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terça-feira, 29 de março de 2016

CONVITE PARA UMA VIDA NOVA


Por Marcelo Barros


Em meio a uma sociedade em crise e em um mundo que parece ter perdido o rumo, a celebração da Páscoa pode ser um convite de renovação de vida para quem crê e para toda pessoa de boa vontade. Para muitos, falar em mudanças parece uma utopia distante e inalcançável. Outros a aceitam individualmente, mas não no plano social. Para quem se liga à tradição judaica e cristã, a celebração da Páscoa confirma que outro mundo é possível.

Na Páscoa, as comunidades judaicas recordam a narração bíblica da saída dos hebreus do Egito. Conduzidos por Deus, eles veem o mar se abrir para ser caminho de libertação dos oprimidos. Até hoje, a cada ano, os judeus celebram a Páscoa para incorporar-se ao mesmo projeto libertador de Deus e proclamam ao mundo que toda pessoa humana nasceu para ser livre e libertadora. As comunidades cristãs retomam essa memória da libertação e a ligam à Páscoa de Jesus. Jesus atualizou a Páscoa ao doar a sua vida. Através da sua morte e ressurreição, ele reparte conosco o Espírito de amor que recebeu do Pai.

Os relatos sobre a Páscoa dos hebreus e os textos evangélicos sobre a ressurreição de Jesus são parábolas de um mistério de amor. Revelam que a vida vence a morte e o amor é mais forte do que o mundo.

Crer que Deus ressuscitou Jesus é testemunhar que o Cristo não é somente um personagem da história. Ele está presente hoje em nós e para nós. Seu Espírito nos faz viver da própria vida divina e se torna em nós força de amor e fonte de alegria, mesmo no meio das dores. Sem dúvida,  nossas contradições interiores, medos e dificuldades não se dissolverão de repente. No entanto, mesmo no meio das maiores tormentas, recebemos a graça da paz interior e da alegria. Essa alegria renova a confiança na vida e nos confirma que o individualismo é uma doença que atinge a sociedade dominante e precisa ser superada. Se o Espírito Divino atua em nós, nos tornamos pessoas de comunhão. Passamos de uma forma de amar egocêntrica para outro jeito que continua limitado, porque é humano, mas testemunha que amar é viver o mistério divino em nós e refaz em cada pessoa o milagre da criação. O amor divino nos faz viver como irmãos e irmãs na grande família humana que, junto com todos os seres vivos, faz parte da comunidade da vida. Aprofundar esse caminho é marchar na contramão do sistema dominante e, junto com todos os que sofrem, lutarmos por um novo mundo possível. Isso significa que, concretamente, para retomarmos o espírito original da Páscoa e o conteúdo da caminhada eclesial, precisamos refazer a dimensão socialista da fé bíblica.

Esse programa pascal, tanto em sua dimensão individual, como social, pode parecer ilusão. É o risco de toda pessoa que ama. Um fracasso na relação pode deixar a impressão de que o amor não existe e a vida não vale a pena. No entanto, quem desiste do amor se torna descrente. Não crer no amor é o verdadeiro ateísmo. Assumir os problemas e insucessos, no plano afetivo e também social, como sofrimentos pascais nos ajuda a ver que o amor é possível e transfigura o quotidiano. Mesmo frágil e misterioso, pode amadurecer para uma forma de amor mais generosa e com gosto de ressurreição. É o que faz com que, ao longo da história e nos mais diferentes continentes, inumeráveis pessoas continuem a ter a coragem de sair em plena noite para testemunhar esse amor mais forte do que a morte. Toda caminhada pela vida, pela liberdade e pela justiça é como a daquelas mulheres, amigas de Jesus que, na madrugada do domingo da ressurreição, corriam ao túmulo vazio. Aparentemente, estavam à margem do “realismo” da história. No entanto, enquanto caminhavam por estradas sombrias, seus passos atraíram a luz que dissipa as trevas e elas foram as primeiras a viver aquele “primeiro dia da semana”, início de uma história nova. Em cada celebração da Páscoa, revivemos essa experiência das primeiras testemunhas da fé. Façamos, então, uma espécie de agenda pascal – o que sentimos que deve mudar em nossa vida, tanto no plano interior dos pensamentos e sentimentos, como no plano das relações e da vida social. Alimentamo-nos de esperança e proclamamos que, como dizia Dom Helder Camara, “há mil razões para viver”.

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.  


segunda-feira, 28 de março de 2016

O DINAMISMO PASCAL DA VIDA HUMANA


  Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 



            No umbral da Semana Santa, escrevo refletindo sobre como o Mistério Pascal, centro da fé cristã, imprime na verdade sua marca ao movimento de toda a vida humana. Acostumamo-nos a uma visão invertida deste movimento.  Dizemos: tudo que nasce morre; para morrer, basta estar vivo.  Mas, na verdade, não percebemos que a frase deveria ser dita de outra maneira: tudo que morre vive; os mortos andam mais vivos que nunca.

            Temos para alimentar nossa reflexão alguns casos inspiradores.  O mundo amanheceu nesta terça-feira, dia 22 de março, com a terrível notícia dos atentados de Bruxelas.  Novamente o grupo terrorista ISIS reivindicou a autoria e integrantes de suas fileiras se explodiram ao mesmo tempo em que explodiam algumas dezenas de vidas e feriam muitas outras mais.  Aeroportos e metrôs passaram a ser lugares de medo, onde o terror pode estar à espreita em qualquer vagão, tornando a tensão insuportável.

            E, no entanto, como é bonito ver a solidariedade de toda uma cidade – a bela capital belga -  com as pessoas que, devido aos atentados, não puderam viajar e não têm onde ficar. Abriram suas casas, seus corações, sua presença, seus recursos.  O medo não tem a última palavra, mas a solidariedade ao outro sim.  E sem esquecer a dor e o luto causados pelos atentados podemos respirar, olhar-nos nos olhos e dizer: como é grande a obra de Deus no ser humano!

            O Brasil vive uma longa Sexta-feira Santa já há algum tempo.  O país parece sem rumo, perdido e desorientado.  Os índices nunca estiveram tão ruins, as denúncias de corrupção nunca foram tão agudas.  Os ânimos se acirram por todos os lados e sente-se cheiro de inimizade, de intolerância e até de ódio nas relações entre pessoas que antes pareciam amigas. 

            O clima é pesado, assustador.  A ameaça de golpe paira no ar.  Ao mesmo tempo, o cansaço de parte da população é compreensível.  O desemprego aumentou, o salário encolheu, o país parece à deriva.  E cada delação premiada traz novas surpresas nada agradáveis, que contribuem para o clima de sempre maior pessimismo.  Ambiente de perseguição, de paixão, de violência.

            E, no entanto, os sinais de vida brotam do seio de toda essa lama, essa incerteza, esse temor.  Adélia Prado, poetisa maior, ao final de um evento de poesia convoca seu público a rezar.  Busca uma oração que seja agradável a todas as religiões.  E dá início a um Pai-Nosso que, acompanhado por todos, termina em lágrimas da poeta e dos que a acompanham.  Reza pelo Brasil e sua fé é contagiante.

            A Santa Sé organiza um evento nas Nações Unidas para refletir e denunciar a violência contra a mulher.  Ouvem-se histórias incríveis de meninas violadas continuamente dentro e fora da família, na África e no Oriente Médio.  Com PowerPoint mostra-se uma realidade em que a mulher é moeda de troca, menos que uma mercadoria, pois é obrigada a ser virgem para poder casar e é violada para forçar às vezes um casamento que não deseja, mas é aprovado pela família porque o pretendente tem vacas para pagar o dote.  E por causa das vacas vai-se o equilíbrio mental e emocional, o futuro, a vida enfim de uma jovem na flor de seus quatorze, quinze anos. 

            Ao lado disso e respondendo a isso está o trabalho de duas mulheres: uma religiosa e uma leiga, uma de Uganda, outra do Congo, que dedicam a vida a recuperar essas meninas e conseguem verdadeiros milagres.  A essas que chegam às suas mãos após terem sido violadas, muitas vezes por homens diferentes e não se sentem mais acolhidas em lugar algum, fazem reencontrar o caminho da vida, da serenidade.  Abrem a elas um futuro ao lado dos filhos que geraram e pelos quais antes sentiam repulsa e rejeição.   

            As agressões da morte são respondidas com gestos de vida e de amor.  Este é o dinamismo pascal da vida humana.  A morte jamais terá a última palavra.  O ser humano é capaz de inúmeras crueldades, mas nunca estas serão mais fortes que a graça e o amor que o sustentam e inspiram.

            Na noite do próximo sábado, iremos todos cantar a “noite de alegria verdadeira, em que se uniu o céu à terra inteira”, a noite que viu emergir das trevas da morte Jesus de Nazaré, morto pela teocracia judaica e pela pax romana, em sinistra aliança contra seu projeto do Reino de Deus. Ao silêncio tenebroso que se seguiu ao grito do Crucificado seguiu-se o ressoar tonitruante da Palavra Interpretativa do Pai: Este é o meu Filho.  A morte não o retém em seu poder, porque maior do que ela é meu Amor.

               É um convite a confiar: a luz vence as trevas, a vida sobrepõe-se à morte, o amor é mais forte que tudo, o bem triunfa sobre o mal.  Porque, como diz o belíssimo texto do Precônio Pascal, “esta noite lava todo o crime/ liberta o pecador dos seus grilhões/ Dissipa o ódio e dobra os poderosos/ enche de luz e paz os corações. ”

               Alegre Páscoa para todos!

         Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do departamento de teologia da PUC-Rio,  teóloga, é autora de "O  mistério e o mundo -  Paixão por  Deus em tempo de descrença", Editora  Rocco. 
                     Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>                    


sexta-feira, 25 de março de 2016

DENTRO DA SEXTA-FEIRA SANTA POLÍTICA UM VISLUMBRE DE RESSURREIÇÃO

por Leonardo Boff

Vivemos politicamente no país uma situação de sexta-feira da paixão: há ódio, dilaceração das relações sociais, riscos de ruptura da ordem democrática e de passagem de uma democracia do direito e das leis para uma democracia da direita e sem leis. Há sinais inequívocos de que este cenário não seja impossível.

É neste contexto que celebramos a festa maior do cristianismo, a páscoa. Ela significa em hebraico, a “passagem” do cativeiro egípcio para a liberdade da terra prometida; metaforicamente, passagem dos turbilhões de uma crise para a paz serena de um Estado democrático de direito.

Foi refletindo sobre o significado profundo da sexta-feira santa   que o jovem estudante de teologia e depois um dos maiores filósofos da história F. Hegel tirou a sua famosa chave de leitura da história e da vida humana: a dialética. Ele via realizada na saga de Jesus a realização destes três passos: vida-morte-ressurreição.

A vida é a tese da positividade. A morte é a antítese da negatividade. A ressurreição é a síntese que incorpora a tese e a antítese numa síntese superior. A ressurreição é mais que a reanimação de um cadáver, como o de Lázaro, pois significaria a volta à vida anterior. A ressurreição é a introdução de algo novo, nascido das afirmações e contradições do passado. Esse “insight” sempre lembrado por ele, foi chamado de a “sexta-feira santa teórica”.

Se bem reparamos, a semana santa, para além de seu caráter religioso, representa um paradigma do processo histórico e da própria evolução. Tudo no universo, nos processos biológicos, humanos e biográficos se estrutura na forma da dialética. O primeiro momento é a tranquila serenidade e paz infinita daquele pontozinho quase infinito de onde viemos (tese). De repente, sem sabermos por quê, ele explode. Produz um incomensurável caos(antítese). A evolução do universo significa um processo de criar ordens cada vez mais altas e complexas que culminam com a emergência do espírito e da consciência (síntese).

Dentro desta síntese, transformada agora em nova tese, carrega sua antítese que desemboca numa nova síntese mais fecunda. E assim corre o devenir da história do universo, das sociedades e de cada pessoa.

Concretizando para a nossa situação atual. O Brasil entrou num processo de crise, cujas causas não cabe aqui referir. De uma situação tranquila( tese) entrou em processo de caos (antítse). Deste caos deve irromper uma nova ordem que possa dar horizonte e esperança ao país (síntese). Precisa-se definir novas estrelas-guia que nos orientem face à crise atual. A crise tem a função de acrisolar, purificar e tornar a todos mais maduros.

A questão toda se resume: quem possui a proposta político-social que supere a crise e crie uma convivência minimamente pacífica? Não será através de fórmulas já testadas e gastas que virá a superação da crise dando centralidade a políticas e a grupos de poder à custa do sacrifício da maioria da população.

Promissora é aquela que realiza para o maior número possível de pessoas um bem-estar mínimo, que lhe garanta trabalho, uma moradia modesta mas digna e lhe crie possibilidades de desenvolvimento e crescimento através da saúde e da educação sustentáveis. Em todo esse processo dialético há a experiência de vida, de morte e de transfiguração; de ordem, desordem e nova ordem; de tese, antítese e síntese. A complexidade segundo E. Morin se estrutura nesta dialética que é a da semente: ”se o grão de trigo, caindo na terra não morrer, ficará só, mas se morrer, produzirá muito fruto”, como disse o Mestre.

Hoje a natureza, a humanidade e nossa sociedade vivem sob pesada sexta-feira santa ameaçadora.

A nossa esperança é que este padecimento se ordene a uma radiante transformação. O corrupto seja punido e o que politicamente se fez errado seja corrigido. Importa definir um rumo que de certa forma já foi apontado. Se o rumo estiver certo, o caminho pode conhecer subidas e descidas mas ele nos leva ao destino certo: a uma nova ordem de convivência onde não seja tão difícil tratarmos a natureza com compaixão e nossos próximos com humanidade e com cuidado.

Leonardo Boff é autor de Paixão de Cristo-paixão do mundo. Vozes 2002.


quinta-feira, 24 de março de 2016

ÚLTIMA CEIA

por Frei Betto




        Nessa Última Ceia, sentarei à mesa farta e estenderei, aos semelhantes, travessas repletas de misericórdia. Servirei, em abundância, o cardápio da saciedade: de entradas, hinos e flores, para que a alegria plenifique o coração de cada comensal. Como prato forte, efusão espiritual recheada de mistério, para que os sentidos se calem e a razão, prostrada, reverencie a sabedoria. De sobremesa, uma noz e, dentro dela, um labirinto e, em sua porta, um sino e, em seu badalo, o reflexo da lua e, em seu brilho, o rosto interior de cada convidado.

       O vinho terá o gosto das liturgias salmodiadas por cordas e címbalos. Todos haverão de se embriagar de Deus. Serão invadidos por uma tamanha lucidez que já não poderão distinguir o dentro e o fora, o acima e o embaixo, a esquerda e a direita. O feio se fará bonito e o que se julga belo expressará o horror. O frio terá o calor da fervura e o quente será tão gélido quanto uma montanha de neve.

       Estarão à mesa a escória e o escárnio, o sorriso patético dos imbecis e o ódio escancarado dos algozes, a fúria de vingança e a pérfida arrogância da indiferença. Convidarei o desamor e a crueldade, o abuso e a injúria, a insípida ilusão de quem se ama acima de todas as pessoas e a efêmera riqueza dos que somam e mutiplicam atacados pela amnésia que lhes furta a ventura de subtrair e dividir.

       Quero que todos à mesa provem o veneno da própria alma ou deixem seus espíritos transbordarem em taças cheias de luz. Farei um brinde à compaixão e pedirei um minuto de silêncio para que cada um se envergonhe da existência contrária à sua essência. Haverá, então, tanta música e dança e festança que os pares levitarão de olhos fechados.

       Nessa Última Ceia, molharei o pão em azeite novo e ofertarei ao primeiro que arrancar as sandálias e, de pés nus, caminhar à beira do tatame sem provar a vertigem do medo. Premiarei a fé, a cegueira da mente, a noite escura que prenuncia o reverso dos versos. Entregarei, assim, a amante ao amado, e um coro de anjos celebrará a união de corpos transmutada em alucinação do espírito, o sexo sorvido como ágape, o imponderável voejando em tão acelerado ritmo que já não haverá Norte ou Sul, Leste ou Oeste, porque a Rosa dos Ventos estará girando desvairadamente.

       Louvarei os que guardam humilde fidelidade aos sonhos que lapidam a realidade, como quem cultiva uma ostra indiferente ao seu futuro de pérola. E estenderei as mãos aos incoerentes, para que possam juntar os cacos espalhados por seus caminhos e compor o vitral de suas dignidades resgatadas.

       Nessa Última Ceia, abençoarei o pão e o vinho, as moléculas do trigo e da uva, e os átomos e os neutrinos e todas as partículas elementares, e os quarks invisíveis e indivisíveis. E na composição do Universo será elevada, ao mais alto dos cues, a hóstia cósmica do corpo embebido no sangue que imprime vida a todas as galáxias. Então, todos os olhos verão que ele é tudo em todos, uno e trino, pessoa e substância, identidade e mistério. É o que é, limite intransponível da negação.

       Quando a noite cair e do cordeiro não restar senão os ossos, ele ofertará como alimento Deus transubstanciado em corpo e sangue, pão e vinho. Terá ressuscitado antes de morrer para fazer da vida a mais preciosa dádiva da Criação.

       Alimentados por ele, todos saberão que a Última Ceia é sempre a próxima, pródiga comemoração do amor, singelo gesto, aqui e agora, que acontece e, assim, tece os fios que enlaçam, envolvem e fundem tudo e todos, amorosamente.  

       Para quem guarda o apetite por aquilo que transcende o paladar, e cultiva a gula por luminescências, todas as ceias serão primeiras, e sairão delas ainda mais famintos, porém saciados de felicidade.

Frei Betto é escritor, autor de "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.

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quarta-feira, 23 de março de 2016

O IMPÉRIO DA LEI.


por Eduardo Hoornaert



Nos últimos dias vimos altos representantes do poder judiciário brasileiro vir ao público para defender o ‘império da lei’, acima de tudo. Nesse cenário, a Carta ao Povo Brasileiro, que Lula mandou publicar na noite de 17/03, constitui um contraponto. Ele escreve: ‘Não tive acesso a grandes estudos formais, como sabem os brasileiros. Não sou doutor, letrado, jurisconsulto. Mas sei, como todo ser humano, distinguir o certo do errado, o justo do injusto’. Por conseguinte, contesta o valor absoluto do ‘império da lei’.

Permitam-me os que lerem este texto evocar uma história que todos os cristãos bem conhecem: a condenação de Jesus, tal qual vai descrita no Evangelho de Marcos. Como afirmam os melhores estudiosos, Jesus foi condenado à morte segundo a Lei Romana e a Jurisprudência Judaica. Quando Jesus é preso, ele é levado ao Sinédrio reunido na Casa do Sumo Sacerdote Caifás. Aí sacerdotes, letrados e anciãos investigam se ele é culpado de morte. Os depoimentos são contraditórios e não levam a nada, como relata o Evangelho de Marcos: ‘os Sumos Sacerdotes e todo o Sinédrio procuraram contra Jesus um depoimento que lhes permitisse condená-lo à morte e eles não encontraram nada’ (Mc 14, 55). Mas aí, o Sumo Sacerdote Caifás intervém. Faz um depoimento em que deixa entender que Jesus é um perigo para a nação israelita. Caifás é o exemplo de um juiz preocupado em salvaguardar as instituições.

 Ele passa a trabalhar com suspeitas nebulosas, que impressionam vivamente os sacerdotes do Sinédrio. Vale a pena observar aqui que esses sacerdotes não devem ser considerados pessoas amorais, corruptas, perversas. O contrário é verdade. Eles agem em conformidade com a responsabilidade que lhes compete, instalam um processo, chamam testemunhas e interrogam o acusado (leia o trecho Mc 14, 55-65 por inteiro).  A questão é que eles se deixam guiar por questões formais e não compreendem o que os aldeões da Galileia compreendem muito bem: que Jesus é gente boa, faz bem ao povo e o ajuda a superar seus problemas. Isso é algo que os letrados de Jerusalém não conseguem enxergar. As leis os cegam. Eles ficam obcecados pela ideia que seguir procedimentos legais é fazer a coisa certa. Insisto nesse ponto: o que é realmente perturbador, nos relatos evangélicos sobre a condenação de Jesus, é que Ele não é condenado por pessoas perversas. O contrário é verdade. Alguns sacerdotes que seguem a jurisprudência de Caifás são particularmente honrados e respeitados por sua maneira de viver. Mas a questão da justiça propriamente dita (o que Lula chama de ‘distinguir o certo e o errado, o justo e o injusto’) não lhes aflora à consciência. Eles seguem cegamente a lei e com isso se tornam absolutamente incapazes de distinguir entre o bem e o mal. Não são levados por ódio ou fanatismo, simplesmente não conseguem enxergar a criminalidade de seus próprios comportamentos. Praticam o mal, pensando fazer o bem. Pensam que glorificam a Deus enquanto condenam à morte Aquele que age em conformidade com a Vontade de Deus. Isso provém do fato que se deixam nortear pela lei e não pelo senso de justiça inato em todas as pessoas.

Não estou aqui querendo comparar Lula com Jesus e fazer dele um santo. Todos os brasileiros sabem que Lula não é um santo. Mas quem é o santo nessa história? Escrevi este texto para defender o senso de justiça que existe ‘em todo ser humano’, a capacidade de distinguir ‘o certo do errado, o justo do injusto’, e que a atual jurisprudência oculta quando fala em ‘império da lei’. Como não duvidar do ‘império da lei’ quando estamos com os presidentes da Câmara e do Senado acusados de ser corruptos, diversos membros da Comissão do Impeachment com ações de improbidade (suspensas pela lei?), etc. etc. Os aldeões da Galileia bem sabiam que Jesus era uma pessoa de grande valor, algo que escapou à compreensão dos jurisprudentes em Jerusalém.


O tipo de reflexão que subjaz a esse texto pode causar estranheza em ambientes cristãos. Isso provém do fato que o cristianismo viveu durante séculos aliado ao poder e dessa forma perdeu largamente a capacidade de criticar o império da lei em nome de um princípio superior: o amor, a sensibilidade pelo mais fraco, o compromisso com o marginalizado. A confusão na mente de muitos cristãos é causada por uma leitura superficial e fundamentalista dos Evangelhos. Temos de reaprender a ler os Evangelhos. Inclusive para poder refletir sobre o momento político que atravessamos.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

terça-feira, 22 de março de 2016

O QUE A CRUZ NOS ENSINA

Por Marcelo Barros



Muitas pessoas pensam na cruz, apenas como símbolo religioso presente nas Igrejas cristãs e que nos recorda a morte de Jesus. Seria bom se fosse assim. Infelizmente, ainda hoje, a cruz é usada como instrumento de tortura e de infligir aos condenados uma morte cruel. Fotografias espalhadas pela internet mostram que o ISIS, grupo que se intitula como Estado Islâmico, tem crucificado inimigos que aprisionam como forma de mostrar ao Ocidente que a guerra santa contra o Império do Mal continua. Do outro lado, em Guatánamo, campo de concentração mantido pelo governo dos Estados Unidos, em um enclave de Cuba, soldados norte-americanos usaram a crucifixão como forma de tortura em prisioneiros árabes para obter confissões. Há décadas, teólogos como Jon Sobriño falam em “povos crucificados” para denunciar a injustiça vigente no mundo atual e, ao mesmo tempo, lembrar que a alma dos impérios é sempre a mesma. Hoje, o Império é dirigido pelas grandes empresas multinacionais às quais se associam governos da maioria dos países do mundo ocidental. Talvez esse império atual seja ainda mais cruel e mais cínico, em se fingir de civilizado e até democrático. Entretanto, quando é para defender seus interesses, não tem nenhum escrúpulo em matar e trucidar pessoas, grupos ou populações inteiras como tem ocorrido na história recente.

Ao celebrar nessa semana a páscoa de Jesus, muitas comunidades cristãs associam uma coisa a outra. Celebram a memória da morte de Jesus e associam a essa celebração o sofrimento de tantas pessoas vítimas da ambição humana e do desamor. Nessa Quaresma, as comunidades pensam também na cruz imposta à Terra, à Água e a toda a natureza.

O primeiro ensinamento da Cruz é que, para a maioria dos seres humanos, esse mundo é cada vez mais um vale de lágrimas. E não porque Deus quer que seja assim, nem porque esse é o destino normal das pessoas e sim pela organização injusta e cruel que a sociedade dominante impõe à humanidade. Por isso, é importante unir todo esse sofrimento espalhado pelo mundo à Cruz de Jesus. Ao fazer isso, denunciamos a crueldade de um mundo que continua submetendo os empobrecidos à Cruz. No entanto, ao associar as cruzes dos povos à Cruz de Jesus, queremos, principalmente, reafirmar a esperança de que, assim como da cruz de Jesus surgiu uma vida nova, também de tanto sofrimento humano e da terra, pode surgir uma situação nova.

Enquanto o mundo for dividido e a sociedade se organizar a partir da injustiça, muitas pessoas são responsáveis pela crucifixão de outras. Jesus não queria a morte. No entanto, sua forma de viver e de agir feriu frontalmente os interesses do império e da religião estabelecida que controlava o povo em nome de Deus. Jesus mostrou que o Deus, a quem ele chamava de Paizinho é totalmente diferente do deus do poder político e do templo. Foi, então, normal que os poderosos políticos e religiosos da época se unissem. E Jesus foi condenado tanto pelo tribunal do governador Pilatos, quanto pelo sinédrio do sacerdote Caifaz. Ele assumiu isso como profeta e mártir – para transformar a realidade a partir de baixo. Assim, Jesus mostrou que Deus é Amor. Um amor tão absoluto que ama mesmo quem não o ama e perdoa os próprios inimigos. Não é um Zeus grego a dominar o universo, mas um Deus impotente e crucificado de dor com seu próprio filho que assume em sua pessoa toda dor e sofrimento dos aflitos.

Essa energia de solidariedade amorosa vinda da Cruz foi tão revolucionária que, paradoxalmente, foi mais forte do que todo o ódio do mundo. Simbolicamente, os evangelhos falam que o túmulo de Jesus apareceu vazio. Os evangelhos insistem que ele apareceu no meio dos seus, frágil e ferido. Ainda com as chagas da cruz, mas vivo e vitorioso. É um modo de dizer que o Espírito amoroso do Pai deu a Jesus uma vida nova. A ressurreição não é uma sobrevivência depois da morte e sim uma forma de vida nova para além da morte. Ela se manifesta na cruz e na dor das pessoas que sofrem sem perder a esperança. Ninguém deve aceitar passivamente as cruzes que o mundo impõe. No entanto, ao lutar para que não haja mais cruz, podemos crer que a própria cruz abre um caminho novo de esperança. É uma força revolucionária de apostar no melhor, mesmo quando se vive o pior. Esse é o caminho pascal no qual o amor divino se manifesta onde estiverem dois ou três reunidos no nome de Jesus.


   
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.   

segunda-feira, 21 de março de 2016

OS TRÊS ANOS DE FRANCISCO

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer




            Faz três anos que a fumaça branca subiu na chaminé do Vaticano e a multidão que aguardava se rejubilou.  Três anos que a figura simpatico, vestida de branco e sem nenhum adereço, apareceu no balcão após o anúncio de que a Igreja tinha um Papa.  Há três anos todos escutamos a impecável teologia de quem se apresentava como bispo de Roma, igreja que preside  todas as outras na caridade.  E que jocosamente dizia vir do “fim do mundo”.  Três anos que o mundo se deslumbrou com a humildade de quem, em lugar da bênção que todos esperavam, inclinou a cabeça e pediu uma oração.

            Nesses três anos de pontificado, o Papa Francisco tem feito um caminho renovador, inovador e decidido.  Como era de se esperar, amado por muitos e não tão querido por outros.  Porém, a marca de seu pontificado está aí, presente e inspiradora, com conquistas inegáveis. É necessário não perder de vista.  Uma delas é sua teologia.  Sim, o Papa Francisco tem uma teologia que preside seu agir e seus discursos.  E, embora não seja um acadêmico, esta teologia é sólida e configura o seu modo de agir enquanto bispo de Roma.

            A teologia do Papa vem de duas principais fontes:  os Exercícios Espirituais de Santo Inácio – em cuja escola foi formado enquanto jesuíta -  e a Teologia do Povo (Teologia del Pueblo), que aprendeu e viveu durante seu ministério como bispo e arcebispo de Buenos Aires, nos bairros pobres, as villas misérias, com padres e agentes de pastoral que ali davam o melhor de si para que todos tivessem mais vida.

            Dessas duas fontes podemos apontar alguns pontos centrais do que seria a teologia do Papa Francisco, ou seja, sua maneira e estilo de pensar a fé e propô-la aos fiéis de Roma, de quem é pastor ordinário e também  urbi et orbi, como chefe da Igreja Católica.

            Da primeira – os Exercícios Espirituais- podemos destacar a centralidade da pessoa de Jesus Cristo, não somente proposto com a palavra, mas com a vida.  O Papa busca atuar exatamente como o faria Jesus: aproximando-se das pessoas, tocando suas feridas, consolando, não julgando, mas amando.  Quem passou pela experiência dos Exercícios de Santo Inácio sabe quanta importância dá o santo a esta contemplação próxima e afetiva da pessoa de Jesus, a fim de que o exercitante seja totalmente configurado por ela e se converta assim em outro Cristo.  Podemos dizer, sem medo, que a teologia do Papa gira inteiramente ao redor de Jesus Cristo e seu Evangelho, do qual se autocompreende como mensageiro na alegria.  E uma teologia cristocêntrica.

            Além disso, está sua compreensão da vida cristã como fundamentalmente missionária.  A espiritualidade inaciana é eminentemente apostólica e missionária, tendo como modelo e inspiração Jesus e o colégio apostólico, enviados e conduzidos pelo Espírito a anunciar a boa notícia do Reino de Deus.  Nessa chave se devem entender alguns convites que recebeu para vistar “uma igreja em saída”, um “hospital de campanha” etc.  Assim também algumas de suas palavras de ordem: “Quero movimento”, dirigindo-se a sacerdotes ou leigos, e animando-os a sair da zona de conforto e ir ao encontro das pessoas.

            A teologia do Papa é marcada pela missão que começa no seio da Trindade com o envio do Filho e prossegue hoje com os cristãos chamados a encarnar-se inteiramente entre os pobres e necessitados de toda espécie. É, pois, uma teologia missionária.

            Da experiência nas periferias marginalizadas de sua arquidiocese e da teologia do povo, destacaríamos a mística da alegria de ser povo.  Aí se encontram e cruzam os Exercícios Espirituais com a teologia do povo, para configurar a teologia de Francisco.  Quando fala do gozo e da alegria do Evangelho, Francisco está tratando de transmitir que o encontro com o Senhor nos rostos do povo fiel é a fonte de consolação espiritual de todo batizado, de todo cristão.  Aí na comunidade eclesial, no povo santo de Deus, o cristão é chamado a encontrar-se com seu Senhor e servi-lo nos outros. Aí este mesmo Senhor se lhe revelara produzindo a verdadeira alegria, gratuita e abundante, que brota de sua espiritualidade mais profunda.  É uma teologia ancorada no povo de Deus e sua mística.

            A questão dos pobres e do povo como mestres e lugar iniludível de pertença e espiritualidade é outro traço de sua teologia.  Segundo o Papa e por experiência própria, os pobres são mestres espirituais daqueles que os servem.  Por sua simplicidade, sua esperança contra toda dor e sofrimento, sua abertura a Deus e aos outros em solidariedade ativa, os pobres desenvolvem uma verdadeira mística que só pode adquirir-se e aprender por contágio, estando imerso no meio deles, servindo-os, crendo com eles e amando-os na alegria do Evangelho. 

            Assim, discípulos desta teologia papal, encontramo-nos todos no umbral da entrada de Jesus em Jerusalém. Possa a teologia de Francisco ajudar-nos a segui-lo sem vaidade diante das aclamações da multidão e assumir sem medo sua via sacra.  E não nos esqueçamos de agradecer a Deus que nos deu um Papa segundo seu coração.  Que possamos aprender de sua teologia e traduzi-la em vida plena e abundante para todos. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.    A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  

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sexta-feira, 18 de março de 2016

QUATRO SOMBRAS AFLIGEM A REALIDADE BRASILEIRA


Por Leonardo Boff


 Em momentos de crise, assomam quatro sombras que estigmatizam nossa história cujos efeitos perduram até hoje.

A primeira sombra é nosso passado colonial. Todo processo colonialista é violento. Implica invadir terras, submeter os povos, obriga-los a falar a língua do invasor, assumir as formas políticas do outro e submeter-se totalmente a ele. A consequência no inconsciente coletivo do povo dominado: sempre baixar a cabeça e levado a pensar que somente o que é estrangeiro é bom.

A segunda sombra foi o genocídio indígena. Eram mais de 4 milhões. Os massacres de Mem de Sá em 31 de maio de 1580 que liquidou com os Tupiniquim da Capitania de Ilhéus e pior ainda, a guerra declarada oficialmente por D.João VI em 13 de maio de 1808 que dizimou os Botocudos (Krenak) no vale do Rio Doce manchará para sempre a memória nacional. Consequência: temos dificuldade de conviver com o diferente, entendendo-o como desigual. O índio não é ainda considerado plenamente “gente”, por isso suas terras são tomados, muitos são assassinados e para não morrerem, se suicidam. Há uma tradição de intolerância e negação do outro.

A terceira sombra, a mais nefasta de todas, foi o escravidão. Entre 4-5 milhões foram trazidos de África como “peças” a serem negociadas no mercado para servirem nos engenhos ou nas cidades como escravos. Negamos-lhes humanidade e seus lamentos sob a chibata chegam ainda hoje ao céu. Criou-se a instituição da Casa Grande e da Senzala. Gilberto Freyre deixou claro que não se trata apenas de uma formação social patriarcal, mas de uma estrutura mental que penetrou nos comportamentos das classes senhoriais e depois dominantes. Consequência: não precisamos respeitar o outro; ela está aí para nos servir. Se lhe pagamos salario é caridade e não direito. Predominou o autoritarismo; o privilégio substitui o direito e criou-se um estado para servir os interesses dos poderosos e não ao bem de todos e uma complicada burocracia que afasta o povo.

Raymundo Faoro (Os donos do poder) e o historiador e acadêmico José Honório Rodrigues (Conciliação e reforma no Brasil ) nos têm narrado a violência com que o povo foi tratado para estabelecer o estado nacional, fruto da conciliação entre as classes opulentas sempre com a exclusão intencionada do povo. Assim surgiu uma nação profundamente dividida entre poucos ricos e grandes maiorias pobres, um dos países mais desiguais do mundo, o que significa, um país violento e cheio de injustiças sociais.

Uma sociedade montada sobre a injustiça social nunca criará uma coesão interna que lhe permitirá um salto rumo a formas mais civilizadas de convivência. Aqui imperou sempre um capitalismo selvagem que nunca conseguiu ser civilizado. Mas depois de muitas dificuldades e derrotas, conseguiu-se um avanço: a irrupção de todo tipo de movimentos sociais que se articularam entre si. Nasceu uma força social poderosa que desembocou numa força político-partidária. O Partido dos Trabalhadores e outros afins, nasceram deste esforço titânico, sempre vigiados, satanizados, perseguidos e alguns presos e mortos.

A coligação de partidos hegemonizados pelo PT conseguiu chegar ao poder central. Fez-se o que nunca foi pensado e feito antes: conferir centralidade ao pobre e ao marginalizado. Em função deles se organizaram, como cunhas no sistema dominante, políticas sociais que permitiram a milhões saírem da miséria e terem os benefícios mínimos da cidadania e da dignidade.

Mas uma quarta sombra obnubila uma realidade que parecia tão promissora: a corrupção. Corrupção sempre houve entre nós em todas as esferas. Negá-lo seria hipocrisia. Basta lembrar os discursos contundentes e memoráveis de Ruy Barbosa no Parlamento. Setores importantes do PT deixaram-se morder pela mosca azul do poder e se corromperam. Isso jamais poderia ter acontecido, dado os propósitos iniciais do partido. Devem ser julgados e punidos.

A justiça focou-se quase só neles e mostrou-se muitas vezes parcial e com clara vontade persecutória. Os vazamentos ilegais, permitidos pelo juiz Sérgio Moro, forneceram munição à imprensa oposicionista e aos grupos que sempre dominaram a cena política e que agora querem voltar ao poder com um projeto velhista, neoliberal e insensível à injustiça social. Estes conseguiram mobilizar multidões, conclamando o impedimento da Presidenta Dilma, mesmo sem suficiente fundamento legal como afirmam notáveis juristas. Mas o PT respondeu à altura.

As quatro sombras recobrem a nossa realidade social e dificultam uma síntese integradora. Elas pesam enormemente e vêm à tona em tempos de crise como agora, manifestando-se como ódio, raiva, intolerância e violência simbólica e real contra opositores. Temos que integrar essa sombra, como diria C.G.Jung, para que a dimensão de luz possa predominar e liberar nosso caminho de obstáculos.

Nunca fui filiado ao PT. Mas apesar de seus erros, a causa que defende será sempre válida: fazer uma política integradora dos excluídos e humanizar nossas relações sociais para tornar a nossa sociedade menos malvada.

Leonardo Boff é articulista do JB online e escreveu: Que Brasil queremos, Vozes 2000.


quinta-feira, 17 de março de 2016

MODALIDADES DE FÉ

Por Frei Betto


      Os antigos, desprovidos de ciência, buscavam em suas crenças explicações aos fenômenos da natureza. O trovão seria a voz (brava) de Deus, assim como o arco-íris o sinal de que não haverá novo dilúvio.

      A fé servia de muleta à ignorância, como provavelmente as gerações futuras haverão de rir de muitas de nossas atuais “certezas” científicas. Ora, com exceção da classe política, tudo evolui, felizmente.

      A razão moderna, sob os holofotes do iluminismo, questionou a fé. Ela seria o ópio do povo, clamou Marx. Pura ilusão infantil, enfatizou Freud. Incompatível com a liberdade humana, alardeou Nietzsche.

      Eis que surge um fenômeno novo: o ateísmo. A negação da existência de Deus. A fé convicta de que Deus não merece fé. Há que centrar os olhos na Terra, e não no céu.

      Na minha opinião, o ateísmo resulta da mediocridade dos cristãos. Não há fé que não seja reflexo do testemunho. Como convencer que Deus é um Pai amoroso se há tanta maldade, desigualdade, sofrimento e outras atrocidades? Onde se esconde esse Deus omisso frente à Inquisição, ao genocídio indígena na colonização da América Latina, à Auschwitz, ao terrorismo islâmico?

      Como suscitar fé nos princípios evangélicos se historicamente os cristãos promoveram o colonialismo, atualizaram o imperialismo e confundem democracia com capitalismo?

      Daí o bazar de crendices. Para todos os gostos. Desde o Deus misericordioso do papa Francisco, ao racista de Donald Trump até o vingativo do Estado Islâmico.

      Nesse emaranhado, como separar o joio do trigo? Qual modalidade de fé cristã merece credibilidade?

      Nós, cristãos, temos fé em Jesus. O que não nos impede de fazer tudo aquilo que contradiz o que ele pregou. Basta estudar a história do Ocidente “cristão”. Em nome de Deus se fez o diabo!

      Convém lembrar que Jesus viveu em uma sociedade profundamente religiosa. Seus embates não foram com a religião pagã do Império Romano. Foi com aqueles que, como ele, se identificavam com a tradição judaica representada por Abraão, Moisés, Davi e os profetas.

      Todos tinham fé em Deus: fariseus, saduceus, doutores da lei, sacerdotes, levitas e essênios. Contudo não tinham a mesma fé de Jesus.

      Eis o ponto. Não basta ter fé em Jesus. “Até os demônios creem”, diz a Carta de Tiago (2, 19). O desafio é ter a fé de Jesus.
      A fé de Jesus se centrava no valor primordial: a vida. “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).

      Jesus não fazia distinção entre fé e amor. Tanto que, ao curar, dizia ao paciente: “A tua fé te salvou” (Lucas 7, 50). Fé como sinônimo de atuação amorosa e solidária, e não como abstração da mente em projeções oníricas que consolam o coração sem instaurar justiça.

      Enquanto os fariseus mediam a prática religiosa pela régua do puro e do impuro, Jesus adotava a do justo ou injusto. Importa crer no Deus da vida. Não há que imaginá-lo por piedosos exercícios de fantasia. Basta olhar para aqueles criados à imagem e semelhança dele: todos os seres humanos. Todos são templos vivos de Deus.

      Deus nos criou para viver em um paraíso e a nossa liberdade, ao optar pelo egoísmo, gerou dor, injustiça e opressão. Ter fé, na óptica de Jesus, é lutar para resgatar o paraíso. Fazer do reino de César o Reino de Deus. Defender e aprimorar os direitos humanos. Agir segundo os valores enfatizados no Evangelho: misericórdia, solidariedade, desambição, partilha de bens e, sobretudo, amor.

      Quem assim age, ainda que seja o mais empertigado ateu, é discípulo de Jesus sem o saber, e faz a vontade de Deus sem nisso crer.

Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Fontanar), entre outros livros.


terça-feira, 15 de março de 2016

A PÁSCOA DOS DESCARTÁVEIS


Por Marcelo Barros



Assim como os seres vivos precisam de água para viver e o organismo depende de alimento para se reabastecer, as Igrejas e o mundo precisam de profetas. O termo é religioso, mas a função é a de pessoas críticas que ajudem a sociedade a pensar, a se rever e a mudar de itinerário. Assim, nos tempos bíblicos, para mostrar como o povo se situava diante de Deus, o profeta Isaías saiu nu pelas ruas. Jeremias que era de família sacerdotal assumiu uma canga e se vestiu de escravo.

No mundo atual, o fenômeno das migrações revela o fracasso da política que os Estados Unidos e países da Europa impõem aos povos do Oriente Médio e da África. Essa política continua o colonialismo que vem de 500 anos e tem, hoje, como consequência a imensa onda de populações inteiras que não podem viver em seus países praticamente destruídos pelas potências ocidentais.  Há alguns dias, a polícia da França e a Inglaterra interveio e derrubou as tendas dos migrantes no acampamento de Calais, no norte da França. Ali estão acampados mais de 3500 migrantes, vindos de diversos países do Oriente Médio e proibidos de entrar na Inglaterra. Famílias inteiras com crianças passam o inverno europeu em um terreno pantanoso, sem água e sem alimentos. Nas fronteiras entre a Macedônia e a Grécia, assim como entre a Alemanha e a Áustria, milhares tentam abrigo e são rejeitados por governos que se dizem democráticos e alguns deles cristãos. A rainha da Inglaterra, chefe da Igreja Anglicana assinou um documento negando aos antigos moradores de várias ilhas no Oceano Índico permissão para voltar a suas casas, de onde haviam sido expulsos. A Inglaterra tinha vendido as ilhas ao exército norte-americano para fazer ali bases militares.

É a partir dessa chave de leitura que podemos compreender a decisão de quatro padres jovens da diocese de Bérgamo, no norte da Itália. No começo dessa Quaresma, eles decidiram armar uma tenda diante de uma Igreja paroquial e ali viverem acampados até a Páscoa. Na carta pública com a qual anunciaram sua decisão, os padres Emanuele, Alessandro, Andrea e Gianluca deixam claro: “Tomamos essa decisão por termos descoberto que o preço do bem-estar que vivemos é a redução à miséria de outros seres humanos. E em nome de Jesus, não podemos aceitar isso”. Por isso, fizeram esse gesto como iniciativa de Quaresma e anúncio de uma nova Páscoa.

Na cultura hebraica, é um gesto litúrgico. Até hoje, a cada ano, na festa de Shuccot (festa das Tendas), as comunidades judaicas têm o costume de armar tendas de palmeira ou de plantas no jardim de suas casas e ali viver por oito dias para recordar o tempo em que Israel vivia em tendas no deserto. Na realidade brasileira e latino-americana, a partir dos anos 70, alguns padres, religiosos e religiosas passaram a viver em aldeias indígenas, em acampamentos de lavradores sem-terra para sensibilizar a sociedade para o direito que toda pessoa humana tem ao que o papa Francisco chama os três T: terra, trabalho e teto.

Na atual América Latina, também temos migrações internas. Em nossas cidades, convivemos com o comércio informal mantido por migrantes africanos, haitianos ou de países vizinhos, geralmente explorados por patrões que os tratam como semiescravos. No entanto, a profecia das tendas é mantida por grupos indígenas que são as principais vítimas da poluição da natureza, da invasão do agronegócio e dos governos que ainda mantém um projeto de desenvolvimento baseado no lucro e que consideram índios e pequenos lavradores como descartáveis. Há poucos dias, em Honduras, apareceu assassinada Berta Cáceres, líder indígena do país. Independente da mão que lhe deu o tiro fatal, de fato, ela foi assassinada por esse projeto de desenvolvimento que considera índios, lavradores e pobres em geral, como descartáveis.   

Daqui há poucos dias, as comunidades judaicas e Igrejas cristãs celebrarão a Páscoa. Essa festa teve seu início na fé dos hebreus de que o próprio Deus veio guiar a sua migração do Egito para a terra prometida. Ao doar a sua vida para que todos tenham vida e vida de qualidade, Jesus faz da Páscoa uma bênção e fortalecimento para todos os migrantes e deserdados do mundo. Em 1968, os bispos latino-americanos, reunidos na Conferência de Medellín, propunham: “uma Igreja pobre e pascal, comprometida com a libertação de toda humanidade e de cada ser humano por inteiro” (Med 5, 15). 
     
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.