Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
A palavra inglesa Spotlight em português significa “holofote”.
Trata-se de uma lâmpada fotovoltaica de tal força capaz de lançar um facho
de luz no céu. Usada para guiar aviões em nevoeiros e a mira de
canhões, assim como iluminar rotas de embarcações, os holofotes também são
usados para iluminar monumentos ou cenários teatrais.
Assim se chamava a coluna do jornal Boston Globe, que denunciou em
primeira mão os abusos de menores por parte de clérigos na arquidiocese de
Boston, nos Estados Unidos. Este é também o título do filme que acaba de
receber a premiação da Academia de Hollywood: o Oscar de 2016.
A temática não é nova e já explodiu há alguns anos. Ao Papa Bento XVI
coube a pesada tarefa de lidar com todas as consequências das denúncias de
abusos sexuais de menores por parte de sacerdotes católicos. O mundo
inteiro se escandalizou e reagiu de diversas maneiras. Por não ser tão
nova, o filme tem a chance de apresentar um olhar mais tranquilo e
desapaixonado sobre o problema. E é exatamente isso que faz.
Tal como declarou o jornal Osservatore Romano, órgão oficial do
Vaticano, não se trata absolutamente de um filme anticatólico. Pelo
contrário, a postura em relação à Igreja pareceu-me bastante respeitosa. Há
pontos que deixam a desejar, obviamente. O personagem do cardeal Law, por
exemplo, aparece um pouco fraco perto da figura forte e cheia de
liderança do verdadeiro cardeal, que hoje está retirado em Santa Maria
Maggiore, em Roma. Mas isso não chega a comprometer o filme e a postura equilibrada
de que faz prova o diretor Thomas McCarthy.
Na verdade, o filme é um libelo em favor da verdade. Todo o problema dos
abusos sexuais na Igreja, que tantos sofrimentos provocaram e tantas vítimas
fizeram, decorre da postura de certos membros da hierarquia católica, que
entenderam ser melhor encobrir esses tristes fatos do que trazê-los à luz. Com
isso, conseguiram apenas confirmar os criminosos em seus crimes e os doentes em
suas doenças, impedindo-os, inclusive, de procurar tratamento adequado à sua
patologia.
Como instrumento que se esforça para trazer a verdade à tona está um grupo de
jornalistas que, impulsionados por um diretor consciente e exigente, empenha-se
no trabalho investigativo que irá finalmente desenterrar documentos escondidos
e segredos guardados há muitos anos. Tocados pelo sofrimento das vítimas e
comprometidos com sua missão de informar e divulgar a verdade, perseguem os
fatos e desfazem os nós que querem impedi-los de conseguir chegar até onde está
o núcleo mais profundo da rede que encobre o doloroso drama que se desenrola há
tantos anos nos bastidores da vida da diocese.
Com uma direção competente e adequada, uma equipe de grandes atores, que inclui
Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachel McAdams e outros, o filme tem um ritmo
adequadamente intenso e contido, que mantém o espectador ligado na trama sem
grandes sobressaltos. A lucidez é mantida até o final, quando a redação
finalmente é invadida pela notícia da publicação e o movimento começa a
acontecer.
Parece-me que em termos teológicos, estamos diante de um filme que pode ajudar
a refletir sobre esse episódio tão triste da recente história eclesial.
Os que amamos a Igreja sabemos quanto fomos interpelados e questionados por todos
esses fatos. E quanto ainda o somos. Spotlight apresenta a
realidade dos fatos sem anestesia, mas também sem sensacionalismo: na pura e
nua crueza da sua melancólica realidade. E assim fazendo deixa importantes
pistas para a reflexão.
Ensina que pelo fato de um homem ser consagrado a Deus não significa que passa
a ser um anjo em um passe de mágica. A beleza da vocação
sacerdotal, que ao longo destes mais de 2000 anos de cristianismo tem produzido
tantos santos, deve ser vivida por homens fracos e pecadores, que devem lutar a
cada dia para serem fieis à vocação que seguiram. Ensina ainda que a maioria
dos casos de pedofilia é patológica. E patologia se trata, não se esconde
nem camufla. Não questionando a reta intenção dos que escondiam a verdade
pretendendo assim preservar a imagem da Igreja, creio que o filme mostra como
este caminho é equivocado.
Ensina, ainda e sobretudo, que apenas a verdade liberta. Assim já dizia o
Evangelho de Jesus. Assim mostra o filme. Sem estardalhaços, nem
efeitos especiais, mostra um grupo de profissionais fazendo seu trabalho e
perseguindo a verdade. E quando esta vem à luz, o que acontece é
realmente o começo de um processo de libertação. Spotlight mostra
que o holofote pode ser incômodo, mas é certamente muito mais libertador do que
a traiçoeira sombra onde às vezes parecem que alguns desejam esconder a
verdade.
Maria
Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão" (Edusc)
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