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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O CRISTO CÓSMICO:UMA ESPIRITUALIDADE DO UNIVERSO


Por Leonardo Boff


        Uma das buscas mais persistentes entre os cientistas que vem geralmente das ciências da Terra e da vida é pela da unidade do Todo. Dizem: “precisamos identificar aquela fórmula que tudo explica e assim captaremos a mente de Deus”. Esta busca vem sob o nome de “A Teoria da Grande Unificação” ou “A Teoria Quântica dos Campos” ou, pelo pomposo nome de “A Teoria de Tudo”. Por mais esforços que se tenham feito, todos acabam se frustrando ou como o grande matemático Stephan Hawking, abandonando, por impossível, esta pretensão. O universo é por demais complexo para ser apreendido por uma única fórmula.

         Entretanto, pesquisando as partículas subatômicas, mais de cem, e as energias primordiais, chegou-se a perceber que todas elas remetem àquilo que se chamou de “vácuo quântico” que de vácuo não possui nada porque é a plenitude de todas as potencialidades. Desse Fundo sem fundo surgiram todos os seres e o inteiro universo. É representado como um vasto oceano sem margens, de energia e de virtualidades. Outros o chamam de “Fonte Originária dos Seres” ou o “Abismo alimentador de Tudo”.

         Curiosamente, cosmólogos como um dos maiores deles, Brian Swimme, denomina-o de o Inefável e o Misterioso (The Hidden Heart of the Cosmos, 1996) Ora, estas são características que as religiões atribuem à Última Realidade que vem chamada por mil nomes, Tao, Javé, Alá, Olorum, Deus. O Vácuo pregnante de Energia se não é Deus (Deus é sempre maior) é a sua melhor metáfora e representação.

         O fundamental não é a matéria mas esse vácuo pregnante. Ela é uma das emergências desta Fonte Originária. Thomas Berry, o grande ecólogo/cosmólogo norte-americano, escreveu: “Precisamos sentir que somos carregados pela mesma energia que fez surgir a Terra, as estrelas e as galáxias; essa mesma energia fez emergir todas as formas de vida e a consciência reflexa dos humanos; é ela que inspira os poetas, os pensadores e os artistas de todos os tempos; estamos imersos num oceano de energia que vai além da nossa compreensão. Mas essa energia, em última instância, nos pertence, não pela dominação mas pela invocação”(The Great Work,1999, 175), quer dizer, abrindo-nos a ela.

         Se assim é tudo o que existe é uma emergência desta energia fontal: as culturas, as religiões, o próprio cristianismo e mesmo as figuras como Jesus, Moisés, Buda e cada um de nós. Tudo vinha sendo gestado dentro do processo cosmogênico na medida em que surgiam ordens mais complexas, cada vez interiorizadas e interconectadas com todos os seres. Quando acontece determinado nível de acumulação dessa energia de fundo, então ocorre a emergência dos fatos históricos e de cada pessoa singular.

         Quem viu esta gestação de Cristo no cosmos foi o paleontólogo e místico Teilhard de Chardin(+1955), aquele que reconciliou a fé crista com a ideia da evolução ampliada e com a nova cosmologia. Ele distingue o “crístico” do “cristão”. O crístico comparece como um dado objetivo dentro do processo da evolução. Seria aquele elo que une tudo com tudo. Porque estava lá dentro pôde irromper, um dia na história, na figura de Jesus de Nazaré, aquele por quem todas as coisas têm sua existência e consistência, no dizer de São Paulo.

         Portanto, quando este crístico é reconhecido subjetivamente, se transforma em conteúdo da consciência de um grupo, ele se transforma em “cristão”. Então surge o cristianismo histórico, fundado em Jesus, o Cristo, encarnação do crístico. Daí se deriva que suas raízes derradeiras não se encontram na Palestina do primeiro século, mas dentro do processo da evolução cósmica.

         Santo Agostinho escrevendo a um filósofo pagão (Epistola 102) intuiu esta verdade: ”Aquela que agora recebe o nome de religião cristã sempre existia anteriormente e não esteve ausente na origem do gênero humano, até que Cristo veio na carne; foi então que a verdadeira religião que já existia, começou a ser chamada de cristã.”

         No budismo se faz semelhante raciocínio. Existe a budeidade (a capacidade de iluminação) que vem se forjando ao longo do processo da evolução, até que ela irrompeu em Sidarta Gautama que virou Buda. Este só pôde se manifestar na pessoa de Gautama porque antes, a budeidade, estava lá no processo evolucionário. Então virou o Buda, como Jesus virou o Cristo.

         Quando esta compreensão vem internalizada a ponto de transformar nossa percepção das coisas, da natureza, da Terra e no Universo, então abre-se o caminho para uma experiência espiritual cósmica, de comunhão com tudo e com todos. Realizamos por esta via espiritual o que os cientistas buscavam pela via da ciência: um elo que tudo unifica e atrai para frente.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu O Evangelho do Cristo cósmico, Record 2010


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

BRASIL, NAÇÃO DE TARADOS


 por Por Frei Betto



      Mulheres que se vestem com roupas provocantes não devem se queixar se forem estupradas. É a opinião de 30% dos brasileiros em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

      Isso significa que, de cada três brasileiros, ao menos um é potencialmente tarado. E covarde. Tarado, por não respeitar o direito de a mulher se vestir como bem entender. Covarde, por admitir que um homem pode dominá-la, estuprá-la e... a culpa é dela!

      Ora, o problema não está na mulher, e sim na mentalidade de quem não consegue se conter diante de uma mulher que ele considera provocante, assim como os pedófilos que atacam crianças.

      O que é provocante? O fio dental, o biquíni, a minissaia, o vestido decotado? Ora, a provocação não reside neste ou naquele detalhe do adereço feminino, e sim na cabeça de quem é incapaz de olhar uma mulher com o mesmo respeito com que os índios miram as mulheres da aldeia que exibem seus corpos nus.

      Daqui a pouco dirão que a culpa de tantos caixas eletrônicos estourados por bandidos é dos bancos que se atrevem a estocar dinheiro em locais de acesso público. A culpa da inflação alta é do consumidor que não boicota os produtos mais caros. A culpa do terrorismo é da indústria química que fabrica explosivos.

      É cômodo e cínico tentar encobrir o machismo pondo a culpa na mulher. Ora, se um homem se sente ameaçado pelo modo como uma mulher se veste, deveria se tratar.

      A mesma pesquisa apontou que 65% dos brasileiros temem a violência sexual, dos quais 85% são mulheres. A violência se manifesta também no abuso sexual frequente em transportes coletivos, no assédio moral, nas piadinhas na rua, nas redes sociais, sem falar das agressões físicas entre quatro paredes.

      De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2014 foram notificados, no Brasil, 47.646 estupros. Porém, outras fontes indicam que, em nosso país, ocorrem 15 violações sexuais por hora ou uma a cada 4 minutos.

      Detalhe: na pesquisa, os mais jovens e os que possuem diploma universitário são menos vulneráveis à tara. Em suma, educação é sempre uma boa “terapia” para evitar que extrapole o monstro que habita cada um de nós.

      Há um dado, porém, que talvez ajude a explicar essa fobia sexual machista: o modo como a publicidade exibe a mulher. São incessantes peças publicitárias nas quais a mulher é reduzida a seus atributos físicos e apresentada como mera isca de consumo. E uma pergunta não quer se calar: se protestam contra o uso de animais em novelas e filmes, por que esse silêncio quanto ao abuso da imagem erotizada da mulher na propaganda?

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.

Copyright 2016 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

​UMA NOVA PRIMAVERA NA IGREJA




 A Igreja Católica Romana, com certeza, recebeu um sopro generoso do Espírito Santo ao ser presenteada com a eleição do papa Francisco. Desde que assumiu o papado ele tem se mostrado um verdadeiro pastor, que olha por sua ovelhas, escuta os seus problemas, as suas dores e tenta minimizá-las da melhor forma possível.

Abraço acolhedor, sorriso largo e muito amor no coração, Francisco vem renovando o ar no vaticano, resgatando a verdadeira missão da Igreja que é cuidar de suas ovelhas.

Francisco trouxe uma nova primavera para uma Igreja que estava tão ultrapassada e presa em seus conceitos arcaicos que foi se afastando, pouco a pouco dos Evangelhos, deixando de lado o fundamental: o amor ao próximo, seja ele de que religião, país, cor, opção política ou gênero  for.

E, sob os novos ares soprados por essa nova primavera, será realizado o evento: UMA NOVA PRIMAVERA NA IGREJA, promovido pelos grupos ENCONTRO DA PARTILHA e FÉ E POLITICA DOM HELDER CAMARA, com o apoio do Instituto Humanitas, da UNICAP.

O evento acontecerá nos dias 13 e 14 de outubro, sempre às 19h, nos auditórios da Unicap.

No dia 13, Leonardo Boff falará sobre Compaixão, espiritualidade e cuidado, no auditório G2.

No dia 14 será a vez do Painel: Religiões Afro: diálogo e Raízes, com a participação de Marcelo Barros, OSB e Vera Baroni.

A entrada é franca e não há necessidade de fazer inscrição. Os grupos organizadores pedem para quem puder leve leite em pó, massa para mingau e roupinhas para crianças de 1 a 4 anos, que serão entregue à comunidade de Dois Unidos, em colaboração aos trabalhos sociais ali realizados.







terça-feira, 27 de setembro de 2016

PARA UMA ESPIRITUALIDADE POLÍTICA


Por Marcelo Barros



Para muitas pessoas que seguem caminhos espirituais, a Política nada tem a ver com a Espiritualidade. Pensam a fé como exclusiva relação com Deus e expressa nas devoções. A Política fica, então, restrita ao exercício do poder na sociedade. Quando se separa a espiritualidade da vida real, as eleições se reduzem a um ritual político, repetido a cada quatro anos, enquanto a espiritualidade é reduzida ao mundo religioso.

Na realidade, a vida não é assim, fragmentada em compartimentos separados. O compromisso político vai muito além das eleições, assim como a Espiritualidade se expressa em todos os campos da vida e não só no religioso. Simone Weil, pensadora francesa da primeira metade do século XX, afirmava: "Conheço quem é de Deus não quando me fala de Deus e sim pelo modo de se relacionar com os outros".

Nos séculos passados, por não terem claro essa relação entre o compromisso ético da fé e a dimensão espiritual da Política, as próprias estruturas das Igrejas e religiões, assim como a maioria dos religiosos, deram aparência religiosa a guerras e violências indescritíveis. Na Índia, as religiões deram aparência espiritual ao sistema social das castas. Na África do Sul, durante séculos, cristãos protestantes justificaram o apartheid. No mundo inteiro, católicos e evangélicos legitimaram o Colonialismo. Foram coniventes com o racismo e com injustiças sociais. Até hoje, no Congresso brasileiro, um grupo de parlamentares se dizem evangélicos. Sem nenhuma preocupação com a Ética, sem compromisso com a justiça e menos ainda com o serviço ao povo, a maioria exerce o mandato para defender interesses de seus grupos religiosos ou, pior ainda, simplesmente enriquecer. Em nome de um Deus cruel, amigo apenas dos seus amigos e vingativo em relação aos demais, eles fortalecem as desigualdades sociais.

Para que isso nunca mais aconteça, temos de aprofundar  a dimensão política libertadora da espiritualidade. Quanto mais formos pessoas de oração e de profunda mística, mais a nossa busca espiritual se manifestará em nosso modo de exercer o compromisso político. O Concilio Vaticano II afirmava que Deus não quis nos salvar individualmente, mas nos unir em comunidade (Lumen Gentium 2). Por isso, a Política é uma arte sublime e importante. 

Todos nós fazemos Política o tempo todo. Política é como respiração. Sem respiração, morremos. Além da Política como exercício do poder, existe uma política de base que consiste na participação social em grupos e organizações que buscam transformar a sociedade.  Seja como parlamentar ou prefeito de um município, seja como militante político nas bases, o cidadão ou cidadã vive a Política como vocação pessoal. Como vocação, a Política é a mais nobre das atividades. Se for apenas para ganhar dinheiro ou para ter poder e prestígio, a Política se torna a profissão mais vil e vergonhosa.

Para votar nessas eleições com coerência espiritual é preciso ser dócil ao Espírito de Deus em nós e não seguir critérios de interesse pessoal, de família ou votar apenas por relação de amizade. Como diz uma campanha popular: “Voto não tem preço. Tem consequências”. O nosso voto pode ajudar a construir uma sociedade mais justa, ou pode, ao contrário, perpetuar os velhos vícios do sistema vigente. No Brasil, muitos políticos que pareciam éticos e coerentes, hoje revelam claramente ter trocado um projeto de país por um mero projeto de poder pessoal ou partidário. Entretanto, seja como for, todos os políticos e partidos não são iguais ou equivalentes. Mesmo se, em muitos casos, ainda somos obrigados a votar no menos pior, é importante discernir entre as diversas escolhas possíveis, a que nos parece ser a mais justa e adequada para o bem comum.

  Os Evangelhos contam que, ao entrar em Jerusalém, Jesus foi ao templo e ali, com um chicote em punho, expulsou os cambistas e vendedores de animais para os sacrifícios. Essa cena pode servir como símbolo para a vida de hoje. A Política como atividade espiritual pode ser vista como um novo templo divino, porque é o espaço formador da dignidade coletiva de um povo. Por isso, é preciso expulsar dela os vendedores que a aviltam. Hoje, o chicote com o qual podem ser expulsos da política os que a reduzem a um negócio de interesse e mercado só pode ser o voto consciente e ético de cada cidadão/ã.  O evangelho diz que devemos julgar as pessoas e partidos conforme a prática e pelos seus resultados. 

“Pelos frutos bons, vocês podem discernir que a árvore é boa, assim como pelos maus frutos, verão que uma árvore é má. Pelos frutos, vocês podem discernir se a árvore é boa ou má” (Mt 7, 18). 

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 


segunda-feira, 26 de setembro de 2016

MAMA ANTULA E A MATERNIDADE ESPIRITUAL

Por  Maria Clara Lucchetti Bingemer



            Os homens gostam, às vezes, de criticar certas características das mulheres.  Ora é a curiosidade, ora a dificuldade em ficar caladas, ora a emoção que ultrapassa a razão.  Há outra característica feminina criticada: a teimosia.  Mas creio que essa tem uma certa ambiguidade, pois nem sempre pode ser considerada algo apenas negativo.

            Assim parece ao menos ao Papa Francisco, que no último dia 27 de agosto proclamou beata  Maria Antonia de Paz y Figueroa, ou Maria Antonia de San José, mais conhecida como Mama Antula. Argentina de Santiago del Estero, começou a trabalhar desde muito jovem com os jesuítas, ajudava-os na organização de exercícios espirituais.

            Não era freira nem pertencia a nenhuma congregação.  Era apenas uma mulher de profunda  fé e um enorme amor pelos exercícios espirituais, que constatou fazerem bem a muita gente.  Por isso, reuniu um grupo de jovens mulheres que viviam em comum, rezavam e praticavam a caridade e ajudavam os jesuítas em seu trabalho apostólico.  Eram chamadas de “beatas” naquele tempo.  Hoje, são chamadas de leigas consagradas. 

            A santa teimosia de Maria Antonia, aliás Mama Antula, começou a destacar-se em 1767, com a expulsão dos jesuítas da Argentina. Saíram os jesuítas, mas não os exercícios espirituais, que continuaram a ser fiel e continuadamente pregados por Mama Antula.  Ajudada por um padre mercedário que assumia as tarefas próprias do sacerdote, tal como celebrar missa e confessar, ela continuava se ocupando, juntamente com suas companheiras, da organização de exercícios em todos os seus aspectos práticos, como conseguir um lugar, provisões e recursos, para que mais e mais pessoas fizessem aquela experiência que tanto a havia ajudado.

            Sua cidade ficou pequena para sua intensa atividade pastoral e spiritual, e ela partiu para outras cidades da Argentina.  Foi, então, que começaram a chamá-la de Mama Antula, pois viam nela uma espécie de maternidade espiritual.  Viajava caminhando descalça e pedindo esmolas.  E assim  multiplicavam-se os candidatos aos exercícios que organizava, às centenas.

            Como não podia deixar de ser, Maria Antonia sofreu desconfiança, rejeição por parte de várias pessoas, inclusive autoridades eclesiásticas.  Em Buenos Aires foi primeiro chamada de louca, fanática e bruxa.  Mas logo o mesmo bispo que a olhava com desconfiança autorizou seu trabalho e se converteu em grande admirador.  O vice-rei a proibiu de continuar suas atividades, porém ela continuava a realizá-las clandestinamente com cada vez mais adesões, inclusive agora de pessoas da nobreza e famílias abastadas.

            A teimosia dessa mulher transpunha todos os obstáculos.  Verdadeira peregrina da fé, seguia aquilo que considerava ser o chamado de Deus para sua vida, não se importando se a realidade parecia contradizer todas as suas pretensões e desejos.  Caminhou o país inteiro sozinha ou com algumas de suas companheiras.  Esse peregrinar físico era também, nela, um símbolo da peregrinação espiritual. 

            Quando os jesuítas foram expulsos da Argentina, declarados perigosos pelo rei da Espanha, ela continuou sua obra, sabendo que poderia ser condenada por rebeldia.  Sua teimosia foi ainda mais extraordinária quando a Companhia de Jesus foi suprimida pelo Papa Clemente XIV. Ela não queria contradizer o papa, mas não podia deixar de viver sua vocação, que era continuar a obra dos jesuítas e propagar os exercícios espirituais.

            Enquanto trabalhava incansavelmente, criava uma família espiritual.  Os jesuítas eram seus irmãos, um jovem exercitante irmão de um jesuíta, seu filho.  Às mulheres que a acompanhavam chamava de “irmãs de um mesmo parto”.  E todos, ela, eles e elas, eram filhos de uma mesma mãe, a Companhia de Jesus.  Ela era reconhecida como mãe.

            Sua aventura espiritual, filha de uma teimosia inquebrantável, não é por ela realizada de forma individual, mas como líder de uma comunidade espiritual. Manteve sempre a esperança sua e a dos que lhe eram próximos, esperando o retorno dos jesuítas e o renascer da ordem extinta pelo papa. E os grupos de jesuítas que durante o tempo da supressão continuavam clandestinamente a vida consagrada recebiam os ecos de sua atuação na ponta sul do planeta e isso era para eles uma esperança.

            Graças à sua teimosia criativa e à força inquebrantável de seu espírito, os jesuítas, ao retornarem, encontraram o trabalho de pregação dos exercícios mais vivo e dinâmico do que nunca.  Seu ministério havia deixado de restringir-se apenas ao âmbito da Companhia e se tornara universal, aberto a toda a Igreja.

            Graças à teimosia de uma mulher, a espiritualidade inaciana não foi expulsa do vice-reinado do Rio de la Plata juntamente com a Companhia.  As cartas que Mama Antula escrevia aos jesuítas exilados na Europa também mantiveram viva a memória da ordem supressa e ainda dispersa pelo mundo.

            Portanto, cuidado quando uma mulher se apaixona por uma causa ou mete na cabeça que tem que realizar alguma coisa.  Sua força é inquebrantável, nenhum perigo a amedronta e pode chegar muito longe, onde às vezes os homens desanimariam.

            A beatificação desta extraordinária mulher argentina diz muito sobre a capacidade e a qualidade humana das mulheres quando se dispõem a fazer acontecer no mundo o Reino de Deus.

 Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 

 Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

DEZ POSSÍVEIS LIÇÕES APÓS O IMPEACHMENT


por Leonardo Boff



          Seguramente é cedo ainda para tirar lições do questionável impeachment que inaugurou uma nova tipologia de golpe de classe via parlamento. Estas primeiras lições poderão servir aos que amam a democracia e respeitam a soberania popular, expressa por eleições livres e não em ultimo lugar ao PT e aliados. Os que detêm o ter, o poder e o saber que se ocultam atrás dos golpistas se caracterizam por não mostrar apreço à democracia e por  se lixar pela situação de gritante desigualdade do povo.

Primeira lição é alimentar resiliência, vale dizer, resistir, aprender dos erros e derrotas e dar a volta por cima. Isso implica severa autocrítica, nunca feita com rigor pelo PT. Precisa-se ter claro sobre qual  projeto de país se quer implementar.
Segunda lição: reafirmar a democracia, aquela que  ganha as ruas e praças, contrariamente da democracia de baixa intensidade, cujos representantes, com exceções, são comprados pelos poderosos para defender seus interesses corporativos..
Terceira lição: convencer-se de que um presidencialismo de coalizão é um logro, pois desfigura o projeto e induz à corrupção. A alternativa é uma coalização dos governantes com os movimentos sociais e setores dos partidos populares e a partir deles pressionar os parlamentares.
Quarta lição: convencer-se de que o capitalismo neoliberal, na atual fase de altíssima concentração de riqueza, está dilacerando as sociedades centrais e destruindo as nossas. O neoliberalismo atenuado, praticado nos últimos 13 anos pelo PT e aliados permitiu fazer a maior transformação social na história do Brasil com a melhoria de vida de quase 40 milhões de pessoas, com o aumento dos salários, com facilidade de crédito, com  desonerações fiscais, mas mostrou-se, no fundo,  insuficiente. Grande erro do PT foi: nunca ter explicado que aquelas ações sociais eram fruto de uma política de Estado. Por isso criou antes consumidores que cidadãos conscientes. Permitiu adquirirem bens pessoais (a linha branca) mas melhorou pouco o capital social: educação, saúde, transporte e segurança. Bem disse frei Betto: gerou-se “um paternalismo populista que teve início quando se trocou o Fome Zero, um programa emancipatório, pelo Bolsa Família compensatório; passou-se a dar o peixe sem ensinar a pescar”. No atual governo pós golpe, a radicalizada política econômica neoliberal de ajustes severos, recessiva e lesiva aos direitos sociais seguramente vai devolver à fome e à miséria os que dela foram tirados.
Quinta lição: é urgente dar centralidade à educação e à saúde. O governo Lula-Dilma avançou na criação de universidades e escolas técnicas. Mas cuidou pouco da qualidade seja da educação seja da saúde. Um povo doente e ignorante nunca dará um salto rumo a uma properidade sustentável. Tanto o filho/a de rico quanto de pobre tem direito de frequenter a mesma escola de qualidade.
Sexta lição: colocar-se corajosamente ao lado das vítimas da voracidade neoliberal, denunciando sua perversidade, desmontando sua lógica excludente, indo para as ruas, apoiando demonstrações e greves dos movimentos sociais e de outros segmentos.
Sétima lição: colocar sob suspeita tudo o que vem de cima, geralmente fruto de políticas de conciliação de classes, feitas de costas e à custa do povo. Estas políticas vem sob o signo do mais do mesmo. Preferem manter o povo na ignorância para facilitar a dominação  e combatem qualquer espírito critico.
Oitava lição: é urgente a projeção de uma utopia de um outro Brasil, sobre outras bases, a principal delas, a originalidade e a força de nossa cultura, dando centralidade à vida da natureza, à vida humana e à vida da Mãe Terra, base de uma biocivilização. O desenvolvimento/crescimento é necessário para atender, não os desejos, mas as necessidades humanas; deve estar a serviço, não do mercado, mas da vida e da salvaguarda de nossa riqueza ecológica. Concomitante a isso urge reformas básicas, da política, da tributação, da burocracia, da reforma do campo e da cidade etc.
Nona lição: para implementar essa utopia faz-se indispensável uma coligação de forças políticas e sociais (movimentos populares, segmentos de partidos, empresários nacionalistas, intelectuais, artistas e igrejas) interessadas em  inaugurar o novo viável, que dê corpo à utopia de outro tipo de Brasil.
Décima lição: esse novo viável tem um nome: a radicalização da democracia que é o socialismo de cunho ecológico, portanto, ecosocialismo. Não aquele totalitário da Rússia e o desfigurado da China que, na verdade, negam a natureza do projeto socialista. Mas o ecosocialismo que visa realizar potencialmente o nobre sonho de cada um dar o que pode e de receber o que precisa, inserindo a todos,  a natureza incluída.
Esse projeto deve ser implementado já agora. Como expressou a ancestral sabedoria chinesa, repetida por Mao: “se quiser dar mil passos, comece já agora pelo primeiro”. Sem o que jamais se fará uma caminhada rumo ao destino desejado. A atual crise nos oferece esta especial oportunidade que não deverá ser desperdiçada. Ela é dada poucas vezes na história e agora é uma delas.

*Teólogo, filósofo, escritor e articulista do JB on line. Escreveu: Que Brasil queremos? Vozes 2000.



quinta-feira, 22 de setembro de 2016

CADÊ OS OMELETES?


por Frei Betto





         No final da década de 1920, o escritor romeno Panait Istrati visitou a União Soviética. Testemunhou, horrorizado, os expurgos de Stálin. Um dirigente comunista tentou convencê-lo de que era necessário o uso de tanta violência para construir o socialismo: “Não se pode fazer omeletes sem quebrar os ovos.” O romeno retrucou: “De acordo. Vejo ovos quebrados. Mas onde estão as omeletes?”

         Guardadas as proporções, é o que faz o governo Temer. Quebra ovos em quantidade sem a menor perspectiva de oferecer omeletes à maioria da população. Sem dúvida, não faltarão ovos nevados para a minoria abastada que vive de especulação financeira.
         O que se vê é aumento do desemprego e dos direitos de cidadania. As medidas de austeridade equivalem ao argumento religioso de que estamos todos marcados pelo pecado original.

 Portanto, de todos é exigido fazer penitência... menos dos mais ricos. O Estado é, hoje, o novo Moloch, a quem devemos oferecer sacrifícios...

         Golpe consumado e uma vez empoderados, Temer e seu ministério erguem foices sobre os direitos dos trabalhadores: redução dos investimentos em educação e saúde; mudanças na aposentadoria rural; redução nos direitos previdenciários dos professores; ataque à política do salário mínimo, inclusive a desvinculação do mínimo como piso da Previdência Social.

         O rombo fiscal já foi ampliado de R$ 97 bilhões (Dilma) para R$ 170 bilhões (Temer). Segundo a insuspeita senadora Kátia Abreu, R$ 50 bilhões apenas para bancar o golpe. Para 2017, preveem-se novo rombo de R$ 139 bilhões e aumento de impostos para mais arrecadações.

         Não é só no social que os prognósticos são ameaçadores, mas também na estratégia global de retorno à dependência aos EUA e de privatização do pouco que resta do patrimônio brasileiro, de aeroportos ao pré-sal.

         Em termos de mercado de trabalho, o Brasil apresentava índices positivos até o final do primeiro mandato do governo Dilma. Então, aconteceu uma virada na política econômica sob o pretexto de que o país necessitava de um ajuste fiscal, tendo como consequências um choque monetário com enorme aumento de juros, que passou de 11% para 14%, e uma política irresponsável de preços administrados. Como se o preço da gasolina e da energia não influenciassem todos os demais em uma economia tão indexada como a brasileira. Resultado: dispararam a inflação e o desemprego.

         O remédio adotado por Dilma na virada do seu primeiro para o segundo mandato foi amargo, e agravou a situação econômica brasileira ao transformá-la em recessão. O baixo crescimento da economia se converteu em profunda depressão, a maior desde a década de 1930.

         Agora, o governo Temer aprofunda as medidas restritivas iniciadas por Dilma em seu segundo mandato. E o que é grave, sem uma estratégia de longo prazo para o Brasil, dependente apenas de meras táticas fisiológicas para acomodar aliados na máquina estatal e recolher dividendos eleitorais.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
  
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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O NASCIMENTO DA IGREJA CATÓLICA LATINO-AMERICANA


Por Eduardo Hoornaert



O nascimento da Igreja Católica Latino-americana tem local, data e identidade própria: Medellin (Colômbia), 1968, ‘opção pelos pobres’. Escrevo ‘nascimento’, pois, antes de 1968, as rédeas da Igreja latino-americana não estavam nas mãos de pessoas que aqui viviam, mas basicamente de europeus, que teleguiavam os destinos dos latino-americanos. Mas na segunda Conferência Geral dos bispos do subcontinente, acontecida na cidade de Medellin em 1968, verifica-se uma autonomia que nunca se manifestara antes.

Isso tem muito a ver com o Concílio Vaticano II, celebrado em Roma entre os anos 1962 e 1965, e que tornou as conferências episcopais nacionais ou regionais, por todo o mundo, mais independentes. Mesmo assim, a dinâmica que resultou no nascimento da Igreja Latino-americana deve ser procurada num acontecimento ocorrido em Roma, quinze dias antes da abertura do Concílio Vaticano II. 

Numa emissão radiofônica, no dia 11/09/1962, o Papa João XXIII pronuncia a seguinte frase: ‘a igreja é de todos, mas é antes de tudo uma igreja de pobres’.  Essa afirmação, feita sem alarde e como de passagem, constitui a primeira tomada de posição oficial da Igreja hierárquica diante da pobreza em longos séculos. Ao longo da tradição cristã houve, decerto, repetidos casos em que cristãos se comprometiam com os pobres, como São Martinho, São Francisco, São Vicente de Paulo e muitos outros. Mas a Igreja oficial não costumava se posicionar formalmente em relação à pobreza. Ela mantinha silêncio e é por isso que as palavras de João XXIII são tão importantes, pois elas trazem de volta, à consciência eclesial, a fala de Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 18-19):

Um Sopro do Senhor está sobre mim:
Por ele fui escolhido para anunciar uma boa nova aos pobres
Enviado por ele, declaro aos prisioneiros sua libertação
Aos cegos a recuperação da visão
Aos oprimidos o perdão.
Venho declarar publicamente um ano de favor do Senhor.

As palavras do Papa João não causaram um grande impacto sobre os trabalhos do Concílio Vaticano II. Isso se deve ao fato que os 1.500 bispos que veem a Roma para participar do Concílio, não encaravam a pobreza como questão, mas como uma realidade. Realidade, sem dúvida triste, mas inevitável, já que faz parte da história humana. Assim, as palavras do papa dão origem, dentro do Concílio, a uma movimentação discreta, que passa despercebida pela maioria dos bispos participantes. Mesmo assim, algo se mexe, e nessa discreta movimentação se percebem os germes da Igreja Latino-americana, tal qual se manifesta em Medellin.

- Primeiro episódio: um bispo melquita (das igrejas orientais), ao ser convidado ao Concílio, traz consigo ao Concílio o Padre francês Paul Gauthier e a freira carmelita Marie-Thérèse Lescase. Ambos são da Fraternidade Companheiros de Jesus Carpinteiro e trabalham como operários em Nazaré, em meio a árabes. Eles começam a organizar reuniões no apartamento alugado de Gauthier em Roma, e mais tarde no Colégio Belga em Roma. Cardeal Gerlier e Cardeal Lercaro mostram interesse, assim como Dom Helder Câmara, na época bispo auxiliar do Rio de Janeiro. É o ‘grupo dos pobres’, que se reúne regularmente ao longo de toda a duração do Concílio.

- Segundo episódio: o Cardeal Lercaro faz um discurso na Assembleia de 1.500 bispos e declara que o tema da pobreza teria de ser o ‘único tema do Concílio’. É profusamente aplaudido, mas não se percebe seguimento. Não se fala mais em pobreza na Aula Conciliar. A maioria continua pensando em reforma litúrgica, ecumenismo, modelo de igreja, dogma, luta ao comunismo, medo da secularização, luta contra o comunismo etc. Entre os Padres Conciliares, o bloco central, na Grande Basílica, não mostra maior interesse pelo tema da pobreza.

- Terceiro episódio, o mais importante: duas semanas antes da clausura do Concílio, no dia 16/11/1965, aproximadamente 40 bispos, convidados pelo ‘grupo dos pobres’, se reúnem na Catacumba de Santa Domitila e participam de uma missa celebrada pelo bispo belga Himmer. Depois assinam um documento, chamado Pacto das Catacumbas, em que se comprometem a viver de modo pobre. São 42 assinaturas, aproximadamente 15 latino-americanas.

Como escrevi acima, o tema da pobreza não encontra muita ressonância entre os bispos da Europa e da América do Norte que retornam às suas dioceses depois do Concílio, Mas na América Latina, algo diferente acontece. Há um grupo de bispos que colocam em prática o que prometeram no Pacto das Catacumbas, em 1965. Uns exemplos: em Recife, Dom Helder troca o Palácio dos Manguinhos pela sacristia da Igreja das Fronteiras; em São Paulo, Dom Paulo Evaristo vende o Palácio Pio XII e constrói centros comunitários com a renda da venda; em Crateús, Dom Fragoso deixa o ‘palácio’ (que já não é grande coisa) por uma casa na periferia da cidade; em João Pessoa, Dom José Maria Pires vai morar numa casinha perto do Convento histórico dos franciscanos; etc. Há bispos que fazem minirreformas agrárias em terras de suas dioceses, como Dom Tiago Cloin, Dom Delgado e Dom Helder. Outros doam prédios ou intervêm em ações militares contra camponeses. Que se mencione aqui o martírio do bispo argentino Angelelli que, após uma intervenção numa expulsão de camponeses em La Rioja, é morto numa emboscada planejada por militares.

É desse modo que o tema da pobreza ocupa chama a atenção dos participantes da Conferência Geral dos bispos latino-americanos reunida em Medellin, Colômbia, em 1968. É acolhido com entusiasmo e é desse entusiasmo original que nasce a Igreja Latino-americana, que é a única, no universo católico, a assumir oficialmente o tema da pobreza levantado pelo Papa João, como se evidencia em declarações de princípio reafirmadas ao longo de quatro sucessivas Conferências Gerais do Episcopado latino-americano: Medellín 1968; Puebla 1979; Santo Domingo 1992; Aparecida 2007. Para não cair aqui numa euforia ‘triunfalista’, é preciso dizer que a formulação ‘opção pelo pobre’, incondicional em Medellin 1968, fica ‘amansada’ com o tempo, o que mostra resistência, muitas vezes passiva, por parte da maioria. Passa-se de ‘opção pelos pobres’ para ‘opção preferencial pelos pobres’ (em Puebla) e ‘opção não exclusiva nem excludente’ (em Aparecida).

 Aqui se verifica uma conquista definitiva: o lema ‘opção pelos pobres’, expresso em Medellin, não é uma palavra retórica vazia, como se verifica no surgimento de uma geração excepcional de bispos, que podem ser chamados de ‘Padres da Igreja Latino-americana’. Uma geração tão excepcional, segundo o teólogo José Comblin, só aparece de mil em mil anos na história da Igreja: Mons. Proaño no Ecuador (o bispo dos indígenas andinos), Mons. Larrain no Chile (o bispo da nova reforma), Mons. Mendez Arceo em Cuernava, no México (o bispo da Missa Panamericana), Mons. Samuel Ruiz em Chiapas, no México, (que fala seis línguas indígenas de Chiapas), Mons. Romero em El Salvador (o bispo do ‘não matarás’), Mons. 

Girardi em Guatemala, os bispos Helder Câmara, Valdir Calheiros, Antônio Fragoso, Pedro Casaldáliga, José Maria Pires, além dos Cardeais Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, todos no Brasil. São bispos que simbolizam uma guinada histórica da Igreja católica universal. Estamos acostumados a chamar os intelectuais do primeiro milênio da tradição de Jesus de ‘Padres da Igreja’. A Igreja Católica Latino-americana dispõe hoje de uma Patrologia que pode ser comparada à clássica Patrologia, representada por Atanásio, Basílio, Gregório, Crisóstomo, Agostinho, Jerônimo, Ambrósio, Dámaso e Hilário. Hoje, na América Latina,  dispomos de textos de Romero (El Salvador), Proaño (Ecuador), Angelelli (Argentina), Samuel Ruiz (Chiapas, México), Mendez Arceo (Cuernavaca, México), Câmara (Recife), Larrain (Chile), Girardi (Guatemala), Valdir Calheiros (Volta Redonda), José Maria Pires (João Pessoa), Casaldáliga (Conceição do Araguaia), Fragoso (Crateús), Lorscheider (Fortaleza), Arns (São Paulo), Krautler (Xingu), Balduíno (Goiás Velho). Todos nos deixaram textos, longos ou curtos que merecem ser lidos, publicados e estudados a fundo, com a mesma aplicação e o mesmo respeito com que lemos a antiga Patrologia.

O documento mais importante dessa Patrologia latino-americana é constituído pelas 2.110 Cartas Circulares de Helder Câmara escritas entre 1962 e 1976. Dessas Cartas Circulares, até agora (2016), foram publicadas 13 Tomos, desde a primeira, redigida na noite entre 12 e 13 de outubro de 1962. A última, publicada até hoje, data da noite entre 24 e 25 de janeiro de 1970. O bispo redigiu essas cartas na vigília noturna que ele manteve desde os tempos de sua ordenação, entre aproximadamente uma hora da madrugada até duas horas ou mais. Prevê-se para os próximos anos a publicação completa (com mais quatro ou cinco tomos, completando uma coleção de aproximadamente 18 Tomos). Apresento aqui uma leitura superficial das primeiras Cartas, em que o tema da pobreza aparece em alto relevo.

A primeira Carta, que conta a abertura do Concílio Vaticano II (12-13/10/1962), se inicia com uma frase enigmática: ‘O Concílio vai ser dificílimo’. Por que? Só na nona Carta (21/10) se encontra uma explicação: os bispos em Roma não aprofundam o tema da pobreza no mundo. Enquanto Dom Helder sente desalento ao observar como os bispos andam preocupados com a liturgia, a disciplina eclesiástica, o comunismo, o secularismo, o ateísmo, os seminários, o ecumenismo, a organização das dioceses, etc. ele sente certo alento quando verifica que, mesmo assim, um texto circula entre os bispos. São as ‘Réflexions nazaréennes pour le Concile’, da autoria do já mencionado Padre Paul Gauthier. De qualquer modo, o tema da pobreza aparece em Roma, pensa Helder Câmara. Na Carta 12, de 24/10, ele escreve que está procurando pessoas que possam levar adiante a questão da pobreza na Aula Conciliar. Mas as pessoas que ele consegue contatar, como o Cardeal Suenens, o Cardeal Lercaro, o Padre Congar, o Padre Houtart, alegam a dificuldade em fazer entrar em pauta oficial esse tema, já que os bispos, em geral, pensam em outros assuntos. Em seu desalento, o ‘bispinho’ Helder recorre a Monsior Francisco (em todas as suas cartas, Helder se refere a São Francisco por meio do nome ‘Monsior’). É com Monsior que ele ‘sonha em ver a Igreja enfrentar a luta pelos humildes e pobres’ (ibidem).

Penso que existe aí um desafio hoje, 17 anos após a morte de Helder Câmara. As Cartas Circulares estão aí, para serem atenta e minuciosamente lidas, pois contêm sugestões importantes e atuais, para a Igreja na América Latina. Essas Cartas estão sendo publicadas pela Editora do Estado de Pernambuco (CEPE). Veja: Câmara, H., Circulares conciliares, Volume I, Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2009, 3 tomos; Volume II, Circulares interconciliares, CEPE, Recife, 2009, 3 tomos; Volume III, Circulares pós-conciliares, CEPE, Recife, 2011, 3 tomos; volume IV, CEPE,
Recife, 2014, 4 tomos (em total, são 13 tomos publicados até hoje). 

O nascimento da Igreja Latino-americana traz consigo alguns questionamentos, entre os quais destaco, em textos separados, três:
- questionamentos em torno da pobreza;
- questionamentos em torno do ritualismo;

- questionamentos em torno do sacerdócio.