O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

terça-feira, 30 de julho de 2019

SOMOS TODOS AMAZÔNIA PARA A VIDA DO PLANETA





Por Marcelo Barros

Uma notícia ainda restrita à comunicação entre amigos na internet revela que  200 exemplares de um livro enviados do Uruguai para o Brasil, embora estejam com toda a papelada correta e notas fiscais em ordem, estão retidos na alfândega brasileira. O motivo seria o conteúdo dos livros. Trata-se de um documento feito a partir de consultas às diversas comunidades de bases e organizações da região amazônica sobre a realidade e os desafios da Vida na Amazônia. O documento, elaborado por teólogos/as, especialistas de várias áreas de estudo, tem como objetivo servir de subsídio à reunião dos bispos católicos em preparação ao sínodo mundial, convocado pelo papa Francisco, em Roma para o mês de outubro sobre a Amazônia. Tudo indica uma censura das autoridades brasileiras, o que configura uma postura de ditadura cada vez menos disfarçada. 

A notícia de uma censura sobre o Sínodo pode aguçar a curiosidade sobre porque o governo estaria censurando tal documento. Para responder a tal questão, podemos ler esse e outros documentos preparatórios nos sites de organizações como Amerindia, uma organização de teólogos/as cristãos de todo o continente  e REPAM (Rede Eclesial Pan-amazônica).
O que descobrimos ali é que o tema do Sínodo dos Bispos liga a Amazônia, o desafio da Ecologia Integral e a Missão das Igrejas na região. Há informações importantes que podem ser resumidas aqui. O texto afirma:

“A Amazônia é um território que se espalha por nove países: Brasil, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Venezuela, Suriname, Guiânia e Guiânia Francesa. Tem quase 8.000.000 de Km 2 que formam um bioma, sistema vivo de interações orgânicas, essenciais para o equilíbrio do planeta. Nessa região, vivem 35 milhões de pessoas, espalhadas pela floresta, margens dos rios, campos e grandes cidades. Quase três milhões pertencem a povos originários que falam 340 línguas diversas. Eles se relacionam harmoniosamente com a natureza, com os outros humanos e com o Mistério último da Vida que muitas religiões chamam de Deus. Esses povos formam comunidades, agredidas em sua ligação com a Terra, em seus valores espirituais e chamam as pessoas de bem a combater a exploração que destrói o planeta e submete a humanidade a desigualdade sempre crescente.

Cada metro quadrado do bioma Amazônia tem mais diversidade que qualquer outro lugar do planeta. Essa imensa diversidade de vida garante ao seu povo alimentos, medicamentos, azeites e outras dádivas que nem se podem calcular. O bioma regula a distribuição de chuvas por todo o território brasileiro e pelo Uruguai, Argentina e Paraguai. A água em forma de vapor cria o que se chama “rios voadores”, levados pelos ventos até o sul. Assim, abastecem de chuva praticamente todo o Brasil.

 Basta saber disso para nos darmos conta de que assim como todos os biomas são essenciais para a vida, a preservação e a defesa da Amazônia é fundamental para o equilíbrio do clima de toda a Terra. A própria vida no planeta, mas especialmente o clima em todo o Brasil depende da preservação da floresta amazônica e do cuidado com seu bioma frágil.

Quando o lucro é colocado acima de tudo, a sanha de destruir a natureza fica incontrolável. A terra, as águas e a floresta se tornam mercadorias a serem vendidas e compradas de acordo com a conveniência econômica dos seus pretensos prioritários. De acordo com estatísticas confiáveis, nos últimos dois anos, a destruição da floresta amazônica aumentou desordenadamente.

A ecologia integral não trata só do ambiente, da fauna e da flora. É um olhar holístico sobre as relações em nossa casa comum. Ecologia integral é uma forma de compreender a vida. Envolve pensamento, política, programa educativo, estilo de vida e amorosidade na relação com a natureza e com a sociedade humana. Essa relação de solidariedade e amor como postura social e política tem sido chamada por espiritualidade como atitude antropológica, mais do que como expressão religiosa. Ela se fundamenta na cultura tradicional dos povos, mas também em uma nova forma de olhar a Terra, as águas e toda a comunidade da Vida. Assim, sendo a Ecologia Integral implica diálogo entre a ecologia ambiental, econômica, social, cultural e da vida cotidiana. Considera os princípios éticos do bem comum e a justiça entre as gerações. Integra a justiça para escutar tanto o clamor da Terra, quanto o clamor dos pobres. Conforme a carta do papa Francisco sobre o cuidado da casa comum (Laudato sii) e o pensamento de estudiosos de todo o mundo, passar de uma compreensão convencional de ecologia para a vivência da ecologia integral implica conversão para assumir que tudo está relacionado (LS 216- 221). Esse modo de compreender a vida, baseado na sabedoria ancestral dos povos amazônicos, busca soluções integrais que unam os sistemas naturais e a realidade social. A crise é uma só: sócio-ambiental. A solução exige a luta contra a pobreza e o cuidado com a natureza. Tudo está interligado.

A grande variedade de povos que habitam na Amazônia depende de que se detenha o modelo de desenvolvimento depredador. Os povos em sua sabedoria, criaram sistemas produtivos rentáveis, sem derrubar a floresta (açaí, cupuaçu, castanha, peixes, etc). O que destrói o bioma é a monocultura (soja, gado, mineração). Também não serve o chamado “Capitalismo verde” que se rege pelas leis do mercado e transforma em mercadoria o que a natureza nos dá de graça. O Mahatma Gandhi já dizia que a terra, com suas florestas e suas áreas verdes preservadas, é suficientemente grande e maternal para alimentar toda a humanidade, mas nunca bastará para saciar a ambição da pequena porção de seres humanos que faz do lucro e da ganância a sua divindade. Para quem é cristão, o Evangelho adverte: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24). 
 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br


sexta-feira, 26 de julho de 2019

CIDADANIA, FLORESTANIA: A AMAZÔNIA, TITULAR DE DIREITOS



por Leonardo Boff

Fenômenos novos exigem palavras novas. Assim cidadania se deriva de cidade e florestania, de floresta. Esta nova palavra, florestania, foi criada no Estado do Acre, sob o governo de Jorge Viana, representando conceito novo de desenvolvimento e de cidadania no contexto da floresta amazônica.

O propósito é implementar a cidadania dos povos da floresta, dos indígenas, dos seringueiros e dos ribeirinhos que se traduz por investimentos públicos na educação, na saúde e nas formas de produção extrativista, tendo como referência maior a floresta e sua derivação a florestania.

Floresta e ser humano vivem um pacto sócio-ecológico includente, onde o ser humano se entende parte da floresta e a floresta passa a ser um novo cidadão, respeitado em sua integridade, biodiversidade, estabilidade e luxuriante beleza junto com os outros cidadãos humanos. Ambos são beneficiados – povo e floresta – pois abandona-se a lógica antropocêntirca e utilitarista da exploração e se assume a lógica ecocêntrica, da mutualidade que implica respeito mútuo e sinergia.

Esta compreensão abre espaço para um enriquecimento possível do conceito de cidadania a partir da reflexão ecológica mais avançada. Agora trata-se da florestania não só como cidadania na floresta mas como cidadania da floresta. A floresta é considerada, pois, como um novo cidadão.

A compreensão que subjaz a esta afirmação e que entrou nas constituições do Equador e da Bolívia, reside no fato de a natureza e a Terra serem a condição necessária para a vida. Esta somente existe porque é sustentada pelos fatores físico-químico-ecológicos terrestres sem os quais não haveria vida. Se a vida tem dignidade, fato aceito por todos, ela engloba também a dignidade dos elementos que a tornam possível sobre o planeta.

Ademais, a natureza e a Terra possuem valor em si mesmo, independente da existência humana, que irrompeu quase no final do processo cosmogênico. Tendo valor em si mesmo, Terra e natureza, devem ser respeitadas. O próprio ser humano há de se entender parte da natureza e da própria Terra, formando com elas uma grande e única entidade. Este é o o legado que os astronautas nos transmitiram de suas naves espaciais e da Lua: Terra, natureza e humanidade formam uma única e complexa entidade.

Nesta visão, mais e mais sustentada pela moderna biologia e cosmologia, a floresta como floresta, a natureza bem como a Terra são vistas como sujeitos e como cidadãos e como tais titulares de direitos.

Isso ficou mais claro quando a ONU numa sessão solene no dia 22 de abril de 2009 decidiu chamar a Terra de Mãe Terra, dando-lhe a ela o mesmo tratamento que devotamos às nossas mães: o respeito, o cuidado e a veneração.

Impõe-se, portanto, a ampliação da personalidade jurídica à floresta, aos ecossistemas e à Terra como Gaia. Bem disse o pensador Michel Serres: “A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 teve o mérito de dizer ‘todos os homens têm direitos’ e o defeito de pensar ‘só os homens”. Os indígenas, os escravos e as mulheres tiverem que lutar para serem incluídos em ‘todos os homens”. E hoje esta luta inclui as florestas e outros seres da natureza também sujeitos de direitos e, por isso, novos membros da sociedade ampliada.

Por fim, há que se incluir a própria Terra, como Gaia, super-organismo vivo, no rol dos cidadãos. Ela seria aquela realidade cidadã que cria as condições para todos os outros tipos de seres, como seu valor intrínseco e sujeitos de cidadania.

As novas ciências, a astrofísica e a cosmologia nos asseguram que o universo não resulta da soma de todos os seres existentes e por existir, como se estivem justapostos uns aos outros. Todos eles se encontram inter-retro-conectados. O universo é o conjunto articulado das conexões de tudo com tudo em todos os pontos e momentos. Todos os seres não são apenas portadores de massa e de energia mas também de informação trocada, retrabalhada e estocada de um jeito singular e próprio a cada ser.

O fator relação e inter-dependência de todos com todos,o Papa Francisco em sua excepcional encíclica sobre ecologia integral “sobre o cuidado da Casa Comum”(2015) repetidas vezes enfatizou:”nenhuma criatura se basta a si mesma…tudo está interligado..tudo está relacionado”(nn.86, 118, 120).

Com efeito, depois de termos criado a ameaça de destruição da Terra-Gaia não podemos mais exclui-la do novo pacto social, como o fizeram Hobbes, Rousseau e Kant, no passado, e Habermas e Appel no presente. Estes davam e dão por descontado o futuro da Terra. Hoje não é mais assim. Devastada Gaia, não há mais base para nenhum tipo de cidadania e de direitos, pessoais, sociais e naturais. Se quisermos sobreviver juntos, a democracia tem de ser também biocracia e cosmocracia, numa palavra, uma democracia sócio-ecológica.

A partir disso admitem eminentes cientistas que o universo e cada ser são portadores de níveis diversificados de consciência e possuem algum tipo de subjetividade, fruto das inter-relaçãos que entretém entre todos. A diferença entre a subjetividade humana e aquela do universo ou das florestas ou de outros seres não é de princípio mas de grau.

Em nós, em grau altamente complexo e, por isso auto-consciente, no universo e na floresta amazônica num outro, menos complexo, mas igualmente com grau próprio de consciência e de subjetividade. Por isso a floresta interage, sente, sofre, se alegra, dá seus sinais, responde e nos dá lições, algumas sábias e outras duras. Mas mostra que ela quer ser escutada, atendida, respeitada e incluída no cuidado humano.

Se a florestania fôr assumida num sentido amplo como postulado aqui, enquanto cidadania na floresta e da floresta, assistiremos a algo inédito no mundo. Na região da maior biodiversidade do planeta, na floresta amazônica, se inaugurará um novo ensaio civilizatório, referência possível para as demais florestas tropicais da Terra, assumidas e respeitadas como cidadãos. E comprovar-se-á a realidade de um desenvolvimento não predatório, de um ser humano feito anjo bom da Terra e não o seu satã ameaçador.

O cuidado das pessoas, das sociedades, da natureza e da Casa Comum será a atitude mais adequada e imprescindível para a nova fase da história da humanidade e da própria Terra.

Leonardo Boff é eco-teólogo,filósofo e escritor e escreveu Saudade de Deus- A força dos pequenos, a sair pela Vozes.


quinta-feira, 25 de julho de 2019

MUDANÇA DE ÉPOCA



Por Frei Betto

       A modernidade está em crise. Seu início coincide com o Renascimento, o descobrimento da América e do Brasil, a passagem da era medieval, feudal, para o mercantilismo e, em seguida, ao capitalismo. Vivemos, hoje, não uma época de mudanças, mas uma mudança de época. No milênio que começa emerge algo imprecisamente chamado pós-modernidade, que se insinua bem diferente de tudo o que nos antecedeu, imprimindo novos paradigmas.

       Na Idade Média, a cultura girava em torno da ideia de Deus. Na modernidade, centra-se no ser humano. Episódio característico   ocorreu em 1682, quando mister Halley, baseado exclusivamente em cálculos matemáticos - pois não dispunha de aparelhos sofisticados -, previu que um cometa voltaria a aparecer nos céus de Londres 76 anos depois. Na ocasião, muitos disseram: “Este homem é louco! Como, fechado em seu escritório, baseado em cálculos feitos no papel, pode prever o movimento dos astros no céu? Quem, senão Deus, domina a abóbada celestial?”

       Mister Halley morreu em 1742, antes de se completarem os 76 anos previstos. Porém, muitos ficaram atentos e, exatamente na data prevista, em 1758, o cometa, que hoje leva o seu nome, voltou a iluminar os céus de Londres. Era a glória da razão!

       “Se é assim,” disseram, “então a razão haverá de resolver todos os dramas humanos! Criará um mundo de luzes, de progresso, de saciedade, de alegria!”

      Tudo muito bonito e lógico; mas cinco séculos depois o saldo não é dos mais positivos. Os dados são da FAO: somos mais de 7 bilhões de pessoas no planeta, das quais metade vive abaixo da faixa de pobreza e 900 milhões sobrevivem com fome crônica.

      Há quem afirme que o problema da fome é causado pelo excesso de bocas. Em função disso, propõe o controle da natalidade. Oponho-me ao controle, sou favorável ao planejamento familiar. O primeiro é compulsório, o segundo respeita a liberdade do casal. E não aceito o argumento de que há bocas em demasia. Nem falta de alimentos. Segundo a FAO, o mundo produz o suficiente para alimentar 11 bilhões de bocas. O que há é desigualdade social, injustiça, excessiva concentração da riqueza em mãos de uns poucos e, agora, etanol para abastecer veículos em vez de alimentos para nutrir pessoas.

       Outrora falava-se em trabalho. Sentíamos orgulho de dizer: “Olha, meu pai educou a família trabalhando trinta anos na rede ferroviária”; “Minha mãe foi professora vinte e tantos anos”. O trabalho era fator de identidade. Ainda alcancei a geração que tinha o privilégio de falar em vocação. Posteriormente, o termo foi substituído por profissão: “Qual a sua profissão?” Hoje, o importante é ter um emprego, e olhe lá! Não se menciona mais trabalho, porque infelizmente o fator de identidade social é estar no mercado.

      Há futuro para a humanidade dentro do paradigma capitalista?

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. 

Copyright 2019 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com
  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com
 Artigo originalmente publicado no jornal O Globo.


terça-feira, 23 de julho de 2019

VIVA BOLÍVAR E O BOLIVARIANISMO




Marcelo Barros

Nesses dias, assistimos a Venezuela resistir heroicamente aos ataques do Império norte-americano e à guerra de desinformação que os órgãos de comunicação oferecem contra o que acontece nesse país irmão. Por isso, é importante lembrar a herança que Simon Bolívar nos deixou e a proposta atual do Bolivarianismo para a Venezuela e que pode ser presente divino para todo o continente.

No início do século XIX, Simon Bolívar reuniu um exército para libertar os povos do continente da dominação do império espanhol e integrar os diversos países que se foram unindo em uma única pátria grande. Criou a República da Grande Colômbia que unia Venezuela, Equador, Bolívia, Chile, Peru e a atual Colômbia. Respeitava a autonomia de cada povo, integrado na confederação. Chegou a ajudar no Caribe a consolidação da independência do Haiti, primeiro povo libertado das Américas (1809).

Na Venezuela, durante toda a sua história, o ideal bolivariano sempre foi aceito e admirado por pessoas de todas as classes e de diversas correntes políticas. No entanto, a elite de todos os países sempre encontra formas de pensar a independência para os ricos, mas não para todos.  No mundo, a Venezuela é o segundo maior produtor de petróleo (logo abaixo do Golfo Pérsico). Durante quase duzentos anos, uma pequena elite dominou a Venezuela, entregando o petróleo do país aos Estados Unidos. A Venezuela, rica em petróleo, terra maravilhosa em diversidade de regiões e climas, sofria com imensa desigualdade social.

Desde as últimas décadas do século XX, sob a liderança de Hugo Chávez, o bolivarianismo ressurgiu como proposta de um novo Socialismo democrático e com rosto latino-americano. Esse movimento de retomada dos ideais do Libertador assumiu três metas importantes: 1 -  A integração de todos os povos e estados latino-americanos. 2 - A libertação de todos os colonialismos. 3 - A redução das desigualdades sociais na direção de um novo Socialismo democrático e a partir dos mais pobres.

Na primeira década desse século, mesmo adversários do governo bolivariano, reconheciam que nunca na Venezuela nenhum governo fez tanto pelos mais pobres. O governo implementou um plano de educação para todos, habitação digna e reforma agrária para os lavradores. Um profundo respeito e maior protagonismo social para as comunidades indígenas e afrodescendentes. Maior igualdade de gênero e complementariedade entre homem e mulher.

O governo bolivariano nacionalizou a maior riqueza do país, o petróleo. Determinou que todo o lucro vindo da venda do petróleo servisse à educação, construção de moradias e saúde da população mais pobre do país. Em 2002, a FAO declarou a Venezuela como país livre da fome e do analfabetismo. Dois anos depois, a ONU reconheceu oficialmente que a Venezuela Bolivariana tinha conseguido o índice de menor desigualdade social na América Latina. 

A elite que deixou de lucrar 400 % ao ano e o Império que perdeu sua hegemonia no continente não se conformaram. Principalmente, depois da morte do presidente Chávez (2013), a luta do Império e da elite venezuelana contra o bolivarianismo se acentuou. Comerciantes bloqueiam mercadorias e o Império construiu um bloqueio econômico para asfixiar o país, além da desinformação e todo tipo de mentiras contra o governo bolivariano. O resultado é um país dividido e extremamente violado pela guerra comercial desonesta e pela propaganda. Apesar de toda essa violência e da realidade difícil que os pobres enfrentam, o povo resiste heroicamente e o governo democrático ganha todas as eleições.  

A respeito da integração latino-americana, em julho de 2011, em Caracas, liderados pelo presidente Hugo Chávez, 33 representantes de países irmãos criavam oficialmente a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) que reúne 33 países da América do Sul, América Central  e Caribe em um caminho de cooperação solidária, integração continental e autonomia frente ao Império.

O Império norte-americano financiou a vitória da direita em vários países latino-americanos e colaborou diretamente com o golpe que derrubou a democracia no Brasil. Assim, os organismos de integração latino-americanos foram destruídos ou simplesmente ignorados. No Brasil, na Argentina e em outros países, governantes voltam a bater continência à bandeira do Império e a ele entregar de graça todas as nossas riquezas.  
Para irmãos e irmãs solidários com a Venezuela e que desejam a integração latino-americana, posso testemunhar duas coisas:

1 – A primeira é que defender o Bolivarianismo não é apenas defender o governo venezuelano. É assumir uma proposta que vem das bases do povo, das comunidades indígenas e afrodescendentes. Em uma de suas circulares, dirigidas a um grupo de amigos e auxiliares, já em 1965, na época do Concílio e escrevendo em Roma, Dom Helder Camara defendia o Bolivarianismo, ao qual o papa Francisco também já aludiu com simpatia.

2 – Mesmo quem tem críticas ao governo venezuelano pode saber que a oposição atual na Venezuela é dez vezes pior em todos os aspectos do que o governo que ela combate e a eventual vitória da oposição fecharia para toda a América Latina qualquer possibilidade de autonomia diante do império norte-americano.

Por tudo isso, é responsabilidade de quem nutre uma espiritualidade libertadora, assumir mesmo que seja criticamente um apoio aos movimentos libertadores latino-americanos.

Em 1815, Simon Bolívar, o libertador da pátria grande que é a América do Sul, em sua “Carta de Jamaica”, considera o elemento religioso como aglutinante da alma americana e formula “a necessidade urgente de uma união de nossos povos, ligados por elementos culturais e religiosos comuns”. Assim, 236 anos depois do nascimento de Simon Bolívar, nesse 24 de julho, com todo o coração e nossa solidariedade ao povo da Venezuela, somos convocados/as para gritar: Viva Simon Bolívar, viva o Bolivarianismo!

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 22 de julho de 2019

CAROLA RACKETE: A BRAVURA DE ANTÍGONA





             Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Ela é jovem e branca.  Nasceu em um país rico e nunca experimentou dificuldades para viver. Pôde estudar em três universidades e aperfeiçoar-se na carreira que escolheu: conservação do meio ambiente. Formou-se aos 23 anos e navegou em barcos quebra gelos no Ártico.  Ali foi tomando consciência das necessidades do planeta e da humanidade.  E começou a perceber até que ponto era privilegiada. 

            Como declarou  em uma entrevista: “Minha vida foi fácil, pude frequentar três universidades, me formei com 23 anos. Sou branca, alemã, nascida em um país rico e com o passaporte correto.  Quando me dei conta, senti a obrigação moral de ajudar a quem não tinha as mesmas oportunidades que eu tive.”

 E assim começou o trabalho de Carola no Sea Watch. 

            A ONG alemã Sea Watch, como seu nome mesmo diz, se propõe a ser “vigilante dos mares”.   Apoia o resgate de refugiados no Mediterrâneo, concretamente comissionando barcos de resgate. Esses barcos humanitários que navegam no “Mare Nostrum” vêm efetuando o resgate de muitos migrantes vindos das costas africanas e do Oriente Médio ameaçados de naufrágio e de morte devido às condições terríveis em que se encontram, às vezes após muitos dias à deriva, à intempérie e sem alimento. Depois de resgatá-los a bordo, procuram levar os migrantes a algum porto seguro. 

            O Sea Watch 3, capitaneado por Carola Rackete, era, desde o último mês de junho, o único barco humanitário que navegava a partir da Líbia em direção à Europa. Foi quando a jovem capitã e sua tripulação resgataram 52 migrantes que estavam à deriva em alto mar diante da costa líbia. Os náufragos foram levados em direção a um porto seguro na Itália.  

            Antes do porto, porém, havia um obstáculo mais terrível que o mar encapelado, que o sol causticante e a assustadora tempestade.  Tratava-se do governo italiano, tendo à frente o conhecido e temido ministro do Interior, Matteo Salvini.  Ele negou ao Sea Watch 3 o acesso ao porto de Lampedusa, no qual pretendia atracar com sua combalida carga. Considerava ilegal o desembarque em terras italianas. Alguns dos náufragos resgatados pelo Sea Watch 3 estavam em condições tão precárias que foram levados à terra para receber tratamento de urgência.  Os 40 que ficaram a bordo enfrentaram uma longa espera de duas semanas, e suas condições psicológicas encontravam-se no limite do suportável.  

            A capitã e sua tripulação vigiavam permanentemente e em seguidos turnos os migrantes exauridos, temendo que houvesse suicídios a bordo. No dia 29 de junho, Carola tomou a difícil decisão de atracar o barco mesmo sem permissão.  Sabia que corria um risco grande, mas diante da ameaça a tantas vidas humanas sob sua responsabilidade atracou no porto de Lampedusa de madrugada, protegida pela noite e a menor vigilância dos barcos militares. 

            Os migrantes desembarcaram e foram alocados em furgões que os transportariam para diferentes países europeus onde teriam asilo. Carola foi imediatamente detida sob acusação de violência contra um barco de guerra, já que ao atracar bateu contra uma lancha militar que tentou impedi-la de chegar ao porto. Acusada de tráfico ilegal de pessoas e de entrada em águas italianas sem permissão do Estado, a jovem foi presa.  Em seu horizonte imediato, a possibilidade de três a dez anos de prisão era uma realidade palpável e possível. 

            Outra mulher, a juíza Alessandra Vala, devolveu a  capitã à liberdade.  Em sua sentença favorável, declarou que a ativista alemã cumpria “o dever de socorro, que não termina no mero embarque a bordo de náufragos, mas em sua condução a um porto seguro.” Livre, Carola continuou a ser acusada de crime pelo ministro Salvini e seus apoiadores, o que acarretou ameaças à sua vida e integridade.

            Há poucos dias, reapareceu, porém. Retomou sua luta elevando a voz para pedir aos países europeus que acolham os numerosos migrantes que se encontram na Líbia sob a ameaça de grupos traficantes e em condições infra-humanas. Relembrou a responsabilidade histórica dos países europeus por haver criado uma estrutura de poder que torna a vida na África desumana e impossível, empurrando grandes contingentes humanos à migração. Segundo a capitã, a Europa tem a obrigação de acolher as vítimas da situação de perigo e risco que criou. 

            Carola Rackete, qual nova Antígona que desafiou as leis de Tebas para dar sepultura digna a seu irmão, enfrentou proibições, ameaças e riscos para assegurar a 40 pessoas o direito de viver. Sua bravura inspira e nos dá orgulho de ser humanos.  Ao mesmo tempo nos enche de esperança de que a humanidade tenha realmente um futuro. A nós, mulheres, nos reafirma uma vez mais em nossa vocação fundamental: a de guardiãs da vida. Bravo, Carola.  E obrigada!



Maria Clara Bingemer é teóloga,  professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de  Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.

Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sexta-feira, 19 de julho de 2019

POR MILHÕES DE ANOS O AMAZONAS FLUÍA PARA O PACÍFICO



Por Leonardo Boff

Em função do Sínodo pan-amazônico continuemos a aprofundar a história do ecossistema amazônico. Euclides da Cunha (1866-1909), um clássico das letras brasileiras, foi também um apaixonado pesquisador da região amazônica, escreveu em 1905: ”A inteligência humana não suportaria o peso da realidade portentosa da Amazônia; terá de crescer com ela, adaptando-se-lhe para dominá-la”(Um paraíso perdido, reunião de ensaios amazônicos, Petrópolis 1976,15). Tal constatação mostra a luxuriante riqueza deste incomensurável ecossistema.

Paradoxalmente é também o lugar onde a Amazônia mais sofre violência. Se quisermos ver a face brutal do sistema capitalista predador, então visitemos a Amazônia. Aí emerge o gigantismo do espírito da modernidade, o racionalizado do irracional e a lógica implacável do sistema anti-natureza.

O Estado brasileiro, as empresas nacionais e as multinacionais formaram um poderoso tripé. Deram origem ao que se tem chamado “o modo de produção amazônico”(cf.Mires,F., El discurso de la naturaleza: ecología y política en America Latina, DEI, San José 1990, 119-123). É um modo que se define como uma forma de produção/destruição terrivelmente predatória, com aplicação intensiva de tecnologia contra a natureza, declarando guerra às árvores, exterminando populações originárias e adventícias, superexplorando a força de trabalho, até a modo de escravidão, em vista da produção para o suprimento do mercado mundial .

A Amazônia continental compreende 6,5 milhões de km quadrados, cobrindo dois quintos da área latino-americana: metade do Peru, um terço da Colômbia e grande parte da Bolívia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname e 3,5 milhões de km quadrados da área brasileira.

Geologicamente o proto-Amazonas durante todo o paleozoico (entre 550-230 milhões de anos atrás) formava um gigantesco golfo aberto para o Pacífico. A América do Sul estava ainda ligada à África. Na era cenozoica, no início do período terciário há 70 milhões de anos, os Andes começaram a soerguer-se e durante todo o plioceno e pleistoceno e por milhares e milhares de anos bloquearam a saída das águas para o Pacífico. Toda a depressão amazônica ficou paisagem aquosa até encontrar uma saída para o Atlântico como ocorre atualmente. (cf.Soli,H.,Amazônia, fundamentos da ecologia da maior região de florestas tropicais,Vozes,Petrópolis 1985, 15-17).

O rio Amazonas, segundo as mais recentes pesquisas, é o rio mais longo do mundo com 7.100 quilômetros, cujas nascentes se encontram no Peru, entre os montes Mismi (5.669 m) e Kcahuich (5.577 m) ao sul da cidade de Cuzco. De longe é também o mais volumoso, com uma vazão média de 200.000 metros cúbitos por segundo. Somente ele, perfaz entre 1/5 a 1/6 da massa de água que todos os rios da Terra lançam conjuntamente nos oceanos e mares. O leito principal do rio tem a largura média de 4-5 km com uma profundidade que varia de 100 m em Obidos a 4 m na foz do Xingu.

O maior patrimônio genético se oferece na Amazônia. Como dizia um de nossos melhores estudiosos Eneas Salati: “Em poucos hectares da floresta amazônica existe um número de espécies de plantas e de insetos maior que em toda a flora e fauna da Europa” (Salati, E., Amazônia: desenvolvimento, integração, ecologia, Brasiliense/CNPq, S.Paulo 1983; cf. Leroy, J.-P., Uma chama na Amazônia,Vozes/Fase, Petrópolis 1991,184-202; Ribeiro, B., Amazônia urgente, cinco séculos de história e ecologia, Itatiaia, B.Horizonte 1990, 53). Mas não nos devemos iludir: esta floresta luxuriante é extremamente frágil, pois, se ergue sobre um dos solos mais pobres e lixiviados da Terra como escrevemos no artigo anterior.

Na selva amazônica pré-colombiana viviam segundo o historiador Pierre Chaunu 2 milhões de habitantes e em toda a América do Sul cerca de 80-100 milhões sendo que 5 milhões no Brasil.

Desenvolveram um sutil manejo da floresta, respeitando sua singularidade, mas, ao mesmo tempo, modificando o habitat para estimular aqueles vegetais úteis para o uso humano. Como afirma o antropólogo Viveiros de Casto:”a Amazônia que vemos hoje é a que resultou de séculos de intervenção social, assim como as sociedades que ali vivem são o resultado de séculos de convivência com a Amazônia (Sociedades indígenas e natureza, em Tempo e Presença,n.261,1992,26). E. Miranda é ainda mais enfático:”Resta pouca natureza intocada e não alterada pelos humanos na Amazônia”(Quando o Amazonas corria para o Pacífico, Vozes, Petrópolis 2007, 83).

No Brasil pré-cabralino havia cerca de 1.400 tribos, 60% delas na parte amazônica. Falavam-se línguas pertencentes a 40 troncos subdivididos em 94 famílias diferentes, fenômeno fantástico o que levou a etnóloga Berta Ribeiro afirmar que “em nenhuma outra parte da Terra encontrou-se uma variedade linguística semelhante à observada na América do Sul tropical” (Amazônia urgente,op.cit. 75).

Releva notar que no interior da floresta amazônica, a partir de 1.100 antes da chegada dos europeus, formou-se um espaço imenso (diria quase um “império”) da tribo tupi-guarani. Ela ocupou territórios que iam desde os contrafortes andinos, formadores do rio, até a bacia do Paraguai e do Paraná, chegando depois ao Norte e Nordeste, descendo até o Pantanal e os pampas gaúchos.

Praticamente todo Brasil florestal, exceto algumas partes,foi conquistado pelos tupi-guarani (cf.Miranda, E., Quando o Amazonas corria para o Pacífico,op.cit.92-93). Foi criado um “proto-estado” com animado comércio com os Andes e o Caribe.
Desta forma se desfaz a crença do caráter selvagem da Amazônia e de seu vazio civilizacional.

Leonardo Boff é eco-teólogo e escreveu Ecologia:grito da Terra-grito dos pobres, Vozes 2015.


quinta-feira, 18 de julho de 2019

COMO OS POBRES SUSTENTAM OS RICOS



por Frei Betto

          Em menos de 24 horas a França arrecadou 2 bilhões de euros para reconstrução da Catedral de Notre Dame, na qual fiéis, sacerdotes, bispos e cardeais manifestam a fé de que todos os seres humanos são filhos de Deus e merecem viver com dignidade.  A mesma França que desde 1957, ou seja, após 62 anos de independência de suas colônias na África, cobra delas 85% de suas reservas nacionais.
          São 15 países que pagam um salvo-conduto à França todo ano. Alguns são marcados por destruição, guerras e fome, como Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Mali, Níger, Senegal, Togo, Camarões, República Centro Africana, Chade, Congo, República da Guiné e Gabão. Destes, seis figuram entre os mais miseráveis do mundo. 
          Seus governos são obrigados a colocar 60% das suas reservas no Banco da França, e só podem usar 15% ao ano. Caso retirem mais do que isso, devem pagar um ágio de 65% do valor. Ou seja, são penalizados por utilizarem o próprio dinheiro.
          Nas ex-colônias africanas, toda descoberta mineral pertence à França. Todo equipamento e treinamento militares têm de ser franceses, o que mostra quem lucra com as guerras locais. Já morreram mais de 350 milhões de inocentes por causas de guerras causadas pela pobreza naqueles países. 
          Até 2004, o Haiti também tinha de pagar essa mesma taxa  à França. Em 1825, quando a independência do Haiti foi reconhecida, o então presidente haitiano, Jean-Pierre Boyer, assinou um acordo com o rei francês Carlos X, pelo qual a importação de produtos da nação caribenha teriam redução de 50% nas tarifas alfandegárias, e o Haiti pagaria à França, em cinco parcelas, uma indenização no valor de 150 milhões de francos, equivalentes hoje a US$ 21 milhões. 
          Essa quantia seria para compensar os franceses por haverem perdido imóveis, terras e escravos. Caso o governo haitiano não assinasse o tratado, o país continuaria isolado diplomaticamente e ficaria cercado por uma frota de navios de guerra.
          Aquele valor equivalia às receitas anuais do governo haitiano multiplicadas por dez. Portanto, o Haiti teve que recorrer a um empréstimo para pagar a primeira parcela. Tomado de um banco francês... Assim começou formalmente o que se conhece como a “dívida da independência”. O banco francês emprestou 30 milhões de francos, valor da primeira parcela, da qual deduziu 6 milhões de francos em comissões bancárias.
          Com o restante 24 milhões de francos, o Haiti começou a pagar as indenizações. Ou seja, o dinheiro passou direto dos cofres de um banco francês para os cofres do governo francês. E o Haiti ficou devendo 30 milhões de francos ao banco francês, e mais 6 milhões de francos ao governo da França referentes ao valor que faltou da primeira parcela.
          Estabeleceu-se uma espiral absurda de dívidas para pagar uma indenização que continuou alta demais para os cofres do país caribenho, mesmo quando foi reduzida à metade, em 1830. Mais tarde, em 1844, o lado leste da ilha se declararia definitivamente independente do oeste, formando a República Dominicana.
          Desde então, o Haiti teve que pedir grandes empréstimos a bancos americanos, franceses e alemães, com taxas de juros exorbitantes que comprometiam a maior parte das receitas nacionais.
          Finalmente, em 1947, o Haiti terminou de compensar os franceses. Foram 122 anos pagando dívidas desde a independência. E restou ao país a triste realidade de também figurar entre os 20 países mais miseráveis do mundo.
          Notre Dame será reerguida, sem dúvida. E ali a glória de Deus será exaltada. Mas, e aqueles que foram criados à Sua imagem e semelhança, a população das ex-colônias? 
 Frei Betto é escritor, autor do romance histórico “Minas do ouro” (Rocco), entre outros livros.
  Copyright 2019 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com

Artigo originalmente publicado no jornal O Globo.


terça-feira, 16 de julho de 2019

O SÍNODO PARA A AMAZÔNIA E A ESPIRITUALIDADE LASCASIANA



Por Marcelo Barros

Nos ambientes católicos, um dos assuntos que mais têm suscitado discussões é o próximo Sínodo dos Bispos que o papa Francisco convocou sobre a Amazônia. Ele se reunirá em Roma, no próximo outubro. De fato, há dois anos, desde que o papa anunciou esse sínodo, criou-se a  Rede Eclesial Panamazônica (REPAM) que reúne missionários e missionárias dos nove países que compreendem a região amazônica. Uma novidade é que o documento de trabalho, proposto para o Sínodo, resultado da consulta e do diálogo com comunidades e grupos eclesiais de toda a região, propõe que missionários e agentes de pastoral se coloquem em permanente escuta e atitude de acolhida amorosa das tradições culturais e espirituais dos povos amazônicos. 

Muitas vezes, desde os tempos da colonização, a Igreja Católica confundiu missão com conquista e no lugar de testemunhar o evangelho de Jesus, serviu aos interesses dos impérios do mundo. As principais vítimas desse sistema foram os povos originários que há milênios vivem nesse continente. Agora, o papa Francisco e boa parte da Igreja, reunida nesse sínodo propõem uma evangelização baseada no diálogo respeitoso e no reconhecimento da presença divina em todas as religiões e culturas. De fato, essa postura é nova como posição de um papa e de parte dos pastores, missionários e missionárias que atuam na região. No entanto, desde os primeiros tempos da colônia, sempre houve cristãos e pastores que, mesmo marginalizados pela cúpula eclesiástica e perseguidos pelo Império, insistiram: a missão não pode estar ligada à colonização. Só é missão de acordo com Jesus se partir do cuidado amoroso com as comunidades indígenas. Em toda a América Latina, 17 de julho lembra o falecimento da figura mais conhecida que defendeu essas posições. Foi Bartolomeu de las Casas, primeiro bispo de Chiapas, no sul do México e defensor da dignidade dos índios contra o sistema colonizador e escravagista. Era um frade dominicano que veio da Espanha para a América no começo da colonização para ser senhor e feitor, mas, ao ver o sofrimento dos índios, se converteu e se tornou missionário e teólogo para lutar contra a escravidão. Defendeu a dignidade dos índios junto ao rei da Espanha e escreveu o primeiro tratado de teologia e espiritualidade que ensina: nos corpos dos índios escravizados, é o próprio Jesus Cristo que é explorado pelos que se dizem cristãos. Atualmente, quase cinco séculos depois, podemos lamentar que ao protestar contra a escravidão indígena, Las Casas não tenha sabido denunciar o próprio sistema colonizador em si mesmo. E há quem o acuse de ter aceito o tráfico e a escravidão dos africanos para substituir os índios nas minas e engenhos da colonização. Não há provas disso. De fato, ao morrer em 1566, Las Casas não chegou a antever esse problema. O tráfico de africanos sequestrados para ser escravos na América floresceu em época posterior, a partir das últimas décadas do século XVI. Seja como for e mesmo com algumas contradições inerentes à época, em nossos dias, os escritos desse grande missionário são referência para uma nova concepção intercultural de missão e de leitura da história a partir das vítimas e não dos vencedores.  
No decorrer da história da Igreja, esse modelo de missão se tornou conhecido como “lascasiana”. Hoje, uma espiritualidade lascasiana rejeita uma missão cristã que tenha como objetivo conquistar adeptos para a fé e a assume como diálogo que valoriza a presença divina em toda realidade humana e respeita a diversidade das culturas.

Ainda em nossos dias, aqui no Brasil, povos indígenas continuam massacrados, vítimas de um modelo de progresso que olha os índios como estorvo para a concentração de terras, o agro-negócio e os lucros das grandes empresas. No Mato Grosso do Sul os Guarani Kaiowá são perseguidos. Nos últimos anos, várias lideranças foram assassinadas e continua sendo frequente, nas aldeias, um suicídio de jovens que não aceitam ser escravos nas fazendas de soja da região, envenenados pelos agrotóxicos que são obrigados a manipular. 

A memória de Las Casas nos chama a defender a vida e a liberdade dos índios por motivos humanos e sociais, mas também por uma exigência espiritual da fé. Não podemos aceitar projetos de desenvolvimento que não levem em consideração o respeito aos povos que sempre foram vítimas da história e suas culturas religiosas.

Até hoje, nos projetos missionários das Igrejas, continua existindo sempre o risco de certo neocolonialismo cultural. Ainda aparece forte a centralização administrativa e uma visão unilateral do pensamento humano. Esses perigos afetam a sociedade dominante, mas também a atuação da própria Igreja. Em um diálogo com os índios, na cidade de Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, em janeiro de 2018, o papa Francisco pediu aos líderes indígenas que ajudassem a Igreja a superar esses perigos e a formar uma Igreja com rosto amazônico e indígena. Esperamos que o Sínodo para a Amazônia siga esse caminho.

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br


terça-feira, 9 de julho de 2019

30 ANOS DO MOVIMENTO FÉ E POLÍTICA





Por Marcelo Barros

Neste final de semana (de 12 a 14 de julho), no encontro nacional que se realiza em Natal, RN, o Movimento Fé e Política celebrará os seus 30 anos de vida e de atuação no caminho da transformação da sociedade e da proposta de espiritualidade libertadora.

Para quem viveu no Brasil nesses últimos 30 anos sabe o que significa de vitória o fato do Movimento estar vivo, forte e fiel às propostas iniciais. 1989 foi o ano da eleição vencida por F. Collor, derrotando a esquerda por meio de uma campanha midiática enganadora. Sofremos também a derrota política e de credibilidade da Frente Sandinista na Nicarágua. Por fim, foi o ano da queda do muro de Berlim , que marcou o desmoronamento do socialismo soviético no leste europeu.

O Movimento Fé e Política já nasceu com o desafio de distinguir o que não deu certo nas experiências ditas socialistas e a utopia de um novo Socialismo, que radicalize a democracia e una a luta pelos direitos humanos, individuais e coletivos ao Bem Viver de todos os seres vivos e cósmico.

Nesses 30 anos, cada encontro, seminário de estudo ou retiro que se faz, de âmbito nacional ou local, é sempre experiência marcante que sinaliza uma profecia encantadora. O mais impressionante é que o Movimento Fé e Política faz tudo isso com pouca estrutura e sem dinheiro. Assim, tem formado lideranças jovens e dado apoio a companheiros e companheiras que, a partir da fé, se engajam nos diversos campos da Política: parlamentar, executivo, sindical, de movimentos sociais, ONGs e outros. Parabéns a todos os companheiros e companheiras que iniciaram esse movimento e a todos/as os/as que mantêm seu espírito profético.

Trinta anos é a idade com a qual, conforme a tradição, Jesus iniciou sua missão pública de profeta e testemunha da realização revolucionária do reino de Deus no mundo. Sem dúvida, muitos de seus contemporâneos esperavam que ele liderasse uma revolta política contra o Império Romano. No entanto, mesmo assumindo muito da causa zelota, a atuação de Jesus foi em um plano mais profundo e mais amplo. Na sociedade da época, Jesus propôs uma transformação radical na forma de crer e de falar de Deus. Ele demoliu a figura de um Deus todo-poderoso que legitimava os poderosos. Apresentou Deus como Amor, portanto, como Anti-poder. Tirou Deus da gaiola na qual as religiões o colocam ao aprisioná-lo nos templos, como objeto de culto e sacrifício. Chamou-o de Paizinho. Ensinou os discípulos a orar na natureza e sem cerimônia, simplesmente entrando no mais íntimo de si mesmo e invocando-o carinhosamente como Pai Nosso.

Essa revolução na forma de crer e de falar de Deus dá o testemunho de que sagrada é a Vida, humana ou de outro tipo. Revela que Deus está em nós. Como no século IV, dizia Santo Agostinho: “mais íntimo a nós do que nós mesmos”. Essa presença amorosa do Espírito em cada pessoa e no universo possibilita a liberdade em relação às instituições ao mesmo tempo que une intimidade divina e cuidado com a natureza. Esse princípio divino do Amor em nós não deve ser um intimismo que resvala para o individualismo. Precisa expressar-se social e politicamente: a revolução interior produzida em cada um só se realiza quando nos colocamos no serviço uns dos outros e no esforço comunitário por transformar o mundo.

A dimensão social libertadora da fé e da espiritualidade é a espinha dorsal do Movimento Fé e Política. Ela não se desliga da busca de relação direta com Deus, mas, conforme o evangelho, a antecede. De acordo com a carta de João, quem não ama o seu irmão a quem vê não pode amar a Deus a quem não vê. O próprio Jesus falou claro: “O que, em meu nome, fizerdes a um desses pequeninos é a mim que fazeis”. Essa dimensão do amor solidário não consiste apenas na compaixão por quem sofre. Trata-se de uma liga essencial que faz de seres diferentes uma só unidade.

Mais ainda do que em 1989, a complexidade social e política do mundo pluralista em que hoje vivemos exige de nós ação conjunta e com a característica de diálogo intercultural e inter-religioso. Mesmo se nem todas as religiões e tradições espirituais usem o termo fé, o Movimento Fé e Política lembra que todas nasceram a partir da preocupação do amor social e da solidariedade, como caminhos de intimidade com o Divino.

Por isso, o caminho é buscar unir Igrejas, religiões e mesmo as pessoas que buscam o Amor fora das estruturas religiosas. Além de ser exigência da conjuntura social e política, a preocupação de ultrapassar as fronteiras de uma Igreja e mesmo de uma religião é o próprio coração da espiritualidade sócio-libertadora. É sua dimensão fontal: é intrínseca e essencial a essa espiritualidade ser saída ao encontro do outro, porque é a abertura e a experiência de alteridade que a alimenta.

O papa Francisco propõe uma Igreja em saída. Isso só se realizará em cada comunidade eclesial e no próprio Movimento Fé e Política quando esse “em saída” se tornar modo de viver a fé e de expressar a espiritualidade. A espiritualidade será em saída quando for plena e radicalmente ecumênica. Mesmo no dia a dia corriqueiro de cada pessoa e grupo eclesial (por exemplo, quando formado somente por católicos) busque-se sempre e cada vez mais que cada expressão da fé se enriqueça com elementos de outras Igrejas e outras expressões religiosas. A perspectiva não é apenas a unidade das Igrejas e sim o ecumenismo do reino de Deus, ou seja, a construção no mundo do projeto divino da paz, justiça e comunhão com o universo. É o que no século XVII, o filósofo judeu-evangélico Baruch Spinoza chamou de “comunismo do espírito” (Cf. Donati Caleri, Spinoza e Zen Budismo, Ed. 7 Letras, 2019, p. 125). 

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br