia 20 de maio a arquidiocese da Paraíba tem um novo arcebispo: Dom Manoel Delson.



Dom Delson tomou posso, oficialmente, durante a celebração eucarística realizada na manhã do sábado, na Catedral de Nossa Senhora das Neves.

O decreto que dá a posse canônica, assinado pelo notário apostólico Marcelo Rosetti, recomena que o novo arcebispo se “dedique a cuidar da comunidade paraibana”. Após a leitura do decreto o novo arcebispo  recebeu o báculo pastoral das mãos dos arcebispos eméritos Dom José Maria Pires, Dom Aldo Pagotto e Dom Genival Saraiva. O báculo pascal represente o trabalho de pastoreio na Região Metropolitana de João Pessoa.

E que privilégio receber o báculo das mãos de Dom José Maria Pires! Um dos signatários, ao lado de Dom Helder Camara, do pacto das Catacumbas e que exerceu o seu arcebispado iluminado pelos ideiais de uma Igreja a serviço de seu povo. 





O Núncio Apóstolico no Brasil, Dom Gioanno D’Aniello não compareceu à cerimônia, embora houvesse confirmado presença. O Núncio enviou uma carta, lida por Dom Genival, informando de sua impossibilidade de estar presente e informando que visitará a Paraíba na ocasião da festa de Nossa Senhora das Neves, em 05 de agosto próximo.

A homilia foi feita por Dom Delson que fez questão de agradecer, a todos os bispos presentes, dizendo-se confortado e apoiado com a presença de cada um. E, entre os bispos e arcebispos presentes estava o nosso arcebispo de Olinda e Recife Dom Fernando Saburido.





Ao falar sobre os grandes desafios da Arquidiocese ele disse que "Com esta posse, assumo os ônus e bônus desta missão. Estou com coração confiante, feliz e esperançoso porque sei que as graças de Deus não faltam aos seus". E disse ainda que  "com o olhar em Cristo o desafios serão enfrentando com fé, calma, paciência e a força da Palavra".



Concluiu dizendo: "Cada prece [desde que foi anunciado novo Arcebispo] chegou até mim com tal força que chego aqui tranquilo e sereno para enfrentar a missão. Agora sou vosso arcebispo, sou vocês”.

Parabéns ao povo da Arquidiocese da Paraíba por seu novo arcebispo. Que o seu pastoreio tenha como norte os Evangelhos e como exemplo o papaFrancisco.



terça-feira, 23 de maio de 2017

RECONCILIAÇÃO E CAMINHO EM COMUM

Por Marcelo Barros



A cada ano, no hemisfério sul, na semana anterior à festa de Pentecostes, (nesse ano, de 29 de maio a 03 de junho), as Igrejas cristãs, ligadas ao Conselho Mundial de Igrejas, celebram a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Essa iniciativa da Oração pela Unidade já acontece nas Igrejas há mais de cem anos. Desde João XXIII (1959), todos os papas têm prestigiado e participado da Semana da Unidade. Apesar disso, ainda são poucas as comunidades, paróquias e grupos de base, tanto católicos, como evangélicos, sensíveis e abertos a esse chamado de Deus à unidade com cristãos de outras denominações.

Nesse ano, o tema escolhido pela comissão mundial que preparou a Semana da Unidade é "Reconciliação: é o amor de Cristo que nos impele" (2 Cor 5, 14- 20). Esse tema lembra o chamado de Jesus para a unidade. Ao mesmo tempo, ao falar de reconciliação, recorda que, nesse ano, celebramos os 500 anos da Reforma, isso é, do início da grande divisão das Igrejas Católica e Evangélicas. Por isso, os subsídios para encontros e reflexões foram preparados por uma comissão ecumênica da Alemanha, país de onde partiu a reforma.

A convicção comum é que a divisão é sempre consequência e expressão do pecado humano. Ao contrário, quando buscamos a reconciliação, estamos realizando uma ação inspirada pelo Espírito. Quando as Igrejas se fecham em uma postura conservadora, provocam divisões e sofrimentos. Quando se abrem à renovação constante que o Espírito de Deus inspira, vão no caminho da reconciliação e da unidade.

Desde o início das Igrejas até hoje, as pessoas proféticas que propunham renovação sempre tiveram dificuldade de ser aceitas. Na Igreja do Ocidente um grande movimento de reforma ocorreu no século XII e XIII. Foi liderado por São Francisco de Assis, Valdo de Lion e Joaquim de Fiori. Eles queriam tornar a Igreja Católica mais de acordo com o evangelho de Jesus. Foi uma primeira reforma. Três séculos depois, no início do século XVI, Martinho Lutero, João Calvino, Ulrico Zwinglio e outros propuseram uma segunda reforma para fazer a Igreja retornar ao evangelho de Jesus. A hierarquia católica não aceitou as propostas dos reformadores, mas o papa se deu conta de que alguma coisa tinha de mudar e convocou o concílio de Trento para a reforma católica.

Podemos dizer que, no século XX, agora há cem anos, se iniciou uma terceira reforma que é justamente o caminho ecumênico. No mundo inteiro, o Cristianismo é a única das grandes religiões do mundo que, apesar de tudo, tem esse movimento de unidade interna. Ele se baseia no esforço de conversão pessoal ao evangelho e de aprofundar o espírito do diálogo e da acolhida do outro. Como disse Paulo no texto lembrado nessa semana da unidade: "é o amor de Cristo que nos impele".

Em um recente encontro com irmãos pentecostais, o papa Francisco comparou o Cristianismo com a figura geométrica do poliedro. No poliedro, todas as partes são diversas. Cada lado é diferente do outro e cada um conserva a sua peculiaridade. No Cristianismo, também é assim. Cada Igreja tem e manifesta o seu carisma. No entanto, como o poliedro, as Igrejas formam um só corpo, uma só unidade na diversidade.

O Conselho Mundial de Igrejas que reúne 349 Igrejas cristãs propõe a meta de uma "diversidade reconciliada". Em várias de suas alocuções, o papa Francisco tem assumido esse princípio como possível caminho de unidade. Para isso, de um lado e do outro, é preciso superar pecados ligados à compreensão quase divinizada do poder, a arrogância cultural e a dificuldade de aceitar o diferente. É preciso de novo valorizar o princípio medieval, retomado por Lutero e lembrado pelo papa Francisco: "A Igreja deve se reformar permanentemente".

Para essa renovação contínua, os critérios apontados pelo papa João XXIII são a volta ao Evangelho de Jesus e a busca profunda de atualização para "ouvir o que o Espírito diz, hoje, às Igrejas" (Ap. 2). Para cada cristão e para cada comunidade, retomar a referência ao evangelho é assumir o compromisso permanente de uma conversão pessoal e comunitária, progressiva e sempre mais exigente. Assim, nos abrimos ao amor divino que nos torna capazes de dialogar com a humanidade atual e nos atualizar.

As comemorações do quinto centenário da Reforma e essa semana da unidade são ocasiões para darmos graças a Deus pelo caminho percorrido em comum, católicos e evangélicos. Esses encontros nos ajudam a nos unir cada vez mais em em um trabalho de reforma permanente de nossa própria Igreja. Assim, vivemos de forma mais fiel o evangelho de Jesus. E podemos trabalhar juntos pela transformação do mundo, a partir do projeto divino de paz, justiça e comunhão com a natureza.  Assim, poderemos, com Jesus viver a oração que, na véspera da sua partida, ele disse ao Pai: "Pai, que todos sejam Um, como eu e Tu somos Um, para que o mundo creia que Tu me enviaste" (Jo 17, 20- 21).


  Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

POESIA, TEOLOGIA E TEOPOÉTICA

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer




            Para os que não sabiam, uma informação:  21 de março é o Dia Nacional da Poesia. Nesta ocasião, somos convidados a celebrar essa arte através da qual a linguagem humana é tomada pela musa que a faz viajar na imaginação e na criação para compor e expressar beleza sob forma de palavra.  Vai muito além, no entanto, da mera estética sensorial e tangível, a palavra poética. A poesia compreende aspectos metafísicos e a possibilidade de os elementos com que trabalha transcenderem ao mundo fático. Esse é o terreno que compete verdadeiramente ao poeta.

            Por isso, teologia e poesia são discursos afins e irmanados no fundo e na forma. Nos dias de hoje, chamados que estamos a atravessar muitos desertos no encalço do Bem e do Belo que dão sentido à difícil vida que nos toca viver, a teologia está chamada a rever radicalmente suas formas de expressão. E não se trata tanto de retomar as invectivas do Papa João Paulo II sobre a nova evangelização (nova em seu ardor, nova em seus métodos, nova em suas expressões) como de encontrar formas que carreguem a verdade de uma das mais fundamentais expressões da antropologia teológica: o ser humano como ser em contínua autotranscedência.
  
Essas novas formas seguramente carregarão consigo novas linguagens.  Certamente a da religião e da liturgia, mas também e não menos a da poesia, da arte, da literatura, da música e de todas as outras formas estéticas que a humanidade inventou em sua história de muitos milhares e mesmo milhões de anos.

         Os desenhos e pinturas nas paredes das cavernas dos grupos humanos primitivos, os primeiros rabiscos, os fragmentos encontrados em diversos pontos do planeta dão testemunho desta primordialidade da imaginação e do sopro criador, que faz a humanidade caminhar em direção à sua vocação que, em termos bíblicos, é ser um sopro animado pelo espírito divino.

Uma das características do ser humano, uma das ”constantes” que aparece em sua identidade constitutiva é este dom de passar além do sensorial e aceder ao espiritual. E aqui entendemos por “ espiritual” tudo aquilo que direta ou indiretamente se encontra conectado com o espírito, com a dimensão humana que passa além dos cinco sentidos.  Está incluída aí a estética sob as suas diversas formas.  E também a religião. 

O Espírito informa e conforma a corporeidade e faz com que o ser humano seja o terreno fértil e propício para que a Palavra - que não tem origem manipulável e direta, mas vem de uma não origem, de mais longe do que um palpável começo - encontre morada e acolhida. Para falar deste mistério, conceitos e enunciados são importantes e pertinentes, mas os místicos e poetas de todos os tempos nos dizem que há mais possibilidades, sempre abertas, de propor o discurso teológico.  Há maneiras de falar de Deus mais poéticas, evocativas, empatizantes, performativas, implicantes, esperançadas... que movem mais o leitor que a simples “ passividade” assimilativa...

As parábolas de Jesus são consideradas poéticas por mais de um autor e comentador. E são reflexo de seu mundo interior, de sua compreensão do Reino de Deus que anuncia. A obra de arte e a objetivação final da intuição poética, o que a obra aspira, em última instância, transmitir a alma dos outros e a intuição poética que estava na alma do poeta.

Assim acontece com Jesus, que toma elementos de seu contexto vital, com sua visão inspirada pelo Espírito Santo, e transmite sua experiência de Deus aos discípulos e aos que o seguem. Sua sensibilidade e sua profunda ligação e compromisso com a experiência que faz, ao lado de sua criatividade e observação da realidade, o levam a compreender e transmitir o que considera mais importante: seu amor ao Pai e seu projeto do Reino. Por isso, sua fantasia criadora, sua imaginação inspirada, as parábolas que narra são determinantes para o sentido que comunica.

A teologia latino-americana seguiu de perto este caminho e, por isso, pode ser compreendida e interpretada a partir da teopoética jesuânica.  Se é verdade que uma boa parte de seu conteúdo é conceitual, explicativo, rigoroso, não menos é verdade que seus autores utilizaram diversos gêneros literários como cânticos, hinos, conversas, histórias, imagens, compondo uma teopoética da libertação para dizer sua fé, sua espiritualidade, sua teologia. E ao lado dos autores mais especulativos dessa teologia existem igualmente outros autores que se detiveram mais na religiosidade popular e no imaginário do povo simples e pobre, e a partir dali elaboraram seu discurso.

Na teopoética latino-americana está presente um desejo de Deus que tem o rosto da justiça e da liberdade. Mais ainda: esta latente, pulsando vivamente, uma sede de Deus que é ao mesmo tempo justiça e liberdade. Justiça, Liberdade e Vida são os outros nomes com os quais os povos do sul do mundo, “do fim do mundo” como diz o Papa Francisco sobre si próprio, entendem e experimentam Deus.

Assim se construiu boa parte da teologia latino- americana nos anos primeiros.  Não tanto com textos dogmáticos, mas sim com símbolos, ritos, músicas, imagens e estórias de seu viver, que permitiram retomar o fio da rica história do evangelho no continente.
Por isso, a importância da Teopoética, que aproxima e cruza teologia e poesia, teologia e literatura, teologia e estética de um modo geral.  Diante da suspeita de que a estética seja alienante, pode-se sustentar que muitas vezes é a leitura de uma obra literária, a experiência da recitação de um poema, o ouvir de uma música, o ritmo de uma celebração os que provocam a experiência espiritual que, por sua vez, gera a teologia. 

O teólogo aí é o poeta da Palavra de Deus, seu bardo, seu cantor, que “não escolhe seu cantar, mas canta o mundo que vê”, que “louva o que é para ser louvado” e se cala, cala-se a vida, porque a vida é todo um canto. E se o cantor do Mistério silenciar, morrem de espanto a esperança, a luz e a alegria.  Os pobres ficam sozinhos, pois já não têm quem fale por eles.

O desgaste das fórmulas, o envelhecimento das rubricas, a rigidez dos documentos, tudo isso conclama a novas formas, novos poemas, nova teopoética que seja ao mesmo tempo teopoiética. E a teologia cristã é chamada a, com a ajuda da “nuvem de testemunhas” que iluminam estes mais de 2000 anos de estrada, a “dar razão “desta esperança partindo dos êxtases dos místicos, da beleza das liturgias, da inspiração da poesia, da vitalidade da literatura, do dom divino da música. Em suma, das maravilhas que o Espirito de Deus cria e recria sem cessar na carne e no espirito humanos.

O teólogo, portanto, está longe de ser um repetidor de formulações dogmáticas, mas é chamado mais que nunca a ser um hermeneuta da experiência do divino na sua fé e em diálogo com outras religiões e outras áreas de saber; um poeta da sede de Deus e da fonte de água viva que a sacia.

No Dia Nacional da Poesia, celebremos os teólogos – teo-poetas – que, a partir de sua fragilidade, são, no entanto, chamados a cantar o Mistério que os inebria e a Beleza que dá sentido a suas vidas e às vidas de todos.

 Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre  ética,   mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.  
  Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br> 


sexta-feira, 19 de maio de 2017

A FOME COMO DESAFIO ÉTICO E ESPIRITUAL

por leonardo boff


Nada mais humanitário, social, politico, ético e espiritual que saciar a fome dos pobres da Terra.
Um mistico medieval da escola holandesa John Ruysbroeck (1293-1381) bem disse: “Se estiveres em êxtase diante de Deus e um faminto bater em sua porta, deixe o Deus do êxtase e vá atender o faminto. O Deus que deixas no êxtase é menos seguro do que o Deus que encontras no faminto”.
Jesus mesmo, encheu-se de compaixão e saciou com pão e peixe a centenas de famintos que o seguiam. No núcleo central de sua mensagem se encontra o Pai Nosso e o Pão Nosso, na famosa oração do Senhor. Somente está na herança de Jesus quem mantem sempre unidos o Pai Nosso com o Pão Nosso. Só esse poderá dizer Amém.
Os níveis de pobreza mundial são estarrecedores. Segundo a Oxfam que anualmente mede os níveis de desigualdade no mundo, concluiu em janeiro de 2017 que somente 8 pessoas possuem igual renda que 3,6 bilhões de pessoas, quer dizer, cerca da metade da humanidade. Tal fato é mais que a palavra fria “desigualdade”. Ético-politicamente traduz uma atroz injustiça social e, para quem se move no âmbito da fé judaico-cristã, esta injustiça social representa um pecado social e estrutural que afeta Deus e seus filhos e filhas.
A pobreza é sistêmica, pois é fruto de um tipo de sociedade que tem por objetivo acumular mais e mais bens materiais sem qualquer consideração humanitária (justiça social) e ambiental (justiça ecológica). Ela pressupõe pessoas cruéis, cínicas e sem qualquer sentido de solidariedade, portanto, num contexto de alta desumanização e até de barbárie. Causa-nos profunda tristeza o fato de termos que viver dentro de um sistema que só sobrevive à condição de que o dinheiro produza mais dinheiro, não para termos mais  vida senão apenas mais riqueza.
No Brasil, por mais que se tenha feito, tirando o país do mapa da fome, existem ainda 20 milhões vivendo em extrema pobreza. Com seu programa “Brasil carinhoso” a presidenta legítima Dilma Rousseff se propunha tirar esta multidão desta situação desumana.
São múltiplas as interpretações que se dão à pobreza. A mim é esclarecedora a posição do prêmio Nobel de economia, o indiano Amartya Sen que criou a economia solidária. Para ele a pobreza, inicialamente, não se mede pelo nível de ingressos, nem pela participação dos bens e serviços naturais. O economista define a pobreza no marco do desenvolvimento humano que consiste na ampliação das liberdades substantivas, como as chama, vale dizer, a possibilidade e a capacidade de produzir e realizar o potencial humano produtivo de sua própria vida. Ser pobre é ver-se privado da capacidade de produzir a cesta básica ou de aceder a ela. Desta forma sente negados os direitos de viver com um mínimo de dignidade e com aquela liberdade básica de poder projetar seu próprio caminho de vida.
Esse desenvolvimento possui um eminente grau de humanismo e de uma decidida natureza ética. Daí o título de sua principal obra se chamar “Desenvolvimento como liberdade”. A liberdade aqui é entendida como liberdade “para” ter acesso ao alimento, à saúde, à educação, a um ambiente ecologicamente saudável e à participação na vida social e a espaços de convivência e de lazer.
A Teologia da Libertação e a Igreja que lhe subjaz nasceu a partir de um acurado estudo da pobreza. Pobreza é lida como opressão. Seu oposto não é a riqueza, mas a justiça social e a libertação.
Distinguíamos três tipos de pobreza. A primeira é aquela dos que não têm acesso à cesta básica e aos serviços sanitários mínimos. A estratégia tradicional era fazer com que os que têm, ajudem aqueles que não têm. Daí nasceu uma vasta rede de assistencialismo e paternalismo. Ajuda pontualmente os pobres mas os mantém na dependência dos outros.
A segunda leitura do pobres afirmava que o pobre tem, possui inteligência e capacidade de profissionalizar-se. Com isso é inserido no mercado de trabalho e arranja sua vida. Essa estratégia politicamente não se dá conta do caráter conflitivo da relação social, mantendo o saído da pobreza dentro do sistema que continua produzindo pobres. Reforça-o inconscientemente.
A Terceira interpretação parte de que o pobre tem e quando conscientizado dos mecanismos que o fazem pobre (são empobrecidos e oprimidos), se organizam, projetam um sonho novo de sociedade mais justa e igualitária, transformam-se numa força histórica, capaz de, junto com outros, dar um novo rumo à sociedade. Desta perscpectiva nasceram os principais movimentos sociais, sindicais e outros grupos conscientizados da sociedade e das igrejas. Destes podem-se esperar transformações sociais.
Por fim, para uma percepção da fé bíblica, o pobre sempre será a imagem desfigurada de Deus, a presença do pobre de Nazaré, crucificado que deve ser baixado da cruz. E por fim, no entardecer da história universal, os pobres serão os juizes de todos, porque, famintos, nus e aprisionados, não foram reconhecidos como a presença anônima do próprio Juiz Supremo face ao qual, um dia, todos compareceremos.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu”Paixão de Cristo, paixão do mundo”, Vozes 2001.


quinta-feira, 18 de maio de 2017

FRANCISCO E O VALOR HUMANO

por Frei Betto



       Notícias que nos dão a impressão de retrocessos dos valores conquistados pela modernidade: Trump cassa o direito dos pobres à saúde; Marine Le Pen falsifica documento para acusar o adversário Emmanuel Macron de manter contas em paraíso fiscal; terroristas islâmicos atacam acampamento de refugiados; deputado do PSDB assina projeto de lei em prol da neoescravatura do trabalhador rural; a corrupção no Brasil parece não ter fim; bispos denunciam reformas trabalhista e previdenciária como violação de direitos dos trabalhadores etc.

       Talvez a contradição seja inerente à nossa condição humana, o que a Bíblia chama de pecado original. Sempre houve malfeitos. Não havia, porém, meios de comunicação que dessem notícias da aldeia vizinha. Como ainda hoje pouco se divulga o lado positivo da vida.

       Na Igreja primitiva também havia fiéis que prestavam culto a Deus embora se mantivessem insensíveis aos direitos dos excluídos: “Queres honrar o corpo de Cristo? Então não deixes que ele seja alvo de desprezo nos seus membros, ou seja, nos pobres, que não têm roupa para se vestir. Não o honres aqui na igreja com retalhos de seda, enquanto lá fora o deixas padecer de frio e nudez.” (Homilia de São João Crisóstomo [344-407], patriarca de Constantinopla).

       Não é fácil criar uma cultura que induza todo ser humano a encarar o outro como digno de supremo respeito. Na linguagem evangélica, como “morada de Deus” (Carta a Timóteo 3, 15). Não haveria massacres de sem-terras no Mato Grosso, ataque a índios no Maranhão ou a refugiados em São Paulo, fuzilaria nos morros do Rio.

       Onde a causa dessa incivilidade? Na cultura neoliberal que respiramos, na qual os bens valem mais que as pessoas. Merecem valor apenas as pessoas portadoras de bens materiais ou simbólicos (fama, poder, riqueza).

       A essa óptica equivocada reagiu o papa Francisco: “Gostaria de vos contar uma história que aparece no midrash bíblico de um rabino do século XII. Relata a construção da Torre de Babel. Para construir a torre era preciso fazer tijolos: amassar a lama, formatar na palha, pôr as peças no forno. Quando o tijolo estivesse pronto, tinha de ser levado para cima. Um tijolo era um tesouro, tendo em vista todo o trabalho necessário para fabricá-lo. Cada vez que caía um, era uma tragédia, e se punia o operário culpado. Um tijolo era muito precioso. Mas se caísse um operário, era diferente, não acontecia nada.

       É o que acontece hoje: se os investimentos nos bancos diminuem minimamente, eis uma tragédia! Mas se as pessoas morrem de fome, não têm o que comer, não gozam de boa saúde, não faz mal! Eis a nossa crise de hoje! E o testemunho de uma Igreja pobre para os pobres vai contra essa mentalidade.” (Galleazzi, Giacomo; Tornielli, Andrea. Papa Francisco, esta economia mata. Lisboa, Bertrand Editora, 2016, pp. 24-25).

       Ao receber embaixadores junto à Santa Sé, em 16 de maio de 2013, Francisco sublinhou: “Criamos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma imagem nova e desapiedada no fetichismo do dinheiro e na ditadura da economia sem rosto nem objetivo realmente humano. A crise mundial que atinge as finanças e a economia parece evidenciar as deformidades e, sobretudo, a grave falta de perspectiva antropológica, que reduz o homem a apenas uma das suas exigências: o consumo. E, pior ainda: hoje o próprio ser humano é considerado um bem de consumo descartável.

       Inauguramos esta cultura do desperdício. Nesse contexto, a solidariedade, o tesouro dos pobres, é muitas vezes julgada contraproducente, contrária à racionalidade financeira e econômica. Enquanto os rendimentos de uma minoria crescem de maneira exponencial, os da maioria diminuem. Este desequilíbrio deriva de ideologias que promovem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira, negando assim o direito de controle aos Estados, aos quais caberia a responsabilidade de zelar pelo bem comum.”

       A voz do papa clama no deserto? Há que atacar as causas desses efeitos que tanto nos horrorizam.

Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Fontanar), entre outros livros.
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