Por Marcelo
Barros
Em meio a
uma sociedade em crise e em um mundo que parece ter perdido o rumo, a
celebração da Páscoa pode ser um convite de renovação de vida para quem crê e para
toda pessoa de boa vontade. Para muitos, falar em mudanças parece uma utopia
distante e inalcançável. Outros a aceitam individualmente, mas não no plano
social. Para quem se liga à tradição judaica e cristã, a celebração da Páscoa
confirma que outro mundo é possível.
Na Páscoa,
as comunidades judaicas recordam a narração bíblica da saída dos hebreus do
Egito. Conduzidos por Deus, eles veem o mar se abrir para ser caminho de
libertação dos oprimidos. Até hoje, a cada ano, os judeus celebram a Páscoa para
incorporar-se ao mesmo projeto libertador de Deus e proclamam ao mundo que toda
pessoa humana nasceu para ser livre e libertadora. As comunidades cristãs retomam
essa memória da libertação e a ligam à Páscoa de Jesus. Jesus atualizou a Páscoa
ao doar a sua vida. Através da sua morte e ressurreição, ele reparte conosco o
Espírito de amor que recebeu do Pai.
Os relatos
sobre a Páscoa dos hebreus e os textos evangélicos sobre a ressurreição de
Jesus são parábolas de um mistério de amor. Revelam que a vida vence a morte e
o amor é mais forte do que o mundo.
Crer que
Deus ressuscitou Jesus é testemunhar que o Cristo não é somente um personagem
da história. Ele está presente hoje em nós e para nós. Seu Espírito nos faz
viver da própria vida divina e se torna em nós força de amor e fonte de alegria,
mesmo no meio das dores. Sem dúvida, nossas
contradições interiores, medos e dificuldades não se dissolverão de repente. No
entanto, mesmo no meio das maiores tormentas, recebemos a graça da paz interior
e da alegria. Essa alegria renova a confiança na vida e nos confirma que o
individualismo é uma doença que atinge a sociedade dominante e precisa ser
superada. Se o Espírito Divino atua em nós, nos tornamos pessoas de comunhão. Passamos
de uma forma de amar egocêntrica para outro jeito que continua limitado, porque
é humano, mas testemunha que amar é viver o mistério divino em nós e refaz em
cada pessoa o milagre da criação. O amor divino nos faz viver como irmãos e
irmãs na grande família humana que, junto com todos os seres vivos, faz parte
da comunidade da vida. Aprofundar esse caminho é marchar na contramão do
sistema dominante e, junto com todos os que sofrem, lutarmos por um novo mundo
possível. Isso significa que, concretamente, para retomarmos o espírito
original da Páscoa e o conteúdo da caminhada eclesial, precisamos refazer a
dimensão socialista da fé bíblica.
Esse
programa pascal, tanto em sua dimensão individual, como social, pode parecer
ilusão. É o risco de toda pessoa que ama. Um fracasso na relação pode deixar a
impressão de que o amor não existe e a vida não vale a pena. No entanto, quem
desiste do amor se torna descrente. Não crer no amor é o verdadeiro ateísmo. Assumir
os problemas e insucessos, no plano afetivo e também social, como sofrimentos
pascais nos ajuda a ver que o amor é possível e transfigura o quotidiano. Mesmo
frágil e misterioso, pode amadurecer para uma forma de amor mais generosa e com
gosto de ressurreição. É o que faz com que, ao longo da história e nos mais
diferentes continentes, inumeráveis pessoas continuem a ter a coragem de sair
em plena noite para testemunhar esse amor mais forte do que a morte. Toda
caminhada pela vida, pela liberdade e pela justiça é como a daquelas mulheres,
amigas de Jesus que, na madrugada do domingo da ressurreição, corriam ao túmulo
vazio. Aparentemente, estavam à margem do “realismo” da história. No entanto, enquanto
caminhavam por estradas sombrias, seus passos atraíram a luz que dissipa as
trevas e elas foram as primeiras a viver aquele “primeiro dia da semana”, início
de uma história nova. Em cada celebração da Páscoa, revivemos essa experiência
das primeiras testemunhas da fé. Façamos, então, uma espécie de agenda pascal –
o que sentimos que deve mudar em nossa vida, tanto no plano interior dos
pensamentos e sentimentos, como no plano das relações e da vida social. Alimentamo-nos
de esperança e proclamamos que, como dizia Dom Helder Camara, “há mil razões
para viver”.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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