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quinta-feira, 24 de março de 2016

ÚLTIMA CEIA

por Frei Betto




        Nessa Última Ceia, sentarei à mesa farta e estenderei, aos semelhantes, travessas repletas de misericórdia. Servirei, em abundância, o cardápio da saciedade: de entradas, hinos e flores, para que a alegria plenifique o coração de cada comensal. Como prato forte, efusão espiritual recheada de mistério, para que os sentidos se calem e a razão, prostrada, reverencie a sabedoria. De sobremesa, uma noz e, dentro dela, um labirinto e, em sua porta, um sino e, em seu badalo, o reflexo da lua e, em seu brilho, o rosto interior de cada convidado.

       O vinho terá o gosto das liturgias salmodiadas por cordas e címbalos. Todos haverão de se embriagar de Deus. Serão invadidos por uma tamanha lucidez que já não poderão distinguir o dentro e o fora, o acima e o embaixo, a esquerda e a direita. O feio se fará bonito e o que se julga belo expressará o horror. O frio terá o calor da fervura e o quente será tão gélido quanto uma montanha de neve.

       Estarão à mesa a escória e o escárnio, o sorriso patético dos imbecis e o ódio escancarado dos algozes, a fúria de vingança e a pérfida arrogância da indiferença. Convidarei o desamor e a crueldade, o abuso e a injúria, a insípida ilusão de quem se ama acima de todas as pessoas e a efêmera riqueza dos que somam e mutiplicam atacados pela amnésia que lhes furta a ventura de subtrair e dividir.

       Quero que todos à mesa provem o veneno da própria alma ou deixem seus espíritos transbordarem em taças cheias de luz. Farei um brinde à compaixão e pedirei um minuto de silêncio para que cada um se envergonhe da existência contrária à sua essência. Haverá, então, tanta música e dança e festança que os pares levitarão de olhos fechados.

       Nessa Última Ceia, molharei o pão em azeite novo e ofertarei ao primeiro que arrancar as sandálias e, de pés nus, caminhar à beira do tatame sem provar a vertigem do medo. Premiarei a fé, a cegueira da mente, a noite escura que prenuncia o reverso dos versos. Entregarei, assim, a amante ao amado, e um coro de anjos celebrará a união de corpos transmutada em alucinação do espírito, o sexo sorvido como ágape, o imponderável voejando em tão acelerado ritmo que já não haverá Norte ou Sul, Leste ou Oeste, porque a Rosa dos Ventos estará girando desvairadamente.

       Louvarei os que guardam humilde fidelidade aos sonhos que lapidam a realidade, como quem cultiva uma ostra indiferente ao seu futuro de pérola. E estenderei as mãos aos incoerentes, para que possam juntar os cacos espalhados por seus caminhos e compor o vitral de suas dignidades resgatadas.

       Nessa Última Ceia, abençoarei o pão e o vinho, as moléculas do trigo e da uva, e os átomos e os neutrinos e todas as partículas elementares, e os quarks invisíveis e indivisíveis. E na composição do Universo será elevada, ao mais alto dos cues, a hóstia cósmica do corpo embebido no sangue que imprime vida a todas as galáxias. Então, todos os olhos verão que ele é tudo em todos, uno e trino, pessoa e substância, identidade e mistério. É o que é, limite intransponível da negação.

       Quando a noite cair e do cordeiro não restar senão os ossos, ele ofertará como alimento Deus transubstanciado em corpo e sangue, pão e vinho. Terá ressuscitado antes de morrer para fazer da vida a mais preciosa dádiva da Criação.

       Alimentados por ele, todos saberão que a Última Ceia é sempre a próxima, pródiga comemoração do amor, singelo gesto, aqui e agora, que acontece e, assim, tece os fios que enlaçam, envolvem e fundem tudo e todos, amorosamente.  

       Para quem guarda o apetite por aquilo que transcende o paladar, e cultiva a gula por luminescências, todas as ceias serão primeiras, e sairão delas ainda mais famintos, porém saciados de felicidade.

Frei Betto é escritor, autor de "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.

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